Autor: Redação Lauro Campos

  • Plebiscito chileno: que está em jogo?

    Plebiscito chileno: que está em jogo?

    Plebiscito chileno: que está em jogo?

    Por Vitor Hugo Tonin [1]

    No próximo domingo, dia 25, o povo chileno irá às urnas responder duas perguntas: 1) se quer ou não ter uma nova constituição e 2) que tipo de órgão deve escrevê-la. Essa consulta popular foi uma das principais vitórias do povo chileno que se rebelou em 18 de outubro de 2019 e ocupou durante semanas as ruas de todo país. No auge das manifestações, o presidente direitista Sebastián Piñera disse que o país estava em guerra, apenas poucos meses depois de ter afirmado que o Chile era um oásis de paz e prosperidade na América Latina.

    Nesta guerra contra seu próprio povo Piñera mobilizou todo o aparato repressivo do Estado para reprimir as manifestações e tentar assustar os manifestantes: mais de 30 pessoas foram mortas, 460 tiveram trauma ocular, muitas delas ficaram cegas já que a polícia mirava as balas de borracha na altura dos olhos dos manifestantes, mais de 2 mil pessoas presas e 5 mil vítimas de violações e abusos por parte da polícia. Mesmo assim o povo não deixou as ruas.

    Sem nenhuma legitimidade, restando-lhe apenas o apoio da alta elite chilena e das forças repressivas, Piñera ameaçou elevar ainda mais o nível da repressão se os partidos não chegassem a um de pacificação do país. Este “Acordo pela paz”, feito por cima, no congresso, propôs ao povo chileno decidir sobre a realização de uma convenção constituinte para finalmente substituir a constituição escrita em 1980 e atualizada em 1988 durante a ditadura de Augusto Pinochet. Afinal, as manifestações não eram somente pelos 30 pesos de aumento no transporte público, mas por 30 anos de abuso, como afirma a principal palavra de ordem da rebelião popular.

    Assim originou-se o plebiscito, que deveria ter se realizado em 26 de abril, mas foi adiado para o domingo próximo em virtude da pandemia. Abaixo elenco as principais possibilidades de resultado e seus desdobramentos para o futuro.

    • Tende a ser a maior participação eleitoral da história do Chile, apesar da pandemia;
    • Até a maior parte das classes dominantes estão apoiando a realização da convenção constituinte, portanto, a vitória eleitoral do “sim” deve ser grande;
    • As disputas começam mesmo na segunda pergunta do plebiscito que se refere ao “como” será a constituinte. As classes dominantes querem uma convenção mista, com apenas metade eleita pelo povo e a outra metade indicada pelo congresso atual, profundamente deslegitimado. Com isso, as classes dominantes querem restringir a participação popular. Os setores populares fazem campanha por uma “convenção constitucional” totalmente eleita, com paridade de gênero e cotas de representação para os povos originários.
    • Os resultados em relação a essa segunda pergunta expressarão a correlação de forças do processo constituinte. É provável que o povo vença essa segunda pergunta, mas com que margem?
    • Esse resultado é importante indicador sobre o futuro do processo. Após o plebiscito o povo será chamado a eleger “deputados” constituintes no dia 11 de abril de 2021. Esta eleição será decisiva, pois uma das regras colocadas para a convenção constituinte é o quórum mínimo qualificado de dois terços para qualquer aprovação. Este alto quórum tem objetivo de bloquear mudanças mais radicais exigidas pelo povo chileno.
    • Além disso, alguns temas como os Tratados de Livre Comércio (TLC), o regime “democrático” e até o nome do país foram proibidos de serem debatidos pela assembleia constituinte (artigo 135 do acordo de paz). O que é uma grave limitação ao poder originário constituinte. Os TLCs, por exemplo, são os principais responsáveis pela manutenção e aprofundamento do modelo econômico primário exportador em vigência no Chile desde Pinochet. Logo, se os TLCs não forem revistos, o modelo econômico tende a seguir sendo o mesmo. Não se parte, portanto, de um livro completamente em branco.
    • Para fazer frente a esses desafios o povo chileno precisa de forças e organização para: i) garantir com ampla margem uma assembleia constituinte totalmente eleita para este fim no próximo domingo; ii) eleger mais de dois terços de representantes constituintes no próximo 11 de abril; e iii) pressionar para reverter no atual Congresso, na Convenção Constitucional ou na Corte Suprema, as ilegítimas limitações impostas ao poder constituinte pelo artigo 135.

    Depois de derrotarmos Macri na Argentina e  o golpe na Bolívia é hora de derrotar a direita também no Chile.

    [1] Doutorando em Desenvolvimento Econômico, pesquisa questão urbana no Chile. Agradeço os comentários de Nicolás Valenzuela Paterakis e Marcela Vera que obviamente não são responsáveis pelas opiniões aqui expostas.

     

  • Doença e Transporte Público: Rodando em falso . Por Lúcio Gregóri

    Doença e Transporte Público: Rodando em falso . Por Lúcio Gregóri

    Doença e Transporte Público: Rodando em falso

    Os problemas causados pela pandemia impactaram profundamente todas as áreas da economia. Uma delas foi a dos transportes coletivos urbanos, em particular o setor de ônibus, que sofreu enorme perda de passageiros transportados. Ao mesmo tempo, a Covid-19 também serviu para escancarar as distorções das políticas de mobilidade

    Por Lúcio Gregóri

    Vivemos um momento que pode provocar muitas mudanças nos modos de mobilidade urbana: trabalho remoto, automação do setor de serviços, possibilidade crescente de reuniões serem realizadas a distância, uso de aplicativos para contratação de viagens urbanas, entre outros fatores são sinais dessa nova situação. A pandemia da Covid 19 aguçou essa questão, evidenciando os vários problemas que envolvem o transporte coletivo e a mobilidade em geral.

    A mobilidade urbana é questão essencial para a condição de vida das pessoas, e em nossa sociedade escravagista e preconceituosa – justamente para com os de menor renda, negros e mulheres e que são os que mais dependem dos transportes coletivos – desempenha um estratégico e cruel papel para sua concretização. Quem tem mais, tem mais e melhor mobilidade e, quem tem menos só tem, quando tem, para as “viagens dos deveres” e não para as “viagens dos prazeres”.

    Disputas no deslocamento

    Como vivemos num sistema capitalista, ainda que atrasado e cartorial, as disputas em torno dos ganhos propiciados pela mobilidade urbana se fazem sentir. Cada um dos interessados procurando “vender o seu peixe” como sendo o melhor, mais inteligente, mais limpo, etc.

    A mobilidade urbana é questão essencial para a condição de vida das pessoas. E numa sociedade escravagista e preconceituosa como a nossa, desempenha um estratégico e cruel papel para sua concretização. Quem tem mais, tem mais e melhor mobilidade

    Não foi diferente quando o automóvel surgiu, sendo o “resolvedor” da mobilidade, omitindo-se, é claro, seu papel como possível causador de problemas. Com a produção em série e associação com a indústria petroleira, o automóvel com motor a explosão surgiu como “a grande solução”. Claro está que todos os problemas advindos desse modo de locomoção – enorme uso de espaço viário, acidentes, poluição etc. – foram devidamente “não identificáveis” por anos a fio.

    O mesmo acontece atualmente com os aplicativos, que abrirão caminho para carros pequenos sem motoristas etc. As vantagens são promovidas como absolutas, mas não é difícil de se imaginar o que poderá ser uma quantidade astronômica de pequenos carros elétricos a ocuparem, freneticamente, as ruas da cidade em manobras fugidias de congestionamentos, tal como já é realidade com os aplicativos. Nesse sentido, mais uma vez a lógica indica que os transportes coletivos continuarão sendo absolutamente fundamentais.

    Capitalismo cartorial

    Os problemas causados pela pandemia da Covid-19 impactaram profundamente todas as áreas da economia, mas alguns setores foram mais duramente afetados. Um deles foi o dos transportes coletivos urbanos, em particular o setor de ônibus – o mais demandado – que sofreu enorme perda de passageiros transportados. Ao mesmo tempo, a pandemia também serviu para escancarar os enormes equívocos que vêm sendo cometidos por anos a fio nesse setor.

    Desde tempos imemoriais, o capitalismo brasileiro tem nos serviços públicos uma forma de “encosto”, ou como dizia Hélio Jaguaribe, mostra-se um capitalismo cartorial. Assim, como nos cartórios, não há riscos envolvidos. Mais do que isso, o “encosto” chamado concessão do sistema de transporte público inclui distorções gigantescas que visam tornar a cessão desse serviço público, uma espécie de “esquema de ganhos” seguros.

    Nas concessões clássicas, aplicadas na esmagadora maioria das cidades brasileiras, o serviço de transportes coletivos por ônibus é remunerado por passageiro transportado – como se passageiro fosse custo – quando passageiro em sistema de transportes é receita! Tal como num táxi, dado um certo percurso, o taxímetro mostrará o mesmo preço da corrida, independentemente do número de passageiros transportados, pois o que é cobrado é o deslocamento realizado.

    Atualmente, na maioria das cidades, a remuneração do transporte coletivo é feita por passageiros. Quanto mais lotados os ônibus, mais rentável será o negócio. Isso acarreta um efeito cruel: havendo queda de passageiros transportados, a tarifa é reajustada, o que provoca outra perda adicional de passageiros, criando-se um círculo vicioso perverso

    Com a remuneração do transporte coletivo sendo feita por passageiros, quanto mais lotados os ônibus, mais rentável será o negócio. Com um efeito cruel de que, havendo queda de passageiros transportados, a tarifa é reajustada, o que provoca outra perda adicional de passageiros, criando-se um círculo vicioso perverso.

