Future-se:
o exterminador
do futuro
Por Jorge Almeida, Magda Furtado e Rafaela Cardoso*
A essência do projeto “Future-se” do MEC é destrutiva: materialmente é a privatização de fato das Universidades e Institutos Federais e dos seus recursos físicos e intelectuais. Evidencia-se em cada ponto sua pretensão de fazer uma disputa ideológica e sua concepção visa reforçar ainda mais a hegemonia burguesa na Universidade e na sociedade.
Efetivamente, pelo Future-se – lançado oficialmente pelo MEC em 17 de julho e atualmente em consulta pública – as IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) continuariam a ser formalmente públicas, mas seriam geridas por Organizações Sociais (OSs) privadas, mantidas por meio de Fundos de Investimento especulativos formados a partir da alienação de patrimônio público e outros financiamentos privados guiados pelo objetivo do lucro, sem qualquer garantia de orçamento federal para seu custeio. A proposta aponta para o progressivo esvaziamento da carreira docente, podendo chegar até à eliminação dos professores/pesquisadores concursados em regime de Dedicação Exclusiva e da carreira como hoje existe, além de abrir caminho para a implantação da cobrança de mensalidades para todo o ensino – o que não aparece formalmente no projeto e depende de emenda constitucional – e colocar em cheque a permanência estudantil. Ou seja, vai piorar as condições de trabalho, de ensino e de aprendizado, atingindo diretamente a formação dos estudantes.
Concomitantemente, o Future-se visa travar uma luta ideológica e promover uma profunda mudança na cultura universitária numa perspectiva liberal, tipicamente de mercado. Ao submeter o financiamento e, portanto, o funcionamento da universidade à perspectiva ideológica do governo federal e das empresas, pretende favorecer aqueles que têm uma posição mais identificada com o governo e os empresários e, ao mesmo tempo, forçar os outros a se adequarem a métodos privatistas, enquadrando os conteúdos de pesquisa. Vai gerar um clima de competição individualista e até mesmo um “salve-se quem puder” em vários níveis, como exacerbar a competição entre professores, entre estudantes, grupos de pesquisa, IFES e unidades internas às IFES.
Segundo Steve Bannon, da Cambridge Analytica, “para mudar fundamentalmente uma sociedade, primeiro é preciso destruí-la; somente depois de destruí-la você pode remodelar os pedaços segundo sua visão de uma nova sociedade”. Se trocarmos “sociedade” por “Universidade” nessa frase, teremos uma boa ideia do que pode ser o projeto “Future-se. Considerando que Steve Bannon foi consultor da família Bolsonaro durante as eleições no Brasil e que seu método de marketing eleitoral entranha a gênese desse governo, podemos estar muito próximos de entender os objetivos reais do projeto, que, se adotado tal como se apresenta, não deixaria de pé as Universidades e Institutos Federais tais como os conhecemos.
O lançamento do projeto não foi precedido de um balanço profundo, sistemático e consistente do ensino superior brasileiro nem do conjunto de nossa educação e seu financiamento. Tampouco passou por estudo de viabilidade. Tem uma origem marcadamente autoritária, não tendo sido submetido a nenhum tipo de consulta prévia à comunidade universitária e científica do país. Essas limitações, incríveis para um projeto que se propõe a uma mudança de tal monta, depõem fortemente contra a possibilidade de ele dar certo naquilo que propaga – que, supostamente, seria melhorar o ensino, resolver a questão do financiamento, promover a ciência e a pesquisa e aumentar a produtividade de professores, funcionários e estudantes. Mas isso é o de menos para a atual equipe do MEC e o presidente Bolsonaro. Se o projeto for aprovado e entrar em vigor, seus principais objetivos reais estarão alcançados: privatizar de fato as Universidades e Institutos Federais, favorecendo as empresas privadas e o capital especulativo, e destruir grande parte da capacidade de produção científica, tecnológica e intelectual em geral do Brasil.
O projeto Future-se se insere e é coerente com o conjunto da política deste governo, que parece caótico, mas não é. É antipopular, antidemocrático e antinacional. É ultraliberal e privatista na política econômica, na política social e nas políticas públicas em geral. É autoritário, obscurantista e destrutivo do patrimônio cultural de nosso povo. Tem as marcas do neofascismo do bolsonarismo. É um desdobramento do golpe do impeachment de 2016. E, enfim, é a face brasileira da ofensiva do capital diante da crise estrutural do capitalismo.
Essa proposta teve dois instrumentos principais de lançamento: o texto redigido de um projeto de lei e uma apresentação, na forma de monólogo do Secretário de Ensino Superior, Arnaldo Lima, de cerca de uma hora, para dirigentes da comunidade acadêmica. No meio de um emaranhado de afirmações bombásticas, críticas inconsistentes, promessas vazias, demagogias, destaque a “novidades” que já estão em andamentos nas IFES, e inúmeras emendas a leis já existentes e outros detalhes diversos, o projeto “Future-se”, foi apresentado pelo MEC como solução para o financiamento, gestão e produtividade das IFES. Mas, no frigir dos ovos, seus objetivos centrais, materiais e ideológicos estão nos parágrafos acima.
O programa é bastante amplo, mas há muitas lacunas e possibilidades de desenvolvimento a partir de emendas legislativas. Vamos aqui nos ater aos seus elementos centrais e a suas principais consequências e repercussões materiais e ideológicas. Há muitas questões que ficam para ser regulamentadas pelo MEC ou negociadas em contratos com as Organizações Sociais, o que não está explícito, mas que, dentro da lógica geral do projeto, dá margens para uma maior liberdade do MEC para agir de modo arbitrário, autoritário e privatista, já que a autonomia universitária não existirá mais na prática.
