O ABC do novo fascismo
e suas perspectivas
Texto de Luiz Arnaldo Campos*
Bolsonaro não apresentou planos claros de governo e sequer participou de debates. Mas a trajetória e as forças políticas que congrega apontam na direção de uma gestão conservadora nos costumes, ultraliberal na economia e repressiva na política. A oposição tem como tarefa imediata a constituição de uma ampla e representativa frente democrática para se contrapor aos ataques da extrema direita
Uma hora após o anúncio da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, no final de outubro, uma coluna de caminhões do Exército desfilou pelas ruas de Icaraí, bairro nobre de Niterói, no Rio de Janeiro. Foi aplaudida por moradores e transeuntes. Uma imagem simbólica do que pretende ser a novíssima república brasileira.
A vitória do candidato do PSL foi o resultado inesperado de uma ação orquestrada pelo alto comando da burguesia brasileira que, depois do impeachment de Dilma Rousseff, aprofundou o golpe com a decretação da inelegibilidade de Lula, a prisão e a proibição de participar da campanha. A manobra que buscava simultaneamente inviabilizar a candidatura petista e eleger um candidato confiável ao mercado e às grandes corporações – Alckmin, Meireles ou Amoedo – deu com os burros n’água.
No contexto de uma grave crise econômica política e cultural, a centro-direita derreteu e os extremos cresceram. Bolsonaro e Haddad passaram ao segundo turno, obrigando as classes dominantes a se unificarem em torno da candidatura outsider do ex-capitão do Exército. Até aí, parecia uma reprise do enfrentamento entre Lula e Collor três décadas atrás. As semelhanças não foram adiante.
Ao contrário do simples arrivismo do caçador de marajás alagoano, Bolsonaro representa uma proposta distinta de ordenamento político, social, cultural e econômico do país. Um projeto de características fascistas, que pretende enterrar a Nova República e abrir um novo ciclo na política brasileira, hegemonizado pela extrema direita. Para quem está na outra margem do rio, entender como chegamos a isso e quais são as principais características dessa nova quimera direitista é simplesmente essencial.
A marcha rumo a Brasília
Para entender o fenômeno Bolsonaro é preciso considerar a grave crise econômica e social do país. É algo indispensável, mas insuficiente. No bojo das manifestações de 2013, por meio de um operativo ainda pouco conhecido, organizações de ultradireita até então desconhecidas do grande público, como o MBL e outras, assumiram a hegemonia dos protestos que começaram a veicular palavras de ordem, nas quais o fim da corrupção era articulado com pedidos de uma intervenção militar. O ambiente propício para soluções autoritárias foi depois cuidadosamente cevado pela campanha midiática da Operação Lava-Jato. O noticiário asfixiante, que tinha como primeiro alvo o PT, acabou por produzir a demonização de toda a atividade política, vista como inapelavelmente corrupta. Daí para o retorno dos salvadores da pátria foi apenas um passo.
No bojo das manifestações de 2013, por meio de um operativo ainda pouco conhecido, organizações de ultradireita, até então desconhecidas do grande público, como o MBL e outras, assumiram a hegemonia dos protestos que começaram a veicular palavras de ordem, nas quais o fim da corrupção era articulado com pedidos de uma intervenção militar
As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura e lhe permitiu uma máxima exposição, na privilegiada condição de vítima, nos principais noticiários de rádio e TV, mas, sem dúvida, o que surpreendeu o mundo foi a vitória de um candidato abertamente misógino, racista, homofóbico, defensor da ditadura militar e da tortura num país que fora governado durante 13 anos seguidos pelo PT.
Bolsonaro foi o postulante da antipolítica, aquele que era contra tudo que aí está. Essa pregação calou fundo numa população acossada pelo desemprego, pelos altos índices de criminalidade, pela piora das condições de vida e descrente dos partidos políticos tradicionais. Foi também o candidato que conseguiu tocar um imaginário conservador, construindo a imagem de defensor de um mundo ameaçado por negros sedentos de vingança, feministas histéricas, LGBTs descontrolados e indígenas gulosos por terra. E aí não pregou no vazio, mas no terreno semeado há anos pelas declarações da bancada ruralista, contra os movimentos dos trabalhadores rurais, dos povos indígenas e quilombolas, pelos noticiários da TV, sempre a associar a criminalidade crescente ao respeito aos Direitos Humanos, e pela pregação insistente das igrejas neopentencostais, para quem os direitos das populações LGBTs são simples artimanhas do demônio. Se não compreendermos esses elementos, não poderemos entender porque a onda de fake news teve tanta audiência. O ex-capitão lavrou no campo arado por uma crescente onda reacionária.
Bolsonaro construiu sua persona política a partir desses elementos e o fez com maestria. Ajudado pela equivocada campanha petista, conseguiu fazer o governo Temer passar ileso e transformou o PT no único responsável pelas mazelas sofridas pelo povo. Uma vez consolidado nessa posição transformou o antipetismo em anticomunismo: os inimigos passaram a ser não somente os “petralhas” mas todos os “vermelhos”. Os movimentos sociais foram transformados em terroristas. Cuba e Venezuela passaram a ser identificados como o inferno na Terra.
Os itens mais escatológicos dessa agenda, como a defesa da tortura e da ditadura militar, foram absorvidos como uma espécie de mal menor, um preço a ser pago em troca da ordem e da segurança, deixando a nu as terríveis consequências de sermos o único país da América do Sul que não ajustou contas publicamente com seus ditadores e torturadores. Sem nunca ter tido as entranhas aqui devassadas, as Forças Armadas conservaram um prestígio que as autorizaram a se apresentar como protagonistas no cenário político nacional.