    Com as gratuidades, a compensação precisa ser realizada com subsídios cruzados, quando o passageiro pagante tem um adicional de tarifa para compensar aquele passageiro que usa do serviço em regime de gratuidade, criando uma animosidade entre os usuários, pois os pagantes se sentem prejudicados quanto mais direitos de gratuidades forem sendo atribuídos a determinados grupos de usuários – idosos, estudantes, etc.

    Lotação e infecções

    Com ônibus superlotados o serviço tende a apresentar problemas sanitários como o aumento da quantidade de infecções, viroses entre outras adquiridas. Seis passageiros por metro quadrado é o altíssimo índice permitido, que na prática se transforma em até dez, doze passageiros por metro quadrado.

    Se passageiro fosse realmente custo, a queda de passageiros causada pela Covid-19 incidiria em diminuição de custos para o serviço, mas o que ocorreu foi que a receita do setor desabou e, por consequência, as empresas de transportes coletivos se declaram em colapso econômico. Fica provado que ônibus lotado é sim anti-higiênico, fora a limpeza do veículo e um permanente agente propagador de contaminação.

    No “encosto” nas parcerias público-privadas, o Estado entra com a maior parte dos custos (caso dos custos fixos dos metrôs) e o setor privado tem prioridade no rateio das receitas com direito assegurado de reajuste anual de tarifas independentemente de qualquer coisa (vide exemplo do que é praticado na linha amarela do metrô em São Paulo).

    Automóveis e poluição

    O isolamento social em decorrência da Covid-19 retirou os carros de circulação das ruas das cidades e ficou explícito o quanto o modelo de mobilidade centrado no automóvel é o responsável pela poluição atmosférica. Em São Paulo, a mancha escura de poluição que cobria a cidade foi drasticamente reduzida, quase desaparecendo. O mesmo fenômeno pode ser observado ao redor do mundo todo. A indústria automobilística contra-ataca com a ideia de que deslocamento por automóvel será mais higiênico.

    Porém, alguns dados ajudarão a entender a escala do problema representado pelos transportes coletivos urbanos e o quanto eles representam a verdadeira face desse capitalismo à brasileira.

    Em mais de 2.900 municípios brasileiros, os transportes coletivos atendem a 70 milhões passageiros/dia. De acordo com a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), 1800 empresas privadas com 107 mil ônibus transportam 60 milhões de passageiros/dia, gerando mais de 400 mil empregos diretos (motoristas, cobradores, pessoal de manutenção e demais profissionais).

    O transporte sobre trilhos – metrôs e ferrovias metropolitanas – congrega 15 operadoras, num total de 1.105 km de linhas, 10,9 milhões de passageiros/dia. Considerados todos os modos, o transporte público coletivo responde por 50% das viagens motorizadas realizadas diariamente no país. Apesar dessa importância dos ônibus, eles vêm perdendo passageiros ao longo do tempo, seguramente pela má qualidade dos serviços, mas fundamentalmente pelo alto preço da tarifa, que se torna cada vez mais inacessível.

    Contratação distorcida

    A insolvência das empresas não é um risco causado pela Covid-19, que apenas aguçou a questão do modelo de contratação dos serviços, inclusive por não possuir cláusulas contratuais para caso de hecatombes, pandemias entre outros.

    Nos últimos 20 anos, os ônibus perderam 35,6% dos usuários. Só em 2017, 9,5%. O crescente uso dos modos individuais motorizados, carros e motos, que ocupam 70% do espaço viário e transportam cerca de 25% das pessoas em circulação, causaram uma diminuição da velocidade do ônibus de 25km/h para 15km/h e ilustra a desigual distribuição do espaço público para uso das pessoas, que privilegia mais espaço para carros particulares.

    Para se enfrentar os problemas da mobilidade urbana e fortalecimento dos transportes coletivos, inclusive com garantia de higiene e segurança, será necessário mudar radicalmente a forma de contratação dos serviços e determinadas especificações de desempenho, aí incluído o número de passageiros em pé por metro quadrado.

    E para garantir que o transporte coletivo não seja um inibidor e segregador do uso e acesso à cidade por parte dos mais pobres, tendo na tarifa o elemento chave nessa inibição, há que se formular políticas robustas de subsídio tarifário e, no limite, o subsídio total (tarifa zero). Aí sim o transporte será um direito social como diz a Constituição desde setembro de 2015, como a saúde, via SUS. Isso significa que é necessário criar recursos para o subsídio tarifário e reequacionar inteiramente o modo de contratar tais serviços com o setor privado, bem como as especificações de desempenho.

    Curiosamente, foi aprovado pela Câmara Federal o projeto 3364/20, que prevê auxílio de R$ 4 bilhões às empresas de transportes coletivos sem exigir, por exemplo, a transformação dos contratos para custos operacionais e não mais as clássicas concessões de remuneração por passageiro e a inclusão de cláusulas relativas a hecatombes e epidemias.

    Tirar da letra morta em um papel o transporte como direito social nos termos da Constituição desde 2015, e transformá-lo em direito real, envolve um debate ampliado sobre a questão tributária no país e das formas de contratação dos serviços públicos, especialmente os de mobilidade urbana.

    Tributação injusta

    No capitalismo brasileiro, diferentemente do resto do mundo, tributa-se pouco a renda e o patrimônio. Na Dinamarca, esses dois itens, em conjunto, representam 67% da arrecadação total de impostos; nos EUA, 60%; no Brasil, apenas 23%. Por outro lado, somos vice-campeões mundiais em tributação sobre o consumo com seus 50%. A média da OCDE é de 32,4%; e nos EUA, 17%.

    E para finalizar essa enorme farsa nacional, os dividendos para os donos de ações de empresas não pagam imposto de renda e jatinhos e iates não pagam IPVA.

    No Brasil, os direitos e serviços públicos são sustentados pelos mais pobres, os que pagam proporcionalmente mais impostos, via consumo.

    A agenda hegemônica da Reforma Tributária que tramita no Congresso Nacional está desconectada dessa realidade e não enfrenta a principal anomalia da tributação brasileira que é o seu caráter regressivo, não reduz e pode ampliar a desigualdade. Além disso, é profundamente insuficiente, por não fortalecer financeiramente o Estado para que cumpra o papel dele exigido em crises dessa envergadura.

    Se o usuário fosse realmente custo, a queda de passageiros causada pela Covid-19 incidiria em diminuição de custos para o serviço, mas o que ocorreu foi que a receita do setor desabou e, por consequência, as empresas de transportes coletivos se declaram em colapso econômico. Fica provado que ônibus lotado é anti-higiênico

    Se essa agenda já era inócua e tímida, tornou-se anacrônica após a crise agravada pela Covid-19. E nem se diga do teto de gastos…

    Além disso, é fundamental evitar propostas equivocadas como pedágio urbano, que transforma a rua em mercadoria escassa e é regressivo. Há também a chamada municipalização da Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), posto que a esta é uma medida conjuntural e pode ser mudada até por decreto.

    Em resumo, sem uma disputa e reforma ampla sobre questões tributárias, mudanças radicais na forma de contratar serviços de transportes coletivos e da cobrança de contribuição (e não pedágio) pela apropriação do espaço viário pelos automóveis dentre outras questões, o que se poderá ter como resultado das mudanças apontadas no início do texto e das consequências e problemas desnudados pela Covid-19, é aquilo que é uma recorrência em nosso país: “tudo mudar para que tudo permaneça como sempre foi”. Podendo piorar…

    * Lúcio Gregori é engenheiro pela Escola Politécnica da USP, foi Secretário Municipal de Transportes no governo de Luiza Erundina (1989-93), quando propôs o projeto da Tarifa Zero.

     

  • BAIXE AQUI – Revista Socialismo & Liberdade n.30

    BAIXE AQUI – Revista Socialismo & Liberdade n.30

    Editorial – Socialismo & Liberdade n.30

    Francisvaldo Mendes de Souza
    Diretor-presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

    Nesta edição da revista Socialismo e Liberdade, nº 30, aproximamo-nos das eleições de 2020 e já iniciamos a primavera no Brasil, porém no lugar de flores nascendo e decorando as estradas, campos e matas, encontramos a ameaça a vida com doenças e mortes. Sementes do poder que assolam o mundo com o capitalismo e seus genes autoritário deste governo do Brasil.

    Os números disponíveis já ultrapassam 146 mil pessoas mortas. Fruto desta política que mata, onde o vírus é apenas o gatilho do momento. Nossa tarefa é de construir espaços para o conhecimento e a formação de uma inteligência coletiva potente com compromisso de estourar a bolha que impede o acúmulo da ciência, da filosofia e dos conhecimentos ancestrais. Precisamos aguçar e construir olhares e sensibilidades críticas abolindo o senso comum. São essas tarefas fundamentais para superar o capitalismo. Por isso seguiremos firmes e com práticas solidárias para espalhar na maioria do nosso povo – que é o agente – as mudanças necessárias que precisamos.

    Nesta revista apostamos em apresentar informações e conhecimentos sobre o momento atual e apontamos abordagens críticas para os ataques que sofremos, coletivamente. Conseguir se manter vivo nesta descompostura da política com o tempo é um desafio para que nossa ação de revolucionários e insurgentes ganhe a dimensão de qualificar e melhorar a vida contra o individualismo decrépito.

    Estamos próximos de duas eleições importantes no mês que vem, a dos E.U.A e a do Brasil, das quais os resultados eleitorais serão decisivos para fortalecer as mudanças ou para nos fragilizar ainda mais como sujeitos. Somos seres da política, quem decide e pode decidir pelo mundo que queremos com toda multiplicidade, diversidade, complexidade, e quem vive da venda da força de trabalho para sobreviver.