Afronta à autonomia universitária: gestão privada e interesses de mercado
O projeto se apresenta como supostamente “opcional”. Cada IFES seria livre para aderir ou não. Mas, na prática, pretende ser do tipo opcional-obrigatório, pois o governo continuará a promover um arrocho de tal monta sobre as IFES que elas vão ser colocadas diante do desafio de aderir ou ser estranguladas até morrer à míngua, afinal, não coloca nem como possibilidade revogar o brutal “contingenciamento” de verbas de custeio realizado no primeiro semestre deste ano. Ademais, aqueles que aderirem deverão receber incentivos materiais do Estado e do mercado como contrapartida.
Sua efetivação, entretanto, ainda vai passar pelo crivo do debate e da resistência na comunidade acadêmica e na sociedade em geral, assim como por uma luta legislativa e jurídica, na medida em que partes essenciais do projeto, como veremos, são ilegais e inconstitucionais. Nas Universidades e Institutos Federais, qualquer assinatura de acordo deve ser precedida necessariamente por análise, debate e aprovação do Conselho Superior da Instituição. Considerando o teor polêmico do projeto, o debate já está sendo desencadeado nos departamentos e nas entidades sindicais representativas das categorias de docentes e servidores técnicos-administrativos, bem como nas entidades e na base do movimento estudantil.
A proposta de transformar a natureza das Universidades e Institutos Federais – caracterizados como instâncias adversárias durante a campanha eleitoral, locais de “balbúrdia” segundo o Ministro da Educação e vítimas de pesados cortes no orçamento – evidencia-se em cada parágrafo do projeto Future-se, que altera 16 leis, e se sobressai na apresentação feita em Brasília pelo Secretário de Ensino Superior, Arnaldo Lima. Sob a enganosa promessa de um supostamente vultoso fundo financeiro com ações negociadas em bolsa e lastreado no patrimônio imobiliário das IFES, irrigado por doações de “generosos empresários” e “milionários abnegados”, cotas de fundos de investimento e outras receitas etéreas e incertas, as IFES deveriam se abrir a transformar sua finalidade para se entregar aos ditames do Mercado, adotando o espírito do “empreendedorismo” como sua nova razão de ser.
Um projeto inconstitucional: autonomia de gestão financeira não é autonomia financeira
Está explícito no projeto que, para não continuarem estranguladas financeiramente, as IFES devem, espontaneamente, abrir mão de sua autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, garantida pelo artigo 207 da Constituição, para entregar sua administração a Organizações Sociais de natureza privada, que podem contratar livremente pessoas estranhas ao meio para atuar na gestão e inclusive na atividade-fim. Além de atropelar a Constituição a serviço do mercado, de modo monocrático, sem um processo de debate amplo na sociedade e no parlamento, há também uma confusão que é obviamente proposital entre autonomia de gestão financeira, como está na CF, e autonomia financeira, que desobrigaria o governo de manter as IFES – e não é o que está no texto constitucional. O Future-se se vangloria de proporcionar essa suposta autonomia financeira, que representa na verdade uma dependência das empresas e do mercado, onde seria negociado o fundo imobiliário a ser constituído.
Gestão privada das OSs alavancaria lucros para os empreendedores
Pelo projeto, as Organizações Sociais, sem qualquer experiência de gestão universitária, passariam a gerir ensino, pesquisa e extensão, em parcerias público-privadas voltadas ao atendimento das necessidades de Inovação, Pesquisa e Desenvolvimento de acordo com os interesses das empresas nacionais e estrangeiras, que supostamente transfeririam seus centros de pesquisa e desenvolvimento para esses novos contratos. O capital humano das universidades seria direcionado a atender a essas necessidades, devidamente recompensado com bolsas, atividades remuneradas e distribuição de lucros e dividendos de patentes, que fluiriam tão “caudalosamente” a ponto de transformar o cargo de professor de uma IFES “no melhor emprego do país” – os professores poderiam ficar ricos, sublinhou entusiasticamente o Secretário Arnaldo Lima na apresentação. As ideias inovadoras, doações e investimentos privados só estariam esperando a gestão das IFES ser transferida para as Organizações Sociais “sem fins lucrativos” para que começassem a fluir, proporcionado uma suposta profusão de patentes, publicações e microempresas lucrativas e capazes de alavancar o fundo que lastreia o projeto. Este se transformaria em um negócio tão atrativo para o capital que inauguraria o supostamente desejado estado de autonomia financeira do ensino superior no país, além de dar lucros e dividendos não só para o mercado como para estudantes e professores – enfim, idealiza-se um cenário em que todos estariam satisfeitos com a nova natureza das Universidades, em perfeita simbiose com os interesses de mercado em nível nacional e internacional.
Em plena vigência da Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos federais nas áreas sociais como Saúde e Educação no nível da execução orçamentária do ano anterior, agravada pelos cortes de cerca de 5,8 bilhões no orçamento de custeio da Educação e Ciência e Tecnologia, esse fundo de investimento pretende se afigurar como uma solução salvadora. Afinal, as Universidades e Institutos Federais estão à beira da paralisação por falta de verba de custeio. Mas não existe adesão parcial: o acesso está atrelado à subordinação, no escuro, da gestão das IFES às Organizações Sociais – como se o problema do déficit no custeio fosse culpa da gestão democrática, que é um preceito constitucional. A distribuição de fundos não será equitativa: pressupõe uma competição entre as instituições, com critérios produtivistas que acirrarão as desigualdades regionais, numa espécie de gincana pelo cumprimento de metas estabelecidas por critérios externos de mercado.
