A eleições nos EUA e a crise: resultado
terá reflexos globais . Por Carlos Eduardo Martins
Donald Trump lançou nos últimos anos um imperialismo unilateral e chauvinista, que descartou a articulação do consenso neoliberal e as políticas de hegemonia. Ele lançou mão do poder do Estado norte-americano para desmontar as pressões competitivas da globalização. Usou a força não apenas contra adversários, como China e Rússia, mas também contra aliados, como os países da União Europeia, México e Canadá. Com resultados econômicos pífios, em boa parte, devido à pandemia, pode ser derrotado pela oligarquia financeira democrata. Um sério golpe para a direita global
Por Carlos Eduardo Martins
Desde a pós-guerra, em 1945, a reeleição presidencial foi a norma nos Estados Unidos. Apenas quatro vezes um presidente estadunidense não conseguiu a reeleição. O primeiro foi Richard Nixon, eleito em 1972, que sofreu o impeachment numa conjuntura crítica de derrota no Vietnã, ascensão dos movimentos sociais e escândalo de Watergate. O segundo foi Gerald Ford, o vice e sucessor de Nixon, derrotado em 1976. Jimmy Carter, que vencera Ford, perdeu para Reagan em 1980, no contexto das revoluções iraniana, nicaraguense e da elevação dos preços internacionais do petróleo. Por fim, George Bush pai, eleito em 1988, foi superado por Bill Clinton em 1992, beneficiado pela candidatura antiglobalista e conservadora do multimilionário Ross Perot, que atingiu 18,9% dos votos.
A globalização neoliberal já vinha em acelerado processo de desgaste nos anos 2010. A recuperação econômica da crise de 2008-09 foi medíocre nos Estados Unidos e na União Europeia. O comércio internacional não se projetou à frente do crescimento do PIB, e os fluxos internacionais de capitais entraram em declínio a partir de 2015
Todavia, o colapso da globalização neoliberal, disparado pela pandemia da Covid-19, atinge em cheio a economia estadunidense, criando um novo cenário na conjuntura política, social e ideológica dos Estados Unidos. Isso se manifesta no decrescimento agudo do comércio e dos fluxos internacionais de capital, do produto mundial, e no abandono das políticas de austeridade e em favor das políticas sociais e de sustentação do setor produtivo. Tal colapso, que pode ser provisório, é o resultado, entretanto, de movimentos profundos. Nossa hipótese é a de que expressa a combinação entre o esgotamento da fase A, do ciclo de Kondratiev, iniciada em 1994; a entrada numa fase aguda da crise de hegemonia dos Estados Unidos; e a crise ambiental, função de sua incapacidade para desenvolver uma nova etapa da revolução científico-técnica, centrada num paradigma biotecnológico, intensivo em saúde pública, preservação e regeneração ambientais.
Sobreposição de crises
A globalização neoliberal já vinha em acelerado processo de desgaste nos anos 2010. A recuperação econômica da crise de 2008-09 foi medíocre nos Estados Unidos e na União Europeia. O comércio internacional não se projetou à frente do crescimento do PIB, e os fluxos internacionais de capitais entraram em declínio, a partir de 2015, sem alcançar os níveis de 2007.
A eleição de Donald Trump representou a reação à estratégia neoliberal de inserção dos Estados Unidos na economia mundial que acelerou a desindustrialização, os déficits comerciais, o endividamento público com estrangeiros, a desigualdade, a pobreza e o desemprego. Sua pretensão é a de reverter o declínio industrial e tecnológico dos Estados Unidos, em especial, em favor dos novos polos de poder como a China, no plano econômico, e a Rússia, no plano militar. Para isso, lançou um imperialismo unilateral e chauvinista, que descartou a articulação do consenso neoliberal e as políticas de hegemonia e reivindicou a força do Estado norte-americano para desmontar as pressões competitivas da globalização, usando-a não apenas contra adversários, como China e Rússia, mas também contra aliados, como os países da União Europeia, México e Canadá, ou organismos multilaterais como a OMC e a OMS.