    Para além de mostrar que o trabalho também pode ser ação criativa e coletiva, precisamos avançar para que a mercadoria “força de trabalho” seja garantida para todas as pessoas e sustente a vida com dignidade. São desafios de todos os tempos que no momento pesa ainda mais forte com a pandemia.

    É nesse sentido que cada artigo, cada contribuição e cada imagem, aqui apresentados, possui o grande desfecho de apontar e construir um outro mundo. Para nós, Socialismo e Liberdade traz a síntese de um mundo pleno, criativo, democratizante e que semeia a vida com dignidade. As variações e apresentações dos defensores da política de Estado contra os explorados, conhecida como necropolítica, em nosso tempo, assumem portes devastadores com esse (des)governo que nos oprime.

    As eleições mostram-se um desafio de debater e conscientizar as pessoas para a defesa da vida, analisando o sistema transversalizado no mundo, e o que nos espera e, assim, apostamos em subsídios que nos ampliem como sujeitos singulares e coletivos em nosso tempo.

    O importante da nossa revista do PSOL é sempre fazer dela um instrumento de aprendizagem, e para isso vamos conversar com cada companheira e companheiro e construir leituras coletivas e unidade que nos façam sempre mais que um indivíduo para que a vida seja mais que mercadoria. Na busca do conhecimento que defende a vida e a dignidade humana, é hora de divulgar, ler, estudar e compartilhar em debates e formação para nos deixar mais fortes e potentes na defesa da maioria das pessoas, além de fazer uma grande propaganda do nosso Partido.

    FAÇA O DOWNLOAD DA REVISTA AQUI

     

  • Nas eleições disputamos a política, o projeto e a vida . Por Francisvaldo Mendes

    Nas eleições disputamos a política, o projeto e a vida . Por Francisvaldo Mendes

    Nas eleições disputamos a política, o projeto e a vida

    O PSOL vai lutar, em cada local deste país, pelo direito de se viver plenamente nas cidades, com projetos, práticas e ações que ampliem espaços e serviços públicos e que redirecionem o papel do Estado em favor das maiorias

    Por Francisvaldo Mendes

    Francisvaldo Mendes

    A disputa nessas eleições, para nós do PSOL, é a disputa de um projeto político. Ou seja, ocupar espaço para criar as condições no Estado para favorecer e valorizar a vida. No capitalismo, esse sistema econômico que toma o mundo, o Estado vive disputas na política para ampliar o lucro e favorece somente os grandes empresários, os banqueiros, e alguns serviçais do sistema.

    Nós queremos e faremos diferente, a política que organizamos com as pessoas é para transformar o modo de vida, arquitetando um ambiente no qual o ódio, o preconceito e a ignorância sejam superados por meio do conhecimento, da solidariedade, com outra organização sociopolítica.

    A política que organizamos com as pessoas é para transformar o modo de vida, arquitetando um ambiente no qual o ódio, o preconceito e a ignorância sejam superados por meio do conhecimento, da solidariedade, com outra organização sociopolítica

    Queremos estar no parlamento ou no executivo para ampliar o fôlego de vida e ampliar as forças contrárias à política de extermínio imposta pelos governantes aos mendigos, aos LGBTQI e às mulheres. Violência imposta a todas as pessoas que foram empobrecidas pelo capitalismo, pessoas que vivem da venda da força de trabalho e só isso possuem viver. Atualmente, a necropolítica predomina nas variadas dimensões do Estado, seja pelo poder de polícia, seja pela elaboração de leis para retirar direitos de trabalhadoras e trabalhadores em favor do “mercado”, seja por meio da espada da justiça que só corta contra aqueles que já são massacrados na sociedade.

    Nos dias atuais, principalmente com a pandemia, as políticas impostas ampliam a devastação da vida de forma volumosa, haja vista a preocupação com a aglomeração nas praias. Porém, essa indignação não atinge quem é obrigado a se submeter a ônibus, trens ou metrôs lotados. Não é por menos que um país que tem 1/38 da população mundial possui 1/7 das mortes pelo vírus no planeta. Isso é a maior demonstração das desigualdades nos dias de hoje e comprova que as mortes são produtos de uma política aplicada e não de um “inimigo invisível” que circula nos corpos, nas coisas e no ar. O nosso desafio é enfrentar e superar essa ordem que predomina na vida contra a maioria das pessoas.

    Mudar o Estado

    O PSOL, portanto, não pode ocupar a administração do Estado para gerenciar os interesses de alguns como já foi feito em administrações passadas. O que disputamos é a mudança da forma de ação do Estado, outra organização nos aparelhos estatais, inclusive no judiciário que é uma aberração na democracia atual. Devemos nos amparar e nos combinar na auto-organização popular e criar espaços para fortalecer a ideia de público. Dessa forma, ampliar o controle da sociedade com a finalidade de acompanhar os investimentos dos recursos centralizados e controlados pelo Estado, para que todo o dinheiro seja destinado à coletividade e que possamos diminuir, ao máximo, os ladrões que se aproveitam do cargo e desviam dinheiro em benefício próprio.

    O PSOL não pode ocupar a administração do Estado para gerenciar os interesses de alguns como já foi feito em administrações passadas. O que disputamos é a mudança da forma de ação do Estado. Devemos nos amparar e nos combinar na auto-organização popular

    A vida das pessoas só melhorará se for fruto de um movimento político, coletivo, amplo e inspirado por um projeto de transformação social organizado e debatido por meio do conhecimento acumulado com a participação ativa com a sustentação das pessoas. Esse é um elemento fundamental para que o Estado seja um ambiente da esfera pública e não um ambiente da esfera privada, como ocorre nos governos atuais. Essa participação ativa e democrática empurrará a política para a transformação e permitirá que a maioria social se torne também a maioria política e cultural.

    Defesa dos serviços públicos

    Somos nós, a maioria que procura o acolhimento nas religiões, nos jogos, na família, no trabalho, na amizade e na sobrevivência. Vivemos a falta de recursos e as piores consequências dos desvios desses montantes. Esses recursos são criados por nós e precisam chegar à maioria da população e para as principais organizações que podem defender e ampliar a vida, como hospitais, postos de saúde, escolas, creches, e para as políticas afirmativas que garantam remédios, alimentações, água e saneamento básico. Não se pode seguir sofrendo com enchentes, com a poluição e com o descaso das autoridades. Posto isso, estamos desafiados a superar essa ordem e a organizar um sistema fundado na prática da democratização sem perder o objetivo estratégico de transformação social, afim de que as pessoas organizem a economia para se sustentar em todas as dimensões da vida.

    O nosso objetivo, que brilha forte no sol do socialismo e da liberdade, certamente traz um desafio de não apenas ganhar as eleições, mas nessas eleições termos uma capacidade de comunicação com as pessoas. Dessa forma, ser um processo de formação, criação de consciência crítica e capacitação política para podemos, por meio da participação política, não depender apenas das vitórias eleitorais, mas criar condições de direcionar as políticas do Estado ocupando cargos ou ampliando a organização popular para dar volume às contradições. Passo fundamental para alterarmos os desmandos que assolam a nossa vida.

    Sujeitos políticos

    No período eleitoral de brasileiras e brasileiros que votam a cada dois anos, infelizmente convivemos com uma política rasa, que cultua o lucro e amplia a morte, o que causa desgosto coletivo, e faz com que muitas pessoas não gostem de eleições, e não concebam o voto como uma conquista e, progressivamente, afastem-se da política. Isso é um processo que já começa a mudar, pois, faz-se necessário que a maioria das pessoas se aproxime da política e se reconheça como sujeito político, sujeito de sua vida e com condição de conquistar outra realidade. Essa é a grande tarefa de todas as candidatas e de todos os candidatos do PSOL – que se apresentam em todo o Brasil – de aproximar as pessoas da política e unificar forças para coletivamente mudar o país. E é na cidade que esse processo de mudança ganha vulto imediato na vida das pessoas, onde podemos alterar as condições objetivas de morar, ter saúde, estudar, vender a força de trabalho e aglutinar mobilidade plena, tanto no corpo quanto simbólica, para crescer como sujeitos múltiplos de uma mudança coletiva e solidária.

    PSOL nas cidades

    Em São Paulo a capacidade de aglutinação e o desprendimento com que Guilherme Boulos construiu sua história, lutando ao lado daqueles despossuídos que alimentam a perspectiva de realizar o sonho da casa própria, o capacita para a empreitada na prefeitura de São Paulo ao lado de Luiza Erundina, que contrariou interesses de muitos poderosos quando esteve na prefeitura.

    A capacidade de aglutinação e o desprendimento com que Guilherme Boulos construiu sua história o capacita para a empreitada em São Paulo ao lado de Luiza Erundina, que contrariou interesses de poderosos quando esteve na prefeitura

    No Rio de Janeiro, Renata Souza joga sua dedicação na luta contra a discriminação racial, e contra o machismo e acumulou experiência na luta em defesa dos direitos humanos ao lado de Marielle Franco, no gabinete do então deputado estadual Marcelo Freixo, que se destacou na luta contra as milícias no Rio de Janeiro.

    Áurea Carolina, com o sorriso espontâneo, garra voraz na luta contra a desigualdade social e uma ativista cultural em defesa do povo pobre de Minas Gerais atua para colocar a experiência que tem em defesa da maioria do povo pobre e desfavorecido de Belo Horizonte.

    Em Belém, o sempre lutador Edmilson Rodrigues, já administrou a cidade e fez a diferença atendendo aos interesses daqueles que mais precisam, enfrentando as oligarquias locais. Acumulou a posição de extremo conhecedor da cultura e do sofrimento de seu povo. Dispor-se a retornar a prefeitura significa apostar na ampliação da organização popular na defesa dos direitos do povo belenense.

