Autor: Redação Lauro Campos

  • Forças Armadas não podem servir aos coronéis

    Forças Armadas não podem servir aos coronéis

    Forças Armadas não podem servir aos coronéis

    Por Francisvaldo Mendes

    A Constituição de 1988 assegura, já nos artigos primeiro e segundo, os seguintes termos: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.  Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

    Portanto, a carta que estabelece a organização máxima no poder intitulado ESTADO DEMODRÁTICO DE DIREITO, não inclui as Forças Armadas entre os “poderes do Estado”. Mais que isso, é uma instituição de dentro do Estado, e serve aos poderes de Estado. Não há equivalência de poder, reponsabilidade e centralidade, para o Estado brasileiro, com a Constituição existente, entre FORÇAS ARMADAS e os poderes constituídos. E, vale lembrar, que a Constituição afirma que TODO PODER EMANA DO POVO, que o exerce por meio de representantes que foram eleitos, pelo próprio povo e fazem o que está organizado na Constituição. Assim sendo, a peça da democracia é a Constituição, sendo a lei maior de uma nação.

    As chamadas FORÇAS ARMADAS, aparelhos de Estado voltados principalmente para a soberania, não podem ser reduzidos a aparelhos patrimonialistas que servem para satisfazer os interesses particulares de governantes ou “coronéis civis”. Ou seja, as Forças Armadas não são aparelhos de propriedade de militares, nem de qualquer poder de Estado exclusivo, mesmo dentre os Constituídos pela própria Carta Magna do País.

    As diretrizes das Forças Armadas, por sua vez, não podem ser manipuladas por quaisquer pessoas, somente por exercer a representação de algum dos poderes da República. Essa regra básica, que foi desrespeitada para impor e manter a Ditadura Militar, imposta no Brasil em 1964, não pode ser novamente repetida em qualquer dos formatos, aparentemente inovadores, com o advento da tecnologia da internet ou com as novas estéticas de produção e controle no capitalismo.

    Nós somos socialistas e libertários, portanto, a democratização é um processo contínuo, intenso e participativo, de empoderamento dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil, com o intuito de aglutinar um nível de consciência que acumule para a consciência de classe. Mas não estamos nesse estágio de organização e, para além disso, ainda nos é imposto um nível educacional com atraso dos conhecimentos básicos da história. Não podemos, portanto, deixar de defender a base mínima da garantia da vida pelo modelo de convivência social menos pior: O ESTADO DEMORÁTICO DE DIREITO.

    Portanto, as Forças Armadas não podem se submeter aos interesses de minorias, majoritariamente gananciosas, que querem subverter suas existências. Ao contrário, precisam cumprir o papel básico Constitucional para defender a nação e organizar a Marinha, Aeronáutica e Exército, como instrumentos para um poder soberano e independente. Assim devem se estruturar de forma mais eficiente e qualificada, através das pessoas que vendem a sua força de trabalho para o Estado, se dedicando a construção dessa instituição subordinada a Democracia com o objetivo de garantir a soberania do Brasil. A manutenção soberana precisa seguir e respeitar, pelos princípios da democracia, como consta na Constituição o pluralismo político, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

    Infelizmente, nos tempos atuais o Poder Executivo, poder com ascensão sobre as Forças Armadas, desrespeita quotidianamente a Constituição em todos os seus aspectos. A não existência da veia democrática, no presidente da república, está na forma desrespeitosa como trata as instituições do próprio Estado fazendo parecer que é “dono” de toda a corporação militar com desrespeito a dignidade humana dos próprios componentes das Forças Armadas.

    Esse comportamento precariza, o papel das Forças Armadas e deturpa a relação das instituições com a democracia, e por isso a correção de rumos deve ser perseguida na proteção da democracia brasileira e fazer valer a CONSTITUIÇÃO aprovada em 1988. Apesar de estar toda remendada, trata-se do intrometo de consenso nacional aprovado pelos poderes constituídos e que nenhum personagem desrespeitoso, inescrupuloso e desabilitado – como se assume o presidente atual – pode transgredir. Coloca-se assim a importância de constituir, respeitar e reforçar fóruns para a defesa da democracia, das leis e das instituições. Não é possível a convivência com rompantes de autoritarismo e descaso com a nação, sem investimentos em vida, nem para comida no prato, nem para vacina no braço e ainda com uma narrativa lamentável de atraso colocando em risco, para além da democracia e da Constituição, a própria vida.

    A vida de todos e todas estão sendo desrespeitada com o modelo genocida predominando pelo Poder Executivo Federal, porém as Forças Armadas precisam seguir intactas defendendo a soberania popular.

  • Glauber Braga cobra informações sobre vinda do diretor da CIA ao Brasil

    Glauber Braga cobra informações sobre vinda do diretor da CIA ao Brasil

    Glauber Braga cobra informações sobre vinda do diretor da CIA ao Brasil

    Via Carta Capital

    Foi protocolado nesta terça-feira 6 um requerimento que pede informações sobre a reunião do governo federal com a Central Intelligence Agency, a CIA, cuja pauta não foi divulgada. O novo diretor da central de inteligência americana, William J. Burns, tinha agenda marcada na noite de quinta-feira 1 com os ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil). A manutenção da pauta em segredo já havia sido criticada em ofício da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia ao Itamaraty.

    Segundo informações da agenda de Ramos, o encontro teria ocorrido às 19h30 em Brasília, no Setor de Habitações Individuais Sul QI 5, número 46. O evento não apareceu na agenda do presidente Jair Bolsonaro, que costuma realizar transmissões ao vivo na internet no mesmo dia da semana e faixa de horário. A embaixada americana e o governo federal não responderam aos questionamentos de CartaCapital.

    O requerimento, assinado pelo deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), descreve que a reunião teria ocorrido na casa do embaixador americano Todd Chapman. Também lembra que, em vídeo publicado por site de apoiadores, Bolsonaro confirmou o encontro com Burns e citou a atual crise em outros países da América do Sul.

    O documento questiona se houve algum convite oficial do governo federal para o chefe da CIA; se informações sobre o encontro foram compartilhadas com outros órgãos públicos; quais os nomes de todas as pessoas presentes; quais as pautas tratadas; se a compra da vacina indiana Covaxin esteve entre os itens de discussão; se foi mencionado algum endosso da CIA para um golpe antidemocrático por parte do presidente da República; e se o presidente Jair Bolsonaro, pessoalmente ou pelos seus filhos, pressionou, orientou, recomendou, aconselhou ou advertiu a feitura dessa reunião.

    O texto também questiona a visita de Burns ao Palácio do Planalto, registrada na tarde daquela data, entre as 16 e 17 horas, com a presença do embaixador americano, do general Heleno, do ministro da Defesa, Braga Netto, e do diretor da Agência Brasileira de Inteligência, Alexandre Ramagem.

    “As intervenções desestabilizadoras do governo dos Estados Unidos em assuntos internos do Brasil, por meio inclusive de suas agências de inteligência, são de amplo conhecimento e atravessam décadas”, escreveu o deputado, citando o golpe militar de 1964, a espionagem de Dilma Rousseff em 2013 e a cooperação com a Operação Lava Jato.

    O requerimento também diz que “é inadmissível que a visita do Diretor da CIA ao Brasil e seu encontro com autoridades brasileiras seja mantida sob o manto de completo sigilo”, especialmente no momento em que Bolsonaro está “acuado” por denúncias de corrupção e por investigações de atos contra a democracia.

    Junto ao deputado David Miranda (PSOL-RJ), Braga também protocolou, na semana passada, requerimento de convocação de Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos à Comissão de Relações Exteriores da Câmara, presidida por Aécio Neves (PSDB-MG). Nesta quarta-feira 7, a Comissão deve ouvir o depoimento de Alexandre Ramagem.

    Nas redes sociais, Ramagem publicou uma foto ao lado de Burns.

    “Simbólica visita do Diretor-geral da CIA demonstrando a crescente importância do Brasil no cenário internacional. Identidade histórica e cultural de duas nações ocidentais, conservando valores fundamentais voltados à democracia representativa e ao interesse público”, escreveu.

    https://twitter.com/aramagem/status/1411106564119871497?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1411106564119871497%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.cartacapital.com.br%2Fpolitica%2Fdeputado-cobra-informacoes-sobre-vinda-do-diretor-da-cia-ao-brasil%2F

    Conforme mostrou a emissora colombiana NTN24, Burns cumpriu agenda em Bogotá antes de chegar a Brasília, para tratar de uma “missão delicada”. O assunto também não foi divulgado. O país, assim como o Brasil, passa por intensos protestos contra o presidente de direita Iván Duque, aliado da Casa Branca.

    Burns foi nomeado por Joe Biden neste ano e é conhecido por ser próximo do presidente. O diplomata de 64 anos foi aprovado por unanimidade no Senado, entre democratas e republicanos.

    A presença de Burns no Brasil foi questionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na internet.

    “Até agora ninguém explicou a vinda do diretor da CIA ao Brasil”, manifestou-se, nesta terça. “É preciso explicar. Os parlamentares precisam cobrar do governo americano.”

    Na semana passada, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, também criticou a visita de Burns ao Brasil e à Colômbia. Em discurso, o mandatário chavista afirmou que o almirante Craig Faller, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, também esteve em Bogotá para encontrar autoridades militares, reunião que foi chamada de “provocação” pelo Ministério da Defesa venezuelano.

    Na ocasião, Maduro disse cogitar que a CIA está planejando seu assassinato nessas visitas.

    “O presidente Joe Biden tem conhecimento dos planos de Craig Faller e do diretor da CIA para me assassinar e assassinar líderes políticos e militares da Venezuela? Biden autorizou o plano?”, questionou o presidente, em discurso exibido pela estatal Venezolana de Televisión. “São informações de primeira mão. Nossas fontes de inteligência que temos são precisas e confiáveis.”.

  • FLCMF oferece Curso de Formação Marxismo e Revoluções

    FLCMF oferece Curso de Formação Marxismo e Revoluções

    FLCMF oferece Curso de Formação Marxismo e Revoluções

    O curso será realizado no período de 01/07 a 30/09, de 19h às 20h, sempre às quintas-feiras, pela plataforma da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.

    Os objetivos do curso são: promover a formação acerca do tema do marxismo e a história das revoluções populares no mundo e no Brasil, como importante instrumento de memória das lutas sociais da classe trabalhadora e reflexão dos desafios atuais para a construção da revolução socialista no mundo e, em especial, no Brasil.

    As entidades parceiras acreditam que o processo de formação de diferentes gerações de militantes sobre o marxismo e a história das revoluções populares no mundo e, em especial, no Brasil, é fundamental para a elaboração de estratégias e táticas para a construção da revolução brasileira. Conhecer nosso passado de resistência indígena, negra e popular é central na compreensão da realidade brasileira e dos desafios do tempo presente.

    O curso será em formato de aulas online com a apresentação do tema de cada aula. A duração da exposição do conteúdo será de no máximo 50 minutos, seguido de questões apresentadas pelos/as participantes e respondidas pelo Professor João Antônio de Paula.

    As inscrições serão realizadas pela
    Plataforma da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.

