CRISE FISCAL E O CASO CAPES
Assessoria Econômica do PSOL na Câmara
1) O teto dos gastos: crise fiscal ou projeto estrutural de mercantilização de todas as esferas da vida?
Desde 2015 a sociedade brasileira vem sofrendo as consequências drásticas de um autoritário e irresponsável programa de ajuste fiscal. A situação tornou-se progressivamente mais grave após o golpe parlamentar com a imposição da austeridade fiscal como política de Estado cristalizada por intermédio da Emenda Constitucional 95/2016, popularmente conhecida como a “PEC do fim do mundo”.
Com a vigência do novo regime fiscal, os gastos serão corrigidos, anualmente, de acordo com a inflação dos últimos 12 meses, até junho do ano anterior. Assim, em 2019, por exemplo, a inflação usada será a medida entre julho de 2017 e junho de 2018. Dessa forma, mesmo havendo crescimento econômico e populacional, os gastos públicos permanecerão estáticos. Isso quer dizer que haverá redução, ano a ano, do orçamento público em proporção ao PIB e também em relação ao crescimento demográfico. É pior do que congelamento: trata-se de esmagamento dos gastos sociais.
O grande objetivo do teto dos gastos é a redução do papel do Estado na economia em paralelo à consequente ampliação da atuação do setor privado nos espaços antes ocupados pelo setor público. Trata-se da constitucionalização da ideologia neoliberal de mercantilização de todas as esferas da vida. E isso é comprovado pelos dados[1]: com a vigência do teto dos gastos, a participação do Estado na economia passará de 19,6% do PIB em 2015, para 15,8% em 2026 e 12% em 2036. Enquanto o pacto democrático de 1988, com todos os seus limites, visava à universalização dos bens sociais públicos como a educação, saúde e cultura, o novo regime fiscal visa ao exato oposto: a privatização generalizada do nosso ainda embrionário estado de bem-estar social.
Muitos economistas comprometidos com a defesa da privatização generalizada do Estado tentam justificar a austeridade fiscal permanente como um meio para se alcançar o equilíbrio orçamentário e, recorrentemente, usam como instrumento retórico a associação das finanças públicas com a economia do lar. Repetem, inclusive, o slogan muito utilizado pelo grande símbolo do neoliberalismo, Margaret Thatcher: There Is No Alternative (em português, ‘Não há alternativa’).
Contudo, como a boa e velha economia política, corroborada por inúmeras experiências históricas nos ensina, a austeridade fiscal apenas agrava os problemas que, supostamente, pretende resolver. A explicação é simples: sendo o gasto do governo renda do setor privado, quando o governo deixa de gastar e, logicamente, alguém deixar de receber. Sendo assim, em meio a crises econômicas, que por definição implicam contração dos gastos privados, se o governo também contrair gastos, irá piorar a situação do setor privado, que por sua vez terá ainda menos demanda para a sua produção, com duas consequências imediatas: ampliação do desemprego e, dada a queda no ritmo de atividade, contração da própria arrecadação do estado.
No fim das contas, a tentativa de ajuste levará a um desajuste ainda mais profundo. É exatamente o que vem acontecendo no Brasil desde 2015: ao passo que nos 12 primeiros anos do governo PT, que muitos economistas liberais taxavam como irresponsável do ponto de vista fiscal, tivemos 11 anos de superávits primários, ou seja, gastava-se abaixo da arrecadação, após a imposição do ajuste fiscal em 2015 convivemos, ano a ano, com os maiores déficits primários da nossa história em paralelo à explosão do desemprego e à queda da arrecadação, o que prova que o objetivo da austeridade não era a busca pelo equilíbrio fiscal, e sim, como apontamos antes, a perseguição constante da privatização generalizada do Estado.
