Autor: Redação Lauro Campos

  • Projeto Moro: a defesa do Estado policial como política social

    Projeto Moro: a defesa do Estado policial como política social

    Projeto Moro: a defesa do
    Estado policial como política social

    O “pacote anticrime” do ministro Sérgio Moro busca legitimar execuções policiais. Isso não se constitui em mero equívoco ou ilegalidade menor. Trata-se de tentativa de institucionalização de uma política genocida dirigida ao extermínio de pessoas negras e pobres de favelas e periferias, que hoje já ocorre de forma cotidiana, ainda que fora da lei. Agora se pretende transformá-la em política de Estado

    Por Luciana Boiteux – advogada, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ, pesquisadora, feminista e militante dos direitos humanos

    Escrevo este texto no final de fevereiro, pouco depois de treze pessoas serem mortas por policiais militares em operação na comunidade Fallet-Fogueteiro, no centro do Rio de Janeiro. As fotos da casa onde foram executados os supostos criminosos são chocantes: mostram uma parede de ladrilhos brancos cobertos de sangue. Enquanto os moradores denunciaram o caso como chacina, afirmando que a polícia chegou atirando pelas costas, a PM alegava troca de tiros e confronto, ou seja, que teriam atirado em legítima defesa.

    Não se sabe ainda como será registrada a ocorrência. Pela repercussão pública, pode haver uma investigação mais profunda. Tradicionalmente, no Rio de Janeiro, esse tipo de ação policial é catalogada como “auto de resistência”, algo denominado nos registros oficiais como “homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial”. Trata-se de um eufemismo que define uma ação policial legitimada de antemão. Provavelmente, o destino será o arquivamento.

    Vivemos em um país extremamente violento, que tem um dos maiores índices de homicídios do mundo, sendo ainda mais destacados os números de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último foi recentemente objeto de intervenção militar na segurança, decretado pelo Governo Temer. Segundo o Observatório da Intervenção, durante o período no qual as Forças Armadas ficaram à frente da segurança, entre fevereiro e dezembro de 2018, ocorreram 1.375 mortes por ação de agentes do Estado, números 33,6% maiores do que os contabilizados em 2017 no mesmo período.

    Atirar “na cabecinha”

    Eleito governador do estado do Rio de Janeiro de forma surpreendente, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC), baseou a campanha eleitoral em propostas de aumento do poder da polícia, prometendo “abater” pessoas armadas com fuzis nas favelas com tiros na “cabecinha”. O aliado de Jair Bolsonaro tem se deixado fotografar em visitas ao quartel do Batalhão de Operações Policiais da PM (BOPE) fazendo flexões e corridas matinais ao lado de policiais militares. Tal posição leniente com a violência policial já rendeu um aumento da série histórica de mortes violentas no Estado: só no primeiro mês do novo governo, aliados de Jair Bolsonaro, agentes do Estado já mataram 160 pessoas, um crescimento de 82% em relação ao mês anterior, dezembro de 2018. É o segundo maior número de mortes para o primeiro mês do ano desde que se iniciou a série histórica em 1998. Tais números ainda nem incluem as mortes ocorridas em fevereiro no Fallet, já mencionadas.

    Vivemos em um país extremamente violento, que tem um dos maiores índices de homicídios do mundo, sendo ainda mais destacados os números de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último foi recentemente objeto de intervenção militar na segurança, decretado pelo Governo Temer. Durante o período no qual as Forças Armadas ficaram à frente da segurança, ocorreram 1.375 mortes por ação de agentes do Estado, números 33,6% maiores do que os contabilizados no mesmo período de 2017

    A pergunta a ser feita diante dessa realidade é: como o sistema legal trata essas ocorrências e qual é a base para conceder, sem limites, esse poder de matar à polícia, ao legitimar execuções extrajudiciais? A concessão de maior imunidade ao policial, como pretende o atual Ministro Sérgio Moro, no projeto “anticrime”, tem condições de transformar a realidade violenta e garantir a segurança pública?

    Formalmente, pela lei, em caso de morte violenta por causas não naturais, instaura-se um inquérito para investigação de crime de homicídio e apuração de autoria e circunstâncias. A política de garantir imunidade ao policial quando este executa quem considera “bandido” rompe com a lógica da lei e da Constituição de tutela da vida e do controle da violência. Instaura-se a legalização da barbárie, pois permite a chancela estatal de uma execução extrajudicial como estratégia de segurança pública.
    Tal lógica repressiva e autoritária se reflete, na prática, em casos que envolvem mortes causadas por policiais em serviço, quando o registro de ocorrência adota uma denominação diferenciada de “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Isso já determina um procedimento alternativo, capaz de impedir investigação e levar ao arquivamento o mais rápido possível.

    Papel do Ministério Público

    Cabe aqui destacar o papel do Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial. Segundo a Constituição (Art. 129, parágrafo. 4º) este é o titular da ação penal, que tem a autoridade para denunciar crimes e responsabilizar policiais por abusos e atuações fora da lei. Por outro lado, cabe aos juízes, nesse momento processual, acatar ou não o pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público, ou receber a denúncia oferecida por este, caso tenha sido constatada a ocorrência de crime.

    Eleito governador do estado do Rio de Janeiro de forma surpreendente, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC), baseou a campanha em propostas de aumento do poder da polícia, prometendo “abater” pessoas armadas com fuzis nas favelas com tiros na “cabecinha”. Um resultado imediato: só no primeiro mês do novo governo, agentes do Estado já mataram 160 pessoas, um crescimento de 82% em relação ao mês anterior

    Bruno Manso e Renato Sérgio Lima, autores de Narrativas em Disputa: segurança pública, polícia e violência no Brasil, comentam que “a ideologia do ‘bandido bom é bandido morto’, muitas vezes [é] reforçada pelo Ministério Público e Judiciário quando estes não condenam os padrões policiais de uso da força no Brasil como anômalos e inaceitáveis”. Se temos o Ministério Público, o Judiciário e o governador incentivando esse tipo de iniciativa, a tendência será aumentar ainda mais a prática, já naturalizada.

    Licença para matar

    Infelizmente, o que temos hoje no sistema penal é a chancela oficial pela completa imunidade concedida, mesmo sem base legal ou constitucional, a policiais que executam “bandidos”, sem dar-lhes direito a um julgamento justo. O método é atirar, é a lógica da guerra sem limites humanitários, o objetivo não é prender suspeitos, mas executar “inimigos”.

    Em caso ocorrido há alguns anos, quando se investigava a morte de um conhecido traficante de nome Matemático, chamou a atenção o despacho do juiz acatando a opinião ministerial, louvando a eficácia mortífera dos heróis da polícia no confronto com “bandidos” e arquivando o caso reconhecendo a legítima defesa (a pedido do Ministério Público), diante de elementos fortemente armados que teriam resistido à ação policial. Depois se descobriu que o suspeito procurado fugia de carro e foi alvejado por meio de tiros de fuzil dados do alto de um helicóptero da polícia civil do Rio de Janeiro. A legítima defesa, nesse caso, não se sustentava em evidências, mas na afirmação dos policiais.

    Qual é a base para conceder, sem limites, esse poder de matar à polícia, ao legitimar execuções extrajudiciais? A concessão de maior imunidade ao policial, como pretende o atual Ministro Sérgio Moro, no projeto “anticrime”, tem condições de transformar a realidade violenta e garantir a segurança pública?

    Apesar de vendida como uma solução para a violência e a criminalidade, a lógica do enfrentamento e das execuções de suspeitos em favelas e periferias não logrou atingir os resultados esperados. Ainda segundo Manso e Lima, “as mortes decorrentes de intervenções policiais já são a segunda causa de assassinatos em todo o Brasil, ultrapassando os feminicídios (946) e os latrocínios (2.447).”

    Não obstante, o senso comum tende a considerar que a melhor estratégia de combate à violência é a repressão policial e o enfrentamento armado em territórios periféricos e pobres, sendo essa reação legitimada por uma maioria da população que, movida pelo medo, falta de informação e alguma manipulação, apoia o mote “bandido bom é bandido morto”.

    Defesa da violência

    Nesse cenário, chama a atenção, nas eleições de 2018, não somente a ascensão de Jair Bolsonaro, cuja trajetória política é vinculada às corporações militares e às milícias formadas por policiais, que sempre teve posições de defesa de ações violentas praticadas por agentes da lei, mas também a quantidade de militares, policiais e delegados eleitos para a Câmara Federal. De 19 na legislatura anterior, há agora 28 deputados. Os pronunciamentos do presidente eleito e de boa parte do Congresso Nacional vão na linha de defesa da criação de mecanismos de “proteção” de policiais “que impeçam a punição ou responsabilização”.