Nas argumentações do MEC, eles procuram apresentar as Organizações Sociais como se fossem um desenvolvimento natural das atuais Fundações de Apoio hoje existentes, que são entidades de caráter privado sem fins lucrativos. Na realidade, as Fundações, bem ou mal (pois há muitas situações passíveis de crítica), desempenham uma função de apoio a iniciativas da Universidade, como cursos de extensão e a participação em parcerias público-privadas em projetos de Pesquisa & Desenvolvimento permitidas pelas alterações do Marco Legal da Ciência e Tecnologia de janeiro de 2016 (lei 13.243 de janeiro de 2016, sancionada por Dilma Rousseff). Já as OSs tomam para si a gestão dos contratos de parcerias com empresas no âmbito de P&D, tirando o controle das IFES, o que resulta, portanto, na destruição da autonomia universitária de gestão. Além de colocar o próprio ensino superior a serviço do capital, esse processo ainda vai capitalizar outras empresas privadas, especialmente bancos e o setor imobiliário.
A pesquisa pura, Ciências Humanas e Sociais: o que fazer com os “não-lucrativos”?
Esse atrativo conto só não ousa perguntar o que seria da pesquisa pura e de base, das Ciências Humanas e outras áreas não afeitas a resultados lucrativos e rápidos. Salta aos olhos que é preciso muita ingenuidade para acreditar no desprendimento do capital financeiro para investir em ensino e pesquisa em um país de capitalismo dependente, para onde as empresas transnacionais nem pensam em transferir seus setores de pesquisa e inovação, como alerta o professor Roberto Leher (UFRJ) em recente artigo sobre o Future-se, mostrando como o projeto idealiza o capital e as empresas estrangeiras em sua formulação. É preciso muito desconhecimento (ou má-fé) da parte dos elaboradores do projeto para acreditar que o modelo de polo tecnológico, já existente em instituições como a COPPE/UFRJ e aplicável a poucos departamentos, deva direcionar as prioridades e esmaecer as especificidades de uma Universidade voltada realmente ao avanço do conhecimento em todas as áreas. Evidentemente algumas, pela natureza de seu objeto de estudo, são francamente contrárias aos princípios de mercado – como as pesquisas arqueológicas, linguísticas e de meio ambiente, para citar alguns exemplos. O projeto também atropela um dos princípios mais caros ao ensino superior público, que é a indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão socialmente referenciados.
Os entusiastas do Future-se omitem ou desconhecem que a possibilidade de simbiose com as empresas na pesquisa aplicada ao desenvolvimento de produtos e inovação não pode se desprender da pesquisa pura que lhe embasa os avanços, mas que não proporciona resultados tão rapidamente mensuráveis por metas de curto prazo. Do jeito que está o projeto, parece que as patentes e publicações só não jorram em abundância porque as pessoas não estão suficientemente estimuladas pela possibilidade de ganhos financeiros imediatos. Torna-se evidente a pequena conta em que são tidos os professores e pesquisadores brasileiros por parte dos formuladores do projeto.
É provavelmente proposital a omissão no projeto das especificidades das pesquisas na área das Ciências Humanas, que, em diálogo com os movimentos sociais, possibilitam compreender a história da formação social brasileira, recolheram dados e sistematizaram informações acerca das desigualdades sociais, do racismo estrutural e desigualdade de gênero da sociedade, entre outros avanços. Tais pesquisas contribuíram para proposição de políticas públicas, como a lei das cotas raciais e sociais nas IFES. Mais tarde, forneceram informações para políticas de assistência estudantil que foram responsáveis por garantir a permanência dos estudantes. Na lógica mercadológica do Future-se, esse tipo de pesquisa não merece financiamento.
Fim da gratuidade constitucional do ensino público como alternativa implícita
O primeiro questionamento ao projeto, diante do espírito privatizante que o informa, foi sobre a possível cobrança de mensalidade aos estudantes, que é uma alternativa que está implícita ao texto e, sobretudo, à apresentação do projeto – todas as universidades estrangeiras citadas como modelo cobram mensalidades. Diante da explícita proibição no texto constitucional (CF artigo 206, inciso IV), que garante a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, o Future-se se apega à recente e controversa decisão do STF, que permitiu cobrança de mensalidade em curso de pós-graduação lato sensu para listar essa modalidade como uma das fontes de receitas previstas do fundo “de autonomia financeira das IFES” – (artigo 23, inciso h).
Foi exatamente o caráter empresarial de certos cursos de pós-graduação lato sensu denominados “MBA” aplicados, oferecidos muitas vezes de forma condensada e em convênio com entidades privadas, que fundamentou a justificativa da deliberação do STF de permitir a cobrança, apesar do texto constitucional, já que seriam cursos que passariam ao largo do caráter acadêmico das pós-graduações tradicionais. Essa mesma justificativa poderia ser utilizada para cobrar mensalidades de novos cursos que buscassem se harmonizar com o espírito do Future-se, tornando-se mais atrativos para os modelos que o projeto louva como rentáveis para as parcerias público-privadas, capazes de gerar receita para engrossar o fundo financeiro, especialmente na hipótese de não se confirmar o “espírito generoso” que está sendo suposto em investidores do mercado financeiro.
Essa cobrança, limitada no projeto aos cursos lato sensu, se configuraria como uma tática paliativa de obtenção de receitas, enquanto o governo em curso não concretiza o que já adiantou na campanha eleitoral e vem ameaçando em diversos momentos: uma proposta de emenda constitucional para instituir a cobrança de mensalidades em todos os cursos de graduação e pós-graduação das IFES. Apesar do “otimismo ingênuo” que perpassa todo o projeto, nenhum antecedente na nossa história é capaz de sustentar a hipótese de que um fundo financeiro voltado a subvencionar educação e pesquisa, num país de capitalismo dependente, possa ter viabilidade suficiente para liberar o Estado dessa obrigação, mesmo que em parte. Por mais que os ditames de mercado presidam a elaboração e aprovação de projetos nesse novo ideal, os produtos financiados não têm como obter potencial para concorrer com remuneração proporcionada pelas exorbitantes taxas de juros do mercado financeiro no Brasil. Por esses motivos não é possível afastar a hipótese de que o ensino público e gratuito, a despeito de suas atuais garantias constitucionais, está sob risco direto diante do apregoado Future-se.
