Todas filhas, mães e irmãs: que todas se olhem
e ninguém se esqueça
Manoella Back, do PSOL/Blumenau/SC
Tenho o hábito de conversar em determinados espaços sobre questões voltadas a pessoas com deficiência, geralmente com recorte de gênero. As falas costumam ser curtas e, em uma hora, preciso dar conta de falar de relações de acesso à trabalho, estudos, nossos direitos reprodutivos (ou a ausência deles), capacitismo, origem da discriminação da pessoa deficiente na Revolução Industrial e outras formas de opressão. Chamo atenção para nomenclaturas as quais usamos ou que em algum período histórico já usamos para nos referir às e aos deficientes. Deixo as mesmas pairando no ar justamente para entender como estes termos soam para pessoas dos nossos tempos: pessoa defeituosa, pessoa excepcional, pessoa especial, pessoa portadora de necessidade especial/ deficiência ou os termos já aceitáveis como pessoa com deficiência ou deficiente. Particularmente, costumo usar este último por compreender e pactuar da ideia de que a deficiência não é mero anexo nosso como pessoa com deficiência propõe, mas sim que a deficiência é parte da gente:
Deve-se entender deficiência como um conceito amplo e relacional. É deficiência toda e qualquer forma de desvantagem resultante da relação do corpo com lesões e a sociedade. Lesão, por sua vez, engloba doenças crônicas, desvios ou traumas que, na relação com o meio ambiente, implica em restrições de habilidades consideradas comuns às pessoas com mesma idade e sexo em cada sociedade. Lembro que deficiência é um conceito aplicado a situações de saúde e doença e, em alguma medida, é relativo às sociedades onde as pessoas deficientes vivem. Além disso, evito o uso da expressão pessoa portadora de deficiência ou pessoa com deficiência, mas adoto pessoa deficiente ou, simplesmente, deficiente. (DINIZ, 2003, p. 2).
Falo ainda do Modelo Social da Deficiência (MSD) que se tornou revolucionária da área de saúde, só cresceu e se manteve graças às teorias feministas. Em resumo, o MSD é a ideia revolucionária de que pessoas com deficiência são seres humanos e não meros diagnósticos. O modelo iniciou com homens ingleses, brancos, de classe média e com lesão medular. Depois da entrada das feministas na reflexão, foi possível tratar de outros temas que tangenciam as deficiências como a teoria da dependência, espaços das dores – físicas e emocionais – lugar das cuidadoraAs e outras subjetividades. O modelo daria conta de abarcar as mulheres LGBT+ com deficiência, mulher negra com deficiência, mulher indígena com deficiência e mulher periférica, para chamar atenção para as possíveis formas de opressão. Graças a importância do MSD, a Organização Mundial de Saúde reclassificou seu catálogo internacional de doenças, revisou nomenclaturas e buscou fugir do modelo caritativo e médico da deficiência. Seu maior impacto, para mim, está na luta por Direitos Humanos, já que o modelo refuta que a cura não está na terapêutica e sim, na política. A deficiência não está em nós mas sim, do mundo externo:
A base para esta reconfiguração do modelo social da deficiência deve se basear no reconhecimento da centralidade da dependência nas relações humanas, no reconhecimento das vulnerabilidades das relações de dependência e seu impacto sobre nossas obrigações morais e, por fim, nas repercussões dessas obrigações morais em nosso sistema político e social. (DINIZ, 2003, p. 7)
Reforço ainda que, assim como muitas mulheres com deficiência, a imagem padrão do deficiente não me representa: tenho deficiência física, porém não sou cadeirante. Não representa, pois vivo e estou sujeita a outras formas de opressão que o sujeito – aqui eu me refiro aos homens – não estão. Há dados que definem muito bem este contexto:
– 40% das mulheres com deficiência já sofreram algum tipo de violência. No Brasil, há 25.800.681 de mulheres com deficiência, o equivalente a 26,5% da população feminina, segundo dados do IBGE (Censo de 2010).
– Mulheres com deficiência estupradas não alcançam nem metade dos casos na profilaxia de IST (39,6%), HIV (27,6%); coleta de sangue (45 %), coleta de sêmem (6,8%); coleta de secreção vaginal (15,5%); contracepção de emergência (26%); e aborto previsto em lei (1,5%).
