“O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente
Por Gilberto Maringoni
Ivan Valente tinha 18 anos de idade quando foi dado o golpe de 1964. A interrupção da democracia e seu valor marcaram para sempre aquele estudante de cursinho que aspirava entrar num curso de Engenharia. Ao longo dos 56 anos seguintes a militância passou pelo movimento estudantil, pela vida clandestina na ditadura, pela prisão e pelas torturas, pela fundação do PT e pela construção do PSOL. Ivan exerce seu sexto mandato de deputado federal, depois de se eleger por duas vezes para a Assembleia Legislativa de São Paulo. Nesta entrevista, ele comenta os impasses do Brasil de Bolsonaro e relembra pontos marcantes da sua trajetória política.
Como se explica o fenômeno Bolsonaro e por que o Brasil, depois de 35 anos de democracia, resolveu elegê-lo?
Bolsonaro é um fenômeno que vem desde, pelo menos, a crise de 2008 e foi impulsionado a partir de 2013. Naquela situação de disputas, a direita surgiu como movimento de massas. Percebendo a instabilidade reinante, uma elite econômica sem projeto de Nação resolveu chutar o balde do regime democrático de forma agressiva e oportunista. Houve, claro, uma decepção com o governo Dilma em setores populares e de esquerda, mas além disso houve uma manipulação política por parte da grande mídia, que ajudou a criar um carimbo de corrupto no PT. Cresceu na base da sociedade uma forte tendência antipetista, que impulsionou um processo de impeachment absurdo. Abriu-se a oportunidade para a imposição de um projeto de hegemonia do capital financeiro e do neoliberalismo, implementado a todo vapor com Michel Temer. Paralelo a isso, o que chamamos de lavajatismo – uma prática falsamente moralista, punitivista e parcial –ajudou a criar o caminho que desembocou em Bolsonaro. Isso nos deu uma lição: futuros governos de esquerda, mais contundentes que o PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo etc. E defendendo a ditadura militar, citada todo dia, com AI-5 e tortura. Há quase um terço da população que não se arrepende do voto dado em 2018. Isso é grave.
“Futuros governos de esquerda, mais contundentes que os do PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo”
A mesma sociedade brasileira que deu a vitória à extrema direita elegeu por quatro vezes um governo de centro-esquerda. Como isso se explica?
A primeira eleição de Lula assustou bastante a burguesia. O PT fez a “Carta ao povo brasileiro”, colocou o Palocci na Fazenda, atendeu ao mercado e Lula partiu para uma ação de alguma distribuição de renda aos pobres e de grandes ganhos para os ricos. Assim, deixou de assustar. Isso se confirmou ao vermos que, em 2006, mesmo após o mensalão e de tudo o que a Globo fez, ele foi muito bem reeleito. A economia ia bem, os de cima ganhavam mais e os de baixo ganhavam alguma coisa. Teve a oportunidade de pegar um boom de commodities. Frei Betto diz algo com o qual concordo totalmente. Uma coisa é ter consciência do valor das conquistas e outra é estar bem servido no consumo. Lula sempre foi isso, de servir no consumo. Claro que, contra a fome, temos que almoçar, jantar e tomar café da manhã. Mas, depois, todo mundo tinha que ter as utilidades domésticas de linha branca, o carro etc. Isso pegava bem no sentido geral do consumo, mas não mudava as consciências. Quando veio uma crise com o impacto da de 2008, a direita, que estava sendo bem acomodada no governo, começou a querer mudar de barco. Há um aspecto adicional: Lula não contribuiu para mexer em nada na hegemonia do capital financeiro no Brasil. Por que não se fala em acabar de vez com subsídios? Em reforma tributária? Em taxação das grandes heranças e fortunas? Não houve nada disso nos governos do PT. A linha geral era de atrair capital e investimento para o Brasil, especulativo ou não, mas sem mexer nas estruturas, no problema da dívida pública e no tripé macroeconômico.
Uma vida de combate: Ivan por Ivan
O esforço foi grande, mas valeu a pena!
“O rumo neoliberal do primeiro governo Lula não nos deixou alternativa a não ser sair do PT e vir para o PSOL. Ou seja, deixamos um transatlântico e desembarcamos em uma canoa. Hoje, nossa canoa é uma das principais referências dos lutadores populares brasileiros”.
“Infância e estudos
Nasci em São Paulo, em 1946. Meu pai, involuntariamente, participou da chamada Intentona Comunista de 1935. Ele era sargento da Aeronáutica e, quando houve a rebelião, estava no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, para fazer o curso de piloto. O campo foi cercado e ele ficou preso seis meses, foi expulso da Aeronáutica e depois se tornou comerciário. Não tinha uma formação socialista, mas sempre esteve ao lado dos de baixo e sempre me inclinou para a esquerda. Toda a minha educação básica e do ginásio foram na escola pública.