Possíveis consequências para a carreira docente e dos técnicos-administrativos das IFES
O projeto Future-se, ao permitir por meio das Organizações Sociais a aceleração do processo de contratação de funcionários via CLT que já vinha em curso no universo das IFES – tanto pela EBSERH quanto pelas Fundações de Apoio – coloca em risco evidente não só a carreira dos servidores técnico-administrativos em educação como também a dos docentes. A percepção desse risco se assenta não só nas referências explícitas feitas no projeto (por exemplo, os funcionários das OSs são denominados “colaboradores” no inciso II do artigo V, inclusive os cedidos pelas IFES), como na conclusão implícita de que poderão ser contratados professores via OS inclusive para lecionar. A facilitação do reconhecimento do notório saber, que dispensa o título acadêmico, é proporcionada por alteração do artigo 66 da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional) – artigo 29, nas disposições transitórias – é outro indício que incrementa essa preocupação.
É preciso ressaltar que a facilidade na contratação de pessoal via OSs tem como contraponto a anunciada suspensão da contratação de pessoal no Executivo Federal por meio de concurso público. Essa intenção vem se coadunar com as sombrias perspectivas introduzidas pela aprovação da lei 13.429/2017, que amplia as possibilidades de terceirização, inclusive no serviço público, permitindo que se terceirize até mesmo atividade-fim. Esse processo geraria na prática a extinção lenta e gradual do RJU (Regime Jurídico Único) no âmbito das IFES, com todas as consequências nefastas de sua obliteração, como o fim da estabilidade e o consequente aumento do assédio moral e das ingerências ideológicas, político-partidárias, nepotismo e lobbies empresariais na contratação de servidores.
Em relação ao regime de Dedicação Exclusiva, o Future-se aprofunda a descaracterização já iniciada com a permissão concedida pela lei 13.243, de janeiro de 2016, para que o docente da carreira do Magistério Federal possa exercer atividade eventual remunerada em ICT ou empresas, em assunto de sua especialidade, em desenvolvimento, pesquisa e inovação por até 8 horas semanais (ou seja, o mesmo tempo mínimo dedicado às aulas nas IFES) ou 416 horas anuais (o limite anterior era de apenas 30 horas anuais). Na prática, o docente em regime de Dedicação Exclusiva nas IFES pode ter uma atividade paralela remunerada, desde que autorizada e relativa ao seu projeto de Pesquisa e Desenvolvimento. Com o Future-se, essa atividade paralela remunerada passa a estar sob a gestão das Organizações Sociais, que, ao estimular amplamente o empreendedorismo, passam a ter todo o controle das atividades de ensino e pesquisa da Instituição e fora dela. Esse controle total se comprova, sobretudo, no inciso II do artigo 40, que estabelece que as OSs poderão “apoiar a execução de planos de ensino, extensão e pesquisa das IFES” e, no artigo 11 inciso 7, exercer “avaliação da satisfação dos alunos com os professores e disciplinas”.
Afigura-se bastante evidente que o intenso estímulo ao empreendedorismo (como foi dito na apresentação do projeto, “vai ser o melhor emprego do mundo”) pode fazer com que essa atividade paralela, exercida no âmbito na profusão de microempresas criadas em parceria com as OSs, pode se tornar a ocupação principal do docente pertencente à carreira, em regime de Dedicação Exclusiva, em detrimento das atividades de ensino, orientação e contato com seus pares voltados à pesquisa básica, para a qual não há nenhum incentivo nesse projeto. Emerge igualmente a possível consequência de que os projetos que não se enquadrarem nesse viés do empreendedorismo não desfrutarão da mesma projeção e espaço institucional, podendo ser considerados fora do interesse ou das metas da Organização Social responsável pela gestão – portanto, não merecedores da destinação de recursos, inclusive humanos. Tudo no Future-se aponta para a prevalência visão mercadológica das atividades de ensino e pesquisa, com critérios de avaliação estranhos ao fazer acadêmico, como diz explicitamente o inciso V do artigo 11: “adesão, no que couber, a códigos de autorregulação reconhecidos pelo mercado”. E, para que isso se efetive, o professor, como bom “empreendedor”, teria que se transformar num profissional de administração e marketing.
“Código de ética e Conduta” – punições para quem não se adequar
Todo o projeto é perpassado pela não dissimulada intencionalidade punitiva para os resistentes à filosofia do empreendedorismo. Além da possibilidade de rejeição dos projetos de pesquisa que não atendam aos critérios de financiamento estabelecidos pelos gestores do fundo a ser criado, o método de cobrança é a verificação do cumprimento de metas no ritmo determinado pelos interesses de mercado da OS. É fácil concluir que a pesquisa de base e pura, que tem evolução e percurso em ritmo não facilmente mensurável pelos critérios de avaliação derivados desses interesses, seria diretamente prejudicada. Mas até mesmo uma pesquisa perfeitamente enquadrada nos parâmetros desejáveis pelo mercado pode ter uma mudança de curso e deixar de cumprir metas – nem sempre os resultados esperáveis são confirmados pela evolução de um projeto. Mesmo em casos dessa natureza poderá haver aplicação de penalidades, pois os gestores não necessariamente se orientam por critérios do meio acadêmico e estarão sujeitos à constante cobrança por resultados. Não é difícil prever a pressão psicológica e o grau de estresse que esse ambicioso plano de metas e avaliação de satisfação por parte dos clientes pode trazer aos docentes pesquisadores.