    Programação:

    01 DE JULHO – As utopias na história
    08 DE JULHO – A luta pelo socialismo na primeira metade do século XIX
    15 DE JULHO – As Revoluções de 1848
    22 DE JULHO – O Marxismo
    29 DE JULHO – A Comuna de Paris
    05 DE AGOSTO – As correntes revolucionárias não marxistas
    12 DE AGOSTO – A Revolução Russa de 1905 e a …Revolução de 1910
    19 DE AGOSTO – O Socialismo no Brasil
    26 DE AGOSTO – A Revolução Chinesa, a Revolução Cubana
    02 DE SETEMBRO – A Revolução Russa de 1917 e a crise do socialismo real
    09 DE SETEMBRO – A Guerra Civil Espanhola
    16 DE SETEMBRO – As lutas populares no Brasil
    23 DE SETEMBRO – A Esquerda Brasileira 1930/1980
    30 DE SETEMBRO – Perspectivas da Revolução hoje

  • Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    EDITORIAL

    A revista SOCIALISMO E LIBERDADE tem desempenhado um papel fundamental no aprofundamento dos debates políticos entre os filiados do PSOL e entre entrevistas dos movimentos sociais. Com análises, formulações políticas e inspirações artísticas, chegamos a mais uma edição de número 32. A capa já diz muito, pois a necropolítica que nos é imposta já nos era forçada nos ajustes fiscais e se ampliaram com a política de morte, compulsória para a maioria, e que foi ampliada quando iniciou a pandemia.

    Os “donos do poder” conduzem, por meio da força, da ideologia das mentiras e falsidades, das imposições desavergonhadas, a falsa defesa da democracia. É imposto, para a maioria das pessoas, uma ditadura por meio das leis de exceção que segrega a sociedade em alguns privilegiados em detrimento da maioria de explorados.

    Se não bastasse o descalabro político que nos é imposto, ainda somos empurrados para uma natureza destruída em nome do lucro. Porém, não devemos desistir de preservá-la, haja vista que se ela for destruída, inclusive nós, seres humanos, que somos parte desse grande universo natural, cairemos em extinção, pois várias formas de vírus surgirão com a falta da própria natureza para controlá-los.

    A relação destrutiva com o ambiente, afeta o sistema por inteiro e a chamada “crise ecológica” é, na verdade, mais uma face da crise estrutural do capitalismo. E persistindo essa lógica de crescimento infinito da destruição, em um planeta finito, rumaremos ao colapso. A intensa destruição da terra por meio da exploração de seus elementos é percebida pelos extremos climáticos, pandemias e o processo de morte coletiva, consequências do capitalismo que massacra a maioria de pessoas.

    Neste contexto, não podemos escorregar nas ilusões das eleições. Há o desafio de apresentar um projeto político de transformação social e de construção afirmativa de uma nação sustentada para a vida com dignidade. A transformação social, por meio de lutas cotidianas contra a opressão, a exploração, os rompantes fascistas, demanda construir um projeto de bem viver, e nossas contribuições, com repertórios históricos e políticos, como apresentamos na revista é um importante passo à frente.

    Quando Ivan Valente, em entrevista afirma que o PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno, demonstra que em cada pensamento, ação, sentimento de um partido comprometido com as pessoas que vivem da venda da força de trabalho, mercadoria única disponível, pode fazer avançar o lugar no ambiente de sujeitos em favor da dignidade humana. Assim, o PSOL apresenta-se como estratégico na grande onda para a ampliação da vida.

    Em sintonia sentimos para além do Brasil. Apresentar a América Latina, por meio do texto de Ana Carvalhaes e Israel Dutra, é uma abordagem que demonstra as veias abertas, mas não necrosadas, porque não a deixamos morrer. Avançamos mostrando em cada letra, desenho e abordagem um laço de solidariedade e compromisso com a liberdade. Assim como tratar da Nova Política Econômica, que continua nova, pois, nem nesse patamar sequer experimentamos, somos assertivos ao desembaralhar as asfixias que foram impostas na tragédia humanitária e sanitária que sofreram as pessoas de Manaus.

    Há colaborações neste número que contribuem para ampliar nossa capacidade de ação e acumular forças para superar o capitalismo. No caso do Brasil, não há dúvidas que acabar com o atual governo federal é passo fundamental para superar a jornada de enfrentamento do sistema que predomina no mundo. Nosso país vive uma enxurrada de destruições, fabricação de medos e imposições de mortes. Superar essa situação é sim um abraço internacional para a destruição do capitalismo e construção de uma sociedade socialista e com liberdade. Assim, não haverá mais décadas perdidas e vamos viver, como sujeitos que conquistam, mais e melhor. E há muito estímulo em nossa revista que é uma grande fonte de colaboração para superar a exploração, o controle e das opressões e, unificadamente, construir SOLICALISMO E LIBERDADE.

    Francisvaldo Mendes de Souza . Diretor-presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

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  • Depressão solidária . Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Depressão solidária . Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Depressão solidária

    O governo Bolsonaro consegue reunir o pior de dois mundos. Como falso liberal retira garantias e desprotege o trabalhador, criando ansiedade, desemprego e incerteza e como neoliberal postiço, mantém a política de empreitamento do Estado em benefício próprio, ou das milícias. A forma como a Pandemia está sendo enfrentada no Brasil não é apenas necropolítica, mas também depressiva no sentido de dividir o ordenamento simbólico de obediência a regras sanitárias, e por estimular o dissenso e a negação sistemática do perigo e das estratégias biopolíticas para enfrentá-lo

    Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Segunda maior causa de afastamento do trabalho, causa difusa de separações familiares e indutora de alcoolismo crônico, usado como terapia selvagem, a depressão tornou-se nosso modo preferencial de sofrimento. Em nossos trabalhos recentes sobre O Neoliberalismo como gestão do sofrimento e Uma biografia da depressão , tentamos mostrar como essa prima pobre das doenças mentais se tornou uma superstar que está por toda parte. Nosso caso está montado sobre quatro coincidências suspeitas:

    1. Em 1973 se realiza, durante a ditadura de Pinochet no Chile, a primeira implantação real do neoliberalismo no mundo.
    2. Também em 1973 os manuais de psicopatologia começam a substituir antigos diagnósticos como neurose, histeria e paranoia por uma nova forma de sofrer: a depressão, que em 2013 chegou a compreender 14 tipos diferentes de transtornos mentais.
    3. Na década de 1970 e 1980, descobrem-se uma série de novas medicações antidepressivas, como fluoxetina e paroxetina, que são apresentadas como pílulas da felicidade e tratamento curativo para depressão.
    4. Entre 2014 e 2019 investiram-se US$ 20 bilhões em pesquisa neurocientífica e farmacológica majoritariamente sobre a depressão, mas também em outros transtornos, sem que com isso se alterasse nada na curva de bem-estar dos pacientes, no número de internações ou na qualidade da saúde mental dos norte americanos (pelo contrário a tendência é de piora).

    Depressão e governos neoliberais

    Ou seja, os últimos quarenta anos de “governo” da depressão, na saúde mental, foram também os do consenso neoliberal, admitindo-se que a crise de 2008 é uma crise deste modelo. Isso poderia ser explicado por uma acentuação da diferença entre a política liberal e a neoliberal com relação à saúde. Enquanto os modelos keynesianos enfatizavam a proteção do trabalhador, tendo no sofrimento um adversário perigoso para o andamento dos negócios, o neoliberalismo descobriu que é possível administrar calculadamente sofrimento no trabalho, de modo a extrair mais desempenho e produtividade.

    Deixe todo mundo com medo de ser demitido e veja se as jornadas de trabalho, incluindo sábados e domingos, não se ampliam “naturalmente”. Faça um departamento concorrer com o outro para ver se a agressividade corporativa produzida em laboratório não faz “bem para os negócios”. Distribua bônus erraticamente e verifique se o clima paranoico de denúncia, predação e concorrência não fará todos trabalharem mais, sem organização de resistências sindicais

    Deixe todo mundo com medo de ser demitido e veja se as jornadas de trabalho, incluindo sábados e domingos, não se ampliam “naturalmente”. Faça um departamento concorrer com o outro para ver se a agressividade corporativa produzida em laboratório não faz “bem para os negócios”. Distribua bônus erraticamente e verifique se o clima paranoico de denúncia, predação e concorrência não fará todos trabalharem mais, sem organização de resistências sindicais. Finalmente, demita as pessoas em massa e prometa que agora elas serão livres, pois terão um CNPJ que as tornará verdadeiros empresários. Crie sistemas de microgestão e avaliação permanente para ver se a coerção entre funcionários não faz a competição “benéfica” criar mais resultados no final do quarter.

    Fato é que fomos nos acostumando a olhar para nossas próprias vidas como se fôssemos uma empresa, que tem que dar lucro, que precisa investir em renovação (senão a empregabilidade cai), que precisa olhar para os riscos tributários e para as metas e métricas, em sistema permanente de auto-observação, avaliação e punição. Esse conjunto articulado parece ter se implantando como moralidade hegemônica. E dentro dela o depressivo é o caso chave e problemático. O sintoma de um sistema que só consegue individualizar culpas e excluir desvios improdutivos. O depressivo não tem aquele “gosto” permanente pelo trabalho, não é que ele não “vista a camisa da empresa”, ele não veste a própria camisa, individualizando culpas e reduzindo o consumo, ele é o protótipo do sintoma criado pelo neoliberalismo.

    A era da depressão

    Podemos descrever o reinado da depressão, dividindo-o em três momentos.

    No primeiro período, que vai de 1973 a 1980, a depressão ainda é considerada uma espécie de febre, ou sintoma transversal de diferentes quadros clínicos, mas passa a ser definida, cada vez mais, no eixo de oposição entre o infantil e o adulto. Nessa narrativa a depressão é uma espécie de recusa ao crescimento, uma paralização do desenvolvimento ou uma regressão produzida por certos encontros traumáticos com a realidade. Haveria, por assim dizer, tanto para psicanalistas quanto para psicólogos cognitivos, uma espécie de estado básico de depressão, representado pela falta de amparo, estado este que teria sido vivido em momentos críticos da infância, os quais o sujeito regrediria diante de situações de alta complexidade.

    No segundo período, de 1980 a 2000, a depressão se expande e ganha uma personalidade própria, não mais reduzida a uma espécie e infantilismo ou de covardia moral, mas ao eixo mais genérico da impotência e da impossibilidade. Aqui, o paradigma não será mais a experiência originária e infantil, mas a perda de performance a recusa a operar segundo um certo regime específico de individualidade. O depressivo sofreria com uma dificuldade de enquadramento narcísico, ou seja, com uma gramática desviante de reconhecimento. Ele pode se identificar idealizadamente como um grande empreendedor, vocacionado para incríveis realizações e um destino glorioso no mundo dos negócios, dos amores e da família, para logo sofrer um “tombo” inesperado diante de uma demissão inesperada ou de uma decepção amorosa. A mesma narrativa compreende o polo oposto dos indivíduos que cronicamente se experimentam como inadequados, com sentimento de si rebaixado ou com uma limitação insidiosa para tomar riscos e avançar posições subjetivas e desejantes. Manter-se perfazendo um “papel”, torna-se uma experiência postiça, inautêntica e uma artificialidade cujo trabalho parece a um tempo infinito e impraticável. É o famoso realismo depressivo, que usualmente é interpretado pelos que estão a sua volta como um pessimismo ou como um gosto por desmanchar o prazer alheio. Isso ocorre porque o prazer alheio remete a esse complexo de imposturas e falsidades que é como o sujeito se lê nas trocas sociais e desejantes.