Início da militância
Entrei para a Escola de Engenharia Mauá, em 1966. No ano seguinte, comecei a participar intensamente do movimento estudantil. E montamos e lideramos o Centro Acadêmico da Escola de Engenharia.
Em contato com lideranças da USP e de outras faculdades, acabei me ligando ao Partido Operário Comunista (POC), organização formada por outras, como a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP). O POC rachou em 1970, entre aqueles que queriam ir para a luta armada e quem queria ficar na luta de massas. Eu não achava que aquele era o caminho mais correto. Com o tempo, o POC foi literalmente extinto e seus dirigentes foram assassinados. Só escapou quem foi para o exterior.
Clandestinidade e prisão
Em 1972, fiquei clandestino em São Paulo por oito meses. Como era liderança estudantil, encontrava muita gente pela rua. E o pessoal do Rio achou que eu deveria ir para lá, onde eu não era conhecido. Com isso, a militância e a formação de nossa nova organização, o Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP, em 1976), se deu com a participação de importantes lideranças estudantis e operárias. No total, fiquei cinco anos e meio na clandestinidade.
Fui preso pela primeira vez em julho de 1977 e fiquei quatro meses e meio encarcerado com outros 25 companheiros. Nesse período, fizemos duas greves de fome. A tortura era algo sistemático. Foram dez dias no DOI-CODI, nos quais passei por porrada, cadeira do dragão e pau de arara, dia e noite. E geladeira, aquele cubículo gelado onde te observavam por meio de câmeras e isolamento térmico.
Protesto amplo
Saímos da cadeia por meio de uma greve de fome. Escrevemos uma denúncia da situação dos presos políticos, a “carta dos presos do MEP”. O texto saiu integralmente no Jornal do Brasil e no Le Monde, e trechos foram publicados na Folha, no Globo e no Estadão. Ali, relaxaram a preventiva, pois nossa prisão estava tendo repercussão pública. Marcaram nosso julgamento para novembro de 1978. Tínhamos a decisão a tomar: ou ir para a clandestinidade ou para o julgamento. E nós fomos para o julgamento por acharmos que já havia um movimento de anistia forte na sociedade. No dia, havia mais de mil pessoas na porta da sala da Auditoria da Aeronáutica, no Rio. Fizemos um banzé, subimos na mesa, gritamos “Abaixo a ditadura!”. Saí de lá carregado pela polícia da aeronáutica sem pisar no chão. E pegamos três anos de cana.
No presídio da rua Frei Caneca, ficamos mais seis meses. Após intensa batalha política e jurídica, fomos libertados em maio de 1979, quatro meses antes da Anistia.
Do PT ao PSOL
Quando voltei a São Paulo, participei da fundação do PT, em 1980, um marco essencial nas lutas populares brasileiras. Já havíamos lançado no ano anterior o jornal Companheiro, do MEP, que durou três anos.
De 1983 a 1986, fui assessor do mandato de deputado federal do José Genoíno, enquanto lecionava matemática na escola pública. A partir de 1986, fui eleito para dois mandatos de deputado estadual em São Paulo (1987-95) e seis de deputado federal. Fomos oposição e governo. Essa última fase foi difícil.
O primeiro governo de Lula (2003-07) foi bastante controverso, com a designação de Antônio Palocci para a Fazenda e Henrique Meirelles para o Banco Central. Começamos batendo no aumento dos juros e, depois, veio a reforma da Previdência. Dos vários tensionamentos com o conservadorismo do PT, a questão da Previdência representou uma batalha particularmente insana, com quase 400 reuniões, em poucos meses. O rumo neoliberal da política governamental não nos deixou alternativa a não ser sair do partido e vir para o PSOL. Ou seja, deixamos um transatlântico e desembarcamos em uma canoa. Como toda a nossa história, o esforço foi imenso. Mas valeu a pena. Hoje, nossa canoa é uma das principais referências dos lutadores populares brasileiros”.
No governo Lula, as Forças Armadas continuaram tão ou mais fortes do que antes e os meios de comunicação não foram regulados. Que mudanças reais o PT proporcionou ao País?
