Marielle, Bolsonaro
e as milícias
É preciso esclarecer um ponto fundamental no assassinato da vereadora do PSOL: quem foram os mandantes e quais os motivos? É uma questão decisiva para impedir que o crime organizado se instale definitivamente na vida política brasileira
Por Cid Benjamin*
Até agora, na data do fechamento desta edição de Socialismo e Liberdade, estão presos apenas os dois milicianos executores do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. Falta o mais importante: a identificação e a prisão dos mandantes. Além disso, claro, saber as razões do crime e desvendar as vinculações dos assassinos com o mundo da política.
No fundo, essa história de crime de ódio é uma hipótese que serve mesmo a quem encomendou a execução. Crime de ódio é crime isolado, sem mandante. A morte de Marielle pode não ter sido pensada inicialmente como um atentado isolado. A execução aparentemente faria parte de uma série. Talvez a enorme repercussão do crime tenha sustados outros atentados que viriam
Muito atuante na denúncia da violência policial contra os pobres, Marielle não tinha atuação localizada em áreas dominadas por milícias. Tampouco a ação dela no Legislativo teve como alvo prioritário os paramilitares, como foi o caso do hoje deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) – a principal figura da CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio em 2008. Por conta disso, aliás, Freixo é obrigado, até hoje, a viver protegido por segurança armada.
Assim, tudo indica que não foi um problema local que levou ao assassinato de Marielle.
A hipótese do ódio
Pode, também, ser descartada uma hipótese levantada inicialmente pela polícia: a de que ela tenha sido morta por ódio individual a esquerdistas, mulheres, negros ou homossexuais. Ora, alguém acredita que um matador profissional vá passar três meses estudando os passos de uma pessoa, antes de matá-la, apenas por não gostar de “gente de esquerda”? Pois foi o que fez o matador de Marielle.
No fundo, essa história de crime de ódio é uma hipótese que serve mesmo a quem encomendou a execução. Crime de ódio é crime isolado, sem mandante.
Investigações mostraram que o ex-PM Ronnie Lessa, o principal dos matadores, fez também levantamento da vida de outros possíveis alvos. De uma forma ou de outra, todos eles com atuação na defesa dos direitos humanos.
Mas há algo intrigante. Teve, também, a vida investigada pelo matador o professor Pedro Mara, diretor do Ciep 210, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Nesse caso, há uma diferença entre Mara e os demais. Ele não tem atuação política aberta. Mas tinha tido recentemente uma dura discussão com Flávio, um dos filhos de Bolsonaro e amigo íntimo de milicianos, tornando-se seu desafeto. Será que, por isso, passou a ser um alvo possível?
Duas conclusões surgem do que foi dito acima.
A primeira é que a morte de Marielle pode não ter sido pensada inicialmente como um atentado isolado. A execução aparentemente faria parte de uma série. Talvez a enorme repercussão do crime tenha sustados outros atentados que viriam em seguida.
A segunda conclusão: o fato de o professor ser também um alvo do matador é mais um elemento a indicar a proximidade dos Bolsonaros com paramilitares. A hipótese fortalece a impressão de que o presidente e a família têm relações mais próximas com a milícia do que muitos pensam. Próximas a ponto de uma altercação individual do 1º (ou ele será o 2º? Ou o 3º?) levar o nome do desafeto à lista de alvos potenciais de um matador profissional.
Perigo para a democracia
Todo esse quadro traz à tona uma possibilidade macabra e perigosíssima para a democracia. Será que as milícias podem se transformar no embrião de algo semelhante à Aliança Anticomunista Argentina (Triple A), grupo paramilitar que eliminou ativistas de esquerda? Seria algo muito sério. Para que se tenha uma ideia da gravidade da hipótese, basta dizer que, segundo relatórios de entidades de defesa dos direitos humanos, a Triple A assassinou 1.122 pessoas, entre militantes, artistas, parlamentares, estudantes, historiadores, juízes e outros funcionários públicos na Argentina.
Na campanha eleitoral, Wilson Witzel festejou o assassinato de Marielle em cima de um carro de som, ao lado de dois parceiros trogloditas que exibiam, em festa, a placa com o nome da vereadora partida em dois pedaços
Começando a operar em 1973, quando do retorno do presidente Juan Domingo Perón ao país, aquela organização criminosa esteve em atividade até à derrubada de Isabelita Perón, em 1976, quando um golpe de Estado instaurou uma sangrenta ditadura militar. A partir daí, as próprias Forças Armadas se encarregaram do extermínio de militantes e simpatizantes da esquerda.
