A resistível ascensão de Messias
Texto de José Luís Fevereiro e Gilberto Maringoni*
Bolsonaro só venceu as eleições por encontrar terreno fértil à pregação antissistêmica nos últimos anos. Talvez tenha sido quem melhor entendeu 2013 e as possibilidades abertas pela opção recessiva de Dilma Rousseff
As eleições de 2018 representam uma derrota estratégica para a esquerda brasileira. Não estamos diante de um quadro usual em regime democrático. O candidato eleito defendeu abertamente – em campanha – a ditadura, a tortura, a supressão de direitos, o racismo, a misoginia, a homofobia e a marginalização da população vulnerável, bem como o primado da violência como mediadora das contradições sociais. Jair Messias Bolsonaro deu expressão a forças sociais adormecidas na sociedade, criando uma perigosa associação entre ordem e eliminação física de seus adversários.
Assim, não é possível examinar esse quadro apenas observando os últimos meses de campanha. A previsível alteração nas relações entre as classes sociais e o esgotamento de um ciclo político na história nacional demanda uma análise de espectro mais amplo, que deve retroceder, pelo menos, até o início dos governos lulistas..
Evidentemente, o espaço deste artigo é pequeno para uma radiografia mais profunda desse quadro. Lançamos aqui alguns de seus pontos essenciais.
Fascismo e votos
O pleito de 2018 representa a segunda vez em que a extrema direita com tinturas fascistas se lança de forma aberta à cata de votos. A oportunidade anterior aconteceu nas eleições de 1955. A disputa foi vencida por Juscelino Kubitschek (PSD, de centro-direita), com 54,1% dos sufrágios. O líder integralista Plínio Salgado (PRP) galvanizou a extrema direita e ficou em 4º Lugar, obtendo pífios 8,28% da preferência dos votantes.
Nunca mais um representante desse campo se apresentou de cara limpa e peito aberto ao eleitorado. Aliás, após a ditadura militar (1964-85), ser chamado de “direita” era quase um xingamento. Vale perguntar: o que aconteceu, depois de quatro vitórias seguidas de candidatos de centro-esquerda, para que o ex-capitão do Exército conquistasse a presidência da República?
Lula Lá
Lula foi eleito em 2002 e reeleito em 2006 com mais de 60% dos votos válidos. Ao terminar o segundo mandato, em fins de 2010, sua popularidade alcançava incríveis 87% de aprovação. O crescimento econômico expressivo foi determinante para essa aceitação que possibilitou um quadro de virtual pleno emprego a programas sociais eficientes, com destaque para o aumento real de 70% no salário mínimo e a expansão do crédito ao consumidor, além da bem-sucedida experiência do Bolsa Família. Em tempos de boom das commodities (2004-12), foi possível alargar o mercado interno, incluindo milhões de trabalhadores no circuito de consumo.
O pleito de 2018 representa a segunda vez em que a extrema direita com tinturas fascistas se lançou de forma aberta à cata de votos. A oportunidade anterior aconteceu nas eleições de 1955. A disputa foi vencida por Juscelino Kubitschek (PSD, de centro-direita), com 54,1% dos sufrágios. O líder integralista Plínio Salgado (PRP) galvanizou a extrema direita e ficou em 4º lugar, obtendo pífios 8,28% da preferência dos votantes
Nesse quadro, o ex-presidente conseguiu a proeza de elevar o padrão de vida dos mais pobres sem tocar em interesses das classes dominantes. Por força da prosperidade contingencial, Lula abriu mão de usar o capital político para realizar reformas estruturais no país.
O movimento social e político que desde o início dos anos 1980 impulsionou o PT, viabilizando uma enorme corrente de opinião e anseios por transformações profundas não se materializou entre 2003/2016. Não houve ações de governo que estivessem a altura dos desafios históricos colocados, por exemplo, como a reforma agrária para democratizar a propriedade da terra e a reforma tributária para inverter os custos de sustentação do Estado, hoje, majoritariamente, a cargo dos mais pobres.. Além disso, o enfrentamento ao rentismo encastelado nas maiores taxas de juros do planeta com a perversa consequência de agravamento da distribuição de renda, mudança na legislação de meios de comunicação enfrentando os monopólios privados, e reforma política criando mecanismos de democracia direta e reduzindo peso do dinheiro nos processos eleitorais.
