A esquerda deve investir na campanha do Impeachment?

A esquerda deve
investir na campanha
do Impeachment?

Por Chico Alencar e José Luis Fevereiro

Com a agudização da crise econômica e institucional, a grande imprensa e setores do mundo político começam a ventilar abertamente a possibilidade de impeachment do Presidente da República.

O impeachment – ou impedimento – entrou na cena pública brasileira pela primeira vez na Constituição de 1946, no Capítulo III, artigo 79. A lei complementar que concretiza a norma constitucional é a de número 1.079, sancionada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em 10 de abril de 1950.

Segue em vigor. Trata-se de uma transposição do voto de desconfiança dado a um primeiro-ministro, num regime parlamentarista, para um chefe do Executivo, no regime presidencialista. Assim, o processo de impedimento sempre se situa na fronteira entre medida legal e iniciativa política. A perda de maioria congressual qualificada – no caso brasileiro – sempre coloca o mandatário dos três níveis de governo sob o risco de impedimento.

Diante da tensa conjuntura que o país enfrenta, o Partido Socialismo e Liberdade convidou o ex-deputado federal e professor de História, Chico Alencar, e o economista e membro do Diretório Nacional do PSOL, José Luiz Fevereiro, para comentarem acerca do polêmico tema.


Impeachment: o povo é
quem mais ordena?

Mais do que debater o impedimento como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o desafio urgente é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema direita, acelere essa questão

Por Chico Alencar*

Quantas vezes você já sonhou com o impeachment de Bolsonaro, mesmo estando ele no primeiro semestre do mandato presidencial? Desde o afastamento de Fernando Collor, em 1992, esse tipo de procedimento institucional entrou em nosso campo de cogitações. A palavrinha de difícil escrita e pronúncia ficou popularizada a ponto de se inventar até o verbo “impichar”.


“Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um de seu bem particular”

Frei Vicente do Salvador, ‘História do Brasil’, 1630

A expressão impeachment não existe na nossa Constituição. Mas “impedimento” tem, na Carta Magna, nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais: mediante acusação e processo, os governantes – presidentes, governadores e prefeitos – podem ser afastados de seus cargos, perdendo os mandatos.

O artigo 51 da Constituição, no seu inciso I, diz que compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente da República, o Vice e os Ministros de Estado. Cabe ao Senado processar e julgar, nos crimes de responsabilidade.

E assim já foi feito, concluída a transição (tutelada pelo alto) da ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964 para a Nova República. Os presidentes eleitos Fernando Collor e Dilma Roussef foram destituídos dos cargos. As circunstâncias e forças políticas que viabilizaram as derrubadas foram bem distintas. Pode-se dizer, grosso modo, que uma cassação teve viés progressista, a de Collor. Outra, conservador e direitista – a de Dilma, em 2016.

Portanto, o instituto do impeachment não é necessariamente negativo ou positivo, embora sempre de caráter eminentemente político. Impeachment acontece dentro das circunstâncias históricas e da correlação de forças. Abre espaço de disputa aguda, em processo de meses – diferentemente de um golpe de estado, manu militar.

Maioria rara

É fato que raramente se tem, nos parlamentos do Brasil, uma maioria sólida, que garanta as políticas de governo. É verdade que os conservadores, os neoliberais, têm mais facilidade (por terem menos escrúpulos) para montar a base de sustentação no toma lá dá cá, nos acordos fisiológicos em torno de cargos e liberação de emendas. É incontestável que as maiorias sociais estão sub-representadas nos legislativos, e não formam maiorias políticas. No Congresso Nacional, as bancadas predominantes são as da bala, dos bancos, da bíblia fundamentalista, do agronegócio, das empreiteiras, da mídia grande e das mineradoras. Do poder econômico monopolista, em síntese.

Mas governar com um programa democrático-popular que mereceu o voto da população, sem fazer concessões rebaixadas, que firam princípios, não é impossível, não dá obrigatoriamente em impeachment. Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo (1989-1992), Olívio Dutra (1999-2002) e Tarso Genro (2011-2014), no governo do Rio Grande do Sul, não tinham maioria nas respectivas Casas Legislativas e cumpriram os mandatos até o fim. Sim, sofreram tentativas de destituição, mas a mobilização popular foi decisiva para a continuidade de seus governos.

