Unir o que foi dividido
Contribuição da Fundação Lauro Campos
para a abertura do Observatório da Democracia
A ascensão de Jair Bolsonaro, um político marginal no cenário político brasileiro até recentemente, ao cargo máximo da República não é um fenômeno isolado ou casual, faz parte de uma crise profunda do sistema capitalista em geral; e, como qualquer fenômeno político, tem seu registro próprio, sua particularidade condicionada.
Bolsonaro não é mais importante do que o processo e o contexto que o produziu, o presidente brasileiro não guarda em si nenhuma característica digna de ser analisada isoladamente, nem seu governo nenhuma originalidade que permita ser interpretado como foram os movimentos conjunturais mais amplos e da movimentação estratégica dos atores que realmente importam para no desfecho da crise atual. Portanto, iremos destacar os movimentos amplos e suas intencionalidades a fim de melhor caracterizar o atual governo.
O sul sob ataque
O geral oferece significado para o particular. A situação política nacional (particular) é sobredeterminada pelas condicionantes advindas do atual estágio de acumulação de capital no mundo bem como pela disputa geopolítica entre os atores globais (geral). A multipolaridade mundial, a criação dos BRICS, a descoberta do pré-sal no Brasil, a crise econômica mundial, as dificuldades da política externa estadunidense tanto no terreno militar quanto diplomático são acontecimentos fundantes do período presente. Procurar razões de ordem exclusivamente doméstica para a vitória da extrema-direita é um erro metodológico.
Diante desse pressuposto, é possível afirmar que as nações latino-americanas que reivindicam ou reivindicaram o não-alinhamento ou, no mínimo, uma política externa com algum nível de autonomia em relação a Washington sofreram e sofrem ataques sistemáticos do complexo imperialista liderado pelos Estados Unidos.
Desestabilização, fomento de grupos oposicionistas, promoção de fracionamento dentro das estruturas do estado e do sistema partidário, embargo econômico, ameaças militares e golpes fazem parte do repertório de instrumentos utilizados nestes ataques. Isso tudo articulado com a metodologia de Guerra Híbrida, que articula psicologia de massas e novas tecnologias digitais. Na forma se expressa como caos, no conteúdo é rigorosamente estruturada, segmentada e hierarquizada com o propósito de decompor a capacidade de resistência e previsão dos oponentes.
Intervenções de larga escala, como as descritas, sempre visam o controle de recursos e vantagens bastante objetivas. Os interesses concretos que motivam o processo de desestabilização em nosso continente foram no sentido de preservar ou retomar:
a) a vantagem geopolítica estadunidense diante dos seus oponentes (Rússia e China);
b) o controle sobre recursos naturais estratégicos como petróleo, energia, biodiversidade, minérios, água, etc;
c) o controle sobre áreas geográficas estratégicas do ponto de vista militar (bases) e comercial (rotas e entrepostos mercantis);
d) o controle sobre setores produtivos e tecnológicos estratégicos;
e) a transferência de parcelas cada vez maiores do fundo público para o setor financeiro.
Os interesses concretos sobrepõem às boas maneiras em momentos de crise. A doutrina do “soft power” (poder leve) é abandonada até mesmo retoricamente, o “big stick” (grande porrete) é, não apenas o real, mas também o anunciado. A força bruta não é uma opção do condomínio de poder da OTAN, mas uma necessidade objetiva de autopreservação em um cenário de fortalecimento do poderio das nações do leste. A guerra aberta é uma possibilidade real na América Latina em uma situação como esta, um conflito que envolveria, mesmo que indiretamente, boa parte das nações do continente e resultaria em uma regressão nunca vista nas relações entre países latino-americanos.
