“Só teremos avanços se enfrentarmos os
privilégios”, Guilherme Boulos
Entrevista concedida à Francisvaldo Mendes e Gilberto Maringoni
Guilherme Boulos é um dos mais importantes dirigentes sociais brasileiros. Ao longo de duas décadas, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), no qual milita, se firmou como resposta representativa à crônica carência de pelo menos 6,2 milhões de moradias para famílias pobres em nosso país. Nessa condição, Boulos foi escolhido pré-candidato a presidente da República pelo PSOL, em inédita aliança com movimentos sociais. Em uma tarde quente e abafada, Guilherme Boulos concedeu, no centro de São Paulo, a entrevista que se segue.
Por que motivo as pessoas devem votar em você?
Porque temos um projeto popular para tirar o país deste atoleiro e sabemos que ele só é possível com uma nova forma de fazer política. Com as maiorias sociais. Este é o sentido da nossa pré-candidatura. O Brasil vive uma crise profunda e é preciso construir saídas políticas e democráticas. É necessário colocar o dedo na ferida de algumas questões fundamentais: o tema da desigualdade e o tema da democracia. O Brasil permanece sendo um dos países mais desiguais do mundo. Para se ter avanços nos direitos sociais, hoje, é preciso enfrentar privilégios. É preciso questionar um sistema tributário injusto, em que os ricos praticamente não pagam impostos, pagam proporcionalmente muito menos do que os pobres e do que a própria classe média. Quem tem um carro velho paga o IPVA no começo do ano e quem tem um jatinho ou uma lancha não paga nada. Um trabalhador paga 7,5%, 15%, até 27,5% de imposto de renda, enquanto o Joesley Batista, de R$ 100 milhões que ganhou no ano passado, pagou R$ 300 mil, pois não há tributação de lucros e dividendos no Brasil. Não vai haver emprego, não vai haver saúde, não vai haver educação se não houver políticas públicas de investimento, se o Estado não recuperar a sua capacidade de investir. E o Estado só pode recuperar sua capacidade taxando quem tem muito. Em relação ao tema democrático, nós vivemos em um momento de muita desilusão, de muita desesperança no país. As pessoas não acreditam mais em saídas políticas. E, convenhamos, elas têm razão para estarem descrentes, pois esse sistema político não representa as maiorias. O Estado está sequestrado pelas grandes corporações, pelos bancos, pelos interesses econômicos e está fechado para a participação popular. Democracia não pode ser só apertar um botão a cada quatro anos e não decidir mais nada. Democracia deve significar ter o povo no tabuleiro para fazer política de outro jeito. As pessoas poderem decidir sobre os assuntos fundamentais por meio de plebiscitos, de referendos.
“O Brasil vive uma crise profunda e é preciso construir saídas políticas e democráticas. É necessário colocar o dedo na ferida
de algumas questões fundamentais: o tema da desigualdade
e o tema da democracia”
Você é um dirigente social de larga projeção e sai dessa condição para ser uma liderança política, com os riscos que tal condição acarreta. Como isso se deu?
Eu não faço voo solo. Uma decisão como essa foi tomada junto com meus companheiros e companheiras do MTST, avaliando passo a passo o que isso significaria para o movimento e o que isso significa para o projeto de mudança em que nós acreditamos. O contexto do golpe criou no país uma situação em que não é mais possível para um movimento social ficar só no seu quadrado. Se o MTST ficasse falando só de moradia, além de não conseguir moradia, ia ser atropelado pela luta política que se estabeleceu no país. E o movimento ousou e se desafiou a entrar em uma disputa mais ampla. Isso não aconteceu agora. Foi há alguns anos, quando a gente resolveu impulsionar a Frente Povo Sem Medo e se colocar na linha de frente contra o golpe, contra as reformas do Temer e em defesa dos direitos. Havia riscos. Se o movimento pensasse apenas na sua pauta corporativa, poderia ficar quietinho, conseguir umas migalhas de moradia aqui e acolá, e não entrar na batalha maior. Isso seria um erro, pois quando você se rende, fica refém do favor dos outros. Nosso movimento nunca precisou de favor, sempre lutou para ter conquistas. Em segundo lugar, não queremos olhar para trás daqui a vinte anos e ver apenas alguns conjuntos habitacionais. Achamos que a potência que o nosso movimento representa deve levar a um projeto de mudança. Depois da Frente Povo Sem Medo, nós ainda impulsionamos a plataforma Vamos, em que não era mais apenas unidade nas lutas e nas mobilizações, mas era debater um projeto de país de forma ousada, nas praças. Foram mais de 50 debates em todas as regiões do Brasil, com mais de 150 mil pessoas participando pela plataforma virtual. Estreitamos uma aliança e uma relação com o PSOL e com uma série de movimentos sociais de outros setores da sociedade, e foi daí que surgiu a proposta de uma pré-candidatura à presidência da República. O projeto que nós estamos construindo não termina em outubro deste ano.
Periferia, militância e psicanálise
Quem é
Guilherme Boulos, 35 anos, formado em Filosofia na USP, com extensão de Psicanálise na PUC e mestrado em Psiquiatria na USP.
História
“Eu comecei a militar aos 15 anos, no movimento estudantil secundarista. Muito moleque ainda fui aprendendo a me indignar. Tive uma militância partidária, na União da Juventude Comunista (UJC), e no movimento estudantil, que é aquela miríade de partidos e correntes. Uma coisa começou a me incomodar profundamente. Era ver um monte de gente falando em nome do povo, apresentando os melhores programas para o povo, apresentando as soluções para a vida do povo, mas nenhum ali se dispunha a ouvir o povo. Nenhum ali se dispunha a estar junto com o povo e a lutar junto com as pessoas. Isso fez com que eu buscasse outros caminhos. Entrei para o MTST em 2001, com 18 anos e fui morar em uma ocupação no ano seguinte. Construí a minha vida no movimento, onde me casei, tive minhas filhas e construí minhas amizades”.
Onde vive
“Moro na periferia de São Paulo. Vejo gente, especialmente nas redes sociais, questionando minha atuação no movimento sem-teto por não ter origem ali. Acho que o problema não é ter pessoas que encampem as causas populares e dediquem suas vidas a elas. O grande problema da esquerda é ter um monte de gente que não se dispõe a ir para a periferia fazer trabalho de base”.
Além da militância, o que faz
Quando eu me interessei pela psicanálise, já estava na militância. Dou aula em um curso de especialização de psicanálise e liderança, para gestores da área de saúde. Neste ano não vai ter como…
E por que o PSOL?
Nessa caminhada, fomos construindo a aproximação com o PSOL por uma série de razões. Primeiro, por uma identidade de posição na conjuntura. O partido, assim como o MTST, se colocou contra o golpe e, ao mesmo tempo, não deixou de criticar as posições que o governo Dilma tomou, em especial botando Joaquim Levy no Ministério da Fazenda e fazendo o ajuste fiscal. Depois, estivemos juntos na oposição decidida, de rua, de resistência ao governo Temer e às suas reformas. Novamente, as posições se aproximaram na defesa do direito de Lula ser candidato, sem que isso signifique adesão ao seu programa. Há, sobretudo, uma compreensão comum, que se expressou na plataforma Vamos, de ser preciso pensar um novo projeto de esquerda para o país. Um projeto que, ao mesmo tempo, seja capaz de reconhecer avanços que ocorreram nas experiências de 13 anos do governo do PT, mas que também seja igualmente capaz de apontar seus limites e fazer a crítica. Hoje não há mais espaço para um país de um ganha-ganha. Não há mais bases reais para a estratégia de conciliação. Não tem mais como fazer mais política social só com manejo orçamentário, sem enfrentar privilégio.