    Fernanda Melchiona simboliza a jovem que quer fazer a transformação social em defesa do fim da acomodação do status quo para que Porto Alegre irradie sua particularidade de povo lutador e aguerrido nas reivindicações em defesa da maioria contra os interesses privados.

    Em São Luís, no Maranhão, o representante das ideias de transformação é Franklin Douglas, professor e advogado que atua na defesa dos direitos humanos.

    Em Campo Grande, onde uma dupla de mulheres disputa a vaga da prefeitura da cidade, Cris Duarte e Val Ely lutam contra uma sociedade local machista e lgbtfóbica. A dupla é o espelho de garra e alegria para tornar uma sociedade mais justa e humana e, principalmente, na defesa dos povos indígenas. Val Eloy é uma indígena terena, com garra de defesa dos interesses da maioria do povo de Campo Grande.

    Em Belém, o sempre lutador Edmilson Rodrigues já administrou a cidade e fez a diferença atendendo aos interesses daqueles que mais precisam, enfrentando as oligarquias locais. Acumulou a posição de extremo conhecedor da cultura e do sofrimento de seu povo

    Em Fortaleza, o nosso representante é Renato Roseno, formado em Direito e funcionário público federal. Há muito atua nos movimentos sociais contra as desigualdades de classe, gênero, etnia, e orientação sexual e na luta por moradia e melhores condições de vida para população Fortalezense.

    Hilton Coelho é historiador e defende a cultura baiana e soteropolitana e luta contra a discriminação de maneira geral, mas tem enfrentado a discriminação que se agudizou com o governo federal, contra o preconceito com as religiões de matriz afrodescendente.

    Valéria Correia, professora universitária e funcionária pública federal, foi exemplo de reitora na Universidade Federal de Alagoas, investindo na melhoria do campus e dando ênfase na aproximação da universidade com a comunidade maceioense, além de lutar na defesa do SUS, sendo uma das coordenadoras dessa frente nacional.

    Em Cuiabá, Gilberto Lopes é funcionário da saúde e defende o Sistema Único de Saúde (SUS). Ele terá o desafio de enfrentar os barões do agronegócio da soja e do gado que se encastelaram no Estado para defender os interesses privados.

    Em Florianópolis, o professor Elson Pereira é o candidato do PSOL, ao qual conseguiu aglutinar o maior número de partidos e de esquerda para a prefeitura em defesa de uma cidade mais humana e acolhedora para a própria população. Ele luta contra o racismo e o preconceito que predominam de forma geral na sociedade e, também, quer colocar a prefeitura para amparar os mais humildes.

    Vamos disputar em cada local deste país o direito de viver plenamente nas cidades, com projetos, práticas e ações que fazem valer a pena fazer política neste imenso e múltiplo país que é o Brasil.

    Reconhecemos e apostamos na sabedoria e na potência criativa do nosso povo, que é explorado todos os dias e em todas as dimensões, que possui, na maioria, mulheres, pessoas negras e indígenas, para construirmos um projeto de país que respeite a vida em todas as dimensões.

    *Francisvaldo Mendes é advogado e diretor-presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.

  • Curso On-line . Sementes de Marielle

    Curso On-line . Sementes de Marielle

    Curso On-line . Sementes de Marielle

    Mulheres na política: nada sobre nós sem nós

    Com muita energia das nossas lutas, construímos este manual com o objetivo de fortalecer política e organizativamente as candidaturas das mulheres do PSOL de Norte a Sul do Brasil, como parte do projeto da Escola de Formação Política Sementes de Marielle, desenvolvido pela Setorial Nacional de Mulheres do PSOL com apoio da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.

    Sob o governo Bolsonaro, as eleições municipais de 2020 já seriam um grande desafio. Com a pandemia, agravou-se ainda mais a retirada de direitos e a precarização da vida. A profunda crise sanitária, política, econômica, ambiental e social que atinge sobretudo os setores mais vulneráveis e, especialmente, as mulheres, exige ainda mais consistência e consequência em nossas formulações políticas e práticas.
    O (des)governo Bolsonaro tem como foco a retirada de nossos direitos, como foi na Reforma da Previdência e na Reforma Trabalhista. E faz isso apoiado em ideais autoritários, fascistas, misóginos, racistas e LGBTfóbicos. O projeto de Bolsonaro que também se traduz em diversos governos estaduais e municipais, e que terá seus representantes nessas eleições, escancara a face mais cruel de um sistema pautado apenas pelo lucro em detrimento da vida. As muitas milhares de vidas interrompidas pelo descaso frente a Covid-19, o assassinato do menino João Pedro e a morte do menino Miguel são expressões dessa necropolítica.
    Diante desse cenário em que somos submetidas à violência, privadas do nosso direito aos serviços públicos, em que o mercado de trabalho nos destina as vagas mais precarizadas, e em que tentam calar nossa voz, as mulheres têm respondido com luta e resistência. Mas embora nossa luta ganhe cada vez mais visibilidade e sejamos mais da metade da população, ainda somos muito minoritárias nos espaços de representação política institucional. Das 5.570 prefeituras no país, apenas 11,9% são governadas por mulheres, e das 57.814 vagas espalhadas nas Câmaras Municipais, menos de oito mil são ocupadas por vereadoras.
    Temos como tarefa sermos candidatas a prefeita, vice prefeita e vereadora, ocuparmos a política também nesses espaços e de forma coletiva, apoiarmos essas candidaturas e construirmos a disputa eleitoral com um programa feminista, socialista, antirracista e transinclusivo, que coloque a vida acima do lucro, em defesa da vida das mulheres!
    O fortalecimento da candidatura de cada companheira do PSOL representa o fortalecimento de todas nós.

    Aulas do curso

    – A luta feminista antirracista e transinclusiva no mundo e a construção de um novo futuro com Luciene Lacerda, feminista negra, psicóloga da UFRJ e Lana Holanda, mulher trans/travesti e defensora dos Direitos Humanos

    – Uma agenda feminista para a crise com Débora Diniz, antropóloga feminista e professora licenciada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) e Juma Xipaia, indígena do Povo Xipaya e representante da APIB

    – Qual é a função de uma campanha feminista? Mandatos feministas e o Papel da eleição em tempos de crise com Luciana Genro, Deputada Estadual do Rio Grande do Sul, Marinor Brito, Deputada Estadual do Pará, e as Juntas Codeputadas, da Mandata Coletiva de Pernambuco

  • LOUVADAS SEJAM TODAS AS CRIATURAS!

    LOUVADAS SEJAM TODAS AS CRIATURAS!

    LOUVADAS SEJAM TODAS AS CRIATURAS!

    Por Chico Alencar

    No dia de São Francisco de Assis, que transvivenciou em 4 de outubro de 1226, o papa Francisco lançou nova encíclica, a “Fratelli tutti” – sobre a fraternidade universal e a amizade social. Na linha da “Laudato Sì”, sobre o cuidado da Casa Comum, Francisco de Roma inspira-se no de Assis. Despojado, condena a ganância de lucro do sistema capitalista e propõe uma outra sociedade, fundada na cooperação e na solidariedade. Onde ninguém seja descartado, invisibilizado, destituído de dignidade e direitos.

    São Francisco viveu seus 43 anos em comunhão com a natureza, sabendo-se irmão de todas as coisas criadas. Seu Cântico das Criaturas (Canticum Solis, título do manuscrito mais antigo, considerado o fundador da literatura italiana) é um jubiloso reconhecimento da beleza da vida – da formiguinha do caminho às estrelas mais distantes. Somos parte desse pluriverso, não seus donos! Somos todos chamados a participar da “divina alegria da Criação” (escrevi um livro sobre isso: ‘Cântico das Criaturas, ecologia e juventude do mundo’ – Editora Vozes, 2000)

    Francisco – inventor da recriação da cena do presépio, para celebrar o Natal – deixou esse mundo há 794 anos mas continua atualíssimo. E nos interpela, junto com sua amada Clara, sobre nosso modo de produzir, distribuir e consumir, injusto e tóxico, que devasta o planeta!

    Dele disse Alceu de Amoroso Lima (1893-1983): “No meio de uma vida em que se perdera a memória das coisas simples, veio mostrar o sabor da luz do fogo, da água, do ar, do som, da palavra. No meio de uma sociedade áspera no ganho, veio mostrar a delícia de não possuir. No meio do furor de todas as violências, veio mostrar o milagre da paz e da fraternidade. No meio de uma era complicada, raciocinadora, cheia de hierarquias e preconceitos, veio mostrar a originalidade da natureza, a eloquência das resoluções intuitivas, a coragem de agir sem medo por uma causa mais alta que os mesquinhos interesses da terra. São Francisco de Assis revolucionou a história. Com a fé de uma criança, renovou a alma do mundo”.

    “A melhor maneira de homenagear as pessoas a quem admiramos, e que partiram, é fazer o que elas fizeram”, recomendou o ‘Poverello’ de Assis.

    Façamos assim, sejamos diligentes cuidadores da ameaçada Casa Comum, a Terra. E praticantes, desde já, de gestos que prenunciam uma nova sociedade, fraterna, justa, solidária. Além de defensores de políticas públicas que coloquem o cuidado da natureza e respeito às pessoas e ao trabalho em primeiro lugar. Na “Fratelli tutti”, o papa Francisco nos convoca: “sonhemos com uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos acolhe a todos, cada um com a riqueza de sua fé ou de suas convicções, cada um com sua própria voz, todos irmãos!”.

  • Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    O golpe de 2019 tem uma chance efetiva de ser revertido – ou, ao contrário, o risco de ser confirmado pela via das urnas. É uma eleição com impacto muito além das fronteiras da Bolívia. O resultado poderá reforçar o giro direitista na América do Sul ou sinalizar, na esteira da eleição da dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, para uma retomada do protagonismo da esquerda na região

    Por Igor Fuser e Fábio Castro

    Na lista recente das reviravoltas políticas em países latino-americanos, com a substituição de governantes de esquerda ou “progressistas” por políticos a serviço das oligarquias locais e dos interesses dos EUA, a mudança de rumo que ocorreu na Bolívia em 10 de novembro de 2019 foi, entre todas, a mais claramente golpista – e também a mais violenta, acompanhada pelas tenebrosas sombras do fascismo e do racismo.

    Morales, sob o risco real de ser assassinado, renunciou e partiu para o exílio. Também renunciaram, igualmente debaixo de ameaças, o vice-presidente Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra – os próximos na linha sucessória. Consumava-se o golpe

    Em contraste com a discreta conduta dos militares nos golpes em países vizinhos (Paraguai, Brasil), na Bolívia quem deu a cartada decisiva para a derrubada do presidente Evo Morales foi um general, Williams Kaliman, a principal autoridade militar do país.

    Em meio a um cenário de caos em La Paz e outras cidades importantes, com as forças policiais amotinadas contra o governo e milícias de extrema direita tocando o terror, espancando integrantes da esquerda e incendiando casas, caberia a Kaliman, como chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, pôr as tropas na rua, em cumprimento ao dispositivo constitucional que atribui aos militares a missão de garantir a ordem em situações extremas, como aquela. Mas não. Em vez disso, o general apareceu diante dos principais meios de comunicação rodeado por um grupo de outros altos oficiais para “sugerir” ao presidente que apresentasse a renúncia.

    Risco de assassinato

    Um conselho difícil de recusar. Morales, sob o risco real de ser assassinado, renunciou e partiu para o exílio. Também renunciaram, igualmente debaixo de ameaças, o vice-presidente Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra – os próximos na linha sucessória, todos eles integrantes do partido governista, o Movimento ao Socialismo (MAS). Enquanto isso, os policiais disparavam balas de verdade contra manifestantes pró-governo em diversos pontos do país (no total, cerca de 60 bolivianos morreram enfrentando os golpistas).

    O Palácio Quemado foi invadido pelo líder da extrema direita racista de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, que ingressou no gabinete presidencial com uma bíblia na mão, enquanto, nas ruas, os partidários queimavam a Whipala – bandeira indígena multicolor adotada na Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia como um símbolo tão importante quanto a bandeira nacional.

    Com os sucessores legítimos de Evo Morales fora do caminho, a senadora Jeanine Áñez, até então conhecida apenas pelas posições fundamentalistas cristãs, autoproclamou-se presidenta, com apoio das Forças Armadas. Ela assumiu o poder de forma interina, com o pretexto de que sua função seria apenas a de convocar novas eleições. Tornou-se “a primeira ditadora da história do continente”, conforme escreveu Renaud Lambert no Le Monde Diplomatique.

    Em dez meses de existência, o governo Áñez se revelou um completo desastre. A incapacidade de organizar um Estado em desmanche, somado aos efeitos econômicos devastadores da pandemia de coronavírus, expuseram o caráter do golpe de Estado

    Em dez meses de existência, o governo Áñez se revelou um completo desastre. A incapacidade de organizar um Estado em desmanche, somado aos efeitos econômicos devastadores da pandemia de coronavírus, expuseram o caráter do golpe de Estado. O que mais se discutiu no país foram os perversos processos de corrupção institucional que se estabeleceram, entre os quais o escândalo da compra, pelo ministro da Saúde, Marcelo Navajas, de 170 respiradores espanhóis superfaturados que jamais chegaram aos pacientes da Covid-19 aos quais se destinavam. Mesmo assim, Áñez entrou na disputa eleitoral, com a clara estratégia de ganhar tempo para inviabilizar a candidatura do MAS por meio de lawfare. Foram três prorrogações da data do pleito. A última delas provocou uma gigantesca mobilização de camponeses favoráveis ao MAS, que bloquearam as estradas bolivianas em centenas de pontos ao mesmo tempo, exigindo a imediata realização das eleições, marcadas finalmente para 18 de outubro.

    Candidato amplo

    Nesse cenário, a estratégia do MAS foi fortalecer a candidatura de Luis Arce, que em quase todo o período Morales foi o ministro da Economia. A percepção de que Arce é um excelente administrador sinaliza a aposta em um nome que, além de agradar aos militantes do MAS, tem o potencial de disputar o voto de eleitores centristas, atraídos a votar no principal candidato opositor, Carlos Mesa, um neoliberal que impulsionou a escalada golpista de 2019 sem se comprometer com o extremismo de Áñez e de Camacho. Dono de uma empresa de comunicação de massa, Mesa era o vice em outubro de 2003 quando o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada fugiu para os Estados Unidos após massacrar manifestantes que reivindicavam a nacionalização das jazidas de gás natural. Assumiu o governo, mas renunciou dois anos depois, em meio a uma crise provocada pela recusa em assinar uma lei, votada em plebiscito e aprovada pelo Congresso, com essa mesma medida.

    Abriu-se, à época, uma crise institucional que culminou com a realização das eleições antecipadas em que se saiu vitorioso o principal líder dos movimentos sociais, Evo Morales, com 53% dos votos. Atualmente, Morales comanda a campanha masista a partir do seu exílio na Argentina. Tentou disputar uma vaga de senador pelo departamento (província) de Cochabamba, mas teve sua candidatura bloqueada pela justiça eleitoral, por pressão do governo golpista.

    Contra e a favor

    As eleições estarão marcadas mais uma vez pela polarização entre os que estão a favor e contra o MAS. As pesquisas mais confiáveis apontavam, na segunda metade de setembro, que Arce tinha apoio para alcançar os 40% de votos suficientes para ganhar a eleição no primeiro turno, uma vez que o oponente mais próximo, Mesa, contava com apenas 26%. Pela lei boliviana, um candidato que obtenha 40% dos votos válidos é declarado vencedor, sem a realização de um segundo turno, caso alcance uma diferença de, no mínimo, 10% em relação ao segundo colocado.

    A divulgação dessa pesquisa levou Áñez a se retirar da disputa, em 17 de setembro, quando estava em quarto lugar nas intenções de votos, com cerca de 10%, e em queda. Em discurso pelas redes sociais, conclamou os bolivianos a se unirem ao redor do candidato que tiver mais chances de derrotar o MAS. “Se não nos unirmos, Morales volta”, alertou. Nesse momento, Camacho já se posicionava em terceiro lugar, com 14%, e não demonstrava a mínima vontade de desistir em favor de Mesa.

    Outras figuras da direita boliviana também estão (ou ainda estavam) na disputa, entre as quais o ex-presidente Jorge Tuto Quiroga e o pastor evangélico Chi Hyung Chung (de origem sul-coreana), ambos com índices magros de intenções de voto, em torno dos 3% a 4%, mas não totalmente desprezíveis. Nas eleições do ano passado, Chi obteve o terceiro lugar, com 9% dos votos.
    A unificação eleitoral das forças políticas conservadoras que se aliaram no golpe de 2019 é, de fato, indispensável para impedir que a esquerda reconquiste nas urnas o poder que lhe foi tirado pelo golpe. Na prática, essa é uma tarefa complicada, seja pelas ambições políticas envolvidas, seja pela rivalidade regional que divide a Bolívia entre a região andina marcada pela forte presença indígena, no oeste, onde se situa La Paz, e as planícies do leste, a região da Meia Lua, onde se destaca a cidade de Santa Cruz, reduto da elite branca do agronegócio e da direita mais agressiva.

    Mesa, com sua força concentrada no oeste, principalmente entre a classe média urbana, desponta como o herdeiro potencial dos votos de Áñez, o que o habilitaria a chegar em segundo lugar com uma diferença inferior a 10%, levando a eleição a um segundo turno em que a aliança da direita lhe daria grandes chances de derrotar o candidato do MAS. Para isso, no entanto, será necessário um acordo com Camacho, que lidera as pesquisas em Santa Cruz e está utilizando as eleições para fortalecer sua posição como líder regional e para ampliar o número de parlamentares sob seu comando.

    Nova liderança

    Seja qual for o resultado das eleições, uma provável consequência é o deslocamento de Morales da posição que vinha exercendo desde a primeira eleição presidencial, em 2005, como o líder incontrastável e absoluto de um amplo leque de atores da esquerda boliviana que se agregou politicamente com a criação do MAS, no final da década de 1990. Uma vitória de Arce consagrará uma nova liderança no país e no partido e, certamente, um novo estilo de ação política.

    A Bolívia de 2019 apresentava um desempenho econômico invejável, no contexto sul-americano, com taxas de crescimento superiores a 4% nos três anos anteriores, e seguia o itinerário da melhoria constante nos indicadores sociais que permitiu ao país reduzir a pobreza de 59,6% em 2005 para 34,6% em 2018

    A conduta de Evo (como é chamado pelos simpatizantes), tanto no período anterior ao da crise em que foi derrubado quanto nos meses transcorridos desde então, é fator de discórdia no interior do MAS, conforme aponta Katu Arkonada, um militante de esquerda que emigrou do País Basco para se engajar nas fileiras masistas, onde se tornou uma referência no debate político. “É grande o descontentamento das bases”, escreveu recentemente. “Aconteça o que aconteça, mas sobretudo se ocorrer uma derrota, o MAS de Evo Morales deverá enfrentar um processo de reflexão e de autocrítica para não repetir os erros cometidos nos últimos tempos, tanto no governo como no exílio, um processo de renovação de dirigentes que vá bem mais além das burocracias”.