Neoliberalismo e dependência X Soberania e Democracia
O padrão de acumulação de capital na atualidade é contraditório com projetos social-democratas ou regime democráticos liberais em qualquer parte do mundo. Em especial em países dependentes, como o Brasil, cujos processos eleitorais de tempos em tempos criam ameaças, reais ou imaginárias, aos privilégios políticos da burguesia associada e setores sociais ideologicamente alinhados a ela. Para garantir que esta “ameaça” não condicione, em algum momento, a lógica dependente, é que neste período, a democracia liberal, a ordem constitucional, o estado democrático de direito e a estabilidade do regime político nos países do sul se converteram em um inconveniente que perturba tanto a Casa Grande quanto a Casa Branca. O significado, em um nível analítico ampliado, do governo Bolsonaro corresponde a crise da civilização e de sua da forma política predominante nos últimos 30 anos: as democracias liberais.
Lava-Jato, Golpe e Fascismo: A particularidade
do caso brasileiro
A forma como a crise das democracias ocidentais se revelou no Brasil está associada com o tipo específico de interesses imperialistas existente sobre nós. Esta é a nossa miserável particularidade. No Brasil, a burguesia associada na ânsia por atualizar sua forma de reprodução ao ritmo imposto pelos seus parceiros-chefes internacionais, rompe com o arranjo político da Nova República – que estruturava a competição (dentro da ordem) entre os três atores políticos principais do tabuleiro político nacional, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o Partido dos Trabalhadores (PT) – e assume uma agenda neoliberal radicalizada, que coloca em xeque a própria estrutura do estado nacional.
Porém, é importante registrar que a burguesia alcançou seus objetivos também graças à política que foi adotada pelos setores que governaram o país, em especial o PT, nesses últimos 13 anos.
Cada vez que Lula chamou Sarney de “companheiro”, cada vez que uma liderança petista rezou com Silas Malafaia, cada vez que Lula pediu voto para um prócer peemedebista, um tijolo no impeachment de Dilma foi empilhado. Da negativa em nomear ministros de esquerda ou progressistas para o STF nasceu a condenação a Lula na justiça.
Dilma, ao assumir o seu segundo mandato, fez um giro de 180º na política econômica rompendo com parte de sua base social e eleitoral. Levando os setores democráticos à desmoralização, ao ponto de quase não haver resistência do campo progressista contra a direita que tomou gosto por ocupar as ruas. Ao optar por essas posições e se negar a chamar o povo a se mobilizar, o caminho para o golpe e o retrocesso estavam abertos para a direita e fenômenos de extrema direita como foi o caso de Bolsonaro.
O acontecimento inaugural do rompimento da arranjo novo-republicano foi o não reconhecimento, por parte do PSDB, do resultado eleitoral de 2014 que reconduziu a Presidenta Dilma (PT) à presidência. O candidato derrotado, Aécio Neves, foi o agente incitador do processo de desgaste da recém reeleita. O governo de Dilma subestimou o imperialismo e não compreendeu que a ordem jurídica estava corrompida pelas fissuras no interior do estado (Judiciário, Parlamento), apostou até o último momento nas soluções processuais dando espaço para o golpe se materializar, uma resistência passiva e legalista, uma resistência em caráter recursal.
Aproveitando a instabilidade, agentes externos sustentaram materialmente e orientaram nas dimensões políticas e técnicas grupos de posição como o Movimento Brasil Livre (MBL) e agrupamentos similares e a grande imprensa, criando a base de massa do golpismo, e dois anos depois a vanguarda da campanha de Bolsonaro.
A Operação Lava-Jato teve um papel fundamental na operacionalização do processo de desestabilização e do golpe. Retomando aos interesses concretos perseguidos pelo imperialismo, citados acima, é possível encaixar os resultados desta operação com os objetivos gerais da política exterior estadunidense.
A Lava-Jato retirou o Brasil dos BRICS e o colocou em associação direta com os interesses de Washington. Ou seja, recompôs a vantagem geopolítica dos EUA na América do Sul.
A Lava-Jato enfraqueceu a Petrobras, facilitou o processo de leilão de reservas importantes do pré-sal. Logo, abriu caminho para o capital privado estrangeiro controlar os recursos naturais brasileiros.