“Nós vivemos em um momento de muita desilusão, de muita desesperança no país. As pessoas não acreditam mais em saídas políticas. E, convenhamos, elas têm razão para estarem descrentes, pois esse sistema político não representa as maiorias. O Estado está sequestrado pelas grandes corporações, pelos bancos, pelos interesses econômicos e está fechado para a participação popular“
Como você vê o papel do Lula na conjuntura?
Gostem ou não do Lula, é inegável que ele é a maior liderança social do país. Eu tenho diferenças políticas com o Lula. Aliás, diferenças que tive a oportunidade de colocar para ele em diferentes ocasiões. Não dá para aceitar que, depois de um golpe, o PT não aprenda as lições desse processo e vá fazer aliança com Renan Calheiros em Alagoas, com Eunício Oliveira no Ceará, e queira recompor um modelo de governabilidade que faliu. As críticas aos limites que tenham as experiências de 13 anos de governos do PT nós do MTST sempre fizemos. Mas, da mesma forma que é um equívoco profundo dizer que “quem critica faz o jogo da direita”, é um equívoco profundo também só ver diferença e ter a incapacidade de enxergar pontos de acordo no enfrentamento ao golpe e na defesa democrática.

Sua relação com o Lula é mais atritada ou mais de entendimento?
Acho que de tudo que nos diferencia da direita, a generosidade e a solidariedade são as principais. Temos de saber separar diferença política e crítica de uma linha de ataque e destruição do outro. Eu tenho uma relação de respeito e admiração pelo Lula, sem que isso tenha me impedido jamais de fazer as críticas políticas a ele e demarcar as diferenças. O Lula está sofrendo um massacre, uma perseguição judicial. Eu não vou deixar em nenhum momento, mesmo com as diferenças políticas, de me solidarizar a ele. Assim como não me furtei a assumir o desafio de estar à frente de uma Aliança que apresenta um projeto novo para a esquerda brasileira. É preciso ter maturidade e separar as coisas. Mover-se por ressentimento nunca ajuda na política ou na vida.
Uma das críticas que se faz à Dilma é que ela foi presidenta da República sem nunca ter tido um mandato eletivo. Você tem uma tremenda experiência social, mas também não passou por essa experiência. Como vê um futuro governo do PSOL?
Primeiro, se experiência na vida política partidária fosse atestado de bom governo, o Temer seria o melhor presidente da história do Brasil. Há 50 anos ele está no jogo político partidário e é um desastre nacional. Acho que, para fazer um governo como nós queremos, de transformação profunda da sociedade, ter uma experiência de 15 anos em ocupações de terra, convivendo, lutando e ouvindo as pessoas, não é menos importante do que ter uma experiência na política partidária. O campo democrático nunca teve maioria parlamentar no nosso país. As oligarquias e os interesses econômicos, com as suas bancadas, sempre controlaram o Congresso. Se a gente parte da equação de que o único jeito de sustentar um governo é se basear no Legislativo, neste modelo de governabilidade, então vamos rebaixar o programa. Eu não parto desse pressuposto. Acho que existem experiências históricas, aqui e lá fora, que nos mostram ser possível governar apoiado nas maiorias sociais.
“O contexto do golpe criou no país uma situação em que não é mais possível para um movimento social ficar só no seu quadrado. Se o MTST ficasse falando só de moradia, além de não conseguir moradia, ia ser atropelado pela luta política que se estabeleceu no país. E o movimento ousou e se desafiou a entrar em uma disputa mais ampla“
A Erundina fez isso em São Paulo.
A Erundina fez isso. Tinha minoria na Câmara e mobilizava as pessoas. As pessoas mobilizadas têm condições de pressionar o Congresso a fazer aquilo que ele não faria de bom grado. Nós temos várias experiências na América Latina que mostram que, com organização da sociedade desde baixo, nós somos capazes de promover mudanças muito mais profundas do que seria apenas com o debate parlamentar. Isso não significa negar o papel do Parlamento. É preciso haver diálogo com o Parlamento. O que não pode haver é a manutenção de um esquema de governabilidade baseado na chantagem, no balcão de negócios, na compra de voto por cargo do governo. Nós precisamos pensar uma forma de fazer política que não seja a mesma coisa que politicagem. Para isso, é preciso trazer o povo para o processo de decisão, criando um amplo movimento nacional para plebiscitos e referendos em relação aos temas fundamentais.