    Sem dúvida, essa formulação de políticas ditas de segurança pública, deve ser situada na lógica de manutenção e reforço da dominação e controle das classes subalternas, baseadas não mais somente na criminalização da pobreza, que sempre se deu pelo investimento em encarceramento de corpos descartáveis em penitenciárias. A isso, agrega-se a adoção de políticas classistas e racistas de extermínio autorizado pelo sistema.

    A ascensão do chamado Estado Penal nos países centrais por meio de uma onda punitiva, apontada por Loic Wacquant como uma resposta ao crescimento da insegurança social e não à insegurança criminal, reverbera na América Latina e países periféricos. Aqui, nota-se uma intensidade ainda maior, que envolve a autorização para matar como método.

    Infelizmente, o que temos hoje no sistema penal é a chancela oficial pela completa imunidade concedida, mesmo sem base legal ou constitucional, a policiais que executam “bandidos”, sem dar-lhes direito a um julgamento justo. O método é atirar, é a lógica da guerra sem limites humanitários. O objetivo não é prender suspeitos, mas executar “inimigos”

    Tudo isso para dizer que o “pacote anticrime” do ministro Sérgio Moro, que traz diversas propostas de alteração da lei penal com o objetivo de dar-lhe maior rigor, em especial nos casos de crimes de corrupção, segue a linha contrária em relação à responsabilização de agentes da lei por crimes violentos praticados no cumprimento da função. Esse, aliás, é o foco do ex-juiz, responsável pela condenação de Lula, que lhe valeu a indicação ao cargo de ministro da Justiça do maior adversário do ex-presidente. Enquanto, por um lado, o projeto enviado ao Congresso reduz as hipóteses de prescrição e o acesso a recursos defensivos, propõe a criminalização do caixa dois, ampliando o Estado punitivo. Há uma clara ampliação legal dos limites do uso da violência por particulares e agentes públicos, limitando a atuação formal do sistema penal para estes.

    Defesa em casos de feminicídio

    Aqui nos referimos à mudança no texto do Código Penal que trata das excludentes de ilicitude. Isso abrange estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e no exercício regular de direito (Art. 23), por meio da redução e até mesmo isenção de penas nas hipóteses de abusos no direito de reagir, quando este for desproporcional, em face de perigo atual, de excesso de cumprimento do dever legal e na atuação em legítima defesa, quando a ação do agente decorrer de “escusável medo, surpresa e violenta emoção”, dando tratamento menos repressivos aos casos de excesso.

    Essa inovação se aplica a qualquer pessoa e poderá ser usada como defesa em casos de feminicídios, até mesmo para levar a absolvição de maridos e companheiros ciumentos, assim como a brigas de trânsito ou de torcidas e a reações desproporcionais de proprietários de terras em casos de “invasão”, que dificilmente serão punidos.

    Para isso, foi proposta a alteração da redação do § 2º. do Art. 23 que autoriza o juiz a “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso ocorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

    Especificamente, para proteger os agentes de segurança em geral e garantir-lhes ainda maior imunidade do que têm hoje, foi prevista a inclusão de dois dispositivos específicos às hipóteses de legítima defesa. A alteração se dá pela inclusão de um parágrafo ao Art. 25 do Código Penal, passando-se a considerar outras hipóteses de legítima defesa somente para agentes policiais: “Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.

    O resultado da aplicação prática de tais dispositivos, caso esse projeto de lei venha a ser aprovado no Congresso, será a oficialização da imunidade já garantida aos policiais que executam pessoas em favelas e periferias, o que poderá levar ao aumento das mortes. É a lógica do medo e da sensação de insegurança que levam a população a legitimar tais execuções, incentivadas por manipulações midiáticas. Contudo, apesar de as pessoas em geral terem medo de morrer vítima de “bandidos”, é mais provável, no Brasil, uma pessoa ser vítima de um tiro da polícia do que ser morto por um assaltante.

    Imunidade seletiva

    Trata-se da previsão legal de um tipo de “legítima defesa presumida”, que já constava anteriormente do Art. 35, § 1º, do Código Penal de 1890, usada à época para beneficiar o proprietário que matava o ladrão noturno (mais classista impossível).

    Tal proposta é inconstitucional por criar uma categoria de pessoas às quais se garante imunidade por crimes de homicídio apenas por serem agentes da lei. Tal visão viola a lógica e a racionalidade, pois espera-se de policiais e agentes de segurança que sejam melhor treinados e preparados no uso de armas de fogo em situações de confronto. Nessa perspectiva, esses funcionários públicos deveriam estar sujeitos a regras mais rígidas, pois são pagos e treinados pelo Estado para proteger vidas e não para executar pessoas.

    O dispositivo que Moro pretende aprovar, além de inconstitucional, fere ainda normas internacionais de direitos humanos, como o Código das Nações Unidas de Conduta para Funcionários Encarregados de Cumprir a Lei, adotado pela Assembleia Geral em 17 de dezembro de 1979, que no Art. 3º. determina que “os funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem empregar a força quando tal se afigure estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever”.

    Nunca é demais lembrar também que uma política governamental de execuções policiais sumárias foi considerada caso grave de violação de direitos humanos pela Corte Interamericana que condenou o Brasil, em 2017, a adotar medidas de redução da violência policial e de lesões corporais e homicídios dela decorrentes. Examinava-se o caso das chacinas da Favela Nova Brasília, ocorridas em 1994-95. Expressamente, constou da sentença que o conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial deve ser abolido (cf. parágrafos 333 a 335 da sentença). Ou seja, o contrário do que se propõe agora.

    Institucionalização do genocídio

    A prática institucional de legitimar execuções policiais que Sérgio Moro quer legalizar no projeto não constitui mero equívoco ou uma ilegalidade menor. Trata-se de tentativa de institucionalização de uma política genocida dirigida ao extermínio de pessoas negras e pobres de favelas e periferias, que hoje já ocorre de forma cotidiana (ainda que fora da lei). Agora se pretende transformá-la em política de Estado.

    Essa proposição concomitante à apresentação de uma reforma da Previdência não se dá por acaso e evidencia exatamente a lógica denunciada por Wacquant: do casamento de uma política social (por meio da lógica neoliberal de redução de benefícios sociais que levará ao aumento da pobreza e a piora das condições de vida de grande parte da população) com uma política penal de encarceramento e de extermínio justamente da população pobre, precarizada e que já teve reduzidos direitos trabalhistas. Agora ela poderá se tornar alvo legalizado de políticas oficiais de extermínio, o que não pode ser tolerado ou naturalizado mais do que já se verifica hoje na prática das instituições penais e policiais aqui já ilustradas.


    1 https://ponte.org/policia-mata-13-pessoas-em-comunidade-do-rio-de-janeiro/
    2 http://observatoriodaintervencao.com.br/dados/relatorios1/; https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/policia-que-mata-policia-que-morre.ghtml
    3 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2019/02/22/policia-do-rio-matou-160-pessoas-em-janeiro-2-maior-patamar-para-o-mes-desde-98.htm; https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/entenda-o-plano-do-governador-do-rj-de-abater-bandidos-com-armas-pesadas.shtml
    4  MANSO, Bruno, LIMA, Renato Sérgio. “Os Desafios dos candidatos na segurança pública”. In: LIMA (Org.) Narrativas em Disputa: segurança pública, polícia e violência no Brasil. São Paulo: Alameda, 2016, p. 103.
    5  http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/tj-rj-arquiva-pela-2-vez-inquerito-sobre-morte-de-traficante-matematico.html; http://www.cyberpolicia.com.br/artigos/artigos/501-uma-sentenca-para-ser-lida-a-morte-do-traficante-matematico
    6 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/numero-de-medicos-e-professores-cai-na-camara-militares-e-religiosos-sobem.shtml
    7  WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando a fusão entre workfare e prisonfare. Revista EPOS; Rio de Janeiro – RJ; Vol.3, no 1, janeiro-junho de 2012.
    8 http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev18.htm
  • “Não é só falar o nome da Marielle”, comenta Marinete Franco

    “Não é só falar o nome da Marielle”, comenta Marinete Franco

    “Não é só falar o nome da Marielle”,
    comenta Marinete Franco

    Celebramos a alteração do nome da fundação que, agora, leva também o nome de Marielle Francos, junto com Lauro Campos. Assista o vídeo de Marinete Franco, mãe da nossa querida Marielle sobre essa homenagem e o papel da FLCMF.

    #AlteracaoDoNome #MarielleFranco #FLCMF
    #MarineteFranco #PSOL #LauroCamposMarielleFranco

  • Quem são os coletes amarelos franceses?

    Quem são os coletes amarelos franceses?

    Quem são os coletes
    amarelos franceses?

    Nos últimos meses de 2018, a França foi tomada por maciças mobilizações de rua sem lideranças visíveis e com uma difusa pauta de reivindicações que tem por centro a queda de impostos de combustíveis. Os protestos passaram a acontecer semanalmente. Entre os ativistas, encontra-se um amplo leque político que vai da esquerda à direita, excetuando-se apoiadores do presidente Emmanuel Macron. É algo novo no cenário francês. Mas que novidade é essa?