. A garantia de aumento do controle interno e a auditoria externa das contas das IFES estão sacramentadas no projeto pelo artigo 60, inciso VI, parágrafo único. Exala do conjunto do projeto uma forte desconfiança das instâncias e mecanismos de gestão democrática estabelecidos pela própria Constituição Federal e já desenvolvidos no âmbito administrativo das IFES. O Future-se, entretanto, vai mais longe, ao prescrever no artigo 6o um “Código de ética e conduta” para todos os servidores cedidos, ainda que já estejam sujeitos aos processos administrativo-disciplinares (PAD) previstos no Regime Jurídico Único, com o objetivo de “aferir responsabilidade pelos atos praticados durante o contrato de gestão”. Aceitar a priori a aplicação desse código a servidores estáveis e sujeitos às garantias do RJU, sem que ele esteja estabelecido, desconhecendo-se, portanto, suas possíveis consequências e limites, parece ser um tiro no escuro, sem que se saiba o que se pode atingir e a extensão dos danos.
Em caso de descumprimento de cláusulas contratuais ou da manifesta intenção da Instituição Federal em romper o contrato de gestão com uma OS, ainda que deseje se manter no Future-se, serão aplicadas penalidades, como deixa expresso o projeto de lei no artigo 3o parágrafo 3o, incisos VI e VII, e é esperado em qualquer contrato. Porém, se uma IFES, por força de deliberação de seu Conselho Superior, optar pela sua exclusão do Future-se, também serão aplicadas penalidades, como adianta o artigo 2o parágrafo 1o. Portanto, uma vez que ingresse no programa, está caracterizada cessão da autonomia administrativa garantida às Universidades pela Constituição Federal no artigo 207. Ao assinar um contrato dessa natureza, mesmo com a aprovação do Conselho Superior, o Reitor de uma Universidade ou Instituto Federal não pode garantir que algum servidor público ou estudante da Instituição, ou suas entidades representativas, não vá reclamar na justiça seu prejuízo de direito funcional ou estudantil por não concordar com essa explícita renúncia a um princípio constitucional vigente quando de seu ingresso na Instituição. A questão que se levanta, para além dos aspectos técnicos e políticos, é a admissibilidade jurídica dessa renúncia a um princípio constitucional que é democratizante. Certamente aqui há matéria para ingresso de uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) por parte das entidades que possuem essa prerrogativa.
Consequências para os estudantes
Para os estudantes, as consequências também serão duras, colocando mais barreiras para permanência. As severas restrições de recursos para assistência e permanência, que já estão em andamento devido ao corte feito pelo MEC no orçamento de custeio, serão ainda maiores com a desobrigação do Estado de financiamento das IFES. Podemos observar que no projeto Future-se não há sequer menção a assistência estudantil, na lógica de que “cada um corra atrás do seu”. Também é bastante previsível que haverá o enfraquecimento do apoio à pesquisa (como bolsas) nas áreas consideradas de difícil ou demorado retorno financeiro, como as Ciências Humanas. Devido à imposição de metas de produtividade, está explícito no projeto o aumento do controle e um tipo de auditoria feito pelas OS. Os estudantes das áreas não contempladas pelos interesses da perspectiva do empreendedorismo vão se deparar com fortes restrições financeiras e desinteresse da gestão em autorizar o dispêndio de tempo e instalações para seus projetos.
As atuais atividades de extensão universitária, que completam o tripé indissociável de Ensino, Pesquisa e Extensão, certamente serão revistas para que sejam forçadas a se adequar ao espírito que informa o projeto Future-se. Assim, as atividades marcadas pela interação com os movimentos sociais, por não serem rentáveis e gerarem custos (na concepção liberal), estarão na mira imediata da tesoura das OSs. Está claro que não há lugar para projetos de extensão cuja natureza se oponha ao seu sentido material e ideológico geral, do governo e do mercado. A função social das Universidades não é um princípio contemplado por esse projeto, a despeito dos resultados auspiciosos dessa linha de atuação e da grande atratividade para o conjunto dos estudantes.
Como consequência óbvia da transferência da gestão das IFES do Conselho Superior, onde a representação estudantil tem paridade, para as OSs, haverá o reforço do autoritarismo em relação aos estudantes. A própria estrutura geral das IFES se tornará mais autoritária e decisões advindas de uma gestão tipo empresarial de OS potencializarão isso.
Assim, parecem bastante razoáveis os temores de que haja prejuízo na formação técnica, pedagógica e humana, na medida em que todo o enfoque principal do projeto, das falas do Ministro e de outros dirigentes do MEC tem sido no sentido de simplificação do ensino, inclusive aplicando a recente ampliação do percentual de ensino a distância (EAD). O objetivo propalado é a formação de uma mão de obra técnica simplificada e que atenda aos ditames de uma exploração que produza resultados práticos para o capital, de modo disciplinado e acrítico, privilegiando os estudantes de “boa conduta”. O coroamento dessa visão está no artigo 44 do projeto: “Fica instituído o Dia Nacional do Estudante Empreendedor, a ser comemorado no primeiro sábado depois do dia do trabalhador”.
O projeto formalmente é omisso quanto às políticas de cotas. Mas, considerando que estas requerem políticas de permanência para sua efetividade, e como tende a haver cortes ainda maiores nas verbas para a assistência estudantil, certamente o projeto acabará de fato se tornando um ataque significante às cotas.