    Morales é o único, entre os integrantes do grupo de presidentes sul-americanos que simbolizavam o chamado “progressismo” – figuras como Chávez, Lula, Correa e o casal Kirchner, além dele próprio –, a ter a liderança questionada pelas próprias bases após o início da maré direitista na região. A relativa fragilidade política no pós-golpe tem a ver com um traço peculiar da inversão política ocorrida na Bolívia em 2019.

    Lá, a derrubada do governo progressista não foi antecedida por uma crise econômica nem por denúncias devastadoras de corrupção, como ocorreu no Brasil. A Bolívia de 2019 apresentava um desempenho econômico invejável, no contexto sul-americano, com taxas de crescimento superiores a 4% nos três anos anteriores, e seguia o itinerário da melhoria constante nos indicadores sociais que permitiu ao país reduzir a pobreza de 59,6% em 2005 para 34,6% em 2018. Os casos de corrupção apresentados na mídia empresarial – alguns verdadeiros; outros, inventados – estiveram longe de causar o impacto verificado em outros países. Morales escorregou foi na política.

    Mobilização em queda

    Uma sublevação contra Evo Morales não estava no horizonte de ninguém. Mas, nas três semanas decisivas entre outubro e novembro de 2019, a oposição mobilizou-se com mais firmeza que as bases “evistas” que, depois de quase 14 anos no poder, foram perdendo capacidade de mobilização enquanto o Estado ia substituindo as organizações sociais como fonte de poder e burocratizando o apoio ao “processo de mudança”. Em poucas horas, aquele que foi o governo mais forte da Bolívia nos últimos 100 anos desmoronou por completo.

    Cinco anos antes, em 2014, Evo foi reeleito para um terceiro mandato com mais de 60% dos votos. Esse era um indicador de que, apesar das contradições e das dificuldades em avançar o “processo de mudança”, o líder indígena e camponês ainda possuía muita legitimidade entre a população. A direita não conseguiu propor um nome que pudesse vencer as eleições ou ao menos polarizar radicalmente o cenário político nacional, como aconteceu, respectivamente, na Argentina (com Mauricio Macri, eleito em 2015) e no Brasil, com a Operação Lava-Jato e a campanha do impeachment.

    Foi uma avaliação otimista do prestígio de Evo Morales, juntamente com a preocupação diante do cenário de avanço das forças de direita nos países vizinhos e de uma contraofensiva dos EUA em escala continental, o que levou o MAS, em 2016, a submeter a uma consulta popular a possibilidade de reeleição indefinida, o que viabilizaria a candidatura de Morales para um quarto mandato.

    O Caso Zapata eclodiu quando um jornalista apresentou uma suposta certidão de nascimento atestando que Morales seria o pai de um menino de nome Ernesto Fidel Morales Zapata, nascido em 2007 de um relacionamento entre o presidente e uma moça chamada Gabriela Zapata. A 18 dias do referendo, provou-se que era tudo mentira. Era tarde

    Pela Constituição boliviana, é permitida apenas uma reeleição para cargos executivos – e a primeira eleição de Morales foi excluída da contagem porque ocorreu nos marcos de uma legislação anterior. A cientista política Soledad Valdivia Rivera relembra que o presidente fechou o ano de 2014 com 75% de aprovação e o de 2015 com 65%, o que pavimentaria a chance de concorrer às eleições de 2019.

    Derrota no referendo

    Ao contrário do que esperava o governo, o referendo em 2016 foi a pedra de toque para a radical polarização do país. No dia 21 de fevereiro, o famoso 21F, a população decidiu pelo “Não”, ou seja, Evo Morales não poderia concorrer às eleições de 2019. Um resultado estreito, por uma diferença de 2,6%, pouco mais de 130 mil votos. Foi a primeira derrota de Morales. A interpretação de Rivera é bastante elucidativa sobre o que estava em jogo no referendo e quais as armas foram usadas. A autora indica que, entre outras coisas, ocorreu a participação ativa da mídia nas redes políticas que influenciaram os resultados do pleito, com a manipulação da opinião pública no chamado Caso Zapata.

    Tal episódio colocou em xeque a integridade da liderança política de Evo Morales por meio da montagem de um cenário novelístico moralista que envolvia sexo, abandono de filho e corrupção internacional, entre outras coisas. O Caso Zapata eclodiu quando um jornalista da TV comercial apresentou uma suposta certidão de nascimento atestando que Morales seria o pai de um menino chamado Ernesto Fidel Morales Zapata, nascido em 2007 de um relacionamento entre o presidente e uma moça chamada Gabriela Zapata. A essa notícia, agregou-se em seguida uma outra de que Zapata teria utilizado sua ligação com o presidente para reivindicar vantagens em contratos do governo com uma empresa chinesa, para a qual (segundo dizia) teria trabalhado como lobista.

    Era tudo mentira. A criança jamais existiu, conforme a própria Zapata confirmou mais tarde, e a denúncia de corrupção não tinha pé nem cabeça.

    O fato é que o presidente e sua equipe não foram capazes de montar uma defesa adequada perante as acusações. Em suas declarações Morales (que é solteiro) se atrapalhou, não foi capaz de negar a existência de um filho abandonado e chegou a afirmar que recebeu a notícia de que o menino tinha morrido pouco depois do nascimento. A suposta mãe se recusou a apresentar a criança, alegando que fazia isso para proteger sua privacidade. Enfim, uma confusão dos demônios, que só se esclareceu quando, meses mais tarde, o próprio jornalista que fez a denúncia confessou que a certidão de nascimento era falsa.

    Em vez de aceitar a derrota no referendo, Morales cometeu o que talvez tenha sido o maior erro de sua carreira. Insistiu na luta por uma nova postulação presidencial. A direita montou uma estratégia eleitoral com base numa frase, “Bolívia disse não”, ao mesmo tempo em que acusava Morales de “ditador”

    Aí, o estrago já estava feito. O timing da acusação, a apenas 18 dias do referendo, foi determinante para que a oposição fortalecesse a campanha e manipulasse a opinião pública a favor do Não.
    Não havia tempo para uma investigação adequada checar a veracidade das acusações. O papel da mídia no Caso Zapata foi decisivo para a vitória do Não. Antes da explosão do escândalo, as pesquisas ainda indicavam vitória do Sim, mesmo com toda a oposição articulada ao redor de um projeto comum: derrotar Morales.

    Interferência da mídia

    Soledad Valdivia Rivera, em livro sobre a política boliviana naquele período, conclui que o Caso Zapata demonstra como a mídia atua politicamente em favor da direita e, por outro lado, refuta as acusações frequentes de que Morales era um ditador e que impunha restrições à liberdade de expressão. Em seguida ao resultado positivo para a oposição, o Caso Zapata foi quase esquecido pelos meios de comunicação. Já tinha cumprido seu papel na cena política.

    Em vez de aceitar o resultado do referendo de 21F, Morales cometeu o que talvez tenha sido o maior erro de sua carreira política. Insistiu na luta por uma nova postulação presidencial, recorrendo ao Judiciário com o argumento de que o bloqueio a uma nova candidatura era uma violação aos direitos humanos, já que todos os cidadãos devem ter iguais possibilidades de concorrer aos cargos públicos. No final de 2017 o Tribunal Constitucional aprovou o recurso do presidente, numa decisão cujo efeito prático foi invalidar o resultado do 21F.

    Desde o ano anterior, um único tema já dominava completamente a agenda política do país: uma discussão interminável em torno da alternância ou da perpetuação no poder. A direita montou uma estratégia eleitoral com base numa frase, “Bolívia disse não”, ao mesmo tempo em que acusava Morales de “ditador”.

    No campo da esquerda, hegemonizada pelo MAS, não houve espaço para discutir a possibilidade da indicação de um candidato alternativo para a sucessão. Sendo o partido um instrumento político dos movimentos sociais, a pressão das organizações camponesas e a força política de Morales, amparado em dois mandatos de forte crescimento econômico e distribuição de renda, além de uma política anticíclica que manteve a estabilidade, ofuscaram qualquer discussão sobre uma possível renovação no poder. O presidente negava a intenção de se perpetuar no palácio, indicando que esse seria o último mandato do binômio Morales-Linera e que despontavam nomes de jovens possíveis candidatos à sucessão em 2025: a já mencionada senadora Adriana Salvatierra e o líder cocalero Andrónico Rodríguez.

    Milícias violentas

    Entretanto, a insistência na candidatura de Morales promoveu uma mudança qualitativa na polarização política do país. Há indícios da formação de milícias violentas em todo período entre o 21F e as eleições de 2019, fenômeno explícito em algumas demonstrações antidemocráticas, de ódio, contra Morales e o MAS. O foco dessa oposição se situou na região de Santa Cruz, mais exatamente no Comitê Cívico, que se aglutinava sob a liderança de Camacho.

    Há ainda outro fator importante nessa história. A Bolívia apostou suas fichas do futuro na estratégia de industrialização do lítio no país, tendo como fundamento a vantagem comparativa de possuir as maiores reservas dessa matéria-prima no mundo. Apesar de o projeto avançar lentamente e ainda constar da esfera das perspectivas, o lítio entrou de vez no contexto da polarização política, quando outro comitê cívico, o de Potosí (ComciPo), imprimiu um tom de desafio às reivindicações ao redor do tema dos royalties da exploração de lítio para a região, acusando o governo de entreguista pela associação da estatal boliviana YLB com a empresa alemã ACISA. Marco Pumari, o líder do Comcipo, iniciou uma greve de fome justamente 20 dias antes das eleições do ano passado (mais uma vez, o timing perfeito).