    Por Gil Delannoi – cientista político e sociólogo francês, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris e diretor de Pesquisa da Fundação Nacional de Ciência Política

    Os “Coletes Amarelos” são um movimento de protesto popular iniciado em 17 de Novembro de 2018, na França. As manifestações se realizam sempre aos sábados e às vezes se prolongam até os domingos.

    O nome do movimento deriva dos coletes amarelos fosforecentes utilizados pelos manifestantes e que todo motorista deve possuir em seu carro, como peça de primeiros-socorros. Os protestos expressam, em geral, a imagem da população francesa: homens e mulheres de diferentes idades e em proporções equivalentes. A maioria é composta por ativistas inexperientes e pacíficos. No entanto, alguns grupos violentos, classificados como extremistas de direita ou de esquerda, se associam em certas manifestações urbanas, provocando saques e depredações públicas. As imagens circularam muito, notadamente porque essas violências ocorrem em belos bairros parisienses, como Champs Elysées, Torre Eiffel, Ópera, próximas aos ministérios e às lojas de departamentos.

    Os locais ocupados pelos Coletes Amarelos não são apenas emblemáticos bairros parisienses. São rotatórias e cruzamentos por toda a França. Os ativistas impedem a circulação de veículos, ocupando pedágios nas rodovias, muitas vezes impedindo a cobrança. A gratuidade daí decorrente provoca simpatia da maioria dos motoristas.

    Recuo governamental

    Depois dos primeiros sábados de protesto, em que se reuniram várias centenas de milhares de manifestantes, duas decisões governamentais foram tomadas: a suspensão do novo imposto sobre os combustíveis, em dezembro de 2018, e o lançamento de um “grande debate nacional” de consulta à população. Cadernos em que a população pode escrever perguntas e sugestões foram abertos nas prefeituras. Em janeiro se iniciou um longo período de discussões entre autoridades eleitas e diferentes públicos: representantes locais, militantes, cidadãos voluntários, pessoas escolhidas aleatoriamente – todos esses com os quais o presidente Macron debateu durante vários dias.

    A suspensão do imposto sobre combustíveis resultou em uma politização das reivindicações. Isso não extinguiu o movimento, mas o número de manifestações se reduziu.

    É difícil medir e qualificar um movimento que deseja continuar espontâneo e elusivo. Entre os manifestantes, a estimativa mais recente propõe três divisões: um terço mais à esquerda, um terço mais à direita, e um terço de pessoas pouco politizadas, que não votaram com frequência nas últimas décadas (os silenciosos rompem seu silêncio).

    Amplo espectro, exceto apoiadores de Macron

    O espectro político inteiro da política francesa se encontra presente entre os manifestantes – é por isso que eles insistem em suas reivindicações comuns e deixam de lado as diferenças. Todos os componentes políticos são encontrados entre os simpatizantes (segundo as pesquisas), exceto o centro e as elites pró-mundialização e pró-União Europeia. Podemos afirmar também: exceto a parte mais sólida do eleitorado de Macron.

    O caráter plural dos Coletes Amarelos se confirma quando nos voltamos para rebeliões passadas que apresentam um ou outro ponto de similitude: as revoltas camponesas durante a monarquia, os sans-culottes na Revolução Francesa, as barricadas das revoluções do século XIX, as ligas dos anos 1930, e certas manifestações estudantis de maio de 1968.

    Os protestos expressam, em geral, a imagem da população francesa: homens e mulheres de diferentes idades e em proporções equivalentes. A maioria é composta por ativistas inexperientes e pacíficos. No entanto, alguns grupos violentos, classificados como extremistas de direita ou de esquerda, associam-se em certas manifestações urbanas, provocando saques e depredações públicas

    Diz-se que a presidência francesa, de estilo muito monárquico, provocou esse tipo de movimento. É fato que Macron desempenhava seu papel de forma um tanto caricatural, fazendo, por vezes, intervenções provocativas à população que encontrava nas ruas. Comentários assim são tão inesperados no contexto francês quanto os tweets de Trump nos Estados Unidos. Isso explica que a figura presidencial tenha se tornado especialmente visada por alguns manifestantes (“Demissão do Macron”).

    O fato é que, pela legislação, o Parlamento é indispensável na França, mesmo quando se mostra um tanto dócil para um presidente apoiado por ampla maioria. Foi este, em um primeiro momento, o caso com Macron. A atual maioria parlamentar é composta por recém-chegados e inexperientes. O presidente liderou, logo após sua eleição, o enfraquecimento e quase aniquilamento dos principais partidos, o Partido Socialista (de François Hollande) e o Partido Republicano (de Nicolas Sakozy).

    Pagou-se caro por este triunfo de 2017. Hoje em dia, Macron não tem um partido bem estruturado atrás de si. Socialismo e gaullismo não existem mais da mesma fora após 1960. A centro esquerda e centro direita se unem por uma causa comum: defender a União Europeia e a adaptação da França à globalização econômica.

    Revolta contra Paris

    Duas principais novidades vão contra a tradição dos protestos e rebeliões franceses. Por um lado, a revolta não sai de Paris para se expandir em direção ao interior. Ela é feita contra Paris, suas elites e talvez até mesmo seus habitantes. Em segundo lugar, nenhum representante ou dirigente é designado ao movimento, e aqueles que tentam sê-lo são rejeitados. Os partidos existentes não recuperam mais sua legitimidade diante do movimento. Não podem mais do que, à distância, concordar ou não com determinados pontos reivindicados. O movimento é espontâneo e elusivo, o que significa, também, sem organização e sem um discurso principal.

    Sua novidade pode ser explicada por fatores existentes em outros lugares que não a França: deslocalização industrial, abertura da Europa Ocidental à produção agro-alimentar do Leste Europeu, empobrecimento do campo e das pequenas cidades. O fim de serviços públicos nas áreas rurais e em pequenas cidades (hospitais, maternidades, escolas primárias, correios) afeta negativamente as coletividades, enquanto os impostos continuam a aumentar.

    A raiva inicial contra uma medida governamental se transformou em um sentimento de que as vozes da popula­ção não são ouvidas por dirigentes, pelos partidos e pela mídia. As reivindicações então se dividem: para alguns, deve-se aumentar os impostos sobre as fortunas; para outros, é preciso baixar os impostos em geral

    Como consequência, surge um sentimento de injustiça em relação ao sistema tributário (combustível) que atinge os habitantes da zona rural sem afetar os da zona urbana (que, ao contrário, se beneficiam de transportes públicos subsidiados). Disso resulta uma raiva contra as elites não taxadas por seu consumo (como a que se vale indiretamente de querosene de aviões).

    Essa raiva inicial contra uma medida governamental se transformou em um sentimento de que as vozes da população não são ouvidas por dirigentes, pelos partidos e pela mídia. As reivindicações então se dividem: para alguns, deve-se aumentar os impostos sobre as fortunas; para outros, é preciso baixar os impostos em geral. Menos subsídios e mais liberdade econômica, uma simplificação administrativa, mas também a manutenção da rede de proteção social e de saúde.

    Democracia direta

    Encontramos nos Coletes Amarelos de uma só vez aspectos sociais-democratas e uma defesa do pequeno comércio e do pequeno empreendedor. Por fim, vislumbra-se a reivindicação por uma democracia direta, com referendos, iniciativas populares, consulta de cidadãos aleatórios, fim de privilégios às autoridades eleitas, ministros e parlamentares.

    Outra prática de protesto na democracia está tomando forma nesse movimento. É talvez a novidade mais promissora e também a mais questionável. A auto-organização das manifestações começa nas redes sociais e é feita sem direção oficial nem líderes.

    A experiência comum vivida pelos participantes é o elemento principal do discurso. Evocam-se soluções políticas e procedimentos democráticos para melhorar as coisas, mas nenhum programa ou partido são tolerados, ao mesmo tempo em que se exige uma maior representatividade da população no processo político nacional. A liberdade de expressão é reivindicada quase sem limite, com eventuais riscos de deslizes individuais (manifestação de ódio contra pessoas específicas, apelo a destruições materiais, justificação de alguns bloqueios). Entretanto, isso não tem nada a ver com movimentações como greves. Trata-se de uma prática de ocupação dos lugares públicos e, para os mais combativos, de uma confrontação violenta com a polícia – esses últimos compõem uma pequena minoria sem força e de difícil mensuração no interior do movimento.

    A perda de confiança em toda forma de representação (inclusive em uma representação dos próprios Coletes Amarelos) é total mas, ao mesmo tempo, há grande esperança em uma democracia direta.