    Os tratamentos para a depressão passam a ser as “políticas de austeridade”. Redução de gastos sociais, equilíbrio de contas públicas e contenção de investimentos. Assim, a depressão clínica passa a ser descrita a partir de estados de distanciamento, desligamento e de auto-observação

    No terceiro período, de 2000 a 2008, a depressão torna-se algo crônico. Os antidepressivos tomados por décadas começam a reduzir os efeitos promissores. A depressão torna-se uma diabete mental, falta de um ingrediente químico no cérebro que temos que repor com medicação, indefinidamente. Junto a isso aparece a alegoria do revólver, que tem gatilhos que disparam a depressão, pois ela já está lá, geneticamente dada e à espreita permanente do sujeito. O termo “depressão” parece ter sido eficaz primeiro na economia e depois na psicopatologia.

    Os tratamentos para a depressão são as “políticas de austeridade”. Redução de gastos sociais, equilibração de contas públicas e contenção de investimentos. Assim, a depressão clínica passa a ser descrita a partir de estados de distanciamento, desligamento e de auto-observação. Estar nos lugares, participar das relações e extrair delas parece uma tarefa impossível.

    No lugar disso, o sujeito se coloca em recuo, como que a observar a festa humana como um teatro mal executado e imperfeito. Quando esse recuo é rompido artificialmente pela aproximação da realidade, seja por um comentário desavisado, seja por um mal encontro, isso colhe o sujeito em um estado de sensibilidade extrema e reatividade, muitas vezes agressiva ou impulsiva.

    As condições sociais de transmissão da depressão

    Notemos que com a depressão não estamos mais no registro do sofrimento mental como consequência de um conflito, da luta contra o proibido ou a revolta contra o que se reprime, mas da soberania do forte ou do fraco, do que se sustenta ou do que cai, da eficiência do egoísta contra a solidariedade depressiva. Encontramos aqui o que Maria Rita Kehl descreveu como as condições sociais da transmissão da depressão: a aceleração do tempo, o incremento da prontidão para a resposta à demanda, à demissão das posições de autoridade na relação entre pais e filhos, à recusa da partilha social do gozo e às paixões da segurança, que demanda do indivíduo que este se transforme em um ser genérico, indefinidamente comparável e substituível com os outros. Surge aqui a narrativa do depressivo como alguém que se perdeu de si mesmo, que se desgarrou do sistema da produção e consumo, que não consegue empreender a si mesmo, que oscila perpetuamente entre ser alguém superior e especial ou um nada, vazio dissolvido na multidão informe da insignificância.

    Nesse terceiro tempo do reinado depressivo, ela começa a ser pensada cada vez mais como uma síndrome com sintomas corporais: dores que andam pelo corpo, como na fibromialgia, corpo em cansaço permanente, como na fadiga crônica que explode na queima de toda energia, como no burn-out, ou que se mostra resistentes aos manipuladores químicos da libido ou do sono. A novidade dos antidepressivos cessa de funcionar, curiosamente quando as patentes vão sendo liberadas e os preços caem. Os novos antidepressivos não prometem mais a cura, mas o alívio das versões “corporais” da depressão, bem como a redução desses indesejáveis, mas por muito tempo pouco tematizados efeitos colaterais.

    Enquanto verdadeiros quadros neurológicos são indiferentes às formas como são descritos, a depressão depende de como se fala dela. Isso envolve tanto como o sujeito “se fala”, quanto à forma como ele “é falado” de tal modo a ter o sofrimento incluído em discursos, ganha legitimidade e reconhecimento. O quadro configura uma nova posição diante do sofrimento

    À medida que a depressão passou a ser pensada como um quadro dotado de uma etiologia indiferente ao conflito psíquico, ela foi reforçando o conflito com a realidade. As terapias cognitivas interpretavam a depressão como uma deformação do pensamento e propunham um roteiro bem estruturado baseado em princípios e evidências. Um dos manuais mais populares dessa abordagem apregoa que a terapia se baseia:

    a. No “contínuo desenvolvimento do paciente e de seus problemas cognitivos”.
    b. Realizado por meio de uma “aliança segura” e a “colaboração e participação ativa” do paciente.
    c. Orientada para “metas e soluções de problemas” enfatizando o “presente”.
    d. Visando “ensinar o paciente a evitar recaídas” durando um “tempo limitado”.
    e. As sessões são estruturadas de modo “a ensinar o paciente a avaliar e responder a pensamentos e crenças disfuncionais” usando uma variedade de técnicas para mudar o “pensamento, humor e comportamento”.

    Essa abordagem, que durante anos foi elevada à condição de protocolo no tratamento das depressões, associada permanentemente à administração de medicação antidepressiva, tornou-se dominante e globalmente exportada para os países da África, da Ásia e da América Latina, criando diferentes cenários de recepção, conforme o choque se desse com relação a crenças animistas e formas religiosas, tipos de individualização não ocidentais ou culturas previamente informadas por narrativas de interiorização do conflito.

    A neuroliteratura

    Críticos literários como Marco Roth e Paulo Werneck apontam como nossa forma de produzir romances teria se desligado das antigas narrativas psicanalíticas repletas de interioridade, conflitos de desenvolvimento, tramas familiares e divisões da consciência, seja no sonho, seja nos sintomas. A neuroliteratura, como por exemplo Amor sem Fim (1997) de Ian McIvan, destacou síndromes neurológicas, como a síndrome de Huntington e Tourrete ou e de linhagem psicóticas, como a síndrome de Clerambault, o autismo. Esse movimento de reapropriação literária de novas formas de sofrer, em oposição aos romances modernos, como os de Balzac, Flaubert, Joyce ou Proust tem um impacto direto na depressão. Enquanto verdadeiros quadros neurológicos são indiferentes às formas como são descritos, a depressão depende de como se fala dela. Isso envolve tanto como o sujeito “se fala”, quanto à forma como ele “é falado” de tal modo a ter o sofrimento incluído em discursos, ganha legitimidade e reconhecimento. Isso significa uma nova posição diante do sofrimento. Ele tem uma origem que transcende decisões: ele emana de uma avaria no cérebro ou em cadeias de desenvolvimento que afetaram a evolução da espécie ou a genética com a qual cada um foi determinado.

    Junto ao neoliberalismo o vocabulário econômico sofre uma mutação que enfatizará o medo e a inveja, o otimismo ou o pessimismo dos mercados, operando uma despolitização da política e deslocando a contenda moral para o terreno dos comportamentos de gosto

    Confirma-se aqui a ideia de que na depressão a causa do problema vem de fora. Ela não emana da alçada moral ou de nosso campo de escolhas ou decisões. Isso não significa que não exista nada a falar, mas trata-se de recriar a experiência a partir dessa posição de aceitação e conformidade. Não devemos desvalorizar essa narrativa porque ela sempre esteve presente nos modos de subjetivação e de narrativização dos sintomas. Aliás, essa tendência remete a narrativas transcendentais ou teológicas, nas quais as razões de nosso destino pertencem a “outros mundos”. A aceitação ou autorreconhecimento de que sintomas não são apenas decorrentes de falta de fé ou de força de vontade, mas que eles nos impõem um limite a nossa própria liberdade deveria inspirar uma discussão sobre os paradoxos de nosso desejo, mas ele parece ter sido capturado por uma dicotomia mais simples que divide as coisas entre a esfera na qual “podemos” agir e aquelas nas quais é “impossível” atuar.

    O segundo aspecto importante da emergência desse discurso literário-científico para a depressão é que ela passa a abranger formas tradicionalmente incorporadas ao registro da psicose. Isso aconteceu pela progressão da categoria de transtorno bipolar, dividido em três subtipos. Ou seja, a gravidade das depressões começa a ser reconhecida tanto porque ela responde cada vez menos aos tratamentos quanto pelo fato de que ela admite formas muito graves, com relação às quais não sabemos muito bem quais são os critérios de diferenciação.

    A narrativa do neoliberalismo

    Mas vejamos agora como as três figuras da depressão, a infantil, a narcísica e a corporal parece traduzir passo a passo a narrativa do neoliberalismo, como discurso econômico. Isso compreende a retomada de certos aspectos da teoria moral dos pais do liberalismo, com Stuart Mill e Adam Smith. Eles criticavam a infantilidade daqueles que não conseguiam se inibir, ou seja, conter o impulso para gastar e transformar isso em um adiamento temporal da satisfação, conhecido como poupança.

    A grande metáfora do neoliberalismo vai apregoar metáforas como a da necessidade de austeridade ao mesmo tempo que advogará o caráter essencialmente egoísta e competitivo do ser humano. Von Mises, patriarca do neoliberalismo, inventou a “síndrome de Fourrier” que consistiria em negar a finitude dos recursos naturais e o papel incontornável do trabalho como um sacrifício. Ou seja, a dúvida ou crítica quanto a realidade da escassez de recursos, da lógica do sacrifício e do medo natural da violência alheia, seriam uma traição da forma correta de percepção da realidade.

    A grande narrativa do neoliberalismo vai apregoar metáforas como a da necessidade de austeridade ao mesmo tempo que advogará o caráter essencialmente egoísta e competitivo do ser humano

    Essa estratégia ilustra bem como para esse discurso não estamos diante de um conflito de interpretações sobre a realidade, com a correlativa concorrência entre interesses, mas da patologização daqueles que duvidam de como as coisas realmente são. Eles estarão imbuídos de má-fé, desonestos, pois divergem da realidade e não de como nós percebemos ou construímos a realidade.

    Junto ao neoliberalismo o vocabulário econômico sofre uma mutação que enfatizará o medo e a inveja, o otimismo ou o pessimismo dos mercados, operando uma despolitização da política e deslocando a contenda moral para o terreno dos comportamentos de gosto. Ora, essa dissociação entre a produção econômica, identificada com a realidade, e o pensamento ou nossa forma de ler e interpretá-la vai operar no fulcro psicológico da depressão explicando porque ela é o correlato necessário desse tipo de forma econômica.

    Individualização do fracasso

    A individualização do conflito, a transformação em forma de culpa em associação ao fracasso e a potência produtiva, faz com que a agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, seja introvertida em uma agressividade orientada para o próprio eu. Isso se mostra, como vimos no raciocínio de auto-observação, de crítica de si mesmo com a inversão em ilações idealizadas.

    O depressivo é aquele que fracassa e por outro lado tem um sucesso demasiado em tornar-se um empreendedor de si mesmo. Ele não consegue usufruir da gramática da competição de todos contra todos, que tornaria a vida uma espécie de esporte permanente, de viagem contínua ou de teatro de estrelas nas quais há um prazer em representar. A anedonia, este sintoma central da depressão, a incapacidade de experimental de sentir prazer com o outro, consigo e no mundo, o torna uma espécie de ditador de si mesmo, em um impasse com as próprias ordens, incapaz de entender o porquê de sua greve para iniciar, ou fazer algo que por outro lado lhe parece óbvio, prático e indiscutivelmente desejável.