A cereja do coquetel ideológico foi a invocação a Deus, presente no slogan “Brasil acima de todos e Deus acima de tudo”. O tripé afirmativo da campanha de Bolsonaro foi Deus, Pátria e Família, não por acaso o lema dos integralistas brasileiros da década de 1930.
De maneira geral, apareceram tipos distintos de votantes, em outubro. Os privilegiados, na maioria, votaram em Bolsonaro, como a única alternativa viável para o segundo turno. Um grupo menor de empresários com claras conotações fascistas, votou com ele desde o início. O ódio ao PT foi o leitmotiv da maioria dos seus eleitores. Tivemos também os fiéis das igrejas da teologia da prosperidade, sempre obedientes à indicação do pastor e também grupos de juventude da classe média, que compuseram bandas de inspiração nitidamente fascista voltados para a propaganda agressiva e a intimidação.
O problema para o Brasil é que o projeto bolsonariano é bem mais complexo do que uma simples negação de tudo o que está aí.
O Estado Novo de Bolsonaro
Numa entrevista publicada pela revista argentina Ambito Financiero, um militar brasileiro de alta patente, não identificado, revelou que o projeto Bolsonaro teve início em 2012 com a aproximação de um grupo de generais com o então, capitão, tido até ali como insubordinado e refratário à hierarquia castrense. Segundo a entrevista, o novo projeto de poder está formulado em termos de uma democracia controlada, com protagonismo de patentes militares, tendo como elementos constitutivos a erradicação da esquerda, e o fim dos movimentos sociais.
De uma forma regressiva em relação à pauta nacionalista do governo militar de Ernesto Geisel (1974-79), os atuais generais de Bolsonaro defendem o alinhamento automático às posições do imperialismo norte-americano no cenário internacional, ao mesmo tempo em que postulam uma política econômica ultraprivatista, com a liquidação do restante das estatais brasileiras. No campo da política interna já tivemos a declaração do vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, partidário de uma nova Constituição escrita por ilustrados escolhidos a dedo pelo regime.
As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura
São apenas sinais, mas indicam que Bolsonaro pretende caminhar em direção a uma nova institucionalidade, baseada na restrição das liberdades políticas e individuais, na supressão de toda oposição, particularmente a de esquerda, na submissão dos poderes Legislativo e Judiciário ao Executivo, na implantação de um sistema educacional lastreado em valores extremamente retrógrados, na negação dos direitos civis aos grupos historicamente discriminados e no aumento da violência contra à população pobre. Com tudo isso almeja e trabalha para criar um regime que tenha ampla base popular, no qual ele desponte se não como o Führer, pelo menos como o Mito.
A indicação do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça sinaliza que a perseguição e o encarceramento de lideranças populares, sob as mais variadas justificativas, devem continuar. No terreno da política externa, seus acenos ao Estado de Israel fazem pouco caso das relações econômicas do Brasil com os países árabes. O episódio dos Mais Médicos deixou claro que pretende levar adiante seus desvarios ideológicos sem levar em consideração o sofrimento da população. É também digno de menção o apoio a proposta do novo governador do Rio de Janeiro de assassinar supostos criminosos por atiradores de elite ou por meio de drones.
Em suma, tudo parece indicar que o projeto de Bolsonaro visa instituir a médio prazo um Estado fascista – um novo Estado Novo – para o qual já existe o líder, o inimigo a ser extirpado, um ideário reacionário, e a definição da violência como a terapêutica fundamental no desvio de condutas sociais. Embora existam dúvidas se o PSL tem condições para se tornar um partido de corte fascista, Bolsonaro conta inicialmente para o apoio de rua com as bases coxinhas e as bandas facistoides. Como plano geral, há o suculento cardápio econômico oferecido aos donos do dinheiro, por meio de uma ampla política de privatizações. Todos se dão por satisfeitos com as juras de amor à Constituição feita pelo novo mandatário, muito embora não ignorem que Hitler também jurou a constituição de Weimar.
Tensões e resistências
O terreno nevrálgico da disputa nos novos tempos será a economia. Para navegar em céu de brigadeiro, Bolsonaro vai precisar de resultados rápidos, sobretudo, na redução do desemprego, principalmente, agora, em que uma pauta tão impopular como a reforma da Previdência será deixada no seu colo.
Enquanto o tão sonhado crescimento não vier, o novo presidente será obrigado a entregar “troféus” políticos – como as prisões de lideranças populares, de preferência acusados de crimes comuns que facilitam a desmoralização – e a manter um constante tom de confronto, guerra e prontidão.
Por isso são plenamente possíveis uma escalada retórica contra a Venezuela e Cuba, ataques furibundos contra “privilégios” do funcionalismo público e tentativas de direcionar a pauta política para temas como a Escola Sem Partido, a liberação do uso de armas ou até mesmo drásticos cortes nas políticas de incentivos às atividades culturais.
A esquerda e o movimento popular terão múltiplas tarefas e inúmeros desafios. Em primeiro lugar, a construção de uma frente democrática que deve ser ampla na inclusão de partidos, centrais sindicais, movimentos sociais e ao mesmo tempo possuir a capilaridade necessária para se contrapor a tempo e a hora aos ataques descentralizados e disseminados desfechados por grupos fascistas contra professores e intelectuais progressistas, ativistas de base, lideranças populares ou simples cidadãos transformados em alvo por serem negros, mulheres ou LGBTs.
As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura
É preciso não se esquecer de que o medo é um dos alimentos do fascismo. A defesa das lideranças sociais é ação essencial e urgente. Será vital haver discernimento político para ultrapassar cortinas de fumaça e possibilitar concentração nas batalhas em que seja possível a obtenção de vitórias que retardem ou bloqueiem o projeto fascista. Se os fascistas lograrem vitórias iniciais os dias seguintes serão mais difíceis.
Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!
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