    Mal-estar generalizado

    O que dizem os comentaristas na mídia? Qualificam essas demandas com os seguintes adjetivos: “popular, democrática, populista, protecionista, nacionalista, revolucionária, reacionária, utópica, inovadora, incoerente, efeito da pobreza, ingratidão de crianças mimadas”. Tais comentários dizem mais a respeito da orientação política dos próprios comentaristas do que da natureza do movimento em si.

    Todos concordam, no entanto, a respeito da existência de uma causalidade socio-econômica comparável ao voto do Brexit, ao desindustrializado Cinturão da Ferrugem (Rust Belt) escolhendo Trump, às classes médias votando em Sanders, ou ainda ao Movimento Cinco Estrelas, na Itália.

    Encontramos nos Coletes Amarelos de uma só vez aspectos sociais-democratas e uma defesa do pequeno comércio e do pequeno empreendedor. Por fim, vislumbra-se a reivindicação por uma democracia direta, com referendos, iniciativas populares, consulta de cidadãos aleatórios, fim de privilégios às autoridades eleitas, ministros e parlamentares

    Os Coletes Amarelos não conseguem ser uma força política no âmbito da Quinta República francesa. Seu movimento só poderá desafiar o regime, derrubá-lo ou eventualmente ser canalizado pelos partidos. O beneficiário a curto prazo poderia ser o nacionalismo de Marine Le Pen. Podemos considerar também um retorno da direita ao gaullismo (menos Europa, mais protecionismo) ou a refundação de um socialismo menos livre-comércio e menos multicultural.

    O primeiro teste serão as eleições europeias de maio de 2019. Mas haverá um limite: a eleição do Parlamento Europeu não tem impacto imediato, favorecendo assim um voto de protesto da esquerda ou da direita.

    Podemos ver movimentos parecidos na Europa? Alguns indícios existem em diversos países (na Bélgica, por exemplo). Entretanto, ainda é muito cedo para dizer se são meras faíscas ou se o fogo que poderá persistir na França terminará por incendiar, também, o resto da Europa.


    1 – N.T.: Literalmente “sem calções”(vestimenta utilizada pelos nobres da época), o termo designa os revolucionários das classes populares – artesãos, trabalhadores, pequenos proprietários, etc – diretamente opostos à nobreza, à época da Revolução Francesa.

    2 – N.T.: Conjunto de ideias políticas que prezam a independência nacional francesa – seja ela política, econômica, social ou militar – em detrimento de associações internacionais (como a ONU, por exemplo) e de superpotências. O movimento é diverso e abriga posicionamentos políticos abrangendo desde a esquerda à direita. Seu nome advém do ex-presidente Charles de Gaulle (1890-1970).

    Tradução de Isadora França
  • 1º MAIO  Dia da trabalhadora e do trabalhador: fortalecendo os laços de classe

    1º MAIO Dia da trabalhadora e do trabalhador: fortalecendo os laços de classe

    1º MAIO  Dia da trabalhadora
    e do trabalhador: fortalecendo
    os laços de classe

    Francisvaldo Mendes de Souza
    Presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

    Primeiro de maio! É nessa data que se comemora, em grande parte do mundo, o dia das pessoas que dependem da venda de sua força de trabalho para sobreviver. No Brasil, com o decreto 4859, de 24 de setembro de 1924, a data se tornou feriado nacional; assim como é e ocorre em vários outros países.

    Esse é um movimento de acúmulo que possibilitou conquistas importantes da classe. Várias datas, vários locais, mas, principalmente, uma referência fundamental para que se viva melhor nesse mundo organizado pelo lucro e sustentado na exploração.

    Sejam as ações iniciadas em Chicago, nos Estados Unidos, em 1884; seja com a resolução de 1889 da internacional socialista e as jornadas de lutas na França; seja com a adoção do feriado nacional em primeiro de maio, ocorrido em 1920, na extinta União Soviética; sejam as várias lutas e ações no mundo que movimentaram e unificaram as pessoas que vivem da venda de sua força de trabalho, esse dia marca conquistas.

    Para os diversos países pelo mundo, a principal dessas conquistas foi a redução da jornada de trabalho para 8h diária. Sabe-se, que ainda em tempos atuais, vive-se vários focos de escravidão e as pessoas precisam ir além da jornada conquista de 8h para sobreviverem. No entanto, o mais importante é que com unidade, organização e lutas em escala mundial, pode-se afirmar que haverá avanços maiores: é possível conquistar vidas melhores.

    A consciência de classe é a energia que deve nos pigmentar nesse dia, apostando em formação, organização e ações unificadas para garantir as conquistas do passado e assegurar novas no presente. Esse é o aspecto fundamental do primeiro de maio, enlaçar toda a classe em jornadas por mais direitos, mais democracia e vida plena, em todas as suas dimensões.

    Trata-se mais do que conhecer o passado, daquilo que era e de como a situação está no presente. Trata-se de saber que não há nada natural na exploração e que as mudanças virão por nossas ações. Para as transformações em favor da vida estamos dedicados e nesse primeiro de maio faremos uma grande e unitária onda para avançar rumo ao socialismo.

    O trabalho precisa ser conquistado como forma de organização entre as pessoas, buscando transformar a natureza para fortalecer materialmente e espiritualmente a vida. Mudanças profundas que vão além das disputas nas esferas superestruturais, onde se destaca o Estado. Trata-se, portanto, de transformar a economia que predomina.

    Assim é nosso projeto socialista, com democracia, liberdade e que tem em cada pessoa que vive do seu trabalho o ponto de apoio. A construção coletiva em classe nos exige superar a ordem total das coisas e para isso investimos e com esse compromisso nos organizamos.

    Então que venha o primeiro de maio e que todas as conquistas históricas da classe trabalhadora seja um portal pujante para novas conquistas. Que façamos desse dia uma marca indiscutível que as mudanças são possíveis e necessárias para um mundo sem explorados e exploradores. Nossa unidade é potente, internacional e profundamente repleta de condições para a conquista de uma vida melhor e mais humana, rumo ao socialismo, que enche nossas vidas e nossa práxis revolucionária.

  • Deputadas estaduais do PSOL  promovem dia de formação política no RJ

    Deputadas estaduais do PSOL promovem dia de formação política no RJ

    Deputadas estaduais do PSOL
    promovem dia de formação
    política no RJ

    No Dia Nacional da Trabalhadoras Domésticas, a deputada estadual do PSOL – Minas Gerais, Andreia de Jesus, e a deputada estadual do PSOL – Rio de Janeiro, Renata Souza, realizaram um dia de formação sobre o trabalho doméstico e a previdência social na Comunidade da Maré, local de moradia e luta de Marielle Franco. Andreia e Renata contaram as suas trajetórias como ex-trabalhadoras domésticas até chegar as assembleias legislativas em seus estados. O evento também contou com a presença da dirigente do PSOL-RJ, Maria do Socorro.

    Em outra atividade, as duas deputadas junto com a também deputada Mônica Francisco (PSOL-RJ), foram até a Ocupação São Januário, organizada pelas Brigadas Populares, para falar sobre o direito à cidade e à moradia digna para cerca de 150 famílias que vivem no local.

    “O povo constrói política, fazer a ocupação, construir casa com o próprio braço é política. Colocam na cabeça da gente que política é só o que eu e Renata fazemos. Quando a gente fala que é a primeira vez que em mais de 100 anos é a primeira vez que tem uma mulher negra sentada naquela cadeira, é porque era só europeu, só homem rico. Quem ganha a eleição nunca pisou numa comunidade”, comentou Andreia de Jesus.

    “A nossa mandata trabalha articulada com os movimentos sociais, ouvindo e tentando resolver as demandas trazidas pela população. Todo mundo tem direito a uma casa para morar. Nós, através da nossa atuação parlamentar, trabalhamos para que todas e todos tenham uma vida mais digna e para que seus direitos sejam garantidos”, relata Renata Souza.

  • FOTOS: Celebração de alteração de nome da FLCMF

    FOTOS: Celebração de alteração de nome da FLCMF

    FOTOS: Celebração de
    alteração de nome da FLCMF

    Tivemos a honra de ter o nome da Fundação duas personalidades históricas, seja pelo seu acúmulo teórico ou por ações práticas que simbolizam a elaboração e a prática na perspectiva de um novo mundo. A Fundação tem como objetivo contribuir na memória, elaboração e formação de todos aqueles que estão engajados na defesa de uma sociedade justa, igualitária, soberana, humana e sem exploração. Lauro Campos e Marielle Franco, presentes!

  • Reforma da Previdência: a vez do cada um por si!

    Reforma da Previdência: a vez do cada um por si!

    Reforma da Previdência:
    a vez do cada um por si!