A Lava-Jato enfraqueceu todo o complexo naval brasileiro (associado à Petrobras), e criou as condições para a suspensão de projetos relacionados ao poder marítimo brasileiro, como a do submarino nuclear. A costa brasileira, devido às reservas petrolíferas, são áreas estratégicas e hoje sem nenhuma defesa real organizada por parte do estado brasileiro.
A Lava-Jato ao colocar em xeque a Petrobras, reduziu a capacidade de produção de tecnologia e inovação da estatal e ainda arrastou para a crise as refinarias da empresa. Isso transfere para às petroleiras internacionais o mercado de uma cadeia produtiva estratégica para o Brasil, a pesquisa, extração, refino e a distribuição de combustíveis (o insumo universal da vida contemporânea).
Ao prender Lula, que era o candidato com maior potencial de vitória em 2018, a Lava-Jato se sobrepôs ao sistema eleitoral, interferindo diretamente no principal instrumento de estabilização do regime novo-republicano: as eleições. Isso abriu os caminhos para Bolsonaro torna-se um candidato viável.
É evidente, porém, que a Lava Jato só pode avançar graças à existência real de ilicitudes que vinham sendo cometidas por agentes públicos, empresários e lideranças partidárias, para assegurar a reprodução da dinâmica degenerada do sistema de financiamento de campanhas, do qual participaram, sem pudores, parte considerável das agremiações do campo democrático e popular.
Tendo a Lava-Jato garantido o contexto geral do golpe, ao assumir a presidência Michel Temer vai mais além e aprova a Emenda constitucional 95 (congelamento de gastos) que de fato decompõem o papel de garantidor de direitos do Estado e transfere aos bancos parcelas maiores do orçamento nacional.
Não há dúvidas que foram os resultados da Lava-Jato que pavimentaram o caminho para os demais retrocessos sofridos no Brasil durante os anos de governo Temer. Como por exemplo, para garantir o mínimo de apoio entre o empresariado, inclusive os pequenos e médios, se aprovou a Reforma Trabalhista. Logo, esta operação foi o instrumento fundamental do golpe contra o povo brasileiro.
Mas qualquer análise do passado só tem sentido político se colabora para compreender o presente. O mecanismo que faz da “cruzada de combate à corrupção” o elemento ativo de ascensão do fascismo político no país só pode ser compreendido na medida que é entendido como resultado de um ataque contra a soberania nacional em um período de crise política e econômica. Apesar de se aproveitar e repor ampliadamente traços conservadores historicamente presentes na cultura política e social brasileira (o udenismo, o racismo, o patriarcado, o anticomunismo, etc.), ele não é propriamente o resultado dela, mas de uma necessidade de desestabilização originada externamente e que aproveitou do reacionarismo interno na justa medida que colaboram com os objetivos externos.
O Brasil, sob o governo de Bolsonaro, é o Brasil pós Lava-Jato. Ao contrário do que esperava o PSDB, mas também a direita e a esquerda tradicional brasileira, o capital político da Lava-Jato foi colhido e tem sido consumido por Bolsonaro. Isso o elegeu e dará sustentação temporária, porém não é provável que o sirva durante todo seu mandato. Nada indica que a agenda conduzida por ele resolva problemas concretos do povo, logo, a dilapidação do acumulado eleitoralmente tende a se acelerar e as possibilidades de contestação de sua liderança irá aumentar.
O governo compartilhado
Quanto ao caráter do governo ao que indicam suas declarações, não se trata de um governo associado aos EUA, o que exigiria alguma camada de interesses estratégicos próprios, mas sim um governo compartilhado; ou seja, sob orientação direta do núcleo no exterior. Este modo de governo irá agir sob estímulos vinculados aos interesses diretos de Washington.
Isso implica na regressão de aliados e parceiros no cenário internacional em diferentes áreas – militar, tecnológica e comercial. Significa, inclusive, a ampliação da instabilidade na América do Sul, a pressão sobre Venezuela e Bolívia em nome dos interesses estadunidenses, como já está ocorrendo nas recentes intervenções no Grupo de Lima, o que rompe com a orientação histórica da diplomacia brasileira.