Caso ganhe as eleições, quais serão as suas primeiras iniciativas?
A primeira é propor um plebiscito que vise revogar as medidas mais desastrosas tomadas pelo governo Temer. E aqui destacamos: reforma trabalhista, Emenda Constitucional 95, que cortou por 20 anos o investimento público no Brasil, e a entrega do pré-sal, dentre outras. Não é possível um governo popular que tenha congelamento de investimentos sociais por 20 anos. Isso destrói a capacidade de investimento do Estado brasileiro. Porque não é possível ter um governo para as maiorias com uma legislação trabalhista em que o povo vá trabalhar por hora em trabalho intermitente, em que se destruam todos os direitos e garantias. Além disso, há duas medidas que considero especialmente importantes. Uma é propor uma reforma tributária que permita o financiamento público de um programa amplo de investimentos no Brasil. Uma reforma tributária progressiva. E este recurso de arrecadação deve ser utilizado para um amplo programa de investimentos públicos, que vai recuperar emprego, vai recuperar renda e vai permitir financiar políticas públicas de saúde, de educação, de moradia para o povo brasileiro.
Há algum setor do empresariado com o qual seja possível estabelecer alianças?
Eu não consigo vislumbrar hoje um setor da classe dominante no país que se comprometa com um projeto profundamente democrático, distributivo, de combate à desigualdade e que também crie condições para um novo modelo de desenvolvimento no país.

Como você vai lidar com a mídia?
A primeira coisa é cumprir a Constituição. A Carta de 1988 proíbe monopólio, proíbe que políticos tenham concessões e proíbe propriedade cruzada. A Globo faz as três coisas ao mesmo tempo. E várias concessões da Globo pelos estados estão controladas por políticos. Emissora é concessão pública e assim tem de ser tratada. Nós temos que fazer uma democratização dos meios de comunicação no país para termos uma diversidade de vozes falando para o povo brasileiro. Não se trata de censurar ninguém. Além disso, é preciso ter, como a própria Constituição prevê, uma cota para empresas de comunicação públicas e comunitárias. Em relação às verbas publicitárias, elas têm que seguir esse mesmo critério democrático. Hoje é um escândalo. As verbas publicitárias reforçam uma estrutura antidemocrática. O Estado é um poderoso anunciante e tem usado esse anúncio para enriquecer e fortalecer ainda mais as grandes emissoras de plantão.
Como você analisa os episódios de junho de 2013?
Junho de 2013 foi uma panela de pressão que explodiu. Não à toa, ela se deu em torno de um tema eminentemente urbano: a crise de mobilidade. A crise urbana antecedeu, no Brasil, a crise econômica. Qual foi o modelo adotado pelo governo do PT em relação às cidades? Muito crédito, tanto crédito imobiliário individual como crédito para as grandes empresas da construção, e financiamento de grandes obras através do PAC e para o Minha Casa, Minha Vida. Foi o período em que houve mais investimento de recursos, seja pelo crédito, seja pelo investimento público direto, em políticas urbanas. No entanto, isso se deu sem nenhuma regulação pública. Você empodera grandes construtoras com crédito. Elas saem comprando terreno. O estoque de crédito imobiliário no Brasil em 2005 era de R$ 4,8 bilhões. Em 2014 era de R$ 102 bilhões! Ou seja, mais de 2.000% de acréscimo em uma década. O problema não é ter crédito, muito menos ter investimento público. O problema é que, quando não há regulação, não se utilizaram os instrumentos previstos no próprio Estatuto das Cidades. Cria-se um surto de especulação imobiliária.
Financeiriza-se o mercado imobiliário.