Há ainda um último fator perseguido pelos defensores da austeridade: a redução dos salários dos trabalhadores e a retomada da taxa de lucro dos capitalistas. Austeridade, como vimos, implica ampliação do desemprego e este último altera a correlação de forças entre trabalhadores e capitalistas. Quanto maior o desemprego, menor o poder de barganha dos trabalhadores, o que gera pressões baixistas nos salários. O medo do desemprego é disciplinador. Entretanto, a visão do capitalista é míope: só enxergam salários como custo e ignoram que, a nível agregado, os salários também correspondem à própria demanda pela produção.
2) O regime fiscal brasileiro e as experiências internacionais
A literatura clássica questionou a eficácia da política fiscal enquanto instrumento de política econômica durante muito tempo. A evidência empírica, contudo, demonstrou o viés eminentemente ideológico desse pensamento. Ao longo de diversas crises utilizou-se o poder do Estado para conter recessões por meio da expansão fiscal, com impactos positivos sobre a atividade econômica. A política fiscal mostrou-se em diversos casos um importante instrumento de suavização dos ciclos econômicos.
Nesse sentido, dois casos são emblemáticos, por se tratarem de países evidentemente liberais: EUA e Inglaterra. Nos EUA, com a crise financeira de 2008, que provocou crises econômicas a nível mundial, o governo aprovou um pacote de estímulo fiscal de quase U$ 800 bilhões, visando impulsionar a economia norte-americana. O programa foi denominado ARRA – American Recovery and Reinvestment Act – que tinha como forte característica a diversidade de instrumentos. Mais de 96% da programação financeira era concentrada nos 3 primeiros anos da crise, sendo o restante diluído em 7 anos.
As ações eram balanceadas entre instrumentos mais ágeis x instrumentos com maior multiplicador fiscal. Foram ampliadas dotações orçamentárias em saúde, educação, trabalho, segurança, transporte, etc., aplicadas desonerações que aumentassem a renda disponível das famílias (ex. redução temporária de IR), transferidos recursos de auxílio aos estados. Esse conjunto de ações impediu o aprofundamento da crise, estimulando a recuperação econômica.
Na Inglaterra também foram adotadas medidas para combater a crise e utilizar a política fiscal como instrumento anti-cíclico. Nesse sentido, a regra de ouro e o limite de 40% de endividamento líquido / PIB foram abandonados. Além disso, houve uma redução temporária do IVA (imposto sobre valor agregado) e a antecipação de investimentos. Com essas medidas, a Inglaterra conseguiu voltar a crescer.
Na contramão das experiências internacionais recentes, em 2015 o Brasil iniciou um processo de contração fiscal, aprofundando os efeitos da crise econômica. Como mencionado anteriormente, as despesas discricionárias da União estão sendo comprimidas para o cumprimento do Teto dos Gatos, refletindo a dificuldade de priorização de despesas em face das limitações impostas. O Estado está perdendo sua capacidade de prestar serviços essenciais para a população e para o desenvolvimento do país.
O caso Capes: breve prelúdio do que ainda está por vir
A previsão de cortes de bolsas de pós-graduação no Brasil para o ano de 2019, que será abordado adiante, não é um caso isolado ou um problema meramente conjuntural. Trata-se de parte integrante de um amplo projeto estrutural de mercantilização da educação, como iremos demonstrar nesta seção.
O novo regime fiscal foi concretizado através de uma emenda à constituição por um motivo importante: havia a necessidade de desvinculação constitucional das receitas destinadas à saúde e educação. Todo o resto poderia ser feito por intermédio de instrumentos legais mais simples, ou seja, trata-se em última instância de um projeto de desvinculação orçamentária e, consequentemente, de privatização da saúde e da educação.