O inciso VII do artigo 14 preconiza como um dos objetivos das IFES contratantes a obrigação de “promover ações de empregabilidade para os alunos das instituições”. Mas não há qualquer indicação de como isso será possível no âmbito das áreas não contempladas pelo espírito empreendedor, como as Ciências Humanas. A intenção parece estar toda voltada para a criação de polos tecnológicos, incubadoras de microempresas e parcerias público-privadas voltadas ao desenvolvimento de produtos de Inovação. Há implícita desvalorização dos cursos e diplomas obtidos nas demais áreas do conhecimento que não contemplam esse tipo de pesquisa.
Como já alertamos, apesar de não estar presente explicitamente no projeto e ser inconstitucional, o projeto abre espaço para uma futura introdução do pagamento de mensalidades também nos cursos de graduação. Nos cursos de pós-graduação lato sensu a cobrança de matrícula e mensalidades está listada como uma das receitas do fundo de financiamento. Não por acaso, esta intenção tem sido vocalizada por diversos membros do bloco governante.
Uma possível consequência para o Movimento Estudantil (ME) é a tentativa de sufocamento de suas potencialidades. Afinal, os alunos que terão acesso aos recursos são os de “boa conduta”. Para esse governo qualquer ato de resistência é criminalizado, portanto, fora da boa conduta. Além disso, dentro de uma lógica mercadológica e autoritária certamente haverá restrições ao uso de espaços físicos e circulação dos estudantes. E tendo em vista que tudo que é contrário ao governo é considerado como “balbúrdia”, o ME será criminalizado e perseguido, numa tentativa de extingui-lo.
Para coroar a perspectiva fortemente autoritária no que diz respeito à relação com os estudantes, no final da apresentação do projeto em Brasília o Secretário da SESU diz para o presidente da UNE – que havia feito uma intervenção não prevista no início da apresentação e chamado a ficar na primeira fila – que, já que teria “se comportado bem” durante a exposição, seria depois recebido pelo MEC. Definitivamente, essa atitude não guarda qualquer semelhança com a atitude respeitosa de parceria e participação conquistada pelo movimento estudantil na gestão democrática e paritária estabelecida na maioria das IFES.
Enfim, o Future-se representará um processo de reversão da política de expansão das Universidades e Institutos Federais e das políticas de inclusão, atingindo tanto os estudantes que já estão nas IFES como aqueles que lutam para ingressar.
O Marketing para melhor vender o projeto
Na promoção do seu “produto”, especialmente na apresentação de lançamento feita aos reitores, o MEC se aproveita de várias situações já existentes nas Universidades para gerar confusão, dando a ideia que seu projeto se baseia em “boas práticas” já existentes. Tanto se refere a alguns casos que deram certo (como o do uso da energia solar em algumas unidades) quanto reivindica o modelo de ações de viés privatizante que foram iniciadas em gestões petistas no governo federal, como a EBSERH, que é um mau exemplo de privatização de fato dos hospitais universitários, cuja gestão foi entregue às OSs no governo Dilma Rousseff. A adesão à EBSERH também foi apresentada como voluntária, mas a pressão sobre as Universidades foi imensa, e já estão disponíveis pesquisas que apontam para precarização das/os trabalhadoras/es. A apresentação no MEC e o vídeo de propaganda do projeto usam esses casos como gancho para generalizar o atual projeto globalmente privatizante e desestruturante da Universidade pública.
Mesmo na comparação com o modelo antecedente da EBSERH, tanto citado como precursor, haverá uma profunda radicalização da privatização por dois elementos fundamentais: agora a gestão da Organização Social contratada envolve também ensino e pesquisa, e os hospitais universitários ficariam não somente abertos ao SUS, como também para pacientes privados e clientes de planos de saúde. Essa chamada “dupla entrada” acaba provocando diferenças de qualidade no atendimento dentro dos próprios hospitais públicos.
Ações interessantes que já existem em algumas universidades, como projetos que geram economia de recursos e menos poluição, como reutilização de água e uso de energia solar, são alguns exemplos que aparecem na propaganda do Future-se, mas não têm nada a ver com o conjunto do novo projeto. São ações que podem e devem ser incentivadas, mas não precisam do conjunto do projeto, pois podem continuar a serem geridas como projetos das IFES, servindo ao desenvolvimento da Universidade e coroando o esforço em pesquisa de seu corpo docente, técnico e discente.
A propaganda do Future-se incorpora também o fato de que nos campi de algumas universidades já existem marcas de empresas que formaram parcerias em alguns projetos internamente – como é o caso da Petrobras na UFBA e na UFRJ e o polo tecnológico instalado em parcerias público-privadas no campus Ilha do Fundão da UFRJ, com contrapartida financeira por parte das empresas, ou a existência de incubadoras de microempresas. Além de serem experiências que precisam passar por uma avaliação crítica, essas ações já são permitidas pelo Marco Legal vigente da Ciência e Tecnologia para Pesquisa & Inovação (de 2016), prescindindo, portanto, de um projeto como o Future-se.
A apresentação do MEC manipula as situações, afirmando que, ao aderir ao programa e contratar uma OS para administrar a IFES, “O Reitor ficaria livre” para tratar do ensino e pesquisa, deixando a parte de gestão administrativa para profissionais especializados na lógica empresarial. Na prática, o que ocorrerá é que o Reitor e o Conselho Universitário, ao perder o controle financeiro e de gestão de boa parte do pessoal, cedido às OSs para administração e mesmo ensino e pesquisa, perderiam todo o controle sobre a instituição. O Reitor eleito se tornaria efetivamente um cargo honorífico.
A grande e sedutora promessa é de que todos os professores “que se harmonizarem ao Future-se” vão se transformar em empreendedores e ficar ricos. É um chamariz material que tem forte repercussão e incentivo ideológico ao esforço e ao investimento e liberdade de empreendedorismo. No seu discurso para os estudantes, utiliza-se também do alto índice de desemprego entre os portadores de graduação para vender a miragem do emprego de empreendedor a partir da criatividade individual. Esse discurso mascara o cerne do projeto, que é o desmanche da universidade pública, gratuita e de qualidade.