Seja como for, parece evidente que uma tarefa se impõe: acabar com as milícias. E, claro, desvendar as ligações com o mundo da política.
No Rio, elas já passaram de um domínio territorial localizado em áreas de periferia para voos mais altos, fora das regiões de influência originais. Tornaram-se quadrilhas de pistoleiros de aluguel, sem prejuízo de outras atividades criminosas que já exerciam.
Os milicianos têm experiência militar e acesso a armamento de qualidade. Sabe-se, por exemplo, que foram contratados como matadores de aluguel nas disputas do jogo do bicho. Outras mortes fora das áreas de origem foram também de responsabilidade deles, admite a polícia.
Crime e política
Há outra pergunta relacionada ao caso Marielle e à promiscuidade das milícias com a polícia e o mundo da política: como vazou a operação que prendeu os dois ex-PMs matadores?
A prisão deles traz mais indagações. Por razões legais, a polícia não pode entrar em residências antes das 6h da manhã. Talvez por isso, os assassinos tenham deixado as residências, preparados para desaparecer, em torno das 4h da madrugada. Não há dúvida de que tinham sido avisados da operação que os prenderia. Ao sair, porém, caíram nas mãos da polícia, que estava a postos desde as 3h da manhã, esperando amanhecer. Desconfiados de que, mais uma vez, uma operação vazaria, os policiais chegaram mais cedo.
Quem alertou os dois matadores?
É difícil pensar que em prisões dessa importância não tenha havido compartimentação de informações. É praxe que, em casos assim, os participantes da operação só sejam informados do objetivo no último momento. Até os celulares são recolhidos, por precaução.
Se esses cuidados foram tomados, uma possível explicação para o vazamento é que ele tenha ocorrido “para cima”, a partir de quem, na cadeia hierárquica, era superior aos chefes da investigação. Eles seriam o secretário da Polícia Civil e o governador Wilson Witzel, que, pela relevância da operação, devem ter sido avisados.
Claro que não se pode acusar quem quer que seja de ter vazado a operação. Seria uma leviandade. Mas, fica a pulga atrás da orelha.
Os milicianos têm experiência militar e acesso a armamento de qualidade. Sabe-se, por exemplo, que foram contratados como matadores de aluguel nas disputas do jogo do bicho. Outras mortes fora das áreas de origem foram também de responsabilidade deles, admite a polícia
Afinal, na campanha eleitoral, Witzel festejou o assassinato de Marielle em cima de um carro de som, ao lado de dois parceiros trogloditas que exibiam, em festa, a placa com o nome da vereadora partida em dois pedaços.
Retrocesso civilizatório
A execução de Marielle não foi mais uma morte, dentre tantas que ocorrem no Brasil. Embora toda vida humana tenha um valor igual – e incomensurável – a gravidade de assassinatos políticos vai além da perda de vidas. Os tiros atingem a democracia. Mostram que a luta política está sendo travada de forma inaceitável. São um retrocesso no processo civilizatório.
O envolvimento de milícias com assassinatos políticos deixa claro, mais uma vez, que, no universo do chamado “crime organizado” (que deixa de lado os crimes cometidos por gente de paletó e gravata, limitando-se àqueles em que são usadas armas), os paramilitares são a principal ameaça.
Daí ser preocupante que no pacote de combate à violência apresentado pelo ministro Sérgio Moro, em fevereiro, o combate às milícias não tenha lugar de destaque. Aliás, está quase ausente do documento, sendo citado apenas de passagem.
A omissão só pode ser compreendida devido às ligações de milicianos com gente do poder. Mas, não seja por isso. O presidente tem uma boa oportunidade para demonstrar que não compactua com os crimes paramilitares. Foi proposta a abertura de uma CPI sobre milícias na Câmara dos Deputados. A bancada vai apoiá-la?
Discurso comprometedor
A propósito, vale lembrar o discurso de certo deputado no plenário da Câmara, em 12 de agosto de 2003, quando se tentou abrir uma investigação sobre um grupo de extermínio que agia na Bahia.
“Quero dizer aos companheiros da Bahia — há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio — que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para eles na Bahia, podem ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio, porque no meu Estado só as pessoas inocentes são dizimadas”.
O autor desse discurso foi o então deputado Jair Bolsonaro.
De lá até hoje não houve qualquer indicação de que o presidente tenha mudado de opinião sobre esses grupos paramilitares.
Talvez aí esteja a resposta à pergunta sobre as razões pelas quais Sérgio Moro não deu prioridade às milícias no plano de combate à criminalidade.
*Cid Benjamin é militante do PSOL, jornalista e professor
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