Ou eles ou nós

Ou eles ou nós

Texto de Cláudio Katz*

A crise argentina foi provocada pela radicalização do projeto neoliberal. Os vários desequilíbrios daí provocados geraram instabilidade, perda de confiança e fuga de capitais. Pelo lado democrático só há uma saída: manter a potência das ruas

Sempre se soube que Maurício Macri, presidente da Argentina, governava para os ricos e que o modelo econômico acabaria numa grande crise. A primeira afirmação sempre foi evidente, dada a redistribuição regressiva dos rendimentos que ele perpetrou nos zúltimos dois anos. A segunda começou a se evidenciar com a volta das corridas cambiais.

O modelo neoliberal – assentado em enormes desequilíbrios fiscais e em endividamento externo – está abalado. Todos imaginavam que haveria recursos até 2019, mas o “fim do filme” antecipou-se de forma imprevista. O governo maquiou essa negativa com um falso anúncio de maior financiamento local, mas os capitais especulativos captaram de imediato o significado da negativa. Emitiram ordem de retirada – uma fuga de capitais – e teve início a disparada do dólar. O financiamento foi cortado devido à desconfiança dos credores, que pressentiram a futura insolvência do devedor argentino. Por isso, as agências de “rating” baixaram o polegar, o risco no país aumentou e a imprensa especializada descreve cenários dramáticos.

Uma consequência do modelo

A fragilidade do setor externo é o ponto mais crítico do modelo atual. Ao notar a ausência futura dos dólares necessários para sustentar o endividamento, os bancos retiraram os créditos. Esses observaram a magnitude do déficit externo, que no ano passado superou os US$30 bilhões (5% do PIB). O problema central localiza-se na esfera comercial. O desequilíbrio de US$8 bilhões em 2017 marcou um recorde histórico. Ele foi gerado pelas fantasias livre-cambistas do governo, que abriu o mercado a todo o tipo de importações. Enquanto no mundo impera uma dura negociação por tarifas alfandegárias, a Argentina transformou-se num depósito de qualquer excedente. E, ainda por cima, as exportações estancaram, como resultado da valorização do peso devido ao ingresso de capitais especulativos.

A remessa de lucros tem sido tão forte quanto a fuga de capital. Essa drenagem é coerente com a eliminação de todas as regulações da atividade financeira. Os controles bancários foram desarmados a toda velocidade

O desequilíbrio no plano financeiro é igualmente dramático. A remessa de lucros tem sido tão forte quanto a fuga de capital. Essa drenagem é coerente com a eliminação de todas as regulações da atividade financeira. Os controles bancários foram desarmados com a mesma velocidade com que se anulou a obrigação de liquidar os dólares da exportação. Nas mesmas condições se fundamenta a “bicicleta” financeira dos fundos que lucram com a rentabilidade altíssima dos títulos argentinos. As delirantes taxas de juros que asseguram o negócio destroem qualquer possibilidade de investimento produtivo. O uso inadequado das divisas inclui também o alto gasto em turismo. Essa hemorragia foi, inclusive, comemorada por vários ministros com um maravilhoso exemplo de “retorno ao mundo”.

Terremoto econômico

O rombo fiscal é também impressionante. Aproxima-se do percentual do PIB (6-7%) que tradicionalmente precipitou os grandes terremotos da economia. O governo destaca a envergadura desse déficit e o apresenta como obra de outrem, a ser administrado. Com gestos de compaixão, afirma ser necessário mantê-lo para financiar o “gradualismo” e evitar maiores sacrifícios à população. Mas, oculta que todos os desequilíbrios derivam do modelo em curso e não do ritmo da sua implementação. Se tivesse carregado no acelerador da engrenagem neoliberal, o desastre seria infinitamente maior.

Quando os representantes do governo reclamam contra o costume de “gastar mais do que se recebe”, atribuem todas as desgraças ao primeiro componente. Esquecem que a receita fiscal ficou seriamente afetada pela redução dos impostos dos exportadores. Tampouco destacam que a lavagem de dinheiro não reverteu a evasão. A Argentina está em quinto lugar no mundo no ranking desse flagelo e a moda oficial de proteger ativos de empresas “off shore” ilustra quem são os promotores da fraude fiscal.

O discurso oficial também se esquece de dizer que o pagamento de juros deteriora as contas públicas. Só no primeiro trimestre do ano, esses encargos aumentaram 107% em comparação a 2017.

Descalabros incorrigíveis

O modelo neoliberal gera descalabros que o governo não pode corrigir. O desastre em curso não foi desencadeado pela nova alíquota do imposto sobre o lucro de aplicações em títulos, mas pela aterrorizada reação do Banco Central. Este, em poucos dias, queimou vários manuais de política monetária, recorreu a todos os instrumentos conhecidos para deter a corrida e não acertou com nenhum. Apelou, inclusive, sem resultados, ao “judicializado” mercado de dólar futuro.