    A disputa em torno das mudanças nas regras das aposentadorias esconde uma dinâmica perversa: a Previdência deixa de ser um direito público, solidário e universal e um mecanismo de distribuição de renda. Em seu lugar, entra o regime de capitalização, uma espécie de poupança individual, sem garantia alguma de que, na velhice, o trabalhador terá o suficiente para sobreviver

    Por Rosa Maria Marques
    economista, professora titular da PUCSP

    Trinta e um anos depois da promulgação da chamada Constituição Cidadã, que balanço podemos fazer dos direitos previdenciários da população brasileira definidos na Carta? Se o movimento democrático que encerrou o período da ditadura militar foi coroado de avanços nesse campo, estendendo benefícios aos trabalhadores rurais, adotando o piso de um salário mínimo e introduzindo cálculo do valor da aposentadoria mais favorável aos segurados, entre outros, os anos que se seguiram foram de constantes ataques à Previdência Social.

    Lembremos que, mesmo antes da promulgação do texto constitucional, o então presidente, José Sarney, em mensagem televisiva “alertou” a todos que os novos direitos sociais, neles incluídos os previdenciários, iriam levar a uma situação explosiva das finanças públicas.

    Duas décadas de reformas

    De lá para cá, ocorreram duas reformas previdenciárias, a de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1999) e a de Lula (2003) e, como uma constante, ao longo dos 31 anos, houve vários ajustes alterando as condições de acesso e valores de benefícios.
    A reforma de FHC centrou-se no Regime Geral da Previdência Social (RGPS), introduzindo um redutor do valor do benefício em função da expectativa de sobrevida do segurado no momento da aposentadoria (o chamado fator previdenciário) e a cobrança de uma contribuição sobre os benefícios (uma excrecência em termos previdenciários).

    Já Lula dirigiu a reforma para os servidores públicos, implantando um teto para o valor do benefício (no lugar do valor correspondente ao salário da ativa) e introduzindo idade mínima para o requerimento da aposentadoria. Vale lembrar que os aspectos tratados na reforma de Lula foram exatamente aqueles que FHC não conseguir aprovar em 1999. Nessa última fase, contaram com o apoio do Partido dos Trabalhadores.

    Esta é a primeira vez que o regime de capitalização é encampado por um presidente da República. A lógica é a mesma que levou à implantação do teto do gasto do governo federal por vinte anos

    Mais recentemente, em dezembro de 2016, Michel Temer encaminhou para avaliação do Congresso Nacional proposta que tentava aproximar o RGPS do regime dos servidores, bem como tratar de maneira igual os trabalhadores rurais e urbanos, os homens e as mulheres. Essa “harmonização” entre os regimes e entre as clientelas e gêneros seria feita basicamente mediante os critérios de idade e de tempo de contribuição, alterando substancialmente o valor do beneficio a ser pago. Dada a reação enfrentada junto à população em geral, aos movimentos sociais e mesmo entre os deputados, a proposta inicial foi modificada pela comissão da Câmara e acabou não sendo apresentada ao plenário.

    Eis que, com a vitória de Jair Bolsonaro à presidência da República, novamente a reforma previdenciária está em pauta. A proposta elaborada pelo executivo foi encaminhada para a apreciação no Congresso Nacional em 20/02/2019. Além dos aspectos que são retomados e aprofundados da proposta de Temer, tal como a definição de idade, a elevação do tempo mínimo de contribuição e a redução do valor da aposentadoria, chama atenção a desindexação do piso dos benefícios ao salário mínimo e a introdução de um regime de capitalização.

    Qualquer desses aspectos mereceria reflexão sobre quais seriam as consequências para os trabalhadores. Sem menosprezar os demais, vamos aqui tratar de apenas um: o regime de capitalização, dada que a adoção implica não só uma mudança qualitativa nos fundamentos da proteção social do país, como na relação do Estado com os cidadãos e as famílias, pois pensa estruturar a sociedade unicamente a partir do indivíduo.

    O que está em jogo na discussão atual

    Não é a primeira vez que o regime de capitalização é proposto no Brasil. É, isso sim, a primeira vez que essa proposta é claramente encampada por um presidente da República. Em meados dos anos 1990, entre as mais de vinte propostas em discussão sobre a reformulação da Previdência Social, havia aquelas considerando que a proteção social era responsabilidade individual do cidadão.

    Situadas no campo neoliberal, justificavam que, somente adotando um sistema privado e de capitalização, as pessoas teriam estímulo para melhorar o rendimento e, por consequência, aumentarem a capacidade de poupança, criando as bases necessárias para a sustentação financeira do desenvolvimento do país. Para os defensores, o financiamento deveria ser unicamente sustentado pelo trabalhador/indivíduo.

    No regime de capitalização, as contribuições são depositadas em contas individuais que, ao serem aplicadas junto ao mercado financeiro, devem render juros, ou seja, são capitalizadas. No momento da aposentadoria, o valor acumulado ao longo dos anos é utilizado para prover uma renda mensal ao segurado. Não há nesse tipo de regime, nenhum tipo de solidariedade

    Dessa forma, seria eliminado – no entender dessa perspectiva – o desestímulo à contratação no mercado de trabalho, pois os encargos sociais seriam ou eliminados no todo ou sensivelmente diminuídos, o que permitira aumentar a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional, aumentando as exportações. Além disso, como reconheciam que o mercado não é totalmente perfeito, de forma que alguns indivíduos são submetidos a situações de carência, admitiam a ação assistencial do Estado (MARQUES, BATICHI, MENDES, 2003). Como vimos, especialmente no governo Dilma Rousseff, parte dessa concepção acabou, por linhas tortas, sendo implantada: em 2014, 56 setores de atividade estavam desonerados das cotizações calculadas sobre a folha de salários. Nenhum efeito relevante sobre o nível das exportações do país foi observado.

    Apesar da similitude, o centro da defesa pública da reforma previdenciária da equipe de Bolsonaro é outro, distanciando-se, em certa medida, daquela dos anos 1990. É o mesmo que levou à implantação do teto do gasto do governo federal por 20 anos: evitar o crescimento desmesurado da despesa, fruto do envelhecimento da população e da existência de supostos privilégios. Esse é o discurso dos que advogam a necessidade premente de realizar uma alteração substantiva na Previdência Social.

    Mas estão enganados aqueles que atentam apenas para isso, muito embora seja de suma importância demonstrar que recursos haveria para financiá-la, caso fosse outro o tratamento com relação aos devedores da Previdência, fosse outra a política de renúncia fiscal, entre outros aspectos.

    É importante perguntarmos, por exemplo, qual o motivo de, em meio à manutenção do novo regime fiscal, que congelou o gasto por vinte anos, estar-se propondo a introdução de um regime de capitalização para os novos segurados? Afinal, como sabido, isso resultará na diminuição do fluxo de entrada de recursos à atual Previdência Social, seja ela da clientela que for (dos trabalhadores do mercado formal, dos servidores públicos, dos militares, etc).
    Vejamos as razões ocultas. Para isso, é importante se diferenciar o regime de capitalização do regime de repartição.

    Solidariedade e individualismo

    A Previdência Social brasileira é estruturada enquanto um regime de repartição, de maneira que os trabalhadores e servidores que hoje contribuem financiam ou pagam as aposentadorias e pensões atuais. É um regime solidário, construído com base num pacto entre as gerações. A geração que está trabalhando no mercado formal financia os trabalhadores do passado, hoje aposentados. Pode-se dizer, ainda, que há uma solidariedade vertical, pois os trabalhadores com maiores salários contribuem relativamente mais do que os de menor renda. Isso ocorre mesmo considerando-se a existência de uma alíquota máxima sujeita a teto (de R$ 5.839,45 – para janeiro de 2019).

    Isso porque, num regime de repartição, as contribuições obrigatórias pagas pelos trabalhadores e pelos empregadores são definidas como coletivas na sua natureza. Isso implica que não há correspondência direta ou imediata entre o esforço contributivo do trabalhador (o que ele paga ao longo da vida ativa) e o que ele irá receber quando, por exemplo, se aposentar. Há, portanto, uma solidariedade também entre membros de uma mesma geração.

    A proteção organizada pelo Estado, da qual o RGPS é um exemplo, constitui um sistema de solidariedade coletiva. Para os críticos desse sistema, a não correspondência perfeita entre as contribuições e o benefício é motivo suficiente para demandar a substituição por qualquer outra forma de poupança privada ou de seguro, que obedeçam às leis de mercado (MARQUES, EUZÉBY, 2005).

    No regime de capitalização, não há dispositivos que garantam a complementação necessária para que o segurado receba uma renda básica ou mínima, financiada pelo Estado: ele pode, ao fim da vida ativa, receber um valor absolutamente irrisório

    Esse é um dos principais argumentos utilizados junto a segmentos de renda mais alta da população para justificar a adoção de um regime de capitalização. Para os defensores, é irrelevante o fato de o regime de repartição constituir também um mecanismo de distribuição de renda, mesmo que realizado entre os próprios trabalhadores do mercado formal.