    De certa maneira a depressão só descreve, ela não narra, ela luta contra a perda de memória e de concentração, o que a torna um ser de cansaço, ela é a greve e ao mesmo tempo a lei opressiva que a torna possível. Nesse sentido o reinado da depressão é também um reinado crítico contra a era do “capital humano”, do prazer dócil e flexível no trabalho e da narrativa do talento, do propósito e da autorrealização que sobrecarrega a produção com métricas de desempenho e resultado.

    A individualização do conflito, a transformação em forma de culpa em associação com o fracasso e a potência produtiva, faz com que a agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, seja introvertida em uma agressividade orientada para o próprio eu

    Daí que o depressivo não esteja exatamente trazendo um recado da realidade como ela é, mas um fragmento de verdade sobre porque não conseguimos perceber a coisas. Em certa medida ele responde demasiadamente bem à demanda de abrir mão de si mesmo, ao tematizar-se apenas como um personagem pouco convincente e um ator cansado do seu papel. A resposta insiste na coerência, na unidade e na síntese em um universo no qual a produção se torna deslocalizada, onde os manuais de gerenciamento nos ensinam como criar mais sofrimento para incitar mais produção, assim como fragmentam a narrativa do trabalho e do estudo em blocos de potencialidades e listas de traços desejáveis e funcionalmente adequados. Assim, como para o neoliberalismo o mercado é outro compacto e fechado, idêntico a si mesmo em suas regras imutáveis, o Outro da depressão é composto por uma lei consistente e soberana que só podemos nos apresentar como corpos-mercadorias, crianças-amparáveis ou narcisos-impotentes.

    A regressão conservadora

    Coincidentemente, 2008 foi o ano no qual a aplicação irrestrita dos princípios neoliberais na economia começou a ser mais seriamente questionada. A crise americana no mercado imobiliário não foi deixada a sua própria sorte, desencadeando uma série de falências, mas sobre ela o Banco Central agiu no melhor e mais antigo keynesiano amparando e protegendo a economia. As crises da Europa periférica, envolvendo Islândia, Portugal e Grécia, começaram a colocar em xeque o sistema de contenção por austeridade. A insatisfação com a progressiva financeirização da economia, ausência de resposta ao problema do desemprego e da emergência de monopólios, deu origem a um período de turbulência que envolveu primaveras e ocupações, assim como a regressão conservadora na América de Trump ou na Inglaterra do Brexit.

    Por volta de 2010, as suspeitas contra o reinado da depressão começaram a se desdobrar. Há boatos de que os efeitos colaterais, notadamente, a redução da libido, foi na verdade o princípio ativo, ou seja, ao diminuir a libido diminuímos ao mesmo tempo todos os conflitos que vêm junto a ela: desejos insatisfeitos, frustrações e intensidades muito elevadas são “inibidas” pelos antidepressivos. Essa espécie de colchão contra as dores causadas pelo “choque de realidade” ou pela excessiva sensibilidade, protege o sujeito. Assim, como a hiperatividade pode ser tratada por um acelerador derivado das anfetaminas, como a ritalina, a depressão poderia ser tratada por um verdadeiro “depressivo” agindo sobre nossa libido, não só no sentido sexual.

    Em certa medida, o depressivo responde demasiadamente bem à demanda de abrir mão de si mesmo, ao tematizar-se apenas como um personagem pouco convincente e um ator cansado de seu papel

    Começam os primeiros processos jurídicos contra as companhias que produzem antidepressivos em função dos danos cerebrais derivados de um uso continuado. As narrativas clínicas de usuários de antidepressivos por décadas, que não conseguem superar os efeitos da abstinência, a associação de antidepressivos à irrupção de violência e suicídio, bem como a consciência crescente de que uma cultura da medicação permanente é no fundo uma variante da drogadição generalizada, vem a público. Essa literatura tem a mesma perspectiva que vai da crítica que vimos nos textos antipsiquiátricos de Tomas Sazs, Deleuze, Guatarri e Franco Basaglia, nos anos 1970, mas também a mesma perspectiva de denúncia que a psicanálise sofreu nos anos 1990-2000.

    O pior dos mundos

    O governo Bolsonaro consegue reunir o pior dos dois mundos. Como falso liberal retira garantias e desprotege o trabalhador, cria ansiedade, desemprego e incerteza e como neoliberal postiço mantém a política de empreitamento do Estado em benefício próprio, ou das milícias. A forma como a Pandemia está sendo enfrentada no Brasil não é apenas necropolítica, mas é também depressiva, no sentido de dividir o ordenamento simbólico de obediência a regras sanitárias, o que envolve estimular o dissenso e a negação sistemática do perigo e das estratégias biopolíticas para enfrentá-lo. Sem tratamento ordenado do futuro, sem acolhimento do luto, sem reconhecimento de qualquer instância de mediação, seja a ciência, o direito ou a razão sanitária, ele personifica a potência pessoal, diante da qual é preciso ajoelhar e pedir proteção, confirmando assim o estado de melancolia e impotência diante da realidade.

    *Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de A arte da quarentena para principiantes (Boitempo).

  • “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    Por Gilberto Maringoni

    Ivan Valente tinha 18 anos de idade quando foi dado o golpe de 1964. A interrupção da democracia e seu valor marcaram para sempre aquele estudante de cursinho que aspirava entrar num curso de Engenharia. Ao longo dos 56 anos seguintes a militância passou pelo movimento estudantil, pela vida clandestina na ditadura, pela prisão e pelas torturas, pela fundação do PT e pela construção do PSOL. Ivan exerce seu sexto mandato de deputado federal, depois de se eleger por duas vezes para a Assembleia Legislativa de São Paulo. Nesta entrevista, ele comenta os impasses do Brasil de Bolsonaro e relembra pontos marcantes da sua trajetória política.

    Como se explica o fenômeno Bolsonaro e por que o Brasil, depois de 35 anos de democracia, resolveu elegê-lo?

    Bolsonaro é um fenômeno que vem desde, pelo menos, a crise de 2008 e foi impulsionado a partir de 2013. Naquela situação de disputas, a direita surgiu como movimento de massas. Percebendo a instabilidade reinante, uma elite econômica sem projeto de Nação resolveu chutar o balde do regime democrático de forma agressiva e oportunista. Houve, claro, uma decepção com o governo Dilma em setores populares e de esquerda, mas além disso houve uma manipulação política por parte da grande mídia, que ajudou a criar um carimbo de corrupto no PT. Cresceu na base da sociedade uma forte tendência antipetista, que impulsionou um processo de impeachment absurdo. Abriu-se a oportunidade para a imposição de um projeto de hegemonia do capital financeiro e do neoliberalismo, implementado a todo vapor com Michel Temer. Paralelo a isso, o que chamamos de lavajatismo – uma prática falsamente moralista, punitivista e parcial –ajudou a criar o caminho que desembocou em Bolsonaro. Isso nos deu uma lição: futuros governos de esquerda, mais contundentes que o PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo etc. E defendendo a ditadura militar, citada todo dia, com AI-5 e tortura. Há quase um terço da população que não se arrepende do voto dado em 2018. Isso é grave.

    “Futuros governos de esquerda, mais contundentes que os do PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo”

    A mesma sociedade brasileira que deu a vitória à extrema direita elegeu por quatro vezes um governo de centro-esquerda. Como isso se explica?

    A primeira eleição de Lula assustou bastante a burguesia. O PT fez a “Carta ao povo brasileiro”, colocou o Palocci na Fazenda, atendeu ao mercado e Lula partiu para uma ação de alguma distribuição de renda aos pobres e de grandes ganhos para os ricos. Assim, deixou de assustar. Isso se confirmou ao vermos que, em 2006, mesmo após o mensalão e de tudo o que a Globo fez, ele foi muito bem reeleito. A economia ia bem, os de cima ganhavam mais e os de baixo ganhavam alguma coisa. Teve a oportunidade de pegar um boom de commodities. Frei Betto diz algo com o qual concordo totalmente. Uma coisa é ter consciência do valor das conquistas e outra é estar bem servido no consumo. Lula sempre foi isso, de servir no consumo. Claro que, contra a fome, temos que almoçar, jantar e tomar café da manhã. Mas, depois, todo mundo tinha que ter as utilidades domésticas de linha branca, o carro etc. Isso pegava bem no sentido geral do consumo, mas não mudava as consciências. Quando veio uma crise com o impacto da de 2008, a direita, que estava sendo bem acomodada no governo, começou a querer mudar de barco. Há um aspecto adicional: Lula não contribuiu para mexer em nada na hegemonia do capital financeiro no Brasil. Por que não se fala em acabar de vez com subsídios? Em reforma tributária? Em taxação das grandes heranças e fortunas? Não houve nada disso nos governos do PT. A linha geral era de atrair capital e investimento para o Brasil, especulativo ou não, mas sem mexer nas estruturas, no problema da dívida pública e no tripé macroeconômico.


    Uma vida de combate: Ivan por Ivan

    O esforço foi grande, mas valeu a pena!

    “O rumo neoliberal do primeiro governo Lula não nos deixou alternativa a não ser sair do PT e vir para o PSOL. Ou seja, deixamos um transatlântico e desembarcamos em uma canoa. Hoje, nossa canoa é uma das principais referências dos lutadores populares brasileiros”.

    “Infância e estudos

    Nasci em São Paulo, em 1946. Meu pai, involuntariamente, participou da chamada Intentona Comunista de 1935. Ele era sargento da Aeronáutica e, quando houve a rebelião, estava no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, para fazer o curso de piloto. O campo foi cercado e ele ficou preso seis meses, foi expulso da Aeronáutica e depois se tornou comerciário. Não tinha uma formação socialista, mas sempre esteve ao lado dos de baixo e sempre me inclinou para a esquerda. Toda a minha educação básica e do ginásio foram na escola pública.

    Início da militância

    Entrei para a Escola de Engenharia Mauá, em 1966. No ano seguinte, comecei a participar intensamente do movimento estudantil. E montamos e lideramos o Centro Acadêmico da Escola de Engenharia.

    Em contato com lideranças da USP e de outras faculdades, acabei me ligando ao Partido Operário Comunista (POC), organização formada por outras, como a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP). O POC rachou em 1970, entre aqueles que queriam ir para a luta armada e quem queria ficar na luta de massas. Eu não achava que aquele era o caminho mais correto. Com o tempo, o POC foi literalmente extinto e seus dirigentes foram assassinados. Só escapou quem foi para o exterior.

    Clandestinidade e prisão

    Em 1972, fiquei clandestino em São Paulo por oito meses. Como era liderança estudantil, encontrava muita gente pela rua. E o pessoal do Rio achou que eu deveria ir para lá, onde eu não era conhecido. Com isso, a militância e a formação de nossa nova organização, o Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP, em 1976), se deu com a participação de importantes lideranças estudantis e operárias. No total, fiquei cinco anos e meio na clandestinidade.