Cerco popular

Recordo das articulações da bancada malufista para asfixiar e derrubar Erundina. O cerco popular à Câmara de Vereadores da maior cidade do país, com 15 mil manifestantes em apoio ao seu governo, quebrou o que era dado como certo.

“Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Já se disse que quando se alia com a direita e o fisiologismo estes é que acabam governando.

Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário. Essa proposta, que existe como lei em alguns países, já foi apresentada no Congresso Nacional, mas nunca prosperou. Isso revela as limitações do nosso sistema jurídico-político, controlado pelas elites que não aceitam o empoderamento popular.


“Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário


A Constituição da República Bolivariana da Venezuela é uma das que abriga essa possibilidade. Ela foi praticada lá em 2004, pela revogação do mandato do então presidente Hugo Chávez. Este venceu o pleito, permanecendo no governo, com mais de 58% dos votos (que, aliás, lá são voluntários).

A melhor forma para fazer uma mudança substantiva no nosso sistema político, a fim de torná-lo mais democrático, transparente e representativo, seria por meio de uma Assembleia Constituinte exclusiva e especificamente convocada para esse fim.

Mais do que debater impeachment como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o urgente desafio é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema direita, acelere essa questão?

Espírito de submissão

Nossa tradição cultural e política não ajuda, como lembra o jurista Fábio Konder Comparato em artigo intitulado ‘Sobre a mudança do regime político no Brasil’ (no livro A OAB e a Reforma Política Democrática, Brasília, 2014): “A estrutura de poder, própria do capitalismo escravista aqui instalado durante quase quatro séculos, marcou fundamente nossa mentalidade e nossos costumes políticos. Ela forjou, sobretudo no seio da multidão dos pobres de todo gênero – os nascidos ‘para mandados e não para mandar’, conforme a saborosa expressão camoniana – um espírito de submissão incompatível com a vivência democrática”.

No bojo dos processos de impeachment e dos chamados “crimes de responsabilidade”, que fustigam prefeitos, governadores e presidentes, está sempre presente esse ‘pão dormido’ da política nacional, a corrupção. Ela é sistêmica, larvar e mais que dos governos ou mal chamados ‘políticos’: é visceral do Estado brasileiro, enraizada em nossa cultura. Denunciá-la e combatê-la, nessa perspectiva, tem a ver com a premente ética da política, mais do que a propalada ética na política. É a ética da política que garante a qualidade das instituições republicanas na possibilitação dos interesses das maiorias, com transparência e sob controle popular. É ela, massificada como valor, que barrará tentativas manipuladas de “golpes parlamentares”, via impeachments.

Em meio a tantas sombras, nota-se um crescimento da consciência política e um reavivamento da organização e lutas populares. Isso pode nos garantir algumas vitórias, ao menos barrando retrocessos. Há braços.

*Chico Alencar é professor de História (UFRJ), escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)


Impeachment, o descarte
dos peões?

A vulgarização do impeachment e sua naturalização como método de apear governos eleitos serão sempre usadas impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata

Por José Luis Fevereiro*

A figura do impeachment, tal como inscrito na legislação brasileira, por crime de responsabilidade, submetido à interpretação política de uma maioria parlamentar qualificada, não é um mecanismo de aprimoramento democrático. Desde o impeachment de Collor, passando pelo de Dilma e agora no Rio de Janeiro o processo aberto de impedimento do prefeito Marcelo Crivella demonstram que esse mecanismo tem servido à burguesia para que esta se livre de governos que se tornaram disfuncionais aos seus interesses.

A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise.

Concertação oligárquica

Collor foi deposto com a esquerda fornecendo a mobilização nas ruas e as oligarquias concertando entre si a formação de um novo governo que viabilizasse a estabilização do regime e a vitória eleitoral em 1994. Olhando retrospectivamente, se Collor não tivesse sido derrubado, a coalizão conservadora que o elegeu em 1989 chegaria às eleições presidenciais de 1994 desmoralizada e com enormes dificuldades de apresentar um candidato competitivo contra Lula. Provavelmente, não havia para a esquerda outro caminho em 1992, a não ser a derrubada de Collor, pela pressão da base social e pelas dimensões da crise. Mas, com exceção de Brizola, que relutou em aderir ao impeachment, nenhum setor da esquerda compreendeu as implicações dessa ação. Brizola vinha dos anos 1950 e assistira às tentativas de derrubar Vargas, de impedir a posse de Juscelino, de bloquear a posse de Jango e, finalmente, ao golpe de 1964. Certamente, o sexto sentido estava ativado para a defesa de mandatos populares contra manobras que os interrompessem. Brizola vinha de longe.