Exato. A terra virou ativo financeiro. E aí, o que acontece na vida das pessoas? Elas foram jogadas para mais longe. O metrô chegou à periferia por conta do investimento. Excelente! Mas a periferia fugiu do metrô. Porque o cara que pagava aluguel de R$ 500 onde tinha o metrô viu que o contrato aumentou para R$ 1 mil e ele teve que ir morar em um bairro mais distante. Isso significa piorar as condições de moradia. Mais do que isso, significa você ter menos acesso a serviço público. O cara que morava na zona leste de São Paulo, em Itaquera, ele foi para Guaianazes ou Ferraz de Vasconcelos, depois do boom imobiliário. Enfim, ele foi jogado de uma maneira em que os serviços públicos que existiam em Itaquera, já muito precários, são piores ainda mais longe. Se, em Itaquera, ele demorava uma hora para chegar ao serviço, agora ele demora duas. Isso o próprio PT reconheceu nas campanhas municipais quando fez o debate: “Melhoramos da porta para dentro e precisamos melhorar da porta para fora”. Mas não ocorreu isso e as cidades viraram verdadeiros barris de pólvora. Houve uma onda de ocupações entre 2013 e 2015 nas grandes cidades. Havia um clima de insatisfação, que fez com que a pauta da mobilidade tivesse um apelo grande. Mas os motivos das mobilizações não se limitaram a isso, houve a repressão. É claro que, enquanto os atos eram apenas do MPL, não eram tão grandes. Depois, a pauta foi capturada.
“Gostem ou não do Lula, é inegável que ele é a maior liderança social do país. Eu tenho diferenças políticas com o Lula, mas não vou deixar em nenhum momento de me solidarizar a ele. Assim como não me furtei a assumir o desafio de estar à frente de uma Aliança que apresenta um projeto novo para a esquerda brasileira. É preciso ter maturidade e separar as coisas. Mover-se por ressentimento nunca ajuda na política ou na vida”
Houve uma disputa na condução daquele processo?
Não dá para se examinar junho de 2013 apenas por uma das duas lentes. Não dá pra se ver como uma conspiração golpista que articulou as pessoas para irem às ruas com o apoio dos Estados Unidos, nem ver junho de 2013 como a porta da Revolução Socialista. Minha opinião não é nem uma e nem outra. A grande questão é que o pós-junho gera duas pernas. O estouro da panela de pressão encerrou o momento do consenso e recolocou as ruas como atores políticos. Pode ter havido elementos de manipulação nas redes, como os Estados Unidos fizeram em outras partes do mundo? É evidente que pode, quando setores da direita viram que poderiam capturar aquela mobilização legítima para outras finalidades. É verdade que o caldo, em seguida, foi apropriado para a direita sair do armário e começar a defender tortura e intervenção militar. Isso deságua nas manifestações golpistas de verde e amarelo, em 2015. É igualmente verdade que esse mesmo caldo de junho, por outras vertentes, gerou as ocupações de escola dos secundaristas, gerou um crescimento de movimentos como o MTST, gerou coisas dinâmicas também no movimento social. Não é possível fazer uma leitura unilateral do que foram as mobilizações de junho de 2013.

É possível dizer que o pacto resultante da Constituição de 1988 acabou?