    Já no regime de capitalização, as contribuições são depositadas em contas individuais que, ao serem aplicadas junto ao mercado financeiro, devem render juros, ou seja, são capitalizadas. No momento da aposentadoria, o valor acumulado ao longo dos anos é utilizado para prover uma renda mensal ao segurado. Quanto maiores forem as contribuições associadas ao trabalhador (dele e do empregador ou somente dele, tal como no Chile) e quanto mais render as aplicações, maior será o valor disponível para financiar a renda de aposentado. O contrário, também é verdadeiro. Não há, portanto, nesse tipo de regime, nenhum tipo de solidariedade.

    Além disso, em regimes de capitalização “puros”, isto é, sem dispositivos que garantam a complementação necessária para que o segurado receba uma renda básica ou mínima, financiada pelo Estado, o segurado pode, ao fim da vida ativa, receber um valor absolutamente irrisório. Isso porque os regimes de capitalização geralmente definem a contribuição, mas não o benefício. Sobre este, reina a incerteza. Tudo irá depender (além do montante contribuído) da rentabilidade das aplicações em um horizonte de longo prazo. Rentabilidade que é fruto de mercado extremamente volátil e especulativo.

    A instituição de um regime de capitalização pode ser combinada com a existência de uma aposentadoria de base, financiada mediante contribuições ou impostos, de modo que a renda derivada da capitalização constituiria um acréscimo ao valor de base. Não há indícios de que isso esteja sendo pensado pela equipe econômica do governo Bolsonaro. De qualquer forma, é bom lembrar que, na proposta do Banco Mundial dos anos 1990, a aposentadoria de base, de valores modestos, constituiria o primeiro pilar da proteção social por ele concebida. A renda derivada do regime de capitalização o segundo pilar e a poupança individual o terceiro pilar.

    Aumento da pobreza e do desamparo

    Hoje, em pleno século XXI, sabemos que um dos resultados das reformas previdenciárias realizadas na América Latina, (Chile, 1981; Peru, 1992; Argentina, 1994 – teve reversão para o público em 2007; Colômbia, 1993; Uruguai, 1996; Bolívia, 1998; México, 1997; El Salvador, 1998; Equador, 2001 e República Dominicana, 2003; Costa Rica, 2003, sistema misto; Nicarágua, 2004, sistema misto) foi o aumento da pobreza e do desamparo de parcela importante dos idosos desses países.

    Além de ter sido um desastre em termos sociais, principalmente levando em conta o nível de desigualdade de renda existente nos países da América Latina, é preciso lembrar que há um “custo de transição” de um regime para outro e isso também acontece no caso de ele ser misto. Parece no mínimo contraditório propor mudanças que diminuam o fluxo de ingresso de receitas, mantendo-se o gasto contínuo dos atuais aposentados e segurados, quando o governo abraça ferreamente a continuidade do teto do gasto. Quem irá pagar a conta?

    Frente a isso, cabe nos perguntarmos o que, de fato, está por trás da proposta de implantação de um regime de capitalização no Brasil?

    Individualismo e meritocracia: o “novo” princípio

    Deixemos de lado o largo interesse do setor financeiro, nacional e internacional na introdução de um regime de capitalização no Brasil. Isso é por demais evidente. O que queremos chamar atenção é para o fato de os fundamentos desse regime se coadunarem perfeitamente com os valores defendidos pelos ministros que constituem o grupo ideológico de apoio do governo Bolsonaro, a saber, os ministros da Educação, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e das Relações Exteriores. E, evidentemente, estarem de acordo com o pensamento de Olavo de Carvalho.

    A sociedade brasileira é profundamente marcada pelo seu passado escravocrata, pelo patriarcado, pelo conservadorismo e pela naturalização do convívio com elevados níveis de desigualdade em todos os planos: de renda, de patrimônio, de acesso aos bens e serviços públicos, etc.

    Ao lado disso, há uma forte aceitação do princípio da meritocracia, isto é, o entendimento de que são o esforço e dedicação de cada um que determinam sua inserção na sociedade, seja no mercado de trabalho, seja no mercado de consumo, e até mesmo na determinação das relações pessoais.

    Não foi por acaso que, medidas de “inclusão social”, especialmente desenvolvidas nos governos Lula e Dilma, tais como o Programa Bolsa Família, a política de cotas e de bolsas nas Universidades públicas, mas também a valorização do salário mínimo, receberam rejeição acentuada de setores da chamada classe média da sociedade, mas não ficou a ela restrita.

    O regime de capitalização, ao negar qualquer tipo de solidariedade – intergeracional ou entre níveis de renda do trabalho – reforça a ideia de que é o indivíduo o responsável por seu destino. Este – se estudar para se qualificar e trabalhar com afinco – terá formado, ao final da vida ativa, montante suficiente para que tenha uma renda de aposentadoria adequada. Enfim, o mérito associado ao indivíduo é que é entendido como a pedra basilar da construção da sociedade.

    Nessa perspectiva, a solidariedade, principalmente quando voltada para os setores de mais baixa renda e poucos inseridos nos mecanismos que possibilitam a adequada integração à sociedade brasileira, é vista como algo que desestimula a busca pela melhora individual, tornando-se, portanto, um peso para a sociedade.

    No lugar da solidariedade, um dos princípios do novo governo é enaltecer o individualismo e a meritocracia, reforçando um dos piores aspectos de nossa sociedade. É o vale tudo. É o cada um por si. Lutar contra isso é mais do que uma questão situada no campo previdenciário, é lutar pela construção de uma sociedade mais justa, na qual os desvalidos tenham direitos garantidos.


    Tipos de regime previdenciário

    Regime de repartição: as contribuições são recolhidas a um fundo único e esse é usado para financiar as aposentadorias e pensões. Por isso, diz-se que tem como característica principal a solidariedade entre as gerações, pois os segurados de hoje financiam os trabalhadores de ontem, que estão aposentados. As previdências públicas são, em geral, organizadas com base no regime de repartição.

    Regime de capitalização: as contribuições atinentes a um trabalhador são dirigidas a uma conta individual e os recursos capitalizados ao longo do tempo financiam a aposentadoria futura. É como se fosse uma poupança individual, mas as aplicações não são definidas pelo trabalhador e sim pela administradora que controlar a conta


    Referências: MARQUES, Rosa Maria; BATICH, Mariana; MENDES, Áquilas. Previdência Social Brasileira: um balanço da reforma FHC. São Paulo em Perspectiva, vol.17 nº1. São Paulo, Fundação Seade, Jan./Mar. 2003; MARQUES, Rosa Maria, EUZÉBY, Alain. Um regime único de aposentadoria no Brasil: pontos para reflexão. Nova Economia, vol. 15, nº 3. Belo Horizonte, Setembro./Dezembro 2005.
  • Mesa Estadual de Diálogo e Negociação do Estado de Minas Gerais (MG): histórico de criação, funcionamento e perspectivas

    Mesa Estadual de Diálogo e Negociação do Estado de Minas Gerais (MG): histórico de criação, funcionamento e perspectivas

    Mesa Estadual de Diálogo e Negociação
    do Estado de Minas Gerais (MG): histórico de
    criação, funcionamento e perspectivas

    • Andreia de Jesus – Deputada Estadual em Minas Gerais (PSOL) e Advogada Popular. 
    • Bella Gonçalves – Vereadora em Belo Horizonte (PSOL) e cientista política.
    • Luiz Fernando Vasconcelos – Advogado Popular, militante das Brigadas Populares e assessor da Deputada Andreia de Jesus
    • Rafael Bittencourt – Sociólogo, militante das Brigadas Populares e assessor da Deputada Andreia de Jesus

    Terra para plantar e casa para morar não são caso de política e sim de políticas sociais, por isso os conflitos sociofundiários devem esgotar as possibilidades de diálogo e mediação com ativo envolvimento dos poderes públicos e sociedade civil. Essa é o acúmulo de entendimento que os movimentos sociais e setores avançados do Sistema de Justiça e do Poder Executivo estabeleceram nos últimos anos a “Mesa Estadual de Diálogo e Negociação Permanente com Ocupações Urbanas e Rurais e outros grupos envolvidos em conflitos socioambientais e fundiários” em Minas Gerais.

    A Mesa de Diálogo foi instituída por meio do Decreto nº 203, de 1º de Julho de 2015, com alterações feitas pelo Decreto nº 520, de 28 de Setembro de 2016, do então Governador de Minas Gerais – Fernando Pimentel (PT) – com o objetivo inicial de mediar e solucionar conflitos fundiários de luta pela terra e pela moradia, em todo o estado de Minas Gerais.