Guerra comercial
Trump abriu uma guerra comercial contra a China, impôs sanções contra suas empresas, pressionando outros Estados a replicarem-nas para isolá-la na disputa sobre a fronteira tecnológica. Ao fazê-lo aproximou-a da Rússia, a quem impôs dezenas de sanções, para conter seus projetos geopolíticos, fortalecendo indiretamente as aspirações de um projeto eurasiano. Todavia, ele não rompeu com a globalização financeira e nem com diversas dimensões do neoliberalismo: removeu parte das regulações estabelecidas no governo Obama sobre o setor financeiro e os rentistas, reduziu a carga tributária sobre as grandes corporações, ampliou os gastos militares, elevou as taxas de juros e ampliou o déficit público.
O alto nível de endividamento do Estado norte-americano e de suas empresas contrastam com o baixo nível do chinês e suas empresas estatais, o que amplia o espaço de atuação e a eficiência do regime de acumulação sinocêntrico em relação ao estadunidense
Os resultados alcançados por Trump foram muito limitados. Ele não impediu que avançasse a deslocalização das empresas estadunidenses, que as chinesas as superassem na lista das 500 da revista Fortune e que a pequena redução do déficit comercial norte-americano se desse às custas de um profundo desgaste de sua liderança mundial e de uma escalada de conflitos internos com o segmento mais transnacional do setor produtivo.
Todavia, a diminuição do desemprego, iniciada no segundo mandato de Obama, apesar de um leve crescimento na desigualdade, dava-lhe a dianteira nas pesquisas eleitorais e um protagonismo político centrado em torno do eleitorado branco conservador e da defesa violenta de suas prerrogativas contra a competição exercida pelo imigrante e pelo multiculturalismo sobre os postos de trabalho e a hegemonia cultural norte-americana. Tal cenário foi suplantado pela Covid-19 que transformou os Estados Unidos no novo epicentro de uma crise mundial, evidenciando as debilidades estruturais de sua economia, a gestão desastrada e a liderança incauta política de Trump, acelerando o declínio de seu poder no sistema mundial.
Alto endividamento
O alto nível de endividamento do Estado norte-americano e de suas empresas contrastam com o baixo nível do chinês e suas empresas estatais, o que amplia o espaço de atuação e a eficiência do regime de acumulação sinocêntrico em relação ao estadunidense, cada vez mais pressionado pela contradição da desproporção da expansão entre os ativos financeiros e o PIB. Tal desproporção foi financiada, desde o giro neoliberal dos Estados Unidos, nos anos 1980, com expansão do endividamento público e privado internacional, o que se manifestou no crescimento mais que proporcional dos pagamentos ao resto do mundo que das receitas, reciclados em novas entradas pela financeirização.
Senador por Delaware, de 1973 a 2009, Joe Biden representa a tradicional oligarquia centrista democrata tendo apoiado o bombardeamento do Kosovo e a guerra contra o Iraque. Buscará cooptar os movimentos sociais para aceitarem a política do establishment liberal
Entretanto, se é correta a hipótese de que estamos em um ponto de inflexão para uma fase B de um ciclo de Kondratiev, que atingirá especialmente os Estados Unidos, a eventual ruptura desse esquema de financiamento pode colocar em questão o protagonismo do dólar, principal cidadela de um poder cada vez mais parasitário. Um novo período longo de recessão provavelmente impulsionará o aumento secular do gasto público em relação ao PIB no mundo, o que deverá reduzir o volume das reservas internacionais, ampliar o controle do balanço de pagamentos e expandir o investimento interno sob a pressão dos movimentos sociais.
Além disso, a liderança militar dos Estados Unidos está cada vez mais sendo desafiada pelos constrangimentos que o endividamento coloca para a expansão dos seus gastos militares, que em 2000 representavam 6,5 vezes o orçamento de Rússia e China juntos, mas em 2019, apenas 2,2 vezes.
Estado e planejamento no Oriente
A China parece muito mais capacitada para enfrentar o novo período recessivo que os Estados Unidos. A forte presença do Estado, do planejamento central e de suas empresas estatais permite a manutenção de altas taxas de investimento com baixas taxas de lucro. A liderança no desenvolvimento de tecnologias limpas, o papel central nas tecnologias de saúde, que produzem 80% dos componentes ativos dos antibióticos fabricados nos Estados Unidos, a nova orientação estratégica da política de Estado para uma sociedade de serviços de alta tecnologia e o consumo interno, bem como a política internacional de projeção do arco de desenvolvimento para a Eurásia e o Sul Global via BRICS, a colocam como vértice da construção de um novo eixo geopolítico, que prioriza espaços territoriais e demográficos deprimidos pelo desenvolvimento desigual imposto pelo imperialismo anglo-saxão e europeu.
