Templo, vida e voto
Texto de Lamia Oualalou*
Uma surpreendente transformação no mundo das ideias, da sociabilidade e dos credos cortou o Brasil no último meio século. O “maior país católico do mundo” está aceleradamente deixando de sê-lo. Em 1970, 92% da população se declarava adepta à religião coordenada pelo Vaticano. Em 2010, esse percentual havia caído para 64% e os indicadores apontam uma queda maior a ser aferida no Censo de 2020. Quais os impactos desse processo na vida política nacional?
“Porque você está tão obcecada pelo papel político dos evangélicos? Será porque você nasceu num país muçulmano, que faz você ver tudo com esse prisma?”. É verdade, nasci e cresci no Marrocos antes de morar alguns anos na França e me apaixonar pelo Brasil, ao ponto de virar cidadã, dois anos atrás. Mas esta reflexão, ouvida por muitos amigos brasileiros do campo progressista me deixava pasma. Será que eles, que em teoria entendiam de política, não percebiam o que estava acontecendo no país?
Os números já estavam prefigurando uma revolução: em 1970, 92% dos brasileiros se declaravam católicos segundo o IBGE; em 2010, esses não passavam de 64,6%. Um colapso inédito no mundo inteiro, segundo os demógrafos. Embora não se saiba ainda o que vai sair do censo de 2020, pesquisas como as da Datafolha dizem que os católicos são, apenas, 56%. Quem se beneficiou dessa queda vertiginosa foram os evangélicos, que deveriam passar a barreira dos 30%.
Nasci no Marrocos, mas antes de tudo, sou jornalista. De favelas da baixada fluminense ao Congresso Nacional. Vou a comunidades onde meus amigos especialistas em ciência política, militantes do PT ou do PSOL, talvez não visitem. Converso com pessoas que nunca encontraria na vida normal, como o Pastor Silas Malafaia, no Rio de Janeiro.
Transformação
demográfica
Minhas reportagens fizeram emergir pequenos detalhes que contam a transformação de um país. O espaço urbano é literalmente tomado por igrejas de todos os tamanhos, de cinemas abandonados do centro das metrópoles até pequenos locais antes ocupados por um bar. Elas aparecem até em lugares insuspeitos, como no último andar do edifício do Bope, a tropa de elite do Rio de Janeiro. Ali, uma congregação se reúne todos os dias para rezar, e explicar que apertar o gatilho pode ser um mal necessário. Em nome de Jesus, claro.
Se a pessoa perde emprego, os membros da igreja ajudam a arrumar alguma coisa, se não tem dinheiro para comida, os líderes da igreja dão um jeito, se os filhos não têm o que fazer, a igreja promove uma atividade. Para a maioria, isso afasta os jovens de perigos como narcotráfico ou gravidez precoce. Pouco a pouco, criou-se uma nova identidade. Além de serem brasileiros, muitos cidadãos passaram a se definir também como Cristãos. Isso vai muito mais além de uma religião. É um mundo comum que inclui rádios, TVs, redes sociais, músicas, telenovelas, valores familiares, ódios e, rapidamente, candidatos a cargos políticos
Nos movimentos dos sem-teto, as vozes dos pastores são as mais ouvidas. Em Brasília, cada quarta-feira de manhã, deputados evangélicos de todos os partidos – um quinto do Congresso!- se reúne para rezar juntos e fazer avançar pautas comuns. Na rua, muitas meninas passaram a usar uma roupa mais bem comportada, a chamada moda evangélica. Nas lojas de instrumentos de música, os vendedores contam que a maioria dos clientes deles é evangélica, para ser pastor, tem que cantar e tocar direitinho.
O carro de som que espanta já não é o do Carnaval, mas o da marcha para Jesus em centenas de cidades. Expressões como “Jesus te ama” ou “ideologia de gênero” são banalizadas, tal como os ataques aos terreiros das religiões afro-brasileiras. Num país onde a pirataria rola solta, o mercado dos discos cristãos é uma exceção: os evangélicos são os de maior procura. Para além do tradicional gospel, louva-se Jesus ao som de samba, sertanejo, rock e rap. Aliás, existe uma indústria por trás. As igrejas começam com um templo; depois, uma rádio, uma televisão, uma gravadora. Uma atividade alimenta a outra, a notoriedade da igreja aumenta. Os cantores são famosos, e viram candidatos. Não esqueçam que Marcelo Crivella foi também uma estrela do Gospel.