Esses tópicos compunham uma agenda democratizante e desenvolvimentista e foram deixados de lado pelo PT no governo federal, em nome de um difuso realismo administrativo. O abandono ganhou letra de forma em julho de 2002, na conhecida Carta aos Brasileiros, na qual o partido se comprometeu a não tocar em nenhum ponto sensível da dominação de classes no Brasil.
Vários dirigentes petistas alegaram à época que a implementação daquelas demandas dependeria da correlação de forças, como se essa fosse um dado estático da natureza e não uma relação variável com a ação dos agentes da disputa política.
Derrotas também fazem parte do processo de politização da base social. Lula se caracterizou em seus governos por construir consensos sem disputa, num jogo em que aparentemente ninguém perdia, enquanto a demanda externa seguisse aquecida. A cada “consenso” maior a desmobilização da base.
Surfando no crescimento
Surfando um período de forte crescimento econômico, Lula distribuiu renda na base da pirâmide social sem precisar enfrentar privilégios das elites. Programas importantes foram desenvolvidos, como por exemplo, o Bolsa Família, o Luz para Todos, o programa de cisternas no semiárido, o apoio à pequena agricultura, o aumento real do salário mínimo e a expansão da rede pública de universidades. O período de forte crescimento econômico permitiu ganhos reais para setores expressivos das classes trabalhadoras, o que favoreceu o aumento do padrão de consumo. Se isso fidelizou a Lula e ao PT contingentes expressivos do eleitorado, particularmente no Nordeste, a ausência de disputa política não reforçou a consciência de classe nem educou essa base social para a necessidade da mobilização.
A recusa petista em definir claramente interesses de classe na sociedade serviu para embaralhar parâmetros no conflito distributivo..
A comprovação de que várias conquistas no âmbito da ascensão social não tinham causa aparente, evidenciou-se em pesquisa do Instituto Datapopular, em 2012. Os resultados foram apresentados da seguinte forma:
“Principal responsável pela melhoria de vida (entre quem acha que a vida melhorou):
Eu/Meu próprio esforço -> 82%
Minha família -> 69%
Deus -> 61%
Oportunidades -> 55%
O governo -> 9%
A sorte -> 7%
Meu patrão -> 5%
Como as percepções não eram excludentes, as porcentagens não somam 100%.
O fato de “o governo” – ou as políticas sociais do Estado – serem apenas o quinto item, mostra que nem Lula e nem o governo dele fizeram questão de marcar diferenças com gestões anteriores. Ao despolitizar a direção das ações do poder público sob seu comando, o petista não disputou “narrativas”.
Explorar contradições
Explorar as contradições no interior das classes dominantes e nas representações políticas faz parte do jogo, mas seria crucial entender que a disposição desses setores em negociar só existiria mediante tensionamentos políticos por parte da esquerda e da pressão de massa, capaz de influir na correlação de forças. A opção do PT em abandonar o confronto em favor de pactuações a frio, revelou-se catastrófica quando a segunda onda da crise chegou em 2013. Da mesma forma, a diluição das diferenças com lideranças oligárquicas nos Estados contribuiu para o desastre manifestado a partir de 2014.
Derrotas também fazem parte do processo de politização da base social. Lula se caracterizou em seus governos por construir consensos sem disputa, num jogo em que aparentemente ninguém perdia, enquanto a demanda externa seguisse aquecida. A cada “consenso” maior a desmobilização da base
Cada vez que Lula chamou Sarney de “companheiro”, cada vez que uma liderança petista rezou com Silas Malafaia, cada vez que Lula pediu voto para um prócer peemedebista, um tijolo no impeachment de Dilma foi empilhado. Da negativa em nomear ministros de esquerda ou progressistas para o STF nasceu a condenação a Lula na justiça. .Da capitulação do governo Dilma em levar adiante a Cartilha Contra a Homofobia nasceu o “Kit Gay”, usado nas redes de WhatsApp em 2018.. Da acomodação com as cúpulas conservadoras das igrejas evangélicas nasceu a reação às pautas libertárias. Ao invés de disputar os trabalhadores evangélicos pela base, buscou-se o apoio por cima das suas lideranças que, fortalecidas, construíram a agenda que derrotou a esquerda nas periferias das grandes cidades em 2018.