No caso específico da educação, antes da EC 95, o art. 212, caput, da Constituição determinava que anualmente a União aplicasse em despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino, no mínimo, 18% da receita líquida de impostos (receita de impostos deduzida de transferências constitucionais a Estados e Municípios). Agora, com a vigência da EC 95, o gasto federal mínimo com educação será congelado no patamar de 2017. Vale destacarmos que o orçamento de 2017 já havia sido aprovado após dois anos de um duro ajuste fiscal, o que faz com que o congelamento das despesas se dê em um patamar extremamente baixo. Com isso, segundo dados da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (Conof) da Câmara dos Deputados, cerca de R$ 24 bilhões poderão deixar de ser investidos por ano em educação com a vigência da EC 95.
Os defensores do teto dos gastos, contudo, argumentam que o novo regime fiscal não congela investimentos em educação, mas sim estabelece um piso que pode ser ampliado desde que haja cortes em outras áreas. Ora, esse argumento, ao observarmos a evolução concreta do orçamento dado o pacto social estabelecido em 1988, não se sustenta. Por exemplo: com a ampliação do número de idosos, os gastos com previdência e seguridade social tendem, naturalmente, a aumentar. Sendo as despesas com previdência obrigatórias e crescentes e dado que temos um teto para os gastos agregados, não haverá um mínimo de espaço para o crescimento de despesas com saúde e educação ao passo que as demais despesas discricionárias, como, por exemplo, o pagamento de bolsas de pós-graduação, serão esmagadas. Ou seja, o que seria supostamente um piso para a educação, na verdade, acaba por virar um teto. Um teto deslizante (Figura 01).
Uma simulação estatística, realizada pelos economistas Pedro Rossi e Esther Dweck, aponta que as despesas com saúde e educação, em proporção do PIB, serão esmagadas, passando de 4% do PIB em 2015 para 2,7% do PIB em 20 anos. Pior: daqui a vinte anos a população será 10% maior. Isso significa uma brutal redução do gasto público per capita com educação e saúde na ordem de 38,6%.
Segundo dados da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, a margem fiscal de 2024 deve ser negativa, isto é, não haverá recursos para custear qualquer programa governamental de caráter não obrigatório (discricionários).
Fonte: IFI
São exemplos de ações discricionárias da União:
- Investimentos públicos em geral;
- Programas de incentivo à pesquisa científica, formação de professores e pós-graduação;
- Programa de fortalecimento e dinamização da agricultura familiar;
- Políticas para as mulheres: promoção da igualdade e enfrentamento da violência;
- Política de promoção à reforma agrária;
- Promoção da Igualdade Racial;
- Diversas ações ligadas ao fortalecimento do SUS, tais como: Rede Cegonha, Farmácia Popular, estruturação de redes de atenção básica e especializada em saúde, custeio do SAMU, programa Mais Médicos, pesquisa e desenvolvimento tecnológico em saúde, etc;
- Política de Assistência Social;
- Programa de erradicação do trabalho infantil.
Como se pode perceber, as ações discricionárias da União estão longe de ser dispensáveis, ao contrário, são essenciais para a sociedade brasileira, além de contribuírem para o crescimento econômico, já que promovem a dinamização de diversos setores, impulsionando a demanda agregada.
Em face dessa necessidade de priorização imposta pelo Teto dos Gastos, também chama atenção o direcionamento do Fundo Público dado pelo governo. Constantemente são aprovados no Congresso Nacional remanejamentos orçamentários e são editadas portarias pelo Ministério do Planejamento que evidenciam o completo descaso com a população brasileira e o compromisso de preservação das elites nacionais no Poder. São exemplos recentes:
- Edição da Portaria n° 75, de 2018: governo remanejou mais de R$ 200 milhões de recursos das áreas de saúde, política para mulheres, reforma agrária e investimentos públicos para ações de comunicação da Presidência da República. O valor era 88 vezes maior que o gasto até a edição do ato, destacando que estamos em ano eleitoral. A Portaria foi objeto de Ação Popular do PSOL e teve sua eficácia suspensa;
- Edição de crédito extraordinário de R$ 1,2 bilhão para custear a fracassada Intervenção Militar no Rio de Janeiro. Lembrando que o crédito extraordinário é um recurso que não se submete ao Teto de Gastos Público, mas apenas à meta fiscal. O ato evidenciou a preferência do governo pelo patrocínio de políticas de violentas e ineficientes, como já mostram os recentes dados da Intervenção;
- Aprovação do PLN 4, que tratou de remanejamentos orçamentários de mais de R$ 4 bilhões, retirando recursos da educação básica, da política para mulheres, do programa da reforma agrária, dentre outros, em benefício de “Cobertura das Garantias Prestadas pela União nas Operações de Seguro de Crédito à Exportação”, de órgãos como o CADE e a ABIN, etc;
- Aprovação do PLN 8, que tratou de remanejamentos de mais de R$ 1 bilhão para “Cobertura das Garantias Prestadas pela União nas Operações de Seguro de Crédito à Exportação”, retirando os recursos do seguro desemprego, em um país com uma taxa de desemprego de mais de 13 milhões de pessoas, o que representa mais de 12% da população economicamente ativa.