    Fui preso pela primeira vez em julho de 1977 e fiquei quatro meses e meio encarcerado com outros 25 companheiros. Nesse período, fizemos duas greves de fome. A tortura era algo sistemático. Foram dez dias no DOI-CODI, nos quais passei por porrada, cadeira do dragão e pau de arara, dia e noite. E geladeira, aquele cubículo gelado onde te observavam por meio de câmeras e isolamento térmico.

    Protesto amplo

    Saímos da cadeia por meio de uma greve de fome. Escrevemos uma denúncia da situação dos presos políticos, a “carta dos presos do MEP”. O texto saiu integralmente no Jornal do Brasil e no Le Monde, e trechos foram publicados na Folha, no Globo e no Estadão. Ali, relaxaram a preventiva, pois nossa prisão estava tendo repercussão pública. Marcaram nosso julgamento para novembro de 1978. Tínhamos a decisão a tomar: ou ir para a clandestinidade ou para o julgamento. E nós fomos para o julgamento por acharmos que já havia um movimento de anistia forte na sociedade. No dia, havia mais de mil pessoas na porta da sala da Auditoria da Aeronáutica, no Rio. Fizemos um banzé, subimos na mesa, gritamos “Abaixo a ditadura!”. Saí de lá carregado pela polícia da aeronáutica sem pisar no chão. E pegamos três anos de cana.

    No presídio da rua Frei Caneca, ficamos mais seis meses. Após intensa batalha política e jurídica, fomos libertados em maio de 1979, quatro meses antes da Anistia.

    Do PT ao PSOL

    Quando voltei a São Paulo, participei da fundação do PT, em 1980, um marco essencial nas lutas populares brasileiras. Já havíamos lançado no ano anterior o jornal Companheiro, do MEP, que durou três anos.

    De 1983 a 1986, fui assessor do mandato de deputado federal do José Genoíno, enquanto lecionava matemática na escola pública. A partir de 1986, fui eleito para dois mandatos de deputado estadual em São Paulo (1987-95) e seis de deputado federal. Fomos oposição e governo. Essa última fase foi difícil.

    O primeiro governo de Lula (2003-07) foi bastante controverso, com a designação de Antônio Palocci para a Fazenda e Henrique Meirelles para o Banco Central. Começamos batendo no aumento dos juros e, depois, veio a reforma da Previdência. Dos vários tensionamentos com o conservadorismo do PT, a questão da Previdência representou uma batalha particularmente insana, com quase 400 reuniões, em poucos meses. O rumo neoliberal da política governamental não nos deixou alternativa a não ser sair do partido e vir para o PSOL. Ou seja, deixamos um transatlântico e desembarcamos em uma canoa. Como toda a nossa história, o esforço foi imenso. Mas valeu a pena. Hoje, nossa canoa é uma das principais referências dos lutadores populares brasileiros”.


    No governo Lula, as Forças Armadas continuaram tão ou mais fortes do que antes e os meios de comunicação não foram regulados. Que mudanças reais o PT proporcionou ao País?

    O caso das Forças Armadas é complexo. Na época da discussão da Comissão da Verdade (2011-14), havia na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara um projeto da Luíza Erundina – que eu coassinava – segundo o qual era a hora de punir os torturadores. Mas o projeto não passou. Como você não mexe nos torturadores e nos mandantes, eles continuam falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido. Isso passa a ser uma conivência. No caso das comunicações, vamos lembrar quem foram os ministros: Miro Teixeira, Helio Costa – que foi da Globo por 30 anos – e Paulo Bernardo. No fundo, eles achavam que havia democracia com a Globo mandando. Ao não mexer no sistema econômico, quando acabou a onda de commodities e a conjuntura internacional favorável, não se asseguraram direitos dos trabalhadores e houve até retrocesso. Faltou contundência, um diálogo de massa, manter mobilizado o movimento social e popular, na medida do possível. O MST, por exemplo, não queria a Lei Antiterrorismo, sancionada pela Dilma. Agora, a extrema direita quer aprofundá-la. Isso tudo é resultado de coisas que fizemos errado lá atrás. Falo disso tudo sem contar as coisas feitas no oba-oba, como a questão da Copa do Mundo e esses elefantes brancos que estão aí até hoje, que são as arenas. Houve uma euforia com a elite, e uma ilusão do PT com partes enormes do topo da pirâmide social, que se mostrou falsa e se expressou em ódio de classe contra o partido. Também houve muita ilusão com a governabilidade conservadora do Congresso Nacional.

    “Sem punir torturadores e mandantes, eles continuarão falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido”

    Atualmente, o PSOL está sendo acusado de se reaproximar do PT e de ser um puxadinho do partido. É verdade?

    A posição nítida do PSOL é a de que o ano de 2022 passa por 2021. Agora – neste ano! – nós precisamos fazer uma grande frente entre todos que lutam contra o bolsonarismo e contra o estreitamento da democracia, e a favor de uma resposta pronta do Estado brasileiro em relação à pandemia. É hora de unir forças e produzir muita mobilização contra Bolsonaro. No ano que vem, se ele for competitivo, temos que derrotá-lo com a candidatura de esquerda mais bem posicionada nas pesquisas. E essa candidatura precisa ter um programa que mobilize os trabalhadores e o povo. Repito, isso vai ser visto em 2022. É o momento de tornar o PSOL presente na conjuntura, no combate ao bolsonarismo e garantir protagonismo no processo.

    O PSOL é um partido que galvaniza a juventude na esquerda, mais do que qualquer outro. E tem uma geração de quadros novos muito promissores. Como você vê essa renovação?

    Vejo de forma muito positiva. E isso tem explicação. O PSOL tem sido vanguarda em várias lutas importantes, como a luta contra o racismo, a homofobia, o machismo e pelos direitos civis e humanos. Isso tem sido uma marca, mas ela não é suficiente. Por exemplo, a candidatura do Boulos com a Erundina em São Paulo representou uma proposta de mudança popular e massiva. Ela propunha mudanças estruturais. É por isso que Boulos se tornou uma figura tão expressiva. Da mesma forma, Erundina cumpriu um papel muito importante, e mostra que a candidatura de ambos foi, antes de tudo, programática – a favor do combate à pobreza, à desigualdade – e com uma cara socialista. Conquistar 40% dos votos no segundo turno foi uma vitória e mostra o enorme potencial do PSOL.

    O PSOL se consolidou como uma corrente de opinião e lançou candidatos majoritários na maioria dos estados. Qual foi o principal ponto de virada do partido, depois de sua criação?

    Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós. Ela estava insatisfeita no PSB e a convidei para entrar no PSOL. E ela aceitou. A Erundina dá um grande salto de qualidade ao partido, uma dimensão de massas. É notável também a entrada de Guilherme Boulos, maior expressão do movimento social nesse último período, além de outras figuras públicas que reforçam a representatividade do PSOL na conjuntura. A ética na política, a coerência na ação e a questão programática do PSOL foram três pilares que preservaram o partido e o tornaram respeitado nos movimentos sociais. Nós nos tornamos grandes mesmo sendo pequenos. O PSOL é grande, por ser muito respeitado por esses três pilares. Ao mesmo tempo, é ainda um partido pequeno em expressão e capilaridade de massa.

    “Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós”

    Estamos na maior crise da história republicana. Você é otimista, realista ou pessimista?

    Mesmo com todo esse retrocesso bolsonarista, é óbvio que confio que o povo brasileiro vai virar essa situação. É claro que, para isso, temos que acumular força e ter movimentos de massas. Há um percalço pelo caminho. Estamos em meio a uma pandemia e não podemos sair para a rua! Não vai ser fácil, vai ter muita luta e mobilização, mas nós vamos superar isso. E vamos deixar o pessimismo para momentos melhores.

  • A pandemia da Covid-19 e a luta socialista – Por B. Boris Vargaftig

    A pandemia da Covid-19 e a luta socialista – Por B. Boris Vargaftig

    A pandemia da Covid-19 e a luta socialista

    O atual despreparo para uma política sanitária consistente é agravado pela extrema limitação dos créditos à pesquisa, a política restritiva e repressiva contra a cultura em geral, as Universidades Federais, em particular, além dos cortes de verbas do SUS. Sem cientistas e técnicos assegurados, não há ciência

    Por B. Boris Vargaftig

    Meu objetivo aqui é discutir uma estratégia sanitária em tempos de pandemia. Como as circunstâncias dificultam os procedimentos usuais, o momento é de luta pelos meios ao alcance, redes sociais, panelaços, faixas, ações de defesa da saúde e da vacinação e defesa do SUS. Não escrevo um artigo técnico, mas político, baseado na Ciência. Procuro levantar pistas para que a volta ao “normal”, o que quer que seja, se faça com avanço e não com a volta ao programa regressivo liberal em curso.

    Medidas isoladas de defesa da economia e da população podem perfeitamente ser tomadas por governos burgueses, quando não há alternativa. Diante da pandemia, um governo “normal” poderia ter decidido medidas estatizantes para combatê-la e, se não tomou, foi por uma mistura de incompetência com uma espécie de maquiavelismo de extrema direita e liberalismo

    O momento é também de reflexão: o que explica o recuo da esquerda e como ultrapassá-lo? Como avançar quando a Covid-19 tiver sido contida? O programa de intervenção que a esquerda deve defender, não representa só uma lista de desejos, mas um planejamento para hoje e para o futuro.

    Quando pertinente, procuro ligar as propostas e análises a medidas anticapitalistas, seguindo o proposto por Trotsky em 1938, no livro O Programa de transição. Esse conceito pretende resolver a aparente contradição entre medidas mínimas realizáveis dentro do capitalismo, e máximas, a caminho do socialismo. Que isso é importante, basta ver os esforços dos burgueses mais lúcidos para resolverem a contradição entre tratamento científico da pandemia (vacinas, lockdown, etc) e a produtividade do trabalho, atualmente em queda brutal, o que lhes é essencial.

    Objetivos progressivos e populares

    O “programa de transição” consiste na formulação e aplicação de objetivos progressivos e populares, realizáveis sem mudança de regime. São exemplos: o aumento dos impostos para os ricos, os aumentos salariais, a cobrança das dívidas patronais ao erário e ao seguro social, ou a chamada quebra das patentes das vacinas – que não é quebra, mas negociação forçada pontual e reversível. A luta por essas medidas e a ação se dão nos limites do capitalismo, mas a extensão e perenização invadem um território não capitalista.

    Assim, o acordo que levou Tancredo e Sarney ao poder impediu que as conquistas obtidas após o fim da ditadura se projetassem em lutas anticapitalistas, como poderia ter sido. Tal progresso se dá em meio às crises contra as quais as medidas foram tomadas e se pereniza para além do imediato, fora do capitalismo, daí ser de “transição”.

    Medidas isoladas de defesa da economia e da população podem perfeitamente ser tomadas por governos burgueses, quando não há alternativa. Diante da pandemia, um governo “normal” poderia ter decidido medidas estatizantes para combatê-la e, se não tomou, foi por uma mistura de incompetência com maquiavelismo de extrema direita e liberalismo.