Manifestação de junho de 2013, em Brasília
As disputas de Junho
O ciclo de efervescência popular de junho de 2013 mostrou o aprofundamento da impaciência de parte da juventude urbana com a insuficiência dos serviços públicos. O movimento que começou no mês de maio, reivindicando mais Estado, educação, saúde padrão FIFA, melhorias na mobilidade urbana e redução das passagens foi tratado pelo PT como orquestração inimiga. Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, epicentro inicial das ebulições, concedeu entrevista em 19 de junho daquele ano, depois de os protestos assumirem caráter nacional, negando o atendimento das reivindicações. Ao invés de atuar como bombeiro, Haddad aumentou a tensão política, levando os enfrentamentos a um impasse. Foi o toque de reunir para a direita buscar se apossar das mobilizações.
Pautas estranhas ao movimento foram impostas por ação da mídia, como a rejeição à PEC 37. O discurso antipartido e antipolítica, espalhou-se e, quando finalmente as mobilizações murcharam, tivemos como saldo a constatação de que a extrema direita ganhara o gosto pelas ruas.
As mobilizações de 2013 não representaram, por óbvio, uma orquestração da direita, como setores do petismo sustentam, para ocultar os erros. Também não foram um avanço dos movimentos de massas hegemonizado pela esquerda, como poderia ter sido, se a principal força tida socialmente como de esquerda, o PT, não tivesse reagido tão mal.
A resposta do governo federal foi muito aquém do necessário. Em reunião com representantes dos manifestantes, Dilma apresentou cinco metas de melhorias dos serviços públicos em transportes, saúde, transparência e educação, mas colocou a “responsabilidade fiscal” e o controle de gastos como objetivo geral do governo, ou seja, a continuidade do ajuste fiscal, iniciado em 2011.. Diante da ebulição social, a mandatária olhou primeiro para as planilhas. Segundo o Datafolha, 57% dos brasileiros consideravam sua gestão boa ou ótima no início de junho. No final do mês, o índice desabou para 30%.
Dilma II, o desastre
A presidenta se reelegeu em 2014 com apertada margem: 51,64% contra 48,36% de Aécio Neves, mas a vitória eleitoral logo se transformou em profunda derrota política diante da capitulação do governo à pressão do capital financeiro. Para surpresa do eleitorado, Dilma deu um giro de 180 graus e adotou um programa recessivo, muito semelhante ao do opositor. O estelionato eleitoral que cometeu quebrou um pacto não escrito com o eleitorado. .Ao longo da campanha, ela prometeu desenvolvimento, emprego, renda e manutenção de direitos.. A opção recessiva se materializou em forte tarifaço em janeiro de 2015. Sucessivos aumentos da taxa Selic e um programa de cortes que alcançou R$ 100 bilhões, fez a gestão petista abrir caminho para o avanço da direita, praticando um verdadeiro e inexplicável haraquiri político.
A ação de Eduardo Cunha (PMDB), presidente da Câmara, boicotando o governo e aprofundando a crise era um movimento esperado; não o perceber e tentar sair do beco político concedendo às elites a adoção do programa econômico fez com que o PT perdesse o apoio da base social.