Referências
populares
A lista dessas mudanças mais ou menos perceptíveis é longa. Eles acabam desenhando uma realidade: os pastores evangélicos conseguiram nas últimas duas décadas virar as principais referências culturais de grande parte dos pobres brasileiros.
Se a pessoa perde emprego, os membros da igreja ajudam a arrumar alguma coisa, se não tem dinheiro para comida, os líderes da igreja dão um jeito, se os filhos não têm o que fazer, a igreja promove uma atividade. Para a maioria, isso afasta os jovens de perigos como narcotráfico ou gravidez precoce.
A igreja é para muitos, sobretudo as mulheres, o único lugar de lazer, onde dá para fazer amizades, cantar, rezar, se emocionar. Pouco a pouco, criou-se uma nova identidade. Além de serem brasileiros, muitos cidadãos passaram a se definir também como Cristãos. Isso vai muito mais além de uma religião. É um mundo comum que inclui rádios, TVs, redes sociais, músicas, telenovelas, valores familiares, ódios e, rapidamente, candidatos a cargos políticos.
Quando os líderes da esquerda começaram a perceber o peso político dos evangélicos, tampouco largaram o desprezo. Em vez de falar com a base – no final das contas, são essas famílias que mais se beneficiaram das políticas sociais dos governos Lula e do primeiro mandato da Dilma – escolheram tratar com os pastores, delegando para eles a tarefa de mandar votar direito
Assim, as igrejas conseguiram ocupar o espaço do Estado, ausente da vida dos pobres, ou presente só de maneira violenta. Ocuparam o espaço da igreja católica, já que o Vaticano decidiu que a Teologia da Libertação era um perigoso movimento social e político. E pouco a pouco, ocuparam os dos partidos progressistas.
Muitos desses políticos demoraram em entender a expansão das igrejas evangélicas. Alguns pelas ligações históricas entre a esquerda brasileira e a asa progressista do catolicismo. Outros por cegueira e um toque de desprezo em relação às camadas populares, que conformam a maioria dos evangélicos e aos valores deles, consideradas “caretas”.
Quando os líderes da esquerda começaram a perceber o peso político dos evangélicos, tampouco largaram o desprezo. Em vez de falar com a base – no final das contas, são essas famílias que mais se beneficiaram das políticas sociais dos governos Lula e do primeiro mandato da Dilma – escolheram tratar com os pastores, delegando para eles a tarefa de mandar votar direito.
Impérios religiosos,
financeiros e midiáticos
Podia parecer uma estratégia esperta: alguns pastores, como o Edir Macedo – dono da Igreja Universal-, já encabeçavam impérios religiosos, financeiros e midiáticos. Mas essa escolha teve uma consequência desastrosa: em vez do necessário trabalho de desconstrução dos pastores e dos interesses deles, na maioria dos casos opostos aos do povo, os partidos – o PT primeiro – acabaram dando a eles a legitimidade dos porta-vozes. É só lembrar-se da inauguração do Templo de Salomão, em São Paulo, quando toda a classe política – Dilma, Temer, Alckmin – prestou-se a disputar favores do bispo Macedo.
Não foi a única maneira de legitimar o discurso dos pastores, em especial os que pregam a Teologia da Prosperidade. Quando, em vez de fazer da conquista de direitos universais a métrica da sua política, o governo escolheu colocar a elevação do consumo a marca principal da mobilidade social e acabou falando como muitos pastores.
Os evangélicos não são os únicos responsáveis da eleição de Jair Bolsonaro, fruto de uma “tempestade perfeita”, mas como explicou recentemente o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, “o que fez a diferença foi o peso do voto evangélico, pois a estimativa indica que Bolsonaro tem mais de 11 milhões de votos do que Haddad no eleitorado evangélico (em todas as suas múltiplas denominações)”.
O lance, hoje, é entender como a esquerda pode voltar a conversar com esses cidadãos. Passar pela Bíblia, como tentaram nos últimos dias da campanha é provavelmente inútil – e foi, várias vezes, patético. Teria que voltar ao trabalho básico: falar do que realmente importa na vida dos brasileiros, sejam evangélicos ou não: acesso à saúde, educação, transporte decente, salários dignos, e a esperança de um futuro.
Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!
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