    As vacinas chegam com vagar, pois os “especialistas” governamentais não tomaram as medidas para garantir a disponibilização para 211 milhões de pessoas. Agora, apesar da necessidade imperiosa, há prazos para a produção fora e no Brasil, dificuldades em negociar preços em meio a muitos “clientes”, além dos prazos para que a imunidade se estabeleça

    Hoje, como o reconhecem 500 banqueiros, capitalistas e economistas, é absolutamente necessária a coordenação entre os setores da administração na luta contra a pandemia que ameaça a vida e o mercado, cabendo, entretanto, a pergunta: com que objetivo? O propósito é óbvio, pois assistir a municípios fecharem e em seguida abrirem, ou abrirem e em seguida fecharem, as atividades não essenciais, mostra a incapacidade de entender o que ocorre, ou pior, a impotência.

    Tomar decisões opostas, a alguns quilômetros de distância, neutraliza o impacto das medidas restritivas, destinadas a reduzir as contaminações. Nessa situação, o lockdown se tornou uma necessidade absoluta, por impedir a contaminação, sobretudo por portadores assintomáticos.

    Burguesia e controle

    O objetivo da alta burguesia não se limita ao gesto de autoproteção e de proteção de “sua” mão de obra. Não quer perder o controle da situação, ameaçada pela incompetência e aventureirismo governamentais e, mais importante, quer a todo custo manter o controle do que ocorrerá após uma incerta normalização. Os excessos de hoje, com a morte atroz de centenas de milhares de pessoas, grande parte da qual poderia ter sido salva pelas medidas antecipadas preconizadas pelos sanitaristas e mídia, podem levar, conforme as circunstâncias, a lutas sociais inesperadas, contra as quais essa mesma burguesia criou e mantém em reserva, o bolsonarismo.

    As vacinas chegam com vagar, pois os “especialistas” governamentais não tomaram as medidas para garantir a disponibilização para 211 milhões de pessoas. Agora, apesar da necessidade imperiosa, há prazos para a produção fora e no Brasil, dificuldades em negociar preços em meio a muitos “clientes”, além dos prazos para que a imunidade se estabeleça.

    A Covid-19 não afeta todos igualmente, ricos e pobres – ela se insere na constante, às vezes aberta, outras vezes encoberta – guerra social. Cerca de 500 milhões de pessoas foram para a extrema pobreza em todo o mundo, e os mais ricos acrescentaram US $3,9 trilhões aos seus bens. O fim da pandemia seria para a classe dominante o início de uma nova era de desigualdade e de enfrentamento de classes, tanto para os fiéis ao projeto neofascista como para os 500 “democratas” que subitamente descobriram o mal que fizeram

    As inacreditáveis carências dos ditos “especialistas” facilitaram a política deliberada do Presidente. Este desmoralizou a Ciência com medicações extravagantes e inoperantes, pós de pirlimpimpim de Monteiro Lobato, com chistes que desrespeitam as vítimas, passeios em torno do palácio presidencial, com fanáticos despreparados e desprovidos de máscaras e de bom senso. Este governo atacou iniciativas como as do Instituto Butantã para depois tentar se apropriar do sucesso e, a despeito dos números de mortos, alardeia vantagens ao pretender ter o melhor programa antiepidemia do mundo. Note-se a inexistência de um Comitê Científico em nível federal, como o que o governo Dória instalou, a menos que se considere que bastem o Sr. Pazuello ou o sucessor Queiroga, que diz uma coisa e o contrário.

    Pandemia e guerra social

    A Covid-19 não afeta a todos igualmente, ricos e pobres – ela se insere na constante, às vezes aberta, outras vezes encoberta – guerra social. Cerca de 500 milhões de pessoas foram à extrema pobreza em todo o mundo, e os mais ricos acrescentaram US$3,9 trilhões aos seus bens. O fim da pandemia seria para a classe dominante o início de uma nova era de desigualdade e de enfrentamento de classes, tanto para os fiéis ao projeto neofascista como para os 500 “democratas” que subitamente descobriram o mal que fizeram. Querem repará-lo, contanto que as “reformas” reacionárias persistam, mesmo se embrulhadas em fantasias reformistas. Alguns oferecem serviço para tanto, referindo-se à associação entre trabalho e capital – e depois dizem que é o socialismo que é vetusto!

    Antes de detalhar as medidas que me parecem corretas e a projeção num programa de transição, notemos, como diz a revista Jacobin, que “em todo mundo, os ricos furam filas, enquanto 130 países, onde vivem 2,5 bilhões de pessoas, esperam por uma única dose”.

    Isolamento social

    Os Estados Unidos hoje são o país com a mais elevada mortalidade do continente (164,38/100.000), seguidos pelo Panamá (160,11/100.000), pelo Peru (158,94/100.000), pelo México (156,03/100.000) e pelo Brasil (136,06/100.000). A Alemanha enfrenta uma forte retomada da circulação do vírus, com 91.78 mortes/100.000 habitantes. A Suécia não havia registrado tantos óbitos desde a epidemia de fome de 1869 (a miséria após a I Guerra Mundial, explica a grande migração de suecos para a América do Norte).

    Com a população cerca de cinco vezes maior que a do Brasil, a China manteve o lockdown por mais de três meses em Wuhan e em cidades ao redor. Bloquearam as entradas da cidade e das escolas, restringiram viagens e suspenderam a circulação de automóveis e do transporte público, cancelaram eventos, interromperam o funcionamento de equipamentos públicos e de atividades não essenciais. Isso tudo acompanhado de intensa campanha de informações e recomendações de práticas de prevenção que se revelaram corretas.

    Um plano consistente de vacinação não pode ser concebido exclusivamente por burocratas do Ministério da Saúde que, na maioria, mostraram uma mistura de subserviência, ignorância e desrespeito pela população que os paga. A única garantia de continuidade das medidas a serem tomadas é a vigilância e a plena participação popular pelas organizações, notadamente de profissionais da saúde

    Pesquisa em 375 cidades chinesas, publicada na revista Science, demonstrou que o isolamento social é essencial. Em meio à pandemia, um grande número de pessoas infectadas mostra sintomas leves ou ausentes. Ao se deslocarem, respondem majoritariamente pela transmissão do vírus Sars-Cov-2. Finalmente, países de economia ainda ao menos em parte estatizada (China, Vietnã, Cuba) enfrentaram a pandemia com medidas coercitivas ajustadas, ganhando a aposta, como Israel – embora neste caso excluindo a população palestina das medidas de defesa, um crime contra a humanidade.

    O que fazer?

    Em 1904, V. I. Lenin, advogado convertido à política revolucionária, escreveu um livro que fez história, com título inspirado por um romance de Nikolai Tchernichévski (1828-1889). É a pergunta de hoje.

    Constatemos primeiro a incompatibilidade intrínseca do atual governo que apresenta um posicionamento e uma prática sanitária consequentes. Não se trata simplesmente de um governo capitalista que se adapta ao presente, como o é o de Dória, mas de aplicar um plano colonial, fazer do país um produtor de commodities, grande fazenda colonial moderna. O regime do país não é fascista, mas o chefe e acólitos o são. Portanto, nenhuma confiança nas promessas, mesmo quando são, o que é raro, pontualmente adequadas. A relação é de força e o “Fora Bolsonaro’’ está associado às medidas sanitárias indispensáveis e de “salvação nacional”.

    Antes de listar as medidas e as consequências, alguns questionamentos: como proceder para levar adiante a luta em defesa e salvação física de todos, incluindo, evidentemente, as direções da burguesia, que nos massacrariam sem dificuldade (o têm demonstrado em todos os países do mundo), latifundiários e milicianos, supremacistas brancos assassinos de negros, além dos trabalhadores e da pequena burguesia e intelectuais que queremos como aliados? Não nos transformemos em pregadores da união nacional, mas em promotores de medidas de defesa social, que agem no sentido da defesa da vida de todos, e se posicionam num terreno de classe favorável, com continuidade na luta pelo socialismo.

    Trata-se de um programa de medidas exequíveis e indispensáveis, a serem aplicadas sob o controle das organizações dos trabalhadores, da saúde, da função pública, das organizações de bairro, LGBTQIA+, negros, intelectuais em geral. Esse controle é indispensável e garantirá a execução das medidas aprovadas democraticamente. Um exemplo: chega um lote de vacinas, a quem será destinado? A decisão técnica e demográfica não será exclusiva e secreta se estiver sob controle de usuários e trabalhadores. A presença organizada dos trabalhadores não é inédita, existiu em condições políticas mais favoráveis, mas é perfeitamente justificada dentro do marasmo atual.

    É urgente a realização de um Congresso dos Trabalhadores pela Saúde para discutir propósitos e meios, preparando-se para, o quanto antes, reunir os delegados nomeados virtualmente e aplicar as decisões. Construir imediatamente o Comitê provisório que apele pela realização desse Congresso, até decisão democrática alternativa

    Um plano consistente de vacinação não pode ser concebido exclusivamente por burocratas do Ministério da Saúde que, na maioria, mostraram uma mistura de subserviência, ignorância e desrespeito pela população que os paga. A única garantia de continuidade das medidas a serem tomadas é a vigilância e a plena participação popular, pelas organizações, notadamente de profissionais da saúde. Esse é o corolário da total desconfiança para com as decisões do presente governo e do quarto Ministro da Saúde que, aliás, é mais experimentado em gestão privada que no SUS, ou outro sistema social de referência.

    Pontos de um programa sanitário

    Os pontos que me parecem constituir o centro de um programa popular, protossocialista, factível dentro do capitalismo, e sob controle dos trabalhadores, são:

    1. A organização de um Congresso dos Trabalhadores pela Saúde, para discutir propósitos e meios, preparando-se para, o quanto antes, reunir os delegados nomeados virtualmente e aplicar as decisões. Construir imediatamente o Comitê provisório que apele pela realização desse Congresso, até decisão democrática alternativa. Esse Comitê incorporaria os ativistas nomeados pelos movimentos atuais que não perderiam a autonomia.

    2. Apelar à organização de um lockdown nacional de 15-30 dias para interromper a contaminação, com a participação dos trabalhadores da saúde e do Congresso dos Trabalhadores pela Saúde.

    3. Promover campanha pelo auxílio emergencial mensal de R$ 600,00 a todos necessitados, controle popular e dos usuários.

    4. Garantir a estabilidade no emprego enquanto durar a pandemia.

    5. Congelar preços da cesta básica e dos combustíveis.

    6. Suspender reembolso de financiamentos ou aluguéis, contas de água e de energia das famílias de baixa renda.

    7. Oferecer auxílio financeiro imediato aos pequenos negócios, por um programa de empréstimo dos bancos públicos.

    8. Defender e ampliar a autoridade e funcionamento democrático do SUS, dos servidores e dos serviços públicos.

    9. Cobrar, sob controle dos trabalhadores organizados, as dívidas patronais para com o fisco e seguridade social e encampação em caso de recusa.

    10. Coordenar, sem coibir a autonomia dos movimentos espontâneos, a solidariedade efetiva material aos trabalhadores necessitados.

    11. Propugnar um acordo com países não imperialistas, alguns aliás produtores de vacinas, como Índia e Cuba, outros de insumos (Venezuela, que envia oxigênio ao Brasil) e outros.