Lula conseguiu a proeza de elevar o padrão de vida dos mais pobres sem tocar em interesse das classes dominantes. Por força da prosperidade contingencial, abriu mão de usar o capital político para realizar reformas estruturais no país
O governo Dilma seguia a cartilha lulista: tentava conciliar interesses de classe a frio, sem disputa. Em fases de crescimento e alta popularidade, era tolerado pela burguesia, mas nunca acolhido por ela. As alianças ao centro – construídas com base no compartilhamento da gestão do Estado da forma tradicional, como se ao PT fosse concedido pela elite o privilégio do aparelhamento por ela exercido durante 500 anos – criaram uma ilusão de governabilidade e sustentabilidade do governo. Ao primeiro sintoma de fragilidade perante à base social, a aliança se desmontou e a corrupção, sistêmica ao histórico modelo de gestão do Estado brasileiro e adotado pelo PT, passou a ser usada para desmoralizar Lula, Dilma e os seus respectivos governos.
Na avaliação geral, é preciso ressaltar que a extrema direita encontrou terreno fértil para vicejar e cresceu em situações de desesperança, desalento e aversão à política, como a história mostra.
Lembremos que o movimento Cansei, lançado em 2006 por João Dória, Hebe Camargo, Luís D’Urso (ex-presidente da OAB-SP) e outros, reunia espectro político semelhante ao da extrema direita atual, mas não conseguiu juntar mais do que duas dezenas de pessoas em atos públicos. Mesmo assim Jair Bolsonaro jamais – em seus 28 anos de atuação parlamentar – passou de um folclórico deputado do baixo-clero..
O terreno de lá para cá se alterou profundamente. Vale ressaltar que após a penúltima eleição presidencial, em dezembro de 2014, o desemprego era de 4%, praticamente um indicador de pleno emprego. Em março de 2016, segundo o IBGE, a taxa triplicou, chegando a 11%. Entre 2015 e 2016, o PIB caiu 7,2%, pior resultado desde 1900. A sensação de insegurança e descrédito com a política se disseminou pela base da sociedade.
O empoderamento
O balanço dos erros estratégicos não se resume ao PT. Toda a esquerda – PSOL incluído – capitulou frequentemente as ações de desqualificação da política e dos poderes eleitos e apoiou o empoderamento do judiciário. A agenda de esvaziamento da política vem de longe. Começou com a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000) – que retirou poderes aos governantes -, passou pela independência do Banco Central – que retirou importante instrumento de governo das mãos da Presidência da República – e chegou à famigerada Lei da Ficha Limpa (2010), apoiada por todas as bancadas da esquerda e que colocou sob tutela do judiciário a definição de quem é elegível ou não. O mais conservador dos três poderes da República, o único não eleito e composto pela meritocracia tal como a conhecemos por esses trópicos, exorbitou suas funções nos últimos anos, comprometendo as liberdades democráticas. A isso se soma uma onda reacionária no terreno dos costumes, reforçando preconceitos sobre sexualidade e convivência familiar que logo se transformaram em campanhas para calar vozes críticas, como o movimento Escola Sem Partido.
O governo Temer e o “sistema”
Consumado o golpe parlamentar de 2016 o governo Temer aprofundou as medidas econômicas recessivas e de desmonte do Estado, prolongando a crise. O aumento exponencial do desemprego e a perda de renda mergulharam de volta na pobreza setores que nos anos anteriores tinham experimentado algum nível de ascensão social. A rápida desmoralização do governo golpista, composto pelo rebotalho do sistema político, levou a duas tentativas congressuais de derrubar Michel Temer. Isso espraia na sociedade um forte sentimento de mudança. O judiciário, em ação concertada com o grande capital, retirou Lula da disputa e o condenou num processo totalmente desprovido de provas.
Cada vez que Lula chamou Sarney de “companheiro”, cada vez que uma liderança petista rezou com Silas Malafaia, cada vez que Lula pediu voto para um prócer peemedebista, um tijolo no impeachment de Dilma foi empilhado. Da negativa em nomear ministros de esquerda ou progressistas para o STF nasceu a condenação a Lula na justiça. Da capitulação do governo Dilma em levar adiante a Cartilha Contra a Homofobia nasceu o “Kit Gay”, usado nas redes de WhatsApp em 2018
Das lideranças egressas do que era socialmente percebido como o “sistema político”, Lula era o único que preservava a base de massa para ser um candidato competitivo.
As eleições 2018
O processo eleitoral de 2018 foi peculiar. Lula, o favorito nas pesquisas, conseguiu segurar a campanha eleitoral até meados de setembro, numa tática de alto risco buscando manter sua candidatura ao limite do possível.. Só com a derrota do último recurso jurídico, no início de setembro, o ex-presidente lançou a postulação de Fernando Haddad. Com pouco tempo de campanha pela frente, a principal força do campo progressista precisou concentrar seus esforços na transferência de votos para Haddad. Embora bem-sucedido nesse objetivo, o preço pago pela opção de manter o protagonismo com o ex-presidente foi que o candidato da extrema direita não foi combatido no primeiro turno.
A maior proeza de Jair Bolsonaro não foi ter vencido as eleições, mas ter imposto sua agenda à disputa. Há uma pergunta essencial a ser respondida: por que – num país de 14 milhões de desempregados, com uma recessão sem sinais claros de reversão, em processo acelerado de desindustrialização e com serviços públicos rumando para o colapso – a agenda eleitoral se voltou para uma pauta claramente moralista e despolitizada?
E mais: como alguém considerado pela direção do PT como o adversário ideal a ser batido no segundo turno teve esse poder de agenda ao longo dos últimos meses?.
Talvez a chave da resposta esteja em como o próprio PT decidiu encarar o enfrentamento nas urnas. A principal candidatura não priorizou a luta política aberta. Condenado e encarcerado, Lula resolveu concretizar uma ideia de duvidoso efeito prático. A vertente traçada foi a de delegar tacitamente a direção de campanha aos advogados dele, que impetraram ações em cima de ações, numa comovente confiança no sistema jurídico brasileiro.
O caminho não foi o de questionar o governo Temer e os representantes ocultos na disputa presidencial, mas o de mostrar Lula como vítima injusta de um processo fraudulento.
O plebiscito sobre Lula
A condição é verdadeira, mas fazer da situação do ex-presidente o centro da jornada eleitoral, ao invés dos problemas concretos vividos pela maioria dos brasileiros, foi erro sério. Em lugar de um julgamento de Temer e das reformas regressivas, Lula transformou o pleito em um plebiscito sobre si.
A direção petista, percebendo a insuficiência dessa opção, agregou outra: a saudade dos bons tempos, quando o Brasil crescia e os salários também. O país era respeitado no mundo e o futuro parecia radioso. Parte disso é verdade.
Saudade é um sentimento seletivo, como se sabe. Tende a ser unidimensional. Escolhemos o que lembrar e escolhemos o que esquecer. Diferentemente de olhar com criticidade o passado para entender o presente – a base do estudo da História – a saudade tem os dois pés no idealismo.
Assim, os pilares da campanha petista até o final do primeiro turno tinha na vitimização e na idealização do passado suas linhas mestras. Ou seja, em sentimentos fora da política e do confronto..
Uma terceira linha de conduta foi agregada a essas vertentes. Se o centro de tudo seria Lula, faltava uma peça no quebra-cabeças. O raciocínio se tornaria redondo com o mantra “Haddad no governo, Lula no poder”, um mal ajambrado slogan retirado da campanha de Héctor Cámpora (“Cámpora no governo, Perón no poder”) à presidência da Argentina, em 1973.
Esse era o complemento para sustentar o nome de Lula como candidato até à undécima hora, transformando Fernando Haddad em mero biombo dele. Além de desqualificar o real candidato petista, a formulação o deixou na sombra até depois de iniciada a campanha. Haddad não participou de debates, sabatinas e entrevistas até o final de setembro. Isso dificultou muito a fixação do nome dele e a politização da campanha. Traçados esses vetores, uma resultante sobressai: o PT optou por despolitizar a campanha na primeira volta, deixando uma avenida aberta para que algum aventureiro aparecesse.
Antipetismo e desencanto
Quando Jair Bolsonaro sofreu o atentado, em 6 de setembro, a campanha mudou de rumo. Hospitalizado e com risco de morte, ele também se tornou vítima. Lula, por sua vez, perdeu a primazia dessa condição. Assim, o ex-capitão conseguiu, enfim, emplacar a agenda como central. Sem política, valendo-se de medos e preconceitos arraigados na população, Bolsonaro adicionou mais um ingrediente – o antipetismo, este evidenciado de novo tipo. Trata-se de uma repulsa popular, de viés conservador, ao partido. Ela se diferencia de uma reação de grande apelo à classe média, que via na ascensão dos pobres um problema a ser vencido.