Acabar não acabou. Ele está ainda aí se arrastando, mas eu o vejo em uma crise profunda. É importante ressaltar que quem rompeu o pacto foi o andar de cima. Foi o discurso cínico de que a Constituição não cabe no orçamento. A Constituição é o emblema, é o símbolo do pacto que se estabeleceu na construção da Nova República. Ela foi sendo desfigurada na dimensão que tinha de Estado social – a Emenda Constitucional 95 é um golpe derradeiro nisso, assim como a reforma da previdência, que não conseguiram aprovar. O fim da CLT não remete nem ao pacto de 1988, mas ao pacto de 1943. O golpe fez, em dois anos, o Brasil andar cem anos para trás. O sentimento de crise de representação, de antipolítica, é muito forte, e acho que há uma crise de hegemonia que se expressa, inclusive, na briga entre os poderes da República. Temos um Poder Executivo sem legitimidade e um Legislativo desmoralizado. O Judiciário se aproveitou e falou: “Opa, é a minha vez”. E este foi tomando protagonismo através da Operação Lava Jato – um protagonismo político, ocupando um vácuo de poder pelo enfraquecimento dos outros dois poderes. Depois, você tem uma reação que começa a se formar. Todos eles estavam juntos no momento do golpe e a coalizão do golpe num segundo momento. Há uma reação representada, nesse momento, pelo Temer. Aqui nós estamos falando de “poder”, evidentemente, de uma maneira genérica, porque há divisões dentro dos poderes, também. Dentro do Poder Judiciário, essas divisões são manchetes todos os dias nos jornais. O sistema político perdeu a capacidade básica de coesionar a sociedade. Todo sistema político tem que, de algum modo, criar coesão e criar condição de ter maiorias sociais. Mesmo a ditadura militar, ilegítima politicamente, teve maiorias sociais. Ela começa a ficar mal das pernas quando perde a capacidade básica de aglutinar. Isso leva à transição. O sistema político da Nova República perdeu a capacidade básica de coesionar a sociedade brasileira. Qual é a alternativa para essa crise em que o Brasil está? Eu não vejo, no sistema político da nova República, capacidade para se reinventar dentro dos mesmos marcos.
“As pessoas mobilizadas têm condições de pressionar o Congresso a fazer aquilo que ele não faria de bom grado. Nós temos várias experiências na América Latina que mostram que, com organização da sociedade desde baixo, nós somos capazes de promover mudanças muito mais profundas do que seria apenas com o debate parlamentar”
Você acha que, nesse momento, o Exército pode assumir algum protagonismo?
São cada vez mais preocupantes as movimentações de setores do Exército, ainda que não da corporação como um todo. Uma coisa é meia-dúzia de loucos ou um general de pijama do Clube Militar falar nos jornais ou vir com uma faixa na Avenida Paulista, ou no Leblon, ou onde quer que seja, para falar de intervenção militar. Outra coisa é general quatro estrelas do alto comando flertar com isso. A intervenção no Rio de Janeiro é algo preocupante nesse sentido, por duas razões. Primeiro, porque ela mexe com a ideia, no imaginário na sociedade, de que militar resolve. Não digo que o interesse do comando do Exército seja hoje fazer uma intervenção militar e que o general Villas Bôas queira isso. Aliás, o general Villas Bôas, mesmo com declarações preocupantes que deu no último período, é uma das vozes mais lúcidas do alto comando. O entorno ali é mais complicado. O segundo motivo são declarações, que estão sendo cada vez mais naturalizadas, de que o Rio de Janeiro é um laboratório para o país. Se isso for levado a cabo, e começarmos a ter intervenção do Exército na Segurança Pública em vários estados brasileiros, onde isso vai parar? Isso afeta o movimento social, afeta a juventude pobre e negra das periferias e favelas. Os alvos são os mesmos de sempre. Soltar pitbull é fácil. Difícil é prender depois.

O que significa ter Sonia Guajajara como vice?
É um compromisso de que nosso projeto de esquerda precisa se deparar com uma dívida histórica do Estado brasileiro para com o seu povo. É uma dívida na qual, muitas vezes, a esquerda teve dificuldades de se colocar. Ter a Sonia não apenas como vice, no sentido tradicional, mas como parceira na chapa expressa este compromisso com a questão indígena. A luta indígena é a luta de resistência mais antiga da história do Brasil. É a luta contra um genocídio, é a luta pela terra. E mais do que isso, queremos afirmar nosso compromisso com amplos setores que historicamente sofrem opressões no Brasil. É entender que ainda há no Brasil uma herança da escravidão, e que a luta contra o racismo, a luta dos negros e negras, é uma luta libertadora e tem a ver com a forma como o capitalismo se estruturou por aqui. Não é algo secundário. Hoje implica enfrentar sem rodeios o genocídio da juventude pobre e negra nas periferias, propondo um outro modelo de segurança pública, que passe pela desmilitarização da polícia. É preciso incluir também a luta feminista. Ela se expressa em agendas muito definidas, como por exemplo, o direito das mulheres de decidirem sobre o seu corpo e tratar o tema do aborto como um tema de saúde pública. E são lutas contra a desigualdade. Os negros, no Brasil, recebem metade do salário dos brancos. As mulheres ainda ganham consideravelmente menos do que os homens pela mesma função. A questão LGBT, por sua vez, tem muito a ver com os níveis de intolerância a que se chegou na sociedade. Não é admissível que o Estado ou a religião defina a forma como as pessoas vão se amar. A criminalização da homofobia e a defesa do casamento civil igualitário são pautas candentes para a esquerda. É errado ver isso como pautas identitárias simplesmente. Tocam em questões estruturais e estão diretamente relacionadas à luta por liberdades e contra a desigualdade no Brasil.