    Em meio a um cenário de tensão política crescente, as eleições ocorreram em 21 de outubro de 2019, tendo como resultado a vitória de Morales em primeiro turno, com 47% dos votos e uma pequena vantagem acima dos 10% de diferença sobre o segundo colocado, Carlos Mesa. Mas a forma de contagem dos votos e a decisiva participação da Organização dos Estados Americanos (OEA) foram as faíscas para explodir o caldeirão boliviano. Os movimentos de classe média ocuparam as ruas e começaram a organizar paralisações ao redor dos comitês cívicos, sob a liderança de Camacho. Agitou-se a denúncia de fraude nas eleições.

    Em meio a um cenário de tensão política crescente, as eleições ocorreram em 21 de outubro de 2019, tendo como resultado a vitória de Morales em primeiro turno, com 47% dos votos. Mas a forma de contagem dos votos e a decisiva participação da OEA foram as faíscas para explodir o caldeirão boliviano

    Morales se viu pressionado, pois, além da capilaridade, os protestos foram marcados por uma escalada de violência. Quando, acuado, o presidente se dispôs a aceitar a anulação do resultado e a concorrer em novas eleições, já era tarde. A oposição, sentindo a fraqueza do presidente e a ausência de mobilizações significativas em seu apoio, partiu para o golpe, com uma brutalidade e audácia que deixaram o campo masista em estado de choque.

    Encruzilhada eleitoral

    Agora o golpe boliviano tem uma chance efetiva de ser revertido – ou, ao contrário, o risco de ser confirmado pela via das urnas. É uma eleição que terá um impacto muito além das fronteiras da Bolívia. O resultado poderá reforçar o giro direitista na América do Sul ou sinalizar, na esteira da eleição da dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, para uma retomada do protagonismo da esquerda na região. Aliás, a presença da liderança “progressista” no país vizinho é uma mudança qualitativa no cenário que rodeia a eleição boliviana e pode ser um elemento determinante para a afirmação dos resultados do pleito em caso de vitória do MAS, muito diferente do que aconteceu em 2019, quando o país estava cercado pelo véu Bolso-Macri. Isso, se os chefes políticos da oligarquia, assessorados de perto por operadores estadunidenses ligados à gestão de Donald Trump, não deflagrarem um “golpe dentro do golpe” (desconfia-se que o governo de Áñez esteja conspirando para declarar a ilegalidade do MAS), o que transformaria a Bolívia na primeira ditadura sul-americana ostensiva e escancarada no século 21.

    *Igor Fuser é professor no Bacharelado em Relações Internacionais e nos programas de pós-graduação em Energia e em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC).
    *Fábio Castro é economista, doutorando em Economia Política Mundial na Universidade Federal do ABC (UFABC) e professor no ensino superior.

  • ENTRISMO DOS BANQUEIROS

    ENTRISMO DOS BANQUEIROS

    ENTRISMO DOS BANQUEIROS

    Por Everton Vieira

    É de uma ingenuidade, de uma imaturidade, de uma falta de compreensão abissal do que é e como funciona a luta de classes, acreditar que um banqueiro faz doações eleitorais “sem querer nada em troca”.

    Camaradas, vamos ao ponto, sem rodeios: eles já estão conseguindo o que queriam. Primeiro, tentar quebrar a nossa narrativa histórica de independência política e de classe. Nossa denúncia firme, contundente da farra dos bancos de como esses canalhas colocam nossa classe de joelhos para sofrer a miséria e a fome.

    Já estão nos dividindo mais uma vez, cooptando setores que estão protagonizando as lutas de massa de nossos tempos, setores que embora não sejam majoritariamente marxistas, estão influenciados por direções socialistas.

    Esse debate não é sobre Wesley ser ou não um traíra, não se trata de uma discussão de moralismos vazios. Trata-se de um debate profundo sobre a política, sobre o potencial político de uma narrativa firme contra banqueiros, sobre a disputa de influência de setores fragilizados da nossa classe que podem ser cooptados para uma prática política conciliadora.

    Não é uma política simples de compra de votos e eleição de parlamentares, é mais complexa, a “contra proposta” não é aceitar essa ou aquela votação, é desarmar militantes abnegados para enfrentar o capital. É esvaziar nossos discurso e desmoralizar nossas denúncias. Infelizmente, estão conseguindo.

    O estatuto do PSOL proíbe financiamento de banqueiros, quem acha que isso é esquerdismo, há muitos partidos no campo da esquerda que não acham que essas práticas são um problema. O PSOL sabe que é um problema, e até que uma disputa interna mude essa concepção histórica do partido – e espero que isso não aconteça, ela precisa ser respeitada.

    Banqueiro não dá ponto sem nó. Entrismo para enfraquecer nossa narrativa, cooptar setores fragilizados e com potencial explosivo, esvaziar nosso conteúdo político, desmoralizar nossas denúncias e domesticar a ação política através de aparelhos muito bem planejados de disputa de hegemonia.

    É uma boa oportunidade para fazer política grande: ir na imprensa e dizer que a luta contra o racismo passa também por recusar dinheiro arrancado do nosso povo com reformas que trouxeram mais miséria, fome e desespero. É possível construir uma narrativa política contundente, firme e que dialogue com amplos setores. Isso ajuda mais do que alguns trocados de banqueiro para fazer anúncios no facebook.

    Para mim, importante não são os que vão, são os que ficam e os que virão.

  • Naturalizamos o horror? Por Maria Rita Kehl

    Naturalizamos o horror? Por Maria Rita Kehl

    Naturalizamos o horror?

    Sim, naturalizamos o horror. Com o lockdown é mais fácil ficar em casa. Não olhar para o que se passa além da porta é um dever cívico. A não ser… a não ser quando a moçada se cansa e resolve lotar as praias. Ou apostar tudo numa balada animadíssima, cheia de gente num lugar fechado – dançando, compartilhando copos de cerveja, gritando, soltando e aspirando perdigotos

    Por Maria Rita Kehl

    É noite. Sinto que é noite/
    não porque a treva descesse/
    (bem me importa a face negra)/ mas porque dentro de mim/
    no fundo de mim, o grito/
    se calou, fez-se desânimo//

    Sinto que nós somos noite/
    que palpitamos no escuro/
    e em noite nos dissolvemos/ Sinto que é noite no vento/ noite nas águas, na pedra/
    E de que adianta uma lâmpada?/
    E de que adianta uma voz?…

    Carlos Drummond de Andrade, “Passagem da Noite”, em A rosa do Povo (1943-45)

    Nós, humanos, nos acostumamos com tudo. Melhor: com quase tudo. Há vida humana adaptada ao frio do Ártico e ao sol do Saara, à mata Amazônica ou o que resta dela assim como às estepes russas. Há vida humana em palacetes e palafitas, em academias de ginástica e UTIS de hospital. E o pulso ainda pulsa. Há pessoas sequestradas por psicopatas durante décadas, há meninas e meninos estuprados pelo tio ou pelo patrão da mãe. Sem coragem de contar, porque podem levar a culpa pelo crime do adulto. E o pulso ainda pulsa.

    Mas o Brasil – tenham dó! – tem caprichado no quesito do horror já faz tempo. Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante mais de trezentos anos! E depois da abolição naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados: jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer. Pensem bem: o fazendeiro que explorava a mão de obra de, digamos, dois mil escravizados, ao se ver obrigado a pagar um salário de fome (até hoje?) aos que se tornaram trabalhadores livres, iria fazer o quê? Ficar no prejuízo? Claro que não.

    O Brasil tem caprichado no quesito do horror já faz tempo. Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante mais de trezentos anos! E, depois da abolição, naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados, jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer

    Decidiram forçar ainda mais o ritmo de trabalho de uns duzentos ou trezentos mais fortes e mandar os outros para o olho da rua. Sem reparação, sem uma ajuda do governo para começar a vida, sem nada. Daí que naturalizamos também um novo preconceito: os negros são vagabundos. Quando não são ladrões. Ou, então, incompetentes. Não são capazes de aproveitar as oportunidades de progredir, acessíveis a todos os cidadãos de bem.

    Até hoje moradores de rua, pedintes e assaltantes amadores (os profissionais moram nos Jardins ou em Brasília) são identificados pelos vários tons de pele entre bege e marrom. É raro encontrar um louro entre eles. O mesmo vale para os trabalhadores com “contratos” precários: todos afrodescendentes. Achamos normal. A carne mais barata do mercado é a carne preta. Para não cometer injustiças, nesse patamar estão também muitos nordestinos que chegaram à região Sudeste como retirantes de alguma seca. Às vezes acontece alguma zebra e um deles vira presidente da República. Cadeia nele.

    Naturalizamos duas ditaduras, que se sucederam com intervalo democrático de, apenas, 19 anos entre elas. Daí que naturalizamos as prisões arbitrárias também. “Alguma ele fez!” – era o nome de uma série satírica do grande Carlos Estevão, na seção Pif Paf da antiga revista Cruzeiro. A legenda era o comentário covarde de pessoas de bem, que observavam um pobre coitado apanhando da polícia ou arrastado pelos meganhas sem nenhuma ordem (oficial) de prisão. Naturalizamos a tortura também, para sermos coerentes. Afinal, ao contrário dos outros países do Cone Sul, fomos gentis com “nossos” ditadores e seus escalões armados. Não julgamos ninguém. Quem morreu, morreu. Quem sumiu, sumiu. Choram Marias e Clarices na noite do Brasil.