Uma proposta que tem condições de polarizar um setor da “comunidade” das IFES
Apesar de ser um projeto desastroso de ruptura profunda e regressiva do acúmulo histórico da universidade pública, ele tem condições de ganhar uma parte da comunidade acadêmica. Como vimos, o projeto foi apresentado, no anúncio formal para os reitores, como um grande projeto de marketing que interessaria a todos porque “Todos vão enriquecer”.
Dentro do atual quadro de servidores, já existem professores/pesquisadores que atuam nessa perspectiva liberal e privatista, que querem mais facilidade para parcerias com o setor privado, para a realização de cursos extras (especialmente de pós-graduação lato senso) e de outras fontes de renda além do salário e bolsas institucionais. É também, mesmo que de modo menos aberto, o caso do EBSERH e de outras parcerias já existentes com a iniciativa privada. O mesmo ocorre entre os estudantes e tem potencial de desenvolvimento em parte de servidores técnicos e administrativos.
Além disso, contam com clima político e ideológico mais favorável a investimentos privados presente na sociedade neste momento, e mesmo com discursos e experiências já praticadas por governos petistas em nível federal e nos estaduais ainda existentes, tanto na área de educação como de saúde. Esses grupos mais afinados com a linha do projeto tendem a se organizar e tentar se fortalecer para disputar a perspectiva do MEC dentro das IFES e na sociedade, buscando a aprovação da adesão de suas Instituições e Unidades ao projeto.
O Ministro da Educação não esconde a intenção de intervir autoritariamente nas Universidades com os instrumentos administrativos à disposição, como portarias e instruções normativas que provoquem alteração na correlação de forças, como a nomeação de reitores e pró-reitores sem apoio na maioria da comunidade acadêmica das IFES. Pode haver a tentativa de atropelar Conselhos Universitários onde existam resistências, até mesmo contra reitores que resolverem aderir, mas não tenham maioria nessas instâncias. Como exemplo, o governo já se decidiu pela escolha de pró-reitores diretamente pelo MEC, por fora das indicações dos reitores.
O projeto do MEC, por mais precário e sem fundamentos de viabilidade que seja, não é aleatório nem “irracional”. Insere-se no conjunto da obra do governo Bolsonaro. Um governo marcado por ações que podemos chamar de idiotas ou mesmo criminosas, e que parece caótico, mas não é, pois é coerente com o conjunto de sua política. Um governo que ataca os direitos do povo em todos os âmbitos, especialmente dos trabalhadores e trabalhadoras na sua diversidade negra, feminina e jovem. Um governo antinacional, ultraliberal e privatista na política econômica, na política social e nas políticas públicas em geral. Que, explicitamente, nas palavras do Ministro da Economia, pretende privatizar todas(!) as empresas estatais e incentivar a venda de empresas privadas nacionais ao capital estrangeiro. Um governo antidemocrático, autoritário, que criminaliza os movimentos sociais, o movimento estudantil, a esquerda e tudo que pareça esquerda, mesmo quando não é. Um governo racista, homofóbico, machista, que pretende fazer vistas grossas ao trabalho análogo à escravidão e que reforça todas as opressões existentes. Obscurantista, que tem membros que acreditam que a Terra é plana, que rejeita cinicamente qualquer informação de caráter técnico e científico que conteste seus objetivos ideológicos e que nutre um profundo preconceito com intelectuais e artistas que tenham um mínimo de visão crítica. Que é destrutivo do patrimônio cultural de nosso povo, do meio ambiente, dos territórios indígenas e quilombolas. Enfim, um governo que tem dentro de si um núcleo marcado pelas concepções e práticas do neofascismo encarnadas pelo próprio presidente. Um neofascismo sui generis, adequado ao capitalismo dependente liberal periférico, onde o patriotismo é retórico e o verde e amarelo é apenas um verniz que encobre um entreguismo mais subserviente.
Não podemos nos esquecer de que o projeto Future-se se potencializa simbioticamente com um conjunto de outras medidas que já têm sido tomadas, como corte radical de verbas para a educação em geral e o ensino superior em particular; desrespeito à indicação de reitores pela ordem definida nas consultas; censuras de diversos tipos; desqualificação pública sistemática da universidade pública, da pesquisa científica, da ciência em geral e de órgãos oficiais de pesquisa como o INPE e o IBGE; da ofensiva conservadora através da proposta da “escola sem partido”; e intromissão policial e do Ministério Público no âmbito universitário, com abertura de inquéritos arbitrários etc.
Nesse sentido, esse projeto é mais uma manifestação dessa tragédia, que se soma coerentemente à reforma da Previdência, à reforma trabalhista, aos cortes de verbas das políticas públicas sociais, ao estado arbitrário com um aparelho jurídico coercitivo profundamente manipulado política e ideologicamente, à estripação da Petrobras e outras privatizações, à desnacionalização da Embraer, à cessão da base militar de Alcântara (Maranhão) aos EUA, ao acordo de livre comércio com a União Europeia e à destruição da Amazônia. E, é claro, está inserido dentro da ofensiva liberal e conservadora do capital, que, diante da crise mundial do capitalismo, procura realizar maiores lucros a partir do recrudescimento da superexploração do trabalho e do saque às riquezas acumuladas, especialmente na periferia.