“Eu não consigo vislumbrar hoje um setor da classe dominante no país que se comprometa com um projeto profundamente democrático, profundamente distributivo de combate à desigualdade e que também crie condições para um novo modelo de desenvolvimento no país”
Esse avanço da direita acontece também em quase toda a América Latina. Como vê isso?
É evidente que há um crescimento de governos de direita na América Latina e no mundo. Há uma ofensiva conservadora. Não podemos separar isso do processo da crise econômica e das reações de cada sociedade a essa crise. A crise, por sua própria configuração, reduz as margens de conciliação, o cobertor fica mais curto e as saídas se tornam polarizadas. As alternativas de centro se enfraquecem. Estamos vendo isso no Brasil. Todo mundo quer construir um centro, reorganizar um centro. O centro implodiu. E assim foi e tem sido em parte importante do mundo. Você tem tido polarizações, o que é próprio de momentos de crise, entre alternativas de direita que surfam no discurso de xenofobia – “os inimigos dos nossos empregos são os imigrantes”. Principalmente na Europa e nos Estados Unidos, esse discurso é fortíssimo, muitas vezes com ingredientes de intolerância e com uma pauta econômica neoliberal.
“Vamos propor um plebiscito que vise revogar as medidas
mais desastrosas tomadas pelo governo Temer. E aqui
destacamos: reforma trabalhista, Emenda Constitucional 95
e a entrega do pré-sal, dentre outras”
E como examina a esquerda no plano internacional?
Esse processo de polarização faz o Donald Trump ganhar nos Estados Unidos, mas gera também o fenômeno Bernie Sanders. Ele possibilita o governo de Mariano Rajoy, na Espanha, mas faz surgir o Podemos. A França foi um caso à parte, porque ali se reconstruiu alguma coisa parecida com um centro, a partir da polarização entre Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon. A mesma dinâmica que elege o Sebastian Piñera no Chile faz com que a Frente Ampla, organizada por estudantes que ocupavam escolas e universidades, tenha 20% nas eleições presidenciais. Digamos que surge uma nova direita – com velhos métodos e a velha política econômica -, mas com um discurso diferente. Mas também nesse mesmo período há novas experiências de esquerda. Este processo está relacionado à crise de representação das democracias liberais, de baixa intensidade e à falta de horizontes produzida pela crise econômica. As pessoas estão sem perspectiva de futuro. Isso se expressa também nos altos níveis de abstenção eleitoral. Trump e Bolsonaro são personalizações da repulsa à política. Não me parece ser uma particularidade atual. A ascensão do fascismo pós-crise de 1929 se deu em clima análogo de desilusão com a política. É óbvio que precisamos combater a ascensão da direita. Mas temos de compreender também o desafio que isso coloca para o campo da esquerda. Se não dialogarmos com a insatisfação diante da política, ela vai ser canalizada toda pela direita.
Entrevista publicada originalmente na edição nº21 da Revista Socialismo e Liberdade da Fundação Lauro Campos
Baixe e leia a revista na íntegra
Leia on-line a Revista Socialismo e Liberdade nº21
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