Autor: Redação Lauro Campos

  • DOSSIER “BREXIT”

    DOSSIER “BREXIT”

    O Brexit inaugurou uma nova etapa da crise europeia. A política e a economia do Velho Continente vivem semanas de apreensão. Dias depois do referendo britânico, intelectuais progressistas do mundo inteiro compartilharam suas  reflexões iniciais. O Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos preparou um dossier com nove análises breves que contemplam as diferentes perspectivas que são encontradas no pensamento crítico à esquerda.

    Confira o índice dos artigos selecionados:

     

    Yanis Varoufakis – Brexit: consequências e impactos

    Miguel Urban – Dez teses sobre a crise do projeto europeu ao calor do Brexit

    John Weeks – Brexit e a extrema-direita

    Vladimir Safatle – O Estado-Nação como patologia

    Raquel Varela – É a democracia, estúpido!

    George Monbiot – Brexit é um desastre, mas nós podemos construir sobre as ruínas

    Slavoj Žižek: Precisamos entender a esquerda que apoiou o Brexit

    Eric Toussaint – “O Brexit é a maior crise da UE desde a sua criação”

    Rosana Pinheiro-Machado O Brexit e o fim da identidade dos trabalhadores

     

     

     

     

    Yanis Varoufakis – Brexit: consequências e impactos

    Ganhou o Leave (sair), porque demasiados eleitores britânicos identificaram a UE com autoritarismo, irracionalidade e desapreço pela democracia parlamentar, e porque demasiado poucos acreditaram nos que sustentávamos que uma outra UE era possível.

    Eu fiz campanha a favor de um voto radical pelo Remain (permanecer), fazendo eco aos valores de nosso movimento pan-europeu Democracy in Europe Movement (DiEM25). Visitei distintas cidades na Inglaterra, em Gales, na Escócia e na Irlanda do Norte, buscando convencer aos progressistas de que devolver a UE não era a solução. Sustentei que sua desintegração desencadearia forças deflacionárias, que muito provavelmente significarão por todos os lugares um novo aperto no parafuso da austeridade e que terminarão favorecendo o establishmente e seus colaterais xenófobos. Junto com John McDonell, Caroline Lucas, Owen Jones, Paul Mason e outros, advoguei por uma estratégia de permanecer, porém contra a ordem e as instituições estabelecidas.

    Contra nós, uma aliança composta por:

    – David Cameron, cujas manobras com Bruxelas trazem à memória dos britânicos tudo o que desagrada na UE;

    – o Tesouro e seu grotesco alarmismo pseudo-econométrico;

    – a City, cuja insuportável arrogância ensimesmada pôs milhões de ya insufrible arrogancia ensimismada puso a millones de votantes contra la UE;

    – Bruxelas, tenazmente empregada em aplicar sua última tortura do “submarino” e o simulacro de asfixia sobre a periferia europeia;

    – o ministro das finanças alemão,  Wolfgang Schäuble, cujas ameaças aos eleitores britânicos galvanizaram o sentimento anti-alemão;

    – o penoso governo socialista francês;

    – Hillary Clinton e seus alegres garotos atlantistas, projetando uma UE incluída em outra perigosa “coalizão de vontades”;

    – e o governo grego, cuja persistente capitulação ante a punitiva austeridade da UE tornava muito difícil convencermos a classe operária britânica de que seus direitos estavam protegidos por Bruxelas.

    As forças subterrâneas insidiosas que serão agora ativadas

    As repercussões do voto serão calamitosas. Contudo, não serão aquelas contra as quais repetidamente advertiam Cameron e Bruxelas. Os mercados não tardarão em se estabilizar e as negociações provavelