AQUI NÃO! A resistência nordestina à extrema direita

AQUI NÃO! A resistência nordestina
à extrema direita

Texto de Robério Paulino*

O Nordeste derrotou Jair Bolsonaro. Em alguns estados, mais de dois terços do eleitorado rejeitou o ex-capitão. É situação contrária à da maior parte do país. Que fatores levaram a esse resultado e que impactos tiveram os investimentos públicos e os programas sociais dos governos Lula e Dilma na região?

No processo eleitoral que deu a vitória a Jair Bolsonaro, o Nordeste apresentou resultados opostos aos do restante do país, tanto no primeiro como no segundo turno. Foi a única região onde o ex-capitão colheu ampla derrota. Ao final da disputa, muitos nordestinos se orgulhavam e compartilharam a hashtag #AquiNão. Na etapa inicial, Fernando Haddad chegou em primeiro em oito estados da região, além do Pará. Some-se a isso a dianteira de Ciro Gomes no Ceará. Esses fatores levaram a eleição para o segundo turno.

No segundo turno, com a polarização política ainda mais acentuada, enquanto Bolsonaro cresceu como o candidato do campo conservador, a vantagem de Haddad no Nordeste também se ampliou, chegando à impressionante média de 67,7%. A porcentagem representa mais do dobro dos votos dados ao candidato da direita, que ficou com apenas 30,3% na região. No Piauí, o petista alcançou 77%. Na Bahia, o maior estado da região, conquistou 72,6% dos votos válidos.

Excetuando cinco capitais onde Bolsonaro ganhou por leve vantagem ou bairros de alta classe média, a região lhe deu um não categórico. Que razões explicam o fenômeno da resistência nordestina? É o que as linhas a seguir nos convidam a discutir. Para buscar uma explicação, é importante identificar os fatores e argumentos que deram vitória ao ex-capitão e, por exclusão, ver quais estavam presentes ou não no Nordeste e que diferenças em relação aos demais estados essa região apresentava.

O antipetismo como
força política

Bolsonaro ganhou a eleições antes de tudo catalisando o ódio a Lula (que seguia latente, mas mostrou-se mais intenso do que se podia supor) e ao PT. O antipetismo vicejou, seja pela rejeição aos programas sociais de transferência de renda aos mais pobres, que desagradaram grande parte da classe média conservadora das regiões mais ricas e das capitais, seja por seu envolvimento direto com a corrupção ou alianças com setores da velha política, que jogaram setores pobres na mão da direita. Isso abriu a oportunidade para a grande ofensiva contra a esquerda que ora se observa, da qual a Lava Jato foi parte. Em segundo lugar, Bolsonaro soube explorar melhor que a esquerda o ódio aos velhos políticos, apresentando-se contra “tudo isso que está aí”, ainda que ele mesmo seja parte dessa velha política.

O candidato fascista também utilizou melhor que a esquerda o medo da população de todas as faixas sociais contra a criminalidade crescente, prescrevendo o remédio aparentemente mais rápido contra isso – ainda que saibamos ineficaz – ou seja, mais violência policial contra o crime e a população das periferias, prometendo impunidade aos agentes do Estado. A esquerda não tem um programa contundente contra a criminalidade, parando às vezes na explicação de suas causas. O apoio das igrejas pentecostais conservadoras, que proliferam e agem nas periferias há anos, combinado com a utilização de um discurso preconceituoso contra as mudanças no terreno dos costumes e da sexualidade, que incomodam parte considerável da população pobre, foi outro fator para a vitória de Bolsonaro.

Mentiras aos milhões

Uma utilização mais ágil das redes sociais do que fez a esquerda e a propagação agressiva de mentiras, aos milhões – fake news -, no melhor estilo nazista, também ajudam a explicar a vitória. A exploração de discursos racistas, machistas e xenófobos não parece ser o que deu a vitória a Bolsonaro. A maioria dos eleitores parece não ter se importado com isso. Mas os resultados foram diferentes entre as regiões, como veremos. Acreditamos que o discurso neoliberal no terreno econômico tampouco teve grande importância para explicar o fenômeno Bolsonaro, que sequer tinha um programa claro nesse campo.

No Nordeste, fatores como a rejeição aos velhos políticos, o medo da violência, o temor da população menos informada com as mudanças nos costumes, o crescimento das igrejas evangélicas, a disseminação de mentiras pelas redes sociais, estavam igualmente presentes nesta eleição. Não são tais fatores que podem explicar o resultado eleitoral distinto. Isso nos leva a buscar a avaliação da votação diferenciada no Nordeste em outros elementos.

Investimentos públicos
dos governos petistas

O primeiro fator explicativo que nos parece evidente é o imenso impacto na vida econômica e social da região dos programas sociais e dos investimentos públicos, o que levou o PT continuar a ser o partido preferido na região e Lula um dirigente ainda muito admirado. Diversos programas sociais, como Luz para Todos, PROUNI, FIES, Bolsa Família e Mais Médicos tiveram imenso impacto na economia e na vida social da região, bem maior quem nas demais. A população reconhece em Lula e nos governos do PT e dos partidos aliados a autoria de tais iniciativas.

A sensação, especialmente nos interiores, é que os investimentos públicos dos governos de Lula e Dilma, como a transposição das águas do São Francisco, a grande expansão dos Institutos Federais (IF) e a criação de novas universidades federais, beneficiaram diretamente o Nordeste. Quem passa em uma pequena cidade do sertão e vê um novo campus de um IF ou de uma nova universidade federal se destacando na paisagem, com seu impacto positivo na vida de milhares de famílias e na autoestima dessas cidades e outras no seu entorno, sabe do que estamos falando. Para que se tenha uma ideia, no Rio Grande do Norte, os IF saltaram de dois campi em 2006 para 21 nos últimos 12 anos. Isso ajuda a explicar, por exemplo, a eleição da senadora Fátima Bezerra, do PT, como única governadora eleita nessa nova safra em todo o Brasil.

Numa região de economia mais frágil, o efeito multiplicador keynesiano desses investimentos parece ter sido maior que nas demais. Segundo Aninho Irachande, professor de Ciência Política da UnB, cada R$ 1,0 investido na economia regional se transforma em R$ 1,6 em circulação (Carta Capital, 01.11.2018).

Prefeitos e governadores, mesmo de partidos diferentes do PT, como PSB, PDT e mesmo MDB, já muito pressionados pela redução do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos Estados, são muito conscientes disso e viram em Bolsonaro uma ameaça de redução desses programas e investimentos

Prefeitos e governadores, mesmo de partidos diferentes do PT, como PSB, PDT e mesmo MDB, já muito pressionados pela redução do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos Estados, são muito conscientes disso e viram em Bolsonaro uma ameaça de redução desses programas e investimentos. Essa é a raiz de sua rejeição e do apoio a Haddad.

A força do Bolsa Família

O Bolsa Família, como um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, tem a maioria dos beneficiários no Norte e Nordeste e isso parece ter feito grande diferença nas eleições também. Como exemplo, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social, em julho de 2017, quinze estados brasileiros localizados da região receberam 66,7% do total de dinheiro gasto pelo governo federal com o programa Bolsa Família no mês. Dos R$ 2,3 bilhões transferidos naquele mês, R$ 1,5 bilhão ficou com esses estados, criando um impacto imenso na economia e na vida das cidades e das famílias e elevando os IDHs municipais, evidentemente gerando também acusações de favorecimento e ciúme de líderes de outras regiões do país. Como se pode ver no gráfico abaixo, em 11 estados, mais de um terço da população recebe o benefício. Por tudo isso, o preconceito e o ódio contra Lula e o PT, o antipetismo, que turbinaram Bolsonaro nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste, não eram tão intensos no Nordeste e o grande apelo de Lula e do PT se transferiram a Haddad.

O mito do moderno
contra o atraso

Com base nos resultados eleitorais, ideólogos de direita chegam a afirmar que Bolsonaro teria vencido no Brasil “moderno” e Haddad na sua parte “atrasada”. Mas a pergunta que se coloca aqui é: errou a maioria que votou em Bolsonaro nas demais regiões do país ou errou o Nordeste? É “mais moderna” a maioria das demais regiões do país que votou num candidato defensor da ditadura e mesmo de seus torturadores, que defendem a morte de opositores, que propagam o preconceito contra negros, gays, o ódio e a mentira? Um trabalhador branco do Sul que vota num candidato que promete cortar direitos sociais tem mais consciência que uma família nordestina que defende seus programas sociais? Um negro do Sudeste que votou num candidato assumidamente racista votou pela “modernidade” ou em seu algoz? Uma mulher branca do Centro-Oeste que votou num candidato claramente machista e misógino demonstra mais consciência ou mais incompreensão sobre a realidade do que uma jovem negra nordestina indignada com Bolsonaro? Por que grandes jornais mundiais, artistas globais e mesmo governantes moderados de países capitalistas afirmam que o Brasil votou por um retrocesso?

Voto e retrocesso

Lembremos também que mesmo nas regiões em que Bolsonaro ganhou, a parcela mais crítica e consciente da população, os professores, os jovens das escolas e universidades públicas, por exemplo, votaram contra o retrocesso que ele significa.

Votar em defesa de programas e direitos sociais, como ocorreu no Nordeste, de forma alguma é um fator de alienação política, mas de consciência. A Europa, por exemplo, tem mais programas de transferência de renda que o Brasil e as populações defendem essas conquistas e direitos com unhas e dentes, sendo isso um distintivo de alta consciência, não de alienação. Nesse sentido, é de se esperar que o Nordeste venha a ser um grande centro de resistência no governo Bolsonaro desde já.

A sensação, especialmente nos interiores, é que os investimentos públicos dos governos de Lula e Dilma, como a transposição das águas do São Francisco, a grande expansão dos Institutos Federais (IF) e a criação de novas universidades federais beneficiaram diretamente o Nordeste. A tradição de luta contra a escravidão e a se­gregação tem profundas raízes na região, que abrigou o Quilombo dos Palmares e Canudos, e mantém viva a cultura negra e indígena. É, talvez, a única no país onde a popula­ção assume uma identida­de regional própria, talvez só igualada pelos gaúchos

Muitos perguntam se esse voto decorrente dos programas sociais não seria volátil, se transferindo do PT para o novo governo, caso Bolsonaro resolva, por exemplo, ampliar tais programas e investimentos. Como hipótese, pode ocorrer, mas aí já não estaríamos tratando de Bolsonaro, mas do contrário, o que é altamente improvável. O governo, com orientação neoliberal, quase com certeza, como já começou a fazer Temer, vai reduzir a face social do Estado e o alcance desses programas, até para castigar o Nordeste.

Racismo, xenofobia, misoginia…

Outro fator, não menos importante, que influenciou muito o resultado no Nordeste foi a rejeição aos discursos racistas, xenófobos, misóginos, discriminatórios de Bolsonaro, inclusive contra nordestinos. Esses geraram indignação na região, especialmente entre a juventude negra, as mulheres jovens e os setores mais conscientes da população.

O Nordeste é, por excelência, a região mais negra, indígena e mestiça do país. A tradição de luta contra a escravidão e a segregação tem profundas raízes na região, que abrigou o Quilombo dos Palmares, Canudos, e mantém viva a cultura negra e indígena nos costumes, na linguagem, na culinária, na música e na cor da pele. É, talvez, a única no país onde a população assume, com orgulho, uma identidade regional própria, até como artifício de defesa contra a discriminação, talvez só igualada pelos gaúchos.

Grande parte da população da região se sentiu fortemente insultada e ameaçada por tudo de retrocesso que Bolsonaro significa. Não à toa foi em Salvador, um bastião da luta negra no país, onde ocorreu a maior manifestação contra Bolsonaro nestas eleições.

Por fim, sem negar os patentes elementos de atraso ainda a superar na região, é possível dizer que o resultado também se explica pelo Nordeste ter uma longa trajetória de luta libertária e contestatória.

A Confederação do Equador, que propunha uma república já no início do século XIX, massacrada pelo império que atrasou o país até à virada para o século XX, se deu aqui. (A libertação dos escravos aconteceu no Ceará em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea, fruto da luta negra). Canudos ocorreu aqui. O sentimento e o orgulho regionais ainda são fortes. Ao mesmo tempo em que ainda amarga a existência das velhas oligarquias, das quais lenta e felizmente começou a se livrar, o Nordeste se insurge contra o retrocesso no país. Essa veia contestatória se fará presente nos próximos anos na vanguarda da resistência ao governo Bolsonaro.

#AquiNão.


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*Robério Paulino é Economista e professor de Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor do livro Socialismo no século XX: o que deu errado? (Editora Kelps, 2008)

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