Escuta-te no lugar de fala?
Por Ceila Santos*
Sábado, 2 de novembro, feriado dos Mortos. Detalhe: sol na medida para ficar de bobeira com pernas para o ar ou jogar conversa no boteco. É importante destacar este contexto pra dizer que foi, neste dia, que comecei a atender o pedido da Malu, minha filha de 15 anos, que deseja conhecer a política.
São tantas perguntas, que pulsa a curiosidade dela dentro de mim, que eu tenho despertado a escuta e fechado os olhos. E, foi assim, que cheguei naquela rua arborizada do Campos Elíseos. Feliz por iniciar nossa jornada juntas num encontro, que reunia brasileiras, cariocas e latino-americanas com um objetivo claro: sinergia.
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Eu não tinha aceso em mim que a Fundação Lauro Campos e Marielle Franco era entidade pública do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e viver essa surpresa no decorrer do encontro foi um presente recebido das amizades que o idealismo político me proporcionou.
É desse lugar de fala que começo a tecer contigo a reflexão que o Encontro Estratégias Políticas Inovadoras para as Eleições de 2020 proporcionou na minha vida, de 45 anos – pisei no palco ativista, pela primeira vez, em 2011, representando o movimento Parto do Princípio, na Conferência das Mulheres. Ou seja, oito aninhos, apenas. É uma infância, sem dúvida. Vivida com muita intensidade. Fui conselheira de Distrito do Conselho Participativo, delegada regional do Fórum das Mulheres e me envolvi com ANEP Brasil como representante da Educação Pré-Natal nos grupos de trabalho da Rede Nossa São Paulo.
Não recebi o ativismo de herança familiar, escolar ou juvenil. Nasci ativista aos 38. Fui uma das mulheres que tomei consciência do lugar do corpo feminino na sala obstétrica. Antes, eu sabia de muita coisa que devia ser feita sobre as questões de Gênero, mas não fazia. Saber fazer e não fazer é o mesmo que não saber. Ao fazer, aprendi outro ditado: fazer sem poder é doença.
Falo, hoje, de um lugar que reconhece a importância do saber e do poder pra ser ativista e, deste lugar, eu acredito fielmente em encontros. Ainda mais quando eles trazem o objetivo de reconhecer ações e estratégias
inovadoras.
Ouvir as vozes de Letícia Maria, Aline, Thaís, Jô, Alejandra, Valesca, Vanessa foi escutar e reconhecer o meu processo. Um acalanto perceber suas soluções, desejos, sonhos e ideais na fala das outras, mas também um furacão ao reconhecer as diferenças na forma de expressar e lidar com a sabedoria do poder. Nenhuma delas representa a minha história nem consciência. É dolorido reconhecer isso: nenhuma me representa! Mas
todas falam com algo que já vivi, ou experimentei. É, por isso, que pergunto: escuta-te no lugar de fala?
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Eu não tenho dúvida da luta pelo lugar da mulher na sociedade e, de tantas outras lutas, que me vinculo pela consciência ou pela história, mas me remoo por dentro quando reconheço a complexidade do lugar de fala quando desejamos uma estratégia que represente o novo, seja a jovem de 15 anos que anseia pela política, a mãe que foi cortada pela violência obstétrica ou as lideranças que movem as dores locais da sua comunidade.
Quando digo que a voz de quem fala não me representa não significa que não me toca. A fala da Jô Pereira, representante da Ciclocidade, bateu em mim da cabeça aos pés, fez meu corpo vibrar com a autenticidade que ela
transmite no lugar de mulher, negra e periférica. Me tocou e ainda ressoa, nos meus olhos, bem claro a diferença, daquilo que nos separa: a pele. A cor da pele. Sou branca, filha de brancas, neta de brancas, bisneta de mulato e
índia.
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Não carrego a visibilidade da luta na minha pele. Ouço a fala de quem legitima meu desejo de justiça e, nesta escuta, sinto-me tão diferente de quem carrega a visibilidade da luta que torno-me quase incapaz de usufruir o direito pela justiça.
É dessa complexidade que reconheço o caminho do novo. Não se trata de um lugar de fala, apenas. Nem só de escuta. O diálogo da complexidade de quem sonha junto exige uma abertura que vai muito além da representatividade ou pertencimento.
É um lugar de interesse de pessoa para a pessoa. Um lugar de atenção e respiro. Um lugar de domínio das emoções e das brincadeiras. É um lugar que exige de nós não só lembrar das forças das heroínas latino-americanas, exemplos do Hemisfério Sul – como ensina as mulheres, que apresentaram o Método SISA, uma ferramenta para processos de inovação criativos com enfoque feminista – mas de reconhecer que essas forças devem ser aplicadas, às vezes, dentro de nós com nós mesmas para nascer fora,
o novo.
Pois, naquela tarde de sábado, os desejos foram ditos. Nós sabemos o novo que desejamos: Transparência para abrir o governo, como trouxe Vanessa Meneguetti, do Instituto do Governo Aberto. Co-deputar pra quem já fazia essa função dentro de saraus e no Capão, como sintetizou Fernando Ferrari, da Bancada Ativista, trazendo estatísticas e números para retratar sua trajetória ativista.
Ser jovem porque existe um Nós, como contaram Valesca, Pedro, Saulo e Agnes, da Rede Popular de Cursinhos Ubuntu, deixando claro a importância do coletivo e do pertencimento, nesta fase da vida, para seguir em frente na transformação da periferia.
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Sinergia é uma busca. Não é conhecida. Quando me pergunto o que escuto de mim na fala das mulheres que sonham com a equidade de gênero, eu reconheço o desafio e compreendo nossas inabilidades de cuidar de quem cuida, ou deseja cuidar, das dores do mundo, como apresentou Evelyn Gomes neste lindo dia de sábado.
E compreendo que o diálogo, carrega padrões que perpetuam a inabilidade do saber e do poder, e, por isso, ele é tão árduo, necessário e deve ser o caminho para o futuro.
Obrigada a todas e todos pelo encontro!
*Ceila Santos é jornalista, gestora cultural, facilitadora de grupos e de círculos de mulheres.
O evento Estratégias Políticas Inovadoras para as Eleições de 2020 ocorreu no dia 02 de novembro, na sede da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, em São Paulo.
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