    12. Planejar e efetivar contatos e ações coordenadas em defesa da saúde com trabalhadores da indústria de vacinas e de medicamentos e insumos, por meio de lives e encontros presenciais ulteriores.

    13. Abolir a “Lei de Segurança Nacional”, herdada da ditadura, que é inconstitucional e só serve aos interesses do patronato e da extrema direita.
    Inúmeras organizações de luta contra a pandemia surgiram ultimamente, e são bem-vindas, como a Frente em Defesa da Saúde pela Vacina Pública. Isso é prova da crescente vitalidade das oposições e a presente proposta não tem por objetivo fazer mais uma delas, mas oferecer um formato nacional e unitário, uma coordenação interna e com organizações locais de propósitos idênticos.

    As patentes

    Entendi, ao consultar juristas, que, no caso das vacinas contra a Covid, não se trata de uma quebra, a licença compulsória, sendo reconhecida internacionalmente desde 1925. Há 20 anos, a Organização Mundial do Comércio enquadrou essa concessão na necessidade de saúde pública, entre outras condições. O problema é que países como o Brasil, podem não ter plena capacidade tecnológica para a produção imediata.

    O Instituto Butantã conseguiria produzir o IFA, talvez em um ano. A dificuldade é política. Primeiro, o Brasil deveria negociar em posição de força com as sociedades farmacêuticas concorrentes, o que é hoje mais difícil do que ontem, devido ao desgaste da imagem do país com a inacreditável política exterior em curso.

    Essa discussão, quando ocorrer, deverá incluir as organizações de usuários e trabalhadores. É necessário um acordo internacional para garantir a vacina aos países mais pobres, enquanto os países ricos pretendem prioridade. Esta e negociações associadas devem também ocorrer sob controle das organizações populares e de usuários, nesse caso, sobretudo, a participação dos trabalhadores dos países envolvidos.

    A prioridade consiste em medidas que não prejudiquem a necessidade de importarmos vacinas e implementos, medicamentos etc. O bom planejador político prevê os passos após as decisões drásticas.

    Acredito que devemos favorecer um plano estratégico de uso das tecnologias vacinais, não como reivindicação aplicável imediatamente, mas como pressão sobre preços e preparo para o futuro, uma palavra de ordem estratégica. Evidentemente, ao mesmo tempo promover e assegurar o desenvolvimento da indústria estatal, como Butantã e Fiocruz, que mostraram competência e seriedade.

    Batalhas prioritárias

    O socialismo é nosso objetivo, mas não gritamos “Socialismo já”. Não se trata de ganhar a batalha dos slogans, mas a batalha da vida e das ideias. Hoje, ao propugnarmos uma medida propagandística, o preço das vacinas subiria, elas se esgotariam rapidamente e o terreno se tornaria fértil para levantar o povo contra os “irresponsáveis” (nós e os que tiverem nos acompanhado).

    A boa pergunta é: se estivéssemos em condições de influenciar um governo de esquerda, em meio à catástrofe sanitária, será que desencadearíamos a luta pela quebra das patentes – mesmo se, até o momento, não tenha havido recusa do fornecimento de vacinas? Os exemplos não faltam: Lenin e Trotski souberam recuar diante da pressão irresistível das Potências Centrais, nas negociações de Brest-Litovsk, que permitiram a paz entre as partes, ao final da guerra de 1914-1918 e a sobrevivência da revolução.

    Financiamento à pesquisa

    Termino constatando que o eventual despreparo para uma política sanitária consistente é agravado pela extrema limitação dos créditos para a pesquisa e pela política restritiva e repressiva contra a cultura em geral, as Universidades Federais em particular. Sem cientistas e técnicos assegurados, não há ciência e técnica. Enquanto isso, os Estados Unidos se preparam a dobrar o financiamento do “National Sciences Foundation”!

    Bernardo Boris Vargaftig é médico e Doutor em Ciências pela Universidade de Paris. Foi professor do Instituto Pasteur, em Paris, e professor-titular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.

  • Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública

    Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública

    Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública

    Nos últimos dias, a Nação assistiu estarrecida a uma sequência insólita de acontecimentos. Primeiro, a exposição pública, noespaço da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar responsabilidades pelas falhas no enfrentamento da pandemia, das omissões e desatinos promovidos pelo general Pazuello, quando à frente do Ministério da Saúde.

    Em segundo lugar, a participação ativa do mesmo personagem em manifestação política de apoio ao presidente da República, que desfilou pelas ruas do Rio de Janeiro, na condição de um de seus oradores.

    Finalmente,a decisão inexplicável do Comando do Exército no sentido de aceitar as desculpas esfarrapadas apresentadas pelo general Pazuello para justificar seus atos e abdicar, consequentemente, da   deveria recair sobre ele.

    O conjunto da obra é de extrema gravidade, na perspectiva da defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública, objetivos que deveriam reunir todos os brasileiros,independentemente de suas preferências políticas e ideológicas.

    Ocorreu, na verdade, um ataque orquestrado pelo presidente da República à disciplina militar e, consequentemente, à democracia, que depende também, como sabemos, da separação absoluta entre poder político e poder militar. Militares são servidores públicos armados, a quem é vedada a intromissão na seara da política. Condescender com a quebra dessa regra nos conduz à anarquia, situação favorável a todo tipo de autoritarismo.

    Nesse quadro preocupante, nós, conjunto de fundações partidárias reunidas do Observatório da Democracia, nos manifestamos de público contra a quebra da disciplina militar promovida pelo presidente da República, contra a impunidade de todos os responsáveis, em favor da manutenção e fortalecimento do papel das Forças Armadas no interior dos limites definidos na Constituição de 1988.

    O presidente da República demonstrou, mais uma vez, incapacidade para exercer as tarefas inerentes a seu cargo. Cabe ao conjunto das forças democráticas persistir na política de unidade e mobilização em defesa da democracia, da liberdade e da ordem constitucional,preparando as condições para, no momento oportuno, por fim ao ciclo político atual, que ameaça a Republica e suas instituições.

    Fundação Astrojildo Pereira
    Fundação João Mangabeira
    Fundação Lauro Campos-Marielle Franco
    Fundação Leonel Brizola Alberto Pasqualini
    Fundação Maurício Grabois
    Fundação Perseu Abramo
    Fundação Rede Brasil Sustentável
    Fundação Verde Herbert Daniel
    Instituto Claudio Campos
    Instituto Teotônio Vilela

     

  • O PSOL que sai das urnas – Por Cris Duarte

    O PSOL que sai das urnas – Por Cris Duarte

    O PSOL que sai das urnas

    Para a surpresa de muitos, 2020 foi o ano em que o PSOL ultrapassou várias limitações e ocupou o seu espaço no mapa político brasileiro, impulsionado pela mobilização popular. A chapa Boulos e Erundina conseguiu o melhor resultado no PSOL desde que o partido começou a disputar eleições para a prefeitura de São Paulo, trazendo ao debate as pautas do combate às desigualdades, à defesa do Estado como promotor do bem-estar social, do combate ao racismo, à LGBTfobia e ao patriarcado, em uma campanha muito energizada pela juventude. E essa agenda espalhou-se pelo Brasil

    Por Cris Duarte

    Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja . Eduardo Galeano

    Caminhando no contrafluxo

    Comumente as utopias se apresentam de forma propícia em tempos de crises, propondo, naturalmente, inversão à realidade imposta, levando-nos à reflexão sobre o mundo em que vivemos e o mundo que podemos construir: paz em tempos de violências; igualdade social diante das desigualdades; defesa da vida, contrapondo a banalização da morte; educação e ciência, em contraposição ao negacionismo.

    Há consenso entre diversos intelectuais e militantes políticos que, nas últimas décadas, houve um distanciamento gradativo do ideal utópico em vários segmentos da esquerda, que perderam a própria capacidade de leitura crítica da realidade, abriram mão da independência política e embarcaram em um processo equivocado e cada vez mais distanciado das classes trabalhadoras, do povo, da sociedade e do potencial de militância latente na juventude brasileira.

    O cenário de transformismo ideológico das últimas duas décadas, fez brotar o sentimento quase generalizado de que “no poder, são todos a mesma coisa”. Nessa conjuntura, completamente adversa e complexa para as esquerdas, reconhecendo a força do pensamento autoritário e o enraizamento, em grande parte, da sociedade brasileira, o PSOL se propôs, em sua trajetória, a revigorar as utopias

    O cenário de transformismo ideológico das últimas duas décadas, fez brotar o sentimento quase generalizado de que “no poder, são todos a mesma coisa”. Nessa conjuntura, completamente adversa e complexa para as esquerdas, reconhecendo a força do pensamento autoritário e o enraizamento em grande parte da sociedade brasileira, o PSOL se propôs a revigorar as utopias, cumprindo a sua função de contrafluxo, de cautela em relação às certezas, de oposição à tendência de repetição e rompendo com a excessiva naturalização com a qual percebemos os acontecimentos.

    A travessia que definiu destinos

    Por mais difícil que seja, torna-se necessário narrar nosso pesadelo histórico como forma de esburacar o véu de cegueira que causou a resignação generalizada, a sensação de espanto emudecedor dos movimentos históricos de esquerda que sonhavam com mudanças estruturais e revolucionárias do país.

    Sob a sedução do “lulismo” e das consecutivas derrotas eleitorais, o Partido dos Trabalhadores inaugurou, a partir de 2002, um dos processos mais contraditórios de sua história, que brutalmente levou o partido de maior referência na esquerda mundial para longe de seus valores e das lutas populares que sempre defendeu.

    Firmou alianças trágicas com a direita tradicional, alinhando o discurso e a imagem de Lula aos valores da classe média, recebendo apoio de oligarquias do Nordeste, da parcela da elite industrial paulista e lançando ao longo da primeira campanha a “Carta ao Povo Brasileiro”, ficou selado definitivamente, o compromisso de Lula com o modelo neoliberal e o jogo do mercado financeiro nacional e internacional.

    A vitória de Lula aconteceu gerando grandes expectativas, porém, realizando concessões e recuos programáticos que deslocou a praxis petista para outro terreno logo no início do mandato. Com a decisão de colocar Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston, no controle das finanças do país, a senadora Heloísa Helena, manifestou-se contra essa indicação. Posteriormente, iniciou um novo confronto ao votar contra a indicação de José Sarney para a presidência do Senado.

    Diante das contradições entre a história do partido e as promessas de campanha, as ações concretas do governo começaram a aflorar e a inquietar muitos militantes, simpatizantes e eleitores, gerando conflitos internos no PT. Eles se agravaram após a proposta nefasta da PEC de Reforma da Previdência do setor público, apresentada por Lula ao Congresso, em 2003, e que sem dúvida, seria extremamente danosa aos interesses dos trabalhadores.

    Foi uma travessia marcada por inúmeras vozes de oposição no interior do próprio PT e que reverberaram no Congresso, na CUT, entre os servidores públicos e em amplos setores da sociedade. Após uma série de confrontos, foi instalada uma comissão de ética para encaminhar o processo de expulsão por “indisciplina” da senadora Heloísa Helena (AL), e dos deputados, Joao Batista Babá (PA), Luciana Genro (RS) e João Fontes (SE), que não aceitaram tal rebaixamento político-programático em nome da governabilidade conservadora.