O caso das Forças Armadas é complexo. Na época da discussão da Comissão da Verdade (2011-14), havia na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara um projeto da Luíza Erundina – que eu coassinava – segundo o qual era a hora de punir os torturadores. Mas o projeto não passou. Como você não mexe nos torturadores e nos mandantes, eles continuam falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido. Isso passa a ser uma conivência. No caso das comunicações, vamos lembrar quem foram os ministros: Miro Teixeira, Helio Costa – que foi da Globo por 30 anos – e Paulo Bernardo. No fundo, eles achavam que havia democracia com a Globo mandando. Ao não mexer no sistema econômico, quando acabou a onda de commodities e a conjuntura internacional favorável, não se asseguraram direitos dos trabalhadores e houve até retrocesso. Faltou contundência, um diálogo de massa, manter mobilizado o movimento social e popular, na medida do possível. O MST, por exemplo, não queria a Lei Antiterrorismo, sancionada pela Dilma. Agora, a extrema direita quer aprofundá-la. Isso tudo é resultado de coisas que fizemos errado lá atrás. Falo disso tudo sem contar as coisas feitas no oba-oba, como a questão da Copa do Mundo e esses elefantes brancos que estão aí até hoje, que são as arenas. Houve uma euforia com a elite, e uma ilusão do PT com partes enormes do topo da pirâmide social, que se mostrou falsa e se expressou em ódio de classe contra o partido. Também houve muita ilusão com a governabilidade conservadora do Congresso Nacional.
“Sem punir torturadores e mandantes, eles continuarão falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido”
Atualmente, o PSOL está sendo acusado de se reaproximar do PT e de ser um puxadinho do partido. É verdade?
A posição nítida do PSOL é a de que o ano de 2022 passa por 2021. Agora – neste ano! – nós precisamos fazer uma grande frente entre todos que lutam contra o bolsonarismo e contra o estreitamento da democracia, e a favor de uma resposta pronta do Estado brasileiro em relação à pandemia. É hora de unir forças e produzir muita mobilização contra Bolsonaro. No ano que vem, se ele for competitivo, temos que derrotá-lo com a candidatura de esquerda mais bem posicionada nas pesquisas. E essa candidatura precisa ter um programa que mobilize os trabalhadores e o povo. Repito, isso vai ser visto em 2022. É o momento de tornar o PSOL presente na conjuntura, no combate ao bolsonarismo e garantir protagonismo no processo.
O PSOL é um partido que galvaniza a juventude na esquerda, mais do que qualquer outro. E tem uma geração de quadros novos muito promissores. Como você vê essa renovação?
Vejo de forma muito positiva. E isso tem explicação. O PSOL tem sido vanguarda em várias lutas importantes, como a luta contra o racismo, a homofobia, o machismo e pelos direitos civis e humanos. Isso tem sido uma marca, mas ela não é suficiente. Por exemplo, a candidatura do Boulos com a Erundina em São Paulo representou uma proposta de mudança popular e massiva. Ela propunha mudanças estruturais. É por isso que Boulos se tornou uma figura tão expressiva. Da mesma forma, Erundina cumpriu um papel muito importante, e mostra que a candidatura de ambos foi, antes de tudo, programática – a favor do combate à pobreza, à desigualdade – e com uma cara socialista. Conquistar 40% dos votos no segundo turno foi uma vitória e mostra o enorme potencial do PSOL.
O PSOL se consolidou como uma corrente de opinião e lançou candidatos majoritários na maioria dos estados. Qual foi o principal ponto de virada do partido, depois de sua criação?
Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós. Ela estava insatisfeita no PSB e a convidei para entrar no PSOL. E ela aceitou. A Erundina dá um grande salto de qualidade ao partido, uma dimensão de massas. É notável também a entrada de Guilherme Boulos, maior expressão do movimento social nesse último período, além de outras figuras públicas que reforçam a representatividade do PSOL na conjuntura. A ética na política, a coerência na ação e a questão programática do PSOL foram três pilares que preservaram o partido e o tornaram respeitado nos movimentos sociais. Nós nos tornamos grandes mesmo sendo pequenos. O PSOL é grande, por ser muito respeitado por esses três pilares. Ao mesmo tempo, é ainda um partido pequeno em expressão e capilaridade de massa.
“Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós”
Estamos na maior crise da história republicana. Você é otimista, realista ou pessimista?
Mesmo com todo esse retrocesso bolsonarista, é óbvio que confio que o povo brasileiro vai virar essa situação. É claro que, para isso, temos que acumular força e ter movimentos de massas. Há um percalço pelo caminho. Estamos em meio a uma pandemia e não podemos sair para a rua! Não vai ser fácil, vai ter muita luta e mobilização, mas nós vamos superar isso. E vamos deixar o pessimismo para momentos melhores.
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