A crise internacional não foi, até agora, determinante do desastre argentino. Persiste a liquidez financeira global e não se observa uma repetição do “efeito dominó” sobre as economias latino-americanas. Certamente, que o incremento das taxas de juros dos EUA altera todos os investimentos no mundo, mas esse reajustamento, de momento, tem efeitos limitados.

Se a Argentina vive esse resfriado como se fosse uma grave pneumonia, isso se deve ao pânico que o tresloucado endividamento suscita. Nos últimos anos, o país encabeçou o tabuleiro mundial de colocação de títulos e é penalizado por esse descontrole, mas o grosso da população não é responsável por essa má gestão. O culpado é Macri e os chefes do gabinete, que engrossaram as fileiras da classe capitalista. Para ocultar esse delito, os comunicadores oficiais atribuem a todos os “argentinos” um desfalque consumado por essa minoria de privilegiados.

Retorno ao mesmo Fundo

Os números de maio retratam a gravidade da crise: desvalorização cambial de 20%; taxas de juro de 40% e perda de US$8 bilhões de reservas. O temor de um dramático desfecho aumenta, com alguns sintomas de transferência dessa tensão aos bancos.
O governo zomba da população transmitindo mensagens de tranquilidade. Pretende criar a ilusão de uma simples correção da flutuação cambial, sem nenhuma consequência maior. Ainda repete que o nível de endividamento é “baixo em comparação com o PIB”, como se essas porcentagens, e não a capacidade de pagamento efetiva do devedor, determinassem a atitude dos credores. Enquanto o discurso oficial minimiza a crise, os investidores do exterior não medem palavras para dizer “fujam da Argentina” (Forbes). A tranquilidade do governo é uma estratégia tosca para evitar o despertar coletivo face à grave situação.

O modelo neoliberal gera descalabros que o governo não pode corrigir. O desastre em curso não foi desencadeado pela nova alíquota do imposto sobre o lucro de aplicações em títulos, mas pela aterrorizada reação do Banco Central

A decisão de regressar ao FMI confirma a seriedade da conjuntura. É uma medida desesperada que surpreendeu os próprios papas do Fundo. Indica o pânico de um governo que procura impedir a corrida contra o peso a qualquer preço. A decisão foi tão imprevista, que anunciaram o retorno ao organismo sem dizer em que base isso se daria e sem mudar o ministro. Os representantes do governo peregrinam por Washington desconhecendo as condições dos empréstimos que mendigam. Num contexto de baixas taxas internacionais e de certa recuperação da crise de 2008, poucos países recorrem ao FMI. Os que escolhem essa saída não têm outra opção.

AFP PHOTO / EITAN ABRAMOVICH

FMI não mudou

É totalmente ridículo imaginar a existência de “outro FMI”. Essa instituição é gerida pelos mesmos peritos que destroem conquistas populares, e os países amarrados a sua tirania atravessam o pior dos mundos. É o caso da Grécia, que não pode livrar-se da auditoria do Fundo. Os gregos já padeceram quatro “salvamentos” dos bancos e três agudas recessões, que fizeram a renda nacional retroceder 25%. A taxa de desemprego está em torno dessa mesma percentagem, a dívida pública elevou-se para 180% do PIB e as pensões sofreram 14 cortes.

A Argentina depara-se com as mesmas perspectivas. O FMI será duríssimo com o país. Das três variantes creditícias que há disponíveis, apenas ofereceu a versão mais intragável. Descartou a linha flexível que Colômbia e México receberam e a modalidade de precaução utilizada por Macedónia e Marrocos. À Argentina, apenas outorgarão o conhecido stand by por um montante ainda desconhecido.

A decisão de regressar ao FMI confirma a seriedade da conjuntura. É uma medida desesperada que surpreendeu os próprios financistas. Indica o pânico de um governo que procura impedir a corrida contra o peso a qualquer preço. O Fundo será duríssimo com o país

Os US$30 bilhões que o governo pede superam o atribuído aos 13 países, atualmente, com planos de estabilização. A soma final chegará igualmente a conta-gotas, para evitar a rápida conversão em divisas em fuga para o exterior.
Cada parcela utilizada desse crédito será rigorosamente auditada pelo Fundo. Essa auditoria simboliza o brutal retorno aos anos 1990. Os peritos do FMI voltarão, trimestralmente, para constatar a insatisfação e exigir mais ajustamentos.
Não há mistério em exigências imediatas. Em dezembro passado, elaboraram um detalhado ultimato de redução da despesa social, com maior flexibilidade laboral, reforma do orçamento e demissão de funcionários públicos. A paulatina privatização do Anses – órgão responsável pela arrecadação de impostos – e o drástico corte dos orçamentos dos Estados figuram no topo de sua agenda. Nas conversações de agora, teriam acrescentado um novo perdão fiscal e, sobretudo, uma máxima desvalorização com recessão.

Ritmo e intensidade

O ritmo e a aplicação desse pacote dependerão da intensidade da crise. Todos os meses o Banco Central deve se defrontar com um enorme vencimento de títulos (Lebacs). O volume total desses títulos equivale ao montante das reservas e ao total do dinheiro circulante. Se a maioria dos detentores resolve liquidá-los para se refugiar no dólar, a corrida contra o peso pode se tornar incontrolável. O governo tenta administrar esse explosivo pacote oferecendo taxas de juros elevadíssimas que asfixiam o conjunto da economia. Ao propagar rendimentos superiores a 40%, pretende alongar a renovação desses papéis. Mas, com esse artifício, não consegue atenuar a desvalorização geral dos títulos públicos, gerando desvalorização de ativos de todas as instituições que entesouram esses papéis.

Em qualquer cenário, o pacto assinado com o FMI empurra a economia para o precipício. Já se antevê o ciclo vicioso de ajustes que contraem a atividade produtiva, deterioram a receita fiscal, aumentam o déficit fiscal e desembocam em novos ajustes. O espelho da Grécia está à vista, com eventuais elementos de estagflação

Em qualquer cenário o pacto assinado com o diabo do FMI empurra a economia argentina para o precipício. Já se antevê o círculo vicioso de ajustes que contraem a atividade produtiva, deterioram a receita fiscal, aumentam o déficit fiscal e desembocam em novos ajustes. O espelho da Grécia está à vista, com eventuais elementos de estagflação.

A antecipação desse quadro desponta no novo nível de inflação anual de 30%. Se a taxa de juro não baixar rapidamente, a recessão será inevitável. O governo cortou 30 bilhões de pesos do investimento público, mas o FMI exigirá uma paralisação total. Nos próximos meses, ninguém se recordará da ficção estatística de menor pobreza que o governo difundiu. Basta observar a pavorosa expansão da mendicidade nas ruas para observar qual é o panorama social com que o país se depara.

AFP PHOTO / Eitan ABRAMOVICH

Reagir a tempo

A gestão da bomba que o governo instalou dependerá da memória e capacidade de reação popular. O repúdio total ao acordo com o FMI foi antecipado pelas pesquisas realizadas antes da negociação. Entre os 75% dos entrevistados que rechaçam o acordo, está a maioria dos votantes de Cambiemos – nome do movimento que conduziu Macri ao poder.

AFP PHOTO / EITAN ABRAMOVICH

O retorno ao FMI tem um significado emocional enorme. Recria todo o sucedido em 2001. Por isso já se difundem tantas analogias com o bloqueio De la Rúa, quando ele tentou refinanciar a dívida junto ao FMI, o que foi um fracasso e conduziu ao colapso de 2001. É imprescindível transformar essa bagagem em rejeição ativa, mobilização e propostas alternativas. O ponto de partida é ganhar a rua para gerar uma drástica reversão do curso atual. O clima de aceitação tácita das desregulamentações – que os grandes meios de comunicação propagam – desprotege a economia. Para evitar o agravamento da crise, há que reintroduzir todas as regulações eliminadas pelo governo. São medidas básicas face à emergência.

O controle do câmbio é tão urgente como a proibição da livre entrada e saída dos capitais. Os depósitos dos pequenos poupadores devem ser protegidos, enquanto os grandes bancos e detentores de títulos devem suportar as perdas dos títulos desvalorizados. Há que erradicar todos os mitos sobre a adversidade de um controle cambial. Os dólares não são um bem privado de livre disponibilidade. Sem controle do entesouramento e circulação, não há forma de lidar com a fuga de capital.

Em lugar de voltar ao FMI, é necessário investigar a dívida contraída nos últimos anos e levar ao tribunal os responsáveis por essa aventura. Luís Caputo, ministro das Finanças; Nicolás Dujovne, ministro da Fazenda; e Federico Sturzzeneger, presidente do Banco Central deveriam estar perante à justiça. Enquanto se verifica o estado real das contas públicas, há que se parar a hemorragia de divisas que o pagamento dos juros impõe. A crise atual começou com a submissão aos “fundos abutres” e não pode ser resolvida sem ajustar contas com os depredadores do tesouro nacional. A gestão estatal do sistema financeiro é uma condição para emergir da delicada situação atual.

Apenas, assim, o custo da crise recairá sobre os seus causadores e não sobre a maioria popular. Esse caminho requer uma frontal batalha de ideias com todos os economistas da direita que se apropriaram da televisão.

A intensidade da mobilização nas ruas definirá quem ganha o jogo. Em plena confusão popular face ao abalo financeiro, essa reação é agora limitada. Está pendente o reaparecimento da grande força conseguida nas ruas nas jornadas contra a reforma previdenciária e na campanha pela descriminalização do aborto. A rejeição do FMI ocupa agora o primeiro lugar de qualquer reivindicação.

É urgente frear a maior agressão contra as conquistas populares dos últimos anos. O tão anunciado mega ajuste se aproxima, finalmente. Face à artilharia que o governo, o FMI e os capitalistas preparam, há que se construir as defesas populares a toda velocidade. Tal como já ocorreu no passado, de novo são eles ou nós.

(Tradução de Rosa Maria Marques)

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*Economista e professor da Universidade de Buenos Aires

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