Dilma foi derrubada em 2016, apesar de todas as concessões que fez, mas, pela natureza da base social, não podia entregar tudo que a burguesia queria. Com a crise e consequente perda de popularidade, o destino dela estava traçado.


A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise


No Rio de Janeiro a movimentação pelo impeachment do prefeito visa arrumar a casa para a construção de uma candidatura do campo conservador em 2020, livre do ônus de defender o colapso administrativo de Crivella. Esse movimento não deve ter a colaboração da esquerda. Não nos cabe ajudar a resolver as crises políticas da burguesia.

Impeachment de Bolsonaro

Quando escrevo este texto, em 19 de maio, começa a circular pela grande imprensa e pelo Congresso a hipótese de derrubada de Bolsonaro. Algo que semanas antes entrava como mera especulação em conversas reservadas passa a ser tratado à luz do dia. Está medianamente claro que Bolsonaro é inepto para fazer avançar com consistência a agenda ultraliberal da coalizão da Casa Grande que o elegeu. O rápido desgaste do governo, o prolongamento sem fim da crise econômica e as ações grotescas da parte circense do ministério minam o apoio mesmo entre parte das classes médias conservadoras. É notória a movimentação do vice, o general Hamilton Mourão, para se colocar como capaz de retomar a agenda da burguesia sem manobras diversionistas e sem se envolver em polêmicas secundárias.

As extraordinárias manifestações de 15 de maio recolocam a esquerda no cenário político pela primeira vez em anos, com real capacidade de mobilização. As expectativas de fortes demonstrações de força são reais e estão longe das tradicionais avaliações bravateiras tão comuns em parte da esquerda. Esse é um capital político de peso. O sucesso dessas ações enfraquecerá mais ainda Bolsonaro, que por um lado busca também mobilizar os seus contra os inimigos imaginários de sempre.

Tempos acelerados

Os tempos da política estão acelerados. Fazer previsões nos últimos meses virou tarefa de enorme risco, mas confirma-se um cenário de grandes mobilizações contra a reforma da Previdência e os cortes de verba da Educação, bem como a crescente fragilidade de Bolsonaro em mobilizar os seguidores mais fiéis, com dificuldade de levar adiante o programa ultraliberal de Paulo Guedes. Nesse sentido, a burguesia avançará na tentativa de se livrar do capitão. Não será difícil encontrar as razões no laranjal da família, como o avanço das investigações contra Flavio Bolsonaro. Podem chegar até à comprovação de relações com as milícias cariocas, muito além da mera simpatia e das relações pessoais com alguns de seus membros.

Foi a aliança das mais diversas frações da burguesia que elegeu Bolsonaro, um outsider inconfiável, da mesma forma que em 1989 foi essa mesma aliança que elegeu Collor. Em ambos os casos atingido o objetivo de derrotar a esquerda, sobra para a oligarquia administrar a crise política decorrente do recurso a outsiders empoderados.

Nosso adversário não é Bolsonaro, assim como não era Collor, nem é Crivella. Nosso adversário é o projeto oligárquico excludente dirigido pela aliança das burguesias financeira e agrária que hegemonizaram as outras frações da burguesia, para quem esses atores nunca passaram de peões a serem usados e, se necessário, descartados. Não podemos nos contentar com o descarte dos peões.

Novas eleições

O acúmulo de forças que estamos obtendo nas ruas não pode servir de linha auxiliar à resolução da crise política por parte da elite. Sempre que esta falou em pacificação da política foi para reestabelecer um arranjo que reorganizou as forças e impôs a paz dos cemitérios ao andar de baixo.

A vulgarização do impeachment, a naturalização como método de apear governos eleitos será sempre usada impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata.

No cenário nacional o general Mourão se desloca. Na política e no futebol quem se desloca recebe. Nosso papel é o de negar-lhe terreno. No agravamento da crise política devemos contrapor ao impeachment a defesa de novas eleições. Nenhum acordo sem novas eleições. Nenhum voto a favor de impeachment sem novas eleições.

Hoje como ontem o impeachment será queima de arquivo.

*José Luís Fevereiro é economista e membro do Diretório Nacional do PSOL

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