O viés e a essência ideológica do projeto
Do ponto de vista ideológico, o projeto pretende uma profunda mudança na cultura acadêmica. Como sabemos, a cultura tem uma base material. Numa sociedade capitalista a cultura predominante é burguesa e a universidade pública não é uma ilha isenta e livre da ideologia burguesa, que já é predominante dentro dela. Mas não chega a ter a radicalidade existente no mercado e permite um certo grau de liberdade e pluralismo no ensino, na pesquisa e na extensão. São admitidas práticas solidárias, uma resistência ao ultraliberalismo e ao fundamentalismo conservador e, mesmo que minoritariamente, um pensamento crítico radical ou mais ou menos radical.
O projeto de MEC é enganoso. O regime de funcionamento das IFES é de autonomia acadêmica, administrativa e de gestão financeira, com financiamento público. A ênfase do projeto do MEC é na autonomia financeira das IFES, que devem buscar recursos em fontes privadas. Ao fazer isso, reforça a perspectiva ideológica liberal e, ao menos em parte, conservadora, de duas maneiras. Submete o financiamento e, portanto, o funcionamento da universidade aos interesses materiais e à perspectiva ideológica das empresas. Ao mesmo tempo, na medida em que vai enfraquecer os espaços da autonomia política das IFES, visa fortalecer o autoritarismo e uma cultura autoritária. E, com base no autoritarismo, haverá um reforço do conservadorismo inclusive no seu viés mais fundamentalista.
A gestão via OS também vai reforçar a cultura liberal de mercado e o autoritarismo. Assim, em seu conjunto, favorece aqueles que têm uma perspectiva mais identificada com um governo ultraneoliberal na economia e conservador nos costumes. Procura forçar os demais a se adequarem a métodos privatistas e autoritários, assim como a conteúdos de pesquisa com melhor possibilidade de aprovação por esse sistema.
Além disso, o sistema vai reforçar ainda mais um clima de competição individualista em cinco níveis. Pela renda pessoal dos professores/pesquisadores, que serão pressionados a buscar outras fontes de renda além do salário normal arrochado e terão que recrudescer uma competição entre eles. Dos grupos de pesquisa entre si pelos recursos. Na mesma lógica, também das IFES entre si e das unidades internas dentro de cada IFES. E também entre os estudantes, já que “os melhores, com notas melhores” nas avaliações e de “boa conduta” serão premiados. Claramente, haverá maior interferência liberal e conservadora e controle da formação ideológica dos estudantes.
Finalmente, as contratações de professores feitas pelas OS, por métodos menos democráticos e transparentes que os concursos públicos também vão reforçar as escolhas ideológicas num viés liberal e conservador. Efetivamente, o projeto visa construir uma nova cultura política dentro das IFES, ainda mais burguesa, individualista e liberal na visão de Estado e economia, com maior presença conservadora em termos sociais.
Sendo assim, esse projeto, mesmo parecendo meio caótico, não é um fato isolado. Ele se insere num esforço político para reforçar ainda mais a hegemonia burguesa, que já vinha se fortalecendo há mais de uma década, tanto do ponto de vista material como ideológico, na economia, no estado e na sociedade.
A resistência está sendo construída
Entretanto já se arma a resistência a essa hecatombe representada pelo Future-se. Algumas universidades já o analisaram e, por meio de seus Conselhos Universitários, deliberaram pela rejeição. A comunidade acadêmica e as entidades representativas das categorias de docentes, servidores técnico-administrativos e do movimento estudantil já estão em movimento em defesa das Universidades e Institutos Federais, para que se preserve sua atual natureza pública, gratuita e socialmente referenciada. Intensifica-se a luta em defesa das IFES, que são patrimônio do povo brasileiro como espaço privilegiado de construção do saber e avanço cientifico e tecnológico reconhecidos, com ênfase em seu notável capital humano altamente especializado. Já está havendo luta, dando seguimento ao que ocorreu no primeiro semestre deste ano, quando foram feitas grandes manifestações e uma vitoriosa Greve Nacional da Educação.
É dado conhecido, embora omitido pelo atual governo entreguista, que as Universidades públicas, mesmo representando apenas 12% do total das escolas de nível superior no Brasil, realizam 95% da pesquisa básica e aplicada do país, com espetacular reconhecimento e excelência em rankings nacionais e internacionais, em diversas áreas do conhecimento. Cabe ressaltar também o avanço tanto na democratização da gestão quanto no acesso de estudantes negros e pobres, muitas vezes os primeiros de suas famílias a conseguirem o ingresso em uma Universidade.
É fato que podem ser apontados em algumas das IFES problemas pontuais de gestão, reforçados pelos diversos cortes de verbas feitos por vários governos. Também está presente a inevitável visão tecnicista e produtivista que impregna a produção do conhecimento em nossos tempos, reforçada pela situação de capitalismo dependente liberal periférico – da qual a corrida estressante pelos pontos do currículo Lattes é um exemplo. Apesar disso, as Instituições Federais de Ensino Superior representam uma riqueza pública a ser preservada da sanha destrutiva, entreguista e cínica do governo Bolsonaro. Estando sob o duplo garrote da escorchante Emenda Constitucional 95 do governo Temer, que congelou no nível de 2016 as verbas públicas já reduzidas para as áreas sociais, e dos recentes cortes de 30% na verba de custeio, as Universidades e Institutos Federais têm diante de si uma luta de vida ou morte pela sobrevivência. Resistiremos em luta; essa é a tarefa que está colocada aos movimentos estudantil e sindical, à comunidade acadêmica e à sociedade brasileira.
* Jorge Almeida é professor Associado do Departamento de Ciência Política e do PPG de Ciências Sociais da UFBA.
* Magda Furtado é professora Titular do Departamento de Língua Portuguesa e Literaturas do Colégio Pedro II (IF), membro da Direção Nacional do SINASEFE e da Executiva Nacional da CSP-Conlutas.
* Rafaela Cardoso, militante da Juventude Pajeú, licenciada e bacharelanda em História pela UFBA.
Deixe um comentário