    A Mesa de Diálogo foi um importante espaço de mediação de conflitos fundiários, criado via Decreto do Poder Executivo. Ocorre que, não podemos deixar que se esqueça, esse instrumento não foi concebido e implantado por mera vontade do Governo Estadual. Ao contrário disso, houve muita luta e muita pressão popular para que fosse aberto algum canal de diálogo entre as/os sem-teto, moradoras/res de ocupação e movimentos sociais com a institucionalidade.

    Assim, faz-se necessário relembrar fatos importantes do histórico de luta do povo, que acabou por desencadear o estabelecimento da Mesa Estadual de Diálogos:

    Em 2014, as ocupações urbanas de Minas Gerais realizaram vários atos de resistência e de repúdio aos despejos e às ameaças de reintegrações de posse. Cumpre lembrar que, no dia 24 de setembro de 2014, período pré-eleitoral, foi realizado um grande ato pelo “#DespejoZero”, em Minas Gerais, organizado pelas Brigadas Populares, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG), pelo Movimento de Luta nos Bairros e Favelas (MLB) e pelo Movimento Luta Popular, além de mais de dez ocupações urbanas da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). O mote da ação era a rejeição e a denúncia das remoções injustas e violentas que vinham acontecendo no Estado contra o povo pobre que formam as/os sem-teto e as/os moradores de ocupações. Buscava-se, ainda, tendo em vista a proximidade das eleições, forçar a celebração de algum compromisso por parte do novo governo estadual contra os despejos forçados que estavam sendo realizados sem qualquer alternativa digna de moradia àquelas populações. (Ver nota aqui: https://brigadaspopulares.org.br/manifesto-despejo-zero-em-mg/).

    No dia 10 de março de 2015, aconteceu na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o seminário “Conflitos Fundiários em Minas Gerais e o direito à cidade”, o qual reuniu diversos setores da sociedade civil, grupos de pesquisa e extensão universitária, movimentos sociais, rede de apoio das ocupações e outros atores, para opinarem sobre os contornos normativos da planejada Mesa de Diálogo.

    No dia 18 de março de 2015, aconteceu um ato nacional intitulado “Periferia Ocupa a Cidade! Reforma Urbana de Verdade!” realizado pela Resistência Urbana – Frente Nacional de Movimentos. Tal ato polarizou com o ato em favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff realizado no dia 15 de março e com o ato puxado pelo até então campo governista no dia 13 do mesmo mês.  Foram realizados, ao todo, 22 trancamentos de importantes rodovias, em 7 estados do país. Uma das reivindicações foi que as comunidades e movimentos sociais deveriam ser tratados como caso de política pública e não de polícia pelos governos e pelo Poder Judiciário, além de defender a suspensão de todos os despejos e urbanização das áreas ocupadas, garantindo o pleno acesso aos bens e serviços públicos essenciais para o exercício do direito à cidade. (Ver nota aqui: https://brigadaspopulares.org.br/ato-nacional-periferia-ocupa-a-cidade-reforma-urbana-de-verdade/ )

    Só em Minas Gerais ocorreram 9 trancamentos, 6 em Belo Horizonte e 3 em Uberlândia. Nesta cidade 3 rodovias foram interditadas pelo Fórum das Ocupações Urbanas, que reúne mais de 20 comunidades e 12 mil famílias. Na RMBH, o fluxo da Linha Verde foi interrompido em dois pontos distintos, assim também o foi no Anel Rodoviário, ademais de trancamentos da Via do Minério, no Barreiro, e da BR 040, em Contagem. Em solidariedade, estudantes da UFMG fecharam a Av. Antônio Carlos, na porta da Universidade. Tais ações foram articuladas pelas Brigadas Populares, MLB, CPT-MG, Luta Popular e Frente Terra e Autonomia (FTA). (Ver nota aqui: https://brigadaspopulares.org.br/o-brasil-parou-sobre-o-ato-nacional-periferia-ocupa-a-cidade-reforma-urbana-de-verdade/).

    Em julho de 2015, então, após pressão popular, mobilização social autônoma de movimentos, de organizações políticas e pelo apoio de uma ampla rede de atores que atuam na luta pelo direito à terra, à moradia e à cidade em MG, conseguiu-se a publicação do Decreto nº 203/2015, que  instituiu a Mesa de Diálogo. Entre 2015 e 2018 mais de 300 (trezentos) conflitos fundiários passaram pela Mesa de Diálogo abarcando uma diversidade de movimentos sociais e diversos sujeitos como indígenas, quilombolas, sem-teto, sem-terra, povos tradicionais envolvendo conflitos urbanos, rurais e socioambientais.

    Um dos casos mais emblemáticos da Mesa de Diálogo foi a resolução do conflito das ocupações da Izidora (Rosa Leão, Esperança e Vitória), que reúnem mais de 8.000 famílias, garantindo-se a segurança da posse para 70% do território. Ver nota aqui. Também o encaminhamento para acordo de resolução do conflito envolvendo os indígenas Kiriri e a Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), bem como o acesso à políticas públicas para a Comunidade Quilombola do Córrego Mestre.

    A cultura da mediação de conflitos fundiários se contrapõe à constituição de um sistema de justiça e de um Estado racista, patriarcal e patrimonialista. A mediação de conflitos coletivos possibilita que outras vozes surjam e se façam ouvidas de maneira que a função social da posse e da propriedade, a vida cotidiana das comunidades, sua luta e sua resistência apareçam na gestão do conflito e que a visão autoritária e garantidora da propriedade absoluta, acima dos direitos fundamentais, não seja a única tônica.

    Importante realçar que a Mesa de diálogo encontra um limite se ela não é atrelada a um Programa de Regularização Fundiária a ser constituído com a participação dos movimentos sociais e sociedade civil em geral e pelos órgãos Estaduais pertinentes. A resolução de conflitos envolvendo comunidades deve contar com a participação ativa do Poder Público e ser orientada pela regularização fundiária dos territórios bem como no acesso a direitos. Para isso deve haver um banco de terras para permuta, um corpo técnico para aplicação dos instrumentos de regularização fundiária previstos no ordenamento jurídico, um fundo financeiro e uma atuação intersetorial entre os órgãos públicos no sentido de garantir a efetividade dos direitos humanos.

    A Mesa de Diálogo está inoperante desde o início da gestão do Governador Romeu Zema (Novo) e despejos forçados, com uso de violência e força policial estão acontecendo no Estado em desrespeito à legislação internacional e a procedimentos internos da própria PM.

    Na esfera do Governo Federal o autoritarismo fascista está instalado haja vista o Decreto 9759-2019 que extingue os Conselhos Colegiados de Participação Popular – que visavam ampliar a esfera de diálogo entre o poder instituído e a sociedade civil. O Governo atual em Minas Gerais, na mesma linha, esvaziou a experiência da Mesa de Diálogo em Minas Gerais que apontava para a tentativa de aumentar a esfera de participação popular na resolução de conflitos fundiários de diversas matizes. Os casos que aportaram nesse instrumento envolveram indígenas (Etnia Tuxá, Pataxó Geru Tunã, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Xucuru Cariri), quilombolas (Comunidade Quilombola Vargem do Inhaí, Comunidade Quilombola Mata dos Criolos, Quilombo de Praia, Quilombo da Lapinha, Comunidade Quilombola de Raiz, Comunidade Quilombola de Peixe Bravo, Comunidade Quilombola das Comunidades Nativas do Arapuim), Povos Tradicionais (Comunidade de apanhadores de sempre-vivas, Comunidade Pesqueira Artesanal de Canabrava, Comunidade de Gerazeiras, Comunidades Veredeiras, Comunidades Vanzanteiras), ciganos (Calon) e até mesmo uma colônia de Hansenianos.

    No dia 11 de abril aconteceu uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), convocada pela Deputada Andreia de Jesus (PSOL), em que a posição do Poder Executivo foi de afirmar que a Mesa de Diálogo estava em reformulação e não será extinta, mas em mais de três meses de governo não houve sequer uma reunião de mediação de conflitos fundiários.

    A Mesa de Diálogo é um mecanismo importante para elevar o tratamento dos conflitos coletivos possessórios urbanos e rurais buscando enfrentar a violência manifesta no cumprimento de ordens de reintegração de posse, mas é um instrumento que deve ser utilizado a partir da luta coletiva das comunidades envolvidas e através da construção do Poder Popular – força diretiva da criação de novas sociabilidades e responsável pela efetividade de direitos humanos.

    Reconhecemos a importância da Mesa de Diálogo, mas sabemos que a democracia participativa e institucional encontra limites sendo que somente uma democracia com Poder Popular, territorializada, partilhada pelo cotidiano comunitário, focada na autonomia dos sujeitos coletivos, será capaz de construir uma nova realidade.