3) O caso CAPES
Foi amplamente divulgado na imprensa o corte previsto no orçamento de 2019 da CAPES. Segundo ofício encaminhado pelo Conselho Superior da CAPES ao MEC, a redução proposta em relação ao orçamento de 2018 inviabilizaria o custo mínimo anual dos programas de fomento da agência. As principais consequências destacadas são:
- Suspensão de pagamento de todas as bolsas de mestrado e doutorado a partir de agosto de 2019, atingindo mais de 93 mil discentes e pesquisadores e paralisando as atividades de pesquisa no país;
- Suspensão de pagamento de 105 mil bolsistas a partir de agosto de 2019, interrompendo o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid);
- Interrupção do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) e dos mestrados profissionais do Programa de Mestrado Profissional para Qualificação de Professores da Rede Pública de Educação Básica (ProEB) a partir de agosto de 2019, afetando mais de 245 mil beneficiados;
- Prejuízo à continuidade de quase todos os programas de fomento da CAPES destinado ao exterior.
Como se percebe, os prejuízos nas áreas de pós-graduação, formação de professores da educação básica e de cooperação internacional são enormes para o ano seguinte. Analisando detalhadamente o orçamento da CAPES, percebe-se com mais clareza a gravidade da situação.
Fonte: CAPES
O Orçamento anual da CAPES já vem sofrendo cortes significativos desde 2016, enfraquecendo o desenvolvimento de pesquisas e a qualificação de profissionais brasileiros. Em 2016 houve um corte de 16% em relação a 2015. Em 2017 a situação foi agravada com um corte de 33% em relação a 2015, chegando a uma situação dramática de redução de 47% em 2018. A previsão de uma compressão ainda maior do orçamento da agência acarretará sua inviabilidade de funcionamento e de promoção da ciência.
Se pensarmos em termos reais (corrigindo os valores pela inflação), os dados são ainda mais chocantes. Para ter um orçamento real igual a 2015, a CAPES deveria ter uma dotação de pouco mais de R$ 9,2 bilhões. Hoje ele é de R$ 3,9, isto é, 43% do patamar de 3 anos atrás. Comprimir ainda mais esses recursos é criminoso. Caminha-se para a privatização dos sistemas de educação e de pesquisa científica.
O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias aprovado pela Câmara dos Deputados antes do recesso parlamentar previu, em seu art. 22, que o Projeto de Lei Orçamentária de 2019 deveria destinar pelo menos o mesmo montante de 2018, corrigido pela inflação, para o Ministério da Educação. Buscou-se preservar, pois, o já precarizado orçamento destinado ao custeio das ações de educação. Não obstante tal previsão, muitas dessas despesas poderão ser contingenciadas por possuírem natureza discricionária, para que o governo cumpra sua meta fiscal. É o que sinalizou o MEC para a CAPES esta semana, agravando a crise já instalada na instituição e que se reproduz em todas as instituições públicas de ensino.
[1] Dados apresentados no documento Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil
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