As eleições estadunidenses se dividirão em dois projetos:
A) O DE TRUMP E DA EXTREMA DIREITA ESTADUNIDENSE, que se lança em rumos cada vez mais neofascistas, buscando a utilização da força do Estado norte-americano para reverter o declínio. Esse projeto aumenta o nível de tensões e conflitos internacionais, tende a retomar a médio e longo prazo o complexo industrial-militar como centro do gasto público em alternativa à financeirização e a proposta de repatriação do capital estadunidense só pode se viabilizar sob brutal repressão da classe trabalhadora norte-americana para restabelecer internamente a taxa de lucro que se alcança fora. Essa política se projeta sobre a América Latina ameaçando relançar a Doutrina do Destino Manifesto, de intervenções militares diretas ou indiretas, e golpes de Estado. Aparentemente, derrotado nas eleições, apesar da gestão desastrosa da pandemia da COVID-19, Trump foi beneficiado pelos programas anticrise de ajuda social que combinados à queda intensa do PIB, reduziram a desigualdade e a pobreza nos Estados Unidos, o que pode lhe dar combustível e competitividade nas eleições de novembro.
B) O DOS DEMOCRATAS, LIDERADOS POR JOE BIDEN e Kamala Harris, que, caso vitoriosos, tenderão a retomar o consenso universalista neoliberal estadunidense, por meio das bandeiras do livre-comércio e livres fluxos de capitais por meio de acordos hemisféricos, multilaterais e organismos internacionais. Eles terão, entretanto, o objetivo de conter a China e a Rússia, e não desmontarão completamente o nível de agressividade apresentado por Trump.
Para a América Latina esse projeto pode retomar processos inovadores como o de desmonte do embargo a Cuba. Evitará intervenções militares diretas, mas estará articulando guerras híbridas e cercos, com o qual pretenderá impor sua hegemonia sobre a região e tomar controle da Venezuela. A indicação de Kamala aponta a intenção de atrair o apoio dos movimentos sociais, afroamericanos e latinos mas, dificilmente, colocará as políticas sociais acima das de financeirização.
Oligarquia bélica
Senador por Delaware, de 1973 a 2009, Joe Biden representa a tradicional oligarquia centrista democrata tendo apoiado o bombardeamento do Kosovo e a guerra contra o Iraque, e buscará cooptar os movimentos sociais para aceitarem a política do establishment liberal. Trata-se de um importante limite de mobilização social, uma vez que o êxito da política antirracista depende do enfrentamento da superexploração dos trabalhadores que se desenvolve nos Estados Unidos desde os anos 1980. Como demonstram Adolph Reed Junior e Walter Been Michaels (2020), 77% das disparidades de renda entre brancos e negros estão entre os 10% mais ricos de cada segmento e apenas 3% entre os 50% mais pobres. Tal contradição fragiliza essa ofensiva e os resultados eleitorais. Porém, a crise da democracia norte-americana é profunda. Os vínculos históricos com o racismo, resultado das relações de longa duração com o imperialismo, com o colonialismo e com a escravidão, tornam o seu êxito muito vinculado à ideologia da prosperidade, que tende a ser desafiada pela recessão e pelo declínio.
A crise da democracia é profunda nos EUA. Os vínculos históricos com o racismo, com o imperialismo, com o colonialismo e com a escravidão, tornam o seu êxito muito vinculado à ideologia da prosperidade, que tende a ser desafiada pela recessão e o declínio industrial e tecnológico do país
Provavelmente, assistiremos nos próximos anos a forte atuação dos movimentos sociais em busca de formas de expressão política e influência sobre o Estado norte-americano que unifiquem a classe trabalhadora em sua diversidade étnico-racial e de gênero contra o imperialismo e brutal expansão da desigualdade, que limitaram a expansão da renda dos 50% mais pobres a 3% do crescimento econômico entre 1980-2014 (Piketty et alli, 2018).
Carlos Eduardo Martins é professor associado do IRID/UFRJ e PEPI/UFRJ. Pesquisador do Clacso e Coordenador do LEHC/UFRJ.
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