Bolsonaro será chefe de um governo condicionado em verde-oliva. O protagonismo de militares, em especial do Exército (a corporação mais reacionárias entre as três forças armadas) – dentro da equipe ministerial é sintoma da incapacidade de composição de um governo com autoridade interna própria. A farda tem a pretensão de servir como legitimação social e instrumento de chantagem frente aos seus opositores; basta compreender o resultado prático de uma campanha Fora Bolsonaro bem sucedida. Em termos mais concretos o Exército força uma associação à estratégia norte-americana nos assuntos vinculados às relações internacionais, inteligência, tecnologia e infraestrutura. O resultado prático é que a política de defesa estará em função do Pentágono, que funcionará como o Estado-Maior de fato das forças militares brasileiras.
Moro é, na prática, um ministro do interior, encarregado de aprofundar a limites desconhecidos o Estado Penal. A forma particular do fascismo de controle do trabalho. A via possível de garantia da subalternidade das massas em um período de crise de hegemonia. Ele lidera o processo de “gestão” dos inimigos internos, não é por acaso que acumula funções antes sob a competência do extinto Ministério do Trabalho. Isso diz sobre quem pesará a mão do estado. Será o prolongamento da Operação Lava-Jato, ou seja, estabelecerá um processo de repressão institucional sistemática às esquerdas e movimentos populares, com o verniz de combate à corrupção e ao crime organizado.
Na dimensão econômica, o governo é a expressão radicalizada do neoliberalismo, e por isso terá de arcar com o ônus da impopularidade de suas medidas. As privatizações do patrimônio público e recursos naturais, a manutenção da transferência de parcelas crescentes do orçamento público para o setor financeiro, o fim da seguridade previdenciária são medidas de primeira ordem na agenda do Ministro da Economia, Paulo Guedes. Não há nenhuma originalidade em suas propostas, mas uma bricolagem do que há de mais selvagem tem termos de desregulamentação e estrangeirização da economia nacional. Como tática de aprovação de tal agenda, tudo indica que utilizará de propostas legislativas reacionárias, mas com apelo de massas (ex. flexibilização do acesso às armas de fogo, redução da maioridade penal, etc.) no sentido de equilibrar com medidas antipopulares na dimensão econômica e de direitos, como a Reforma da Previdência. Assim procura evitar que à crítica às suas medidas tomem corpo e assumam uma base social massiva.
A figura do Presidente e do seu círculo mais próximo é mais de figuração do que de direção propriamente dita. Continuará se alimentando da polêmica, do politicamente incorreto, do bizarro. Mas dentro da estratégia escolhida, possui relevância, na medida em que os Bolsonaro são os que melhor utilizam o caos como matéria de trabalho.
Coordenadas de luta pela democracia no Brasil
O desafio colocado na atualidade é qualitativamente diferente dos que foram vividos durante a vigência da Nova República. Vivemos em um período que exigirá capacidades novas, ainda ausentes entre os setores democráticos brasileiros. A seguir apresentamos algumas coordenadas que podem contribuir para o fortalecimento de campo democrático à altura do desafio do tempo presente.
– Desenvolvimento de um sistema de unidade que aproveite todas as forças disponíveis, sem a pretensão de criar um acabamento orgânico único para o consórcio de forças democráticas.
– Estabelecer uma posição internacional firme em defesa da autodeterminação, da soberania e da paz no continente, combatendo o discurso belicista do atual governo.
– Provocar o desgaste do Governo, em especial pela agenda econômica, nos temas que afetam a grande parte do povo brasileiro.
– Bloquear, com o máximo de unidade possível, o crescimento das expressões fascistas tanto nas organizações da sociedade civil e movimentos, quanto nas prefeituras e Câmaras de Vereadores dos municípios.
– Explorar as contradições que surgirão, em decorrência da agenda de ataques à estrutura do estado e a crise do pacto federativo, entre as posições do governo federal e estados e municípios.
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