    Daí que naturalizamos também – por que não? – que nossas polícias, findo o período do terror de Estado, continuassem militarizadas. Como se estivessem em guerra. Contra quem? Oras: contra o povo. Mas não contra o povo todo – alguns, nessa história, sempre foram menos iguais que os outros. Os pobres, para começar. Entre eles, á claro, os negros. Esses elementos perigosos para a sociedade, cujos antepassados não vieram para cá a passeio. Aprendizes do período ditatorial prosseguiram com as práticas de tortura nas delegacias e presídio. De vez em quando some um Amarildo. De vez em quando um adolescente infrator é amarrado num poste, pela polícia ou por cidadãos de bem.

    Tolerantes, mas nem tanto

    Mas calma aí, nem tudo se admite assim, no jeitinho brasileiro: que uma presidenta mulher tenha sido eleita em 2010 já foi uma grande concessão. Pior, uma presidenta vítima de tortura no passado – bom, se ela não nos lembrar disso a gente pode deixar pra lá. Mas a coisa vai além: uma presidenta mulher, vítima de tortura no passado, que resolve colocar em votação no Congresso – e aprovar! – a instauração de uma Comissão da Verdade??? Aí também é demais. Por isso mesmo achamos normal que um capitão reformado (alguma ele fez?) tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando, durante uma audiência pública, o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período. Parece que isso se chama quebra de decoro parlamentar, mas os colegas do provocador não quiseram ser intolerantes. “Brasileiro é bonzinho”, como dizia uma personagem representada por Kate Lyra no antigo programa Praça da Alegria.

    Achamos normal que um capitão reformado tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando, durante uma audiência pública, o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período

    Por isso, também achamos normal que a tal presidenta, que provocou os brios das pessoas de bem ao instaurar uma comissão para investigar crimes de lesa humanidade praticados naquele passado esquecido, tenha sofrido impeachment no meio do segundo mandato. Seu crime: “pedaladas fiscais”. Parece que antes de virar crime essa era uma prática comum e, às vezes, até necessária, e se constitui em antecipações de pagamentos por parte de bancos públicos para cobrir déficits do tesouro, reembolsáveis mais adiante.

    Também achamos normal que o melhor presidente que o país já teve tenha sido preso – por que, mesmo? Ah, um pedalinho num sítio em Atibaia. Ah, um apartamento no Guarujá, calma lá!

    Não é muita regalia para um filho de retirantes, torneiro mecânico, líder sindical? Um que tentou três vezes e se elegeu na quarta, com uma prioridade na qual até então ninguém tinha pensado: tirar o Brasil do mapa da fome… Que pretensão. Pior é que, durante algum tempo, conseguiu a façanha com a aprovação de uma lei que instituiu o Bolsa Família – essa, cujo usufruto, aliás, algumas famílias devolviam ao Estado, em prol de outros mais necessitados, tão logo conseguiam abrir um pequeno negócio, como um pequeno salão de beleza, um galinheiro, uma videolocadora…

    Algumas dessas famílias chegaram a cometer o grande abuso de comprar passagens aéreas para visitar seus parentes espalhados pelo Brasil. As pessoas de bem às vezes reagiam. Não foi só uma vez que, na fila de embarque, ouvi o comentário indignado – esse aeroporto está parecendo uma rodoviária! Esse horror de conviver com pobres dentro do avião nunca foi naturalizado.

    Além disso, o tal presidente persistente, por meio do Ministro da Educação, Tarso Genro, conseguiu aprovar pelo ProUni um programa de bolsas para alunos carentes. Entre estes, muitos trabalhavam na adolescência para ajudar as famílias e tinham menos tempo para estudar do que os candidatos das classes médias e altas. Outra lei provocativa foi a que instituiu as cotas para facilitar o acesso às universidades de jovens de famílias descendentes de escravizados.

    Ana Luiza Escorel, professora da UFRJ, contou uma vez em conversa informal que os cotistas, no curso ministrado por ela, eram com muita frequência os mais empenhados. Faz sentido: a oportunidade de fazer um curso superior faria uma diferença muito maior na vida dos cotistas do que dos filhos das classes médias e altas. Esse mundo está perdido, Sinhá! Diria Tia Nastácia, que Emília chamava de “negra beiçuda” (credo!) nos livros de Monteiro Lobato.

    Então, em 2018…

    … naturalizamos, por que não?… as chamadas fake news. Até hoje, em alguma discussão política com motoristas de táxi – esses disseminadores voluntários ou involuntários de notícias falsas – eu me exalto quando o sujeito não quer nem ouvir que eu conheço o Fernando Haddad desde que ele era apenas o jovem estudante de Direito, filho de um comerciante de tecidos. Foram 80 diferentes fake news contra ele e sua candidata a vice, Manuela d’Ávila, na 1ª semana depois do 1º turno. A série das mentiras começou com um suposto apartamento de cobertura num prédio de alto padrão – o que não seria crime algum, se comprado com dinheiro obtido pelo morador. Só que o apartamento em que a família Haddad morava na época era de classe média, não de alto padrão. A mentira seguinte era a posse de uma Ferrari – com motorista! Se fosse verdade, seria uma ostentação pra lá de brega. Segue o circo de horrores: acusação de estupro de uma criança de doze anos; de ter em seu programa de governo o projeto de lançamento de um “kit gay” (?) nas escolas e de instituir “mamadeiras de piroca” (?) nas creches públicas. Por fim, a pior das notícias: o candidato do PT teria baseado seu projeto de governo num decálogo leninista em defesa da guerrilha. Hein??? Foi o coroamento de uma sequência de absurdos que só não foram cômicos porque o Judiciário deixou passar impune … e nos condenou a um final trágico.

    Aqui estamos, pois. O tal apologista da tortura se tornou presidente do país. No segundo ano de seu mandato, a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil. O machista intrépido, que afirmou ter tido uma filha mulher depois de três filhos homens porque fraquejou, achou que uma boa medida em prol da saúde de seus governados seria insultar o vírus. Começou por chamar o dito cujo de gripezinha. Para provar que estava com a razão, compareceu e continua a comparecer a manifestações de apoiadores sem usar a máscara protetora

    Aqui estamos, pois. O tal apologista da tortura se tornou presidente do país. No segundo ano de seu mandato, a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil. O machista intrépido, que afirmou ter tido uma filha mulher depois de três filhos homens porque fraquejou, achou que uma boa medida em prol da saúde de seus governados seria insultar o vírus. Começou por chamar o dito cujo de gripezinha. Para provar que estava com a razão, compareceu e continua a comparecer a manifestações de apoiadores sem usar a máscara protetora. Continua a fazer essas aparições demagógicas semanais, com chapéu de cowboy (hein?), cuspindo perdigotos amorosos entre os eleitores. O narcisista só consegue olhar o outro pela lente de sua autoimagem. Se ele teve o vírus e nem foi hospitalizado, por que essa frescura de máscaras e luvas? Coisa de boiola.

    E os que não têm pão? Que comam bolo…

    E já que ninguém está olhando, que tal liberar as florestas para o agronegócio? A Amazônia arde, o Pantanal queima. O vice-presidente também faz pouco caso. Para um governo cujo Ministro da Saúde recusou a entrega de remédios para populações indígenas, os incêndios na mata onde várias etnias vivem e de onde tiram seu sustento são uma espécie bem-vinda de fogo amigo. A Amazônia, maior bioma do mundo, não se regenera quando incendiada. O que não virar pasto um dia vai produzir um matinho secundário mixuruca. Amazônia, nunca mais? A economia, ou melhor, o lucro do agronegócio, tem segurado a moral da tropa governamental.

    E já que ninguém está olhando, que tal liberar as florestas para o agronegócio? A Amazônia arde, o Pantanal queima. O vice-presidente também faz pouco caso. Para um governo cujo Ministro da Saúde recusou a entrega de remédios para populações indígenas, os incêndios na mata onde várias etnias vivem e de onde tiram seu sustento são uma espécie bem-vinda de fogo amigo

    Por outro lado, a inexistência de políticas públicas para amparar os milhões de trabalhadores desempregados e comerciantes falidos atingidos pela pandemia tem despejado diariamente milhares de brasileiros para morar nas ruas. Os R$ 600 responsáveis pelo aumento da aprovação do presidente evitam que alguns morram de fome. Os que já estão nas ruas não têm como se cadastrar para receber o auxílio. A situação dessas famílias é agravada pelo fato de que, durante o lockdown, pouca gente circula na rua. Agora, aqueles que já sofriam a humilhação de ter de suplicar por uma moeda ou uma xícara de café com leite para aquecer o corpo, já não têm mais nem a quem pedir. As ruas, na melhor das hipóteses, estavam quase desertas porque muita gente respeitava o isolamento social. Agora, quando em São Paulo o surto deu uma pequena recuada, os “consumidores” voltaram a circular, mas com medo até de olhar nos olhos do morador de rua faminto. Contornam seus corpos sem olhá-los nos olhos: para se pouparem de algum mal-estar moral? Ou será que de fato não os veem?

    Por uma razão ou por outra, devemos admitir que, sim, naturalizamos o horror. Com o lockdown é mais fácil ficar em casa e não olhar para o que se passa além da porta. É um dever cívico. A não ser… a não ser quando a moçada se cansa e resolve lotar as praias. Ou apostar tudo numa balada animadíssima, cheia de gente num lugar fechado – dançando, compartilhando copos de cerveja, gritando, soltando e aspirando perdigotos. O Brasil regrediu a 1968, depois a 1964, e agora a 1936:

    Viva la muerte!

    P.S. Uma pergunta, para terminar: por que o Queiroz depositou 89 mil na conta de Michele Bolsonaro?

    Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e crítica literária. Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-14).