– E quando o agressor acha que está fazendo um “favor” a vítima porque deu uma “experiência sexual” a ele? Ou seja, somos aceitavelmente estupradas e nossa solidão justificada pelo preconceito alheio.
Já a ausência de dados no que diz respeito a assédio que é uma constante nas vidas de mulheres deficientes também preocupa. E já que o assédio é um problema, porque não falar em trabalho? Por mais que tenhamos a Lei da Cotas, que exige que empresas com mais de 100 funcionários tenham em sua equipe uma porcentagem mínima de pessoas com deficiência ou reabilitados, ainda é possível fazer mais um recorte de gênero. No Brasil há cerca de 45 milhões de pessoas com deficiência. Mesmo com as cotas apenas 403 mil pessoas exercem algum tipo de trabalho remunerado. Com o recorte de gênero, 259 mil pessoas desta específica classe trabalhadora são homens e 144 mil trabalhadoras mulheres.
Além de tudo o mercado nos enxerga como mero cumprimento de lei, já que “88% dos RHs ainda veem pessoa com deficiência como cota” e, na prática, as vagas dos deficientes são ainda previamente selecionadas pois são vagas frequentemente direcionadas a base da pirâmide, com baixo salário e carga horária inferior. Nisto, está inserido toda a discriminação já com a assertiva de que “somos incapazes”. Com todo o exposto, fica impossível não lançar a provocação: o que nós, pessoas com deficiência, significamos para sistema capitalista?
Recentemente foi promulgada a Lei 13.409/ 2016 que garante ações afirmativas às pessoas deficientes já que somos apenas 0,42% dos ingressos nas universidades brasileiras.
Súplica é uma palavra que pode soar pesada. Porém, eu suplico às pré-candidatas e para que ninguém pense que essas barreiras são apenas arquitetônicas. Não é só falta de acesso! O que nos atinge de forma mais específica é como toda uma sociedade explora nosso “lugar de dor” já que “lugar de fala”, mesmo dentro do próprio movimento feminista, raramente temos. Além do machismo de todos os dias, é difícil lidar com o capacitismo. No final do ano de 2016, em alusão ao Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, surgiu nas redes sociais a hashtag #Écapacitismoquando cujo objetivo era evidenciar nossas opressões e foi o estopim para que um mundo normatizado e alienado se aproximasse dos absurdos cotidianos que vive uma pessoa com deficiência, já que o capacitismo não surge apenas nos discursos de ódio ou de estranhamento. Ele está sempre na sua casa, do seu lado, na mídia e reforça o tempo todo que você não é capaz de viver de forma autônoma ou que pode tomar decisões próprias.
Por fim, como pertencente a estas duas categorias opressoras – mulher com deficiência – e muitas de nós tendo a ideologia de esquerda como predominante, assim como as ícones da luta socialista Rosa Luxemburgo e Frida Kahlo, é impossível não vislumbrar um horizonte nada positivo frente aos ataques do atual governo neoliberal e os avanços do conservadorismo brasileiro. Não há dúvidas de que vamos à luta! Mas queremos reforços de todas as mulheres e o mínimo de saúde mental para lidar com tudo isso, já que ser deficiente é contra hegemônico por natureza, porque sim, vamos continuar desviando de trajetos não adaptados com corpos que nem sempre vão responder com que o sistema vigente quiser.
Referências:
CANDIDO, Marcos. 88% dos RHs veem pessoa com deficiência apenas como cota. Disponível em: https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/01/15/deficientes-ainda-so-sao-contratados-por-cotas-diz-empresaria-cadeirante.htm > Acesso em: 18. mai. 2018
DINIZ, Débora. Modelo social da deficiência: a crítica feminista. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/15250/1/ARTIGO_ModeloSocialDeficiencia.pdf > Acesso em: 18. Mai. 2018
Instituto Patrícia Galvão. Pauta feminina: novos dados dimensionam a violência contra mulher com deficiência. Disponível em: < http://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/noticias-violencia/pauta-feminina-novos-dados-dimensionam-violencia-sexual-contra-mulher-com-deficiencia/ > Acesso em: 18. mai. 2018
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