  • Crise do Pacto Federativo: a Lei Kandir

    Crise do Pacto Federativo: a Lei Kandir

    Crise do Pacto Federativo: a Lei Kandir

    Este artigo é o segundo de uma série elaborada a partir da Fundação Lauro Campos para o Observatório da Democracia que tem como objetivo analisar a crise do pacto federativo e suas implicações na conjuntura brasileira. O presente artigo trata do papel da Lei Kandir na interdição do Pacto Federativo.
    Pedro Otoni é Mestre em Ciência Política, especialista em Economia Política, bacharel em Direito e colaborador da Fundação Lauro Campos

    A crise do Pacto Federativo Brasileiro é provocada pela ação de três mecanismos – Dívidas Públicas Estaduais, Lei Kandir e Lei de Responsabilidade Fiscal – que atuam de maneira simultânea ao desestabilizar a relação entre União, estados e municípios, criando uma situação de obstrução das prerrogativas constitucionais dos dois últimos em favor dos compromissos e a discricionariedade da primeira.

    As Dívidas Públicas Estaduais, a Lei Kandir e a Lei de Responsabilidade Fiscal funcionam como as três cabeças da criatura mitológica que guardaria a porta do inferno, um cão chamado Cérbero. Este seria dócil com as almas que entram no vale dos mortos, mas cruel com quem tentasse sair. A metáfora parece apropriada para visualizar os impactos destes mecanismos no aprofundamento da crise federativa em curso. A nação entrou facilmente no inferno, mas o monstro tricéfalo não deixará que ela saía da mesma forma.

    No primeiro artigo da série sobre a crise do pacto federativo brasileiro, tratei da questão da dívida pública estadual como mecanismo de interdição do sistema federativo brasileiro. Agora apresento o segundo mecanismo, a segunda cabeça da criatura infernal, a Lei Complementar 87/1996, mais conhecida como Lei Kandir.

    Lei Kandir: “exportar é o que importa”

    A valorização da moeda promovida pelo Plano Real teve como efeito colateral o déficit na balança comercial pós-1994. Com o real valorizado, o valor das importações ultrapassou o das exportações, levando o país a uma situação deficitária frente ao exterior. A solução escolhida pelo governo foi aprofundar a condição primário-exportadora do país, ou seja, apostou na ultra-especialização na atividade primária e abandonou qualquer possibilidade de retomada da industrialização.

    Um dos mecanismos para equilibrar a balança comercial e com isso produzir superávit foi a isenção do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), imposto de competência estadual, para produtos primários e semi-elaborados, que ganhou formato legal com a aprovação da Lei Kandir.

    A tática foi diminuir o preço das commodities, via isenção do imposto estadual, e com isso ampliar a chamada “competitividade” dos produtos no mercado internacional. Porém, com esta medida, a economia se especializou ainda mais nas atividades de baixa tecnologia comprometendo o desenvolvimento econômico, o emprego, o meio ambiente, e a arrecadação dos estados e municípios. Nada mais importa, senão a exportação e o superávit de baixo perfil da balança comercial.

    Impasses em torno da regulamentação da Lei Kandir

    Para conter a revolta dos estados e municípios, os principais impactados pela Lei Kandir, o governo assegurou a compensação por perdas dela decorrentes, por meio da Lei Complementar 115/2002, que fixa a transferência dos valores paras as unidades federadas nos exercícios financeiros de 2003 a 2006.

    As compensações voltaram a ser tratadas na Emenda Constitucional n° 42/2003, que adiciona o Art. 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) a dá redação que garante o repasse de 75% para os estados e 25% para os municípios relativo ao montante de suas perdas com a isenção do ICMS sobre produtos in natura e semi-elaborados e indica a regulamentação do mesmo por lei complementar.

    Porém nem os valores devidos foram repassados integralmente até 2006, existindo divergência sobre os mesmos, nem a Lei Complementar indicada pela EMC n°42 foi aprovada. Por isso continuou ocorrendo o repasse para alguns estados, por pressão dos governadores em meio a medidas judiciais. O sistema de repasse é precário, pois é negociado anualmente no escopo da discussão do Orçamento da União, utilizando-se ainda dos dispositivos da LC 115/2002.

    A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 25, foi julgada procedente pelo STF e indicava o prazo de 12 meses para a aprovação da Lei Complementar sobre o tema, ou, caso não ocorresse, indicava que o Tribunal de Contas da União (TCU) como responsável provisório pelos cálculos dos repasses devidos às unidades federadas. O tempo se esgotou ano passado, o TCU e a Câmara batem as cabeças, e o impasse permanece.

    Desde de 1996, a União acumulou uma dívida com os estados e municípios em um montante de R$ 548,7 bilhões.

    Compensar ou Revogar a Lei Kandir

    A Lei Kandir foi uma invasão flagrante sobre a competência tributária dos estados dentro de um sistema federativo. A atividade primário-exportadora é uma fonte estratégica de recursos para os cofres estaduais e municipais. Estes dependem dos recursos das atividades primárias para a formação do fundo público e financiamento de serviços fundamentais como educação, segurança, saúde, bem como em programas de apoio à diversificação produtiva.

    Além de não repassar o valor devido aos estados e municípios a título de compensação, a União condena os demais entes a reprodução eterna da dependência das atividades primário-exportadoras. Sem recursos para investimentos públicos, não há condições de fomento a atividades industriais no nível local e a ruptura com o círculo vicioso da produção de matérias-primas para a indústria dos países centrais.

    A manutenção da compensação, por sua vez, mesmo que resolva emergencialmente os problemas dos entes federados, penaliza a população em geral, porque obriga a União a retirar de outras fontes de receita recursos e transferi-los para estados e municípios. Este tipo de operação beneficia apenas as empresas dedicadas à atividade primário-exportadora, pois não cria uma fonte de tributação que permita utilizar a exportação como instrumento para o desenvolvimento nacional.

    Os que advogam pela manutenção da isenção indicam a compensação como instrumento de mediação apoiados no art. 153, II da CF que o Imposto de Exportação é de competência exclusiva da União e teria uma função regulatória que disciplinaria o fluxo de exportação. Porém, se este tipo de disciplina regulatória existente agride a sustentação dos demais entes federativos, ele precisa ser debatido e pactuado de maneira mais ampla, caso contrário a crise da federação se torna insolúvel.

    Neste sentido, a solução sustentável é a revogação completa da Lei Kandir, uma discussão estratégica sobre o papel do setor primário-exportador no desenvolvimento nacional e assim a criação de um dispositivo legal de caráter federativo que indique as parcelas do imposto das exportações primárias que corresponde a cada ente, permitindo que este use do aumento ou da diminuição de sua parte de maneira ajustada aos seus interesses arrecadatórios, e com isso ampliar sua capacidade de garantir o financiamento dos serviços públicos e de atividades de diversificação produtiva, saindo do círculo vicioso mencionado anteriormente.

    A base social e política do governo será testada

    A base do governo Bolsonaro será colocada a prova na discussão sobre a Lei Kandir. Os governadores pressionam o presidente da Câmara para assumir o compromisso com a elaboração da Lei Complementar e normatizar os repasses de caráter compensatório. No senado, o Projeto de Lei Complementar 511/2018 (PLC) tramita no mesmo sentido e encontra-se pronto para entrar na pauta do Plenário. Resta saber qual será a postura dos congressistas da base do governo neste tema.

    Estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul encontram-se em dificuldades tão dramáticas, que não possuem recursos para honrar com a folha de pagamento do funcionalismo público. Os governadores destes três estados apoiaram aberta ou tacitamente a candidatura de Bolsonaro no 2° turno, e possuem a difícil tarefa de governar sem recursos. Continuarão dóceis ao executivo federal ao mesmo tempo, que com isso, colocam em risco a própria viabilidade do seu governo?

    O bolsonarismo irá às urnas nas eleições municipais de 2020. Qual será o discurso? Como lidar com a situação de indigência dos cofres dos municípios?

    São questionamentos que irão aparecer, tendo, inclusive, como difusores trabalhadores dos serviços públicos que contribuíram com a vitória de Bolsonaro, como o da segurança pública que hoje tem seus salários parcelados em alguns estados. Estados e municípios serão palco de greves e mobilizações cuja as reivindicações não terão resposta pelos seus governos dentro do estrangulamento orçamentário que vários destes entes se encontram.

    Cabe a nós, setores empenhados na resistência popular e democrática do país enfrentarmos o debate sobre a crise do pacto federativo, não como um exercício meramente parlamentar, mas como um pedagogia de massas conectada diretamente às necessidades concretas do povo. Demonstrar que o projeto instalado no governo federal aprofunda as contradições históricas de nosso modelo federativo e impede por diversos mecanismos a efetivação dos direitos fundamentais básicos.

    A discussão sobre um novo pacto federativo e a luta pelos direitos são caminho para unir o que foi dividido nas últimas eleições. É a luta da nação, do povo, das suas organizações representativas e das lideranças estaduais e municipais, que, em unidade, devem enfrentar o monstro de três cabeças, o cão Cérbero, que impede que a federação seja reconduzida ao mundo dos vivos.