    Arrumando os desertos

    Impulsionados por todas as controvérsias, em dezembro de 2003, os parlamentares expulsos do PT, iniciaram um movimento nacional pela consolidação de um novo partido de esquerda, das massas, socialista e democrático. Isso significou ter capilaridade com os movimentos sociais, estar presente na luta cotidiana para ser capaz de pensar saídas efetivas para a população brasileira.

    Em janeiro de 2004 foi realizado um encontro no qual criou-se a Esquerda Socialista Democrática (ESD), movimento originário que definiu as bases de um programa provisório para a formação do novo partido. Posteriormente, deu-se a fundação do Partido Socialismo e Liberdade, PSOL, com a criação do primeiro Estatuto datado do dia 6 de junho de 2004, e assinado pela primeira presidenta do partido, a senadora Heloisa Helena.

    Com a crise econômica, social e política que atingiu diferentes estratos sociais do país, surgiu a maior onda conservadora desde 1964, que levou ao poder, pelo PSL, Jair Messias Bolsonaro – deputado federal, capitão da reserva do exército, que nunca fez questão de esconder seu viés ideológico bem próximo ao fascismo

    Logo, à formalização do PSOL junto ao TSE, em 2005, outro grupo de descontentes com os rumos do PT e do governo, juntou-se ao partido, entre os quais os deputados federais Ivan Valente (SP), Chico Alencar (RJ), a ex-deputada federal Maninha (DF), o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio e militantes de outras legendas, em especial do PSTU. Nesse processo, o PSOL obteve o apoio de intelectuais socialistas de renome, sociólogos, economistas, filósofos e cientistas políticos.

    Em 2006 o PSOL participou pela primeira vez de eleições e conseguiu resultados positivos. A candidatura da senadora Heloísa Helena à presidência da República alcançou 6,85% do eleitorado, contabilizando 6.575.393 votos.

    Nas eleições de 2008, o PSOL manteve o aspecto da primeira eleição em relação à grande quantidade de candidaturas ao Executivo das principais localidades do país, lançando prefeitos em 22 capitais. O partido conseguiu eleger 25 vereadores em 13 estados diferentes (22 municípios), mas não elegeu prefeitos.

    Apesar de aparecer com boas perspectivas eleitorais, a ex-senadora Heloísa Helena, desistiu da candidatura à presidência no pleito de 2010, declarando apoio à candidatura de Marina Silva do PV. Dessa forma, houve grande indefinição sobre a candidatura do PSOL ao pleito do executivo federal até meados de 2010, algo que só foi revertido com o lançamento da candidatura de Plínio de Arruda Sampaio.

    Antes do final do mandato à presidência do PSOL, Heloísa Helena abandonou a direção do partido alegando incompatibilidade de dirigir a legenda sem apoio interno no Diretório Nacional.

    No pleito de 2010, o partido não conseguiu eleger nenhum candidato ao executivo. Foram eleitos dois senadores (AP e PA), três deputados federais (RJ e SP) e quatro deputados estaduais (RJ, SP e PA).

    Além do quarto lugar de Luciana Genro na disputa presidencial de 2014, em que obteve 1,6 milhão de votos, o PSOL também aumentou a bancada na Câmara dos Deputados de três para cinco deputados. O partido não elegeu ninguém para o Senado. E, nos estados, 13 deputados estaduais foram eleitos pela legenda.

    Os atentados à democracia

    No biênio 2015-2016 uma articulação orquestrada entre agentes públicos provenientes de frações do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, todas elas retroalimentadas pelos oligopólios midiáticos, mobilizaram-se e exigiram o impeachment de Dilma Rousseff (PT), presidenta reeleita em 2014. Ela foi afastada definitivamente do cargo em agosto de 2016, sendo substituída pelo vice-presidente Michel Temer (PMDB).

    O contexto era de efervescência política, desencadeando numa série de manifestações populares nas ruas no decorrer de 2015 e 2016. Nessa conjuntura, a bancada parlamentar do PSOL, mesmo sendo oposição ao governo federal tanto de Lula, quanto de Dilma, declarou-se contrário ao processo de impeachment, por este ser a concretização de um grande golpe jurídico-parlamentar.

    Guilherme Boulos saiu dessa eleição com um ganho enorme de capital político, principalmente por alavancar nas redes sociais uma campanha que foi novidade, em forma e conteúdo. Como ele mesmo afirmou após o resultado do segundo turno em SP: “A gente apontou um futuro. É, apenas, o começo de um Brasil sem autoritarismo”

    Não foram desconsideradas nesse período, as permanentes tentativas de criminalização dos movimentos sociais e da ação e do pensamento crítico. Além disso, proliferou-se nas casas legislativas de todo o país, projetos que tentaram impedir o avanço de direitos de minorias e da liberdade de pensamento e construção do conhecimento, como a obscurantista lei elaborada pelo movimento “Escola sem partido”.

    Rastros de ódio

    Em 2018, enquanto Michel Temer implementava uma agenda de ataques aos direitos trabalhistas e decretava uma intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, o Brasil vivenciou a crescente escalada do ódio que se manifestou na execução da vereadora, negra, lésbica, com origem na favela, defensora dos direitos humanos, Marielle Franco, junto ao motorista Anderson Gomes, em 14 de março de 2018. A notícia reverberou no país e no mundo e ampliou o debate sobre violência política.

    Após, a caravana de Lula sofreu ataque a tiros no Paraná e múltiplos casos de violência se intensificam contra ativistas sociais, população negra e LGBT+.

    Em abril de 2018, foi decretada a prisão do ex-presidente Lula em uma escancarada perseguição judicial desencadeada pela Operação Lava Jato. O PSOL se manifestou publicamente contra a decisão do STF por considerar que a súmula 122 do STF é “flagrantemente inconstitucional” porque a carta magna prevê o início do cumprimento de penas após o trânsito em julgado.

    Com a crise econômica, social e política que atingiu diferentes estratos sociais do país, surgiu a maior onda conservadora desde 1964 que levou ao poder pelo PSL, Jair Messias Bolsonaro – deputado federal, capitão da reserva do exército que nunca fez questão de esconder o viés ideológico bem próximo ao fascismo.

    A campanha de Bolsonaro, dirigiu-se a um público previamente conhecido, basicamente de classe média, e o povo que na maioria aderiu, foi fisgado pela insatisfação com o desemprego e a violência urbana. O objetivo foi potencializar e transformar a insatisfação em ódio.

    Vimos uma campanha da extrema direita bem azeitada por uma máquina de propaganda eleitoral no WhatsApp e Facebook que difundia fake news de forma maciça contra os candidatos das chapas do PT e do PSOL.

    Chapa histórica

    Apesar das dificuldades de um cenário de fragmentação das esquerdas, tempo reduzido de propaganda eleitoral gratuita, desigualdade na distribuição do fundo especial de financiamento de campanha, o PSOL apresentou nesse pleito uma chapa histórica com o líder social do MTST, Guilherme Boulos, e Sônia Guajajara, a principal liderança indígena do país e reconhecida internacionalmente como uma ativista da pauta ambiental.

    O partido avançou significativamente com a resistência negra, feminista e LGBT, impulsionadas pelo legado de Marielle, ampliando a presença na Câmara dos Deputados em uma bancada com dez parlamentares composta por 50% de mulheres.

    Em uma eleição marcada pelo ódio, o PSOL plantou sementes de esperança para o futuro, levando pautas importantes para o debate, como a da reforma agrária, a luta por moradia, a defesa dos movimentos sociais, a defesa de pautas das mulheres, dos negros e negras e LGBT+.

    Crise e disputa

    Na resolução do Diretório Nacional do PSOL, publicada em outubro de 2019, já estava explícita a importância das próximas eleições para o partido, considerando o cenário político nacional.

    O que não se esperava era que 2020 seria o ano da mais grave crise sanitária mundial, devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus, causando um incalculável prejuízo humano.

    A campanha aconteceu de forma atípica, tendo que se adaptar aos protocolos de biossegurança estabelecidos pelas autoridades sanitárias, o que forçou o adiamento da votação de outubro para novembro e a mudança na legislação que impediu as coligações para as eleições proporcionais.

    Para a surpresa de muitos, 2020 foi o ano em que o PSOL ultrapassou todas as limitações e ocupou o seu espaço no mapa político brasileiro impulsionado pelo poder popular. A chapa Boulos e Erundina conseguiu o melhor resultado no PSOL desde que o partido começou a disputar eleições para a Prefeitura de São Paulo, trazendo ao debate as pautas do combate às desigualdades, a defesa do Estado como promotor do bem-estar social, do combate ao racismo, à LGBTfobia e ao patriarcado, em uma campanha muito energizada pela juventude.

    Capital político

    Guilherme Boulos saiu dessa eleição com um ganho enorme de capital político, principalmente por alavancar nas redes sociais uma campanha que foi novidade, em forma e conteúdo.
    Em Belém (PA), mesmo com a avalanche de fake news, Edmilson Rodrigues chegou ao segundo turno e conquistou a prefeitura com 51,76% dos votos.

    Em outros três municípios o PSOL também saiu vitorioso das eleições. Elegeu Salomão Gurgel em Janduís (RN), Edson Veriato em Potengi (CE), João Alfredo em Ribas do Rio Pardo (MS), e Cido Sobral em Marabá Paulista (SP).

    O PSOL vem crescendo e criando uma nova pedagogia de ação política à esquerda, ancorado no ideal de construção de uma nova sociedade, sem abrir mão dos valores em nome de pragmatismo, seguindo apoiado nas lutas das trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, fazendo da democracia nossa casa comum

    O compromisso histórico do PSOL com um projeto coletivo, amplo e contínuo de emancipação e transformação social segue se confirmando nas urnas a cada eleição. Agora, o partido também conta com 90 mandatos nas câmaras municipais, nas cinco regiões do país, sendo 34 deles liderados por mulheres, 43 negras e negros eleitos pelo partido, 4 mandatos de mulheres trans e outros 10 mandatos coletivos. Do total de mandatos, 53 foram eleitos em capitais ou cidades acima de 200 mil habitantes.

    Com a substituição de Edmilson Rodrigues na Câmara dos Deputados pela jovem negra Vivi Reis, a bancada do PSOL passou a ser a única do país a ter maioria feminina.
    O PSOL vem crescendo de forma orgânica e consistente, criando uma nova pedagogia de ação política à esquerda, ancorado no ideal de construção de uma nova sociedade, sem abrir mão dos valores em nome de pragmatismo, seguindo apoiado nas lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores do Brasil, dos movimentos sem-teto e dos coletivos de cultura e educação popular fazendo da democracia nossa casa comum.

    O partido tem mostrado compromisso nas discussões sobre raça, gênero, pautas LGBT e indígenas. Falar sobre tais temas é falar sobre a desigualdade, a pobreza e a violência no Brasil agravadas radicalmente pelo cenário alarmante da pandemia e do governo genocida de Jair Bolsonaro.

    *Cris Duarte é psicóloga, Diretora da revista Empodere e Dirigente do PSOL/Campo Grande.