O novo antipetismo sensibilizou os órfãos do próprio PT, as vítimas da recessão patrocinadas por Dilma e Joaquim Levy eram os que aceleradamente perderam empregos, oportunidades e enfrentaram uma situação econômica que se degradava rapidamente.. Os que confiaram no discurso desenvolvimentista da candidata petista, frustraram-se com a mudança de rota não combinada. Esses formaram a massa de dezenas de milhões que entraram em desespero e caíram na conversa fácil da propaganda fascista e das respostas simples para problemas complexos.
Dilma se reelegeu em 2014 com apertada margem: 51,64% contra 48,36% de Aécio Neves, mas a vitória eleitoral logo se transformou em profunda derrota política diante da capitulação do governo à pressão do capital financeiro. Para surpresa do eleitorado, Dilma deu um giro de 180 graus e adotou programa recessivo, muito semelhante ao do opositor
Claro, houve Ciro Gomes e sua vergonhosa omissão na luta, desrespeitando até mesmo os apoiadores e correligionários. Houve também o uso criminoso do WhatsApp, que pediu exame mais detalhado, mas foi necessário fixar o foco na política. A campanha subterrânea do bolsonarismo, com a profusão de notícias falsas, encontrou terreno fertilizado também em uma intensa disputa ideológica antiesquerdista realizada desde 2013. Seria um erro grave apontar as fake news de forma isolada como responsáveis pela vitória da extrema direita. Esse é um recurso velho, usado pelo menos desde Goebbels nas campanhas do partido nazista. A novidade brasileira é que se montou um verdadeiro laboratório de como devem ser as disputas eleitorais daqui por diante: despolitização, mentiras, mensagens personalizadas e direcionadas e repetição constante em cenário social de crise.
Bolsonaro fez essencialmente uma campanha antissistema. Foi, talvez, quem melhor entendeu as resultantes de 2013: a repulsa a “tudo isso que está aí”, a denúncia da corrupção, do Estado e dos partidos e a adesão a soluções mágicas, extrapolíticas e autoritárias.
A resistência em tempos de Bolsonaro
A vitória de Bolsonaro é a vitória da antipolítica e da pregação rasa antissistêmica. Em campanha, o candidato da extrema direita encontrou um terreno de desesperança e desencanto, motivado em grande parte pela opção recessiva do governo petista de 2015/2016. A essas características, a pregação fascista valeu-se do medo, da violência e da disseminação de notícias falsas e do poder de impor a agenda dele à sociedade.
O balanço dos erros estratégicos não se resume ao PT. Toda a esquerda – PSOL incluído – capitulou frequentemente as ações de desqualificação da política e dos poderes eleitos e apoiou o empoderamento do judiciário
A campanha deixou, porém, ativos à esquerda. Os 47 milhões de votos em Haddad mostraram que há base social para resistir. O movimento #elenão impulsionado por mulheres no país todo e a semana final do viravoto, mostraram que há militância organizada e organizável para travar a disputa. Esse será um enfrentamento de médio a longo prazo, centrado na afirmação de valores e na confrontação ideológica. Não é hora de recolher bandeiras. Mulheres não voltarão à cozinha, gays não voltarão ao armário, negros não voltarão à senzala e trabalhadores não abrirão mão dos direitos sociais.
O caminho da resistência passou necessariamente pela formação de uma ampla frente democrática com os movimentos sociais, sindicatos, centrais e partidos progressistas em defesa de democracia e dos direitos sociais. Passou, também, pelo fortalecimento de um polo à esquerda com as forças que se organizaram em torno da campanha de Boulos, PSOL, PCB, APIB, MTST e outros para disputar os rumos da resistência.
Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!
Confira a 23ª edição da revista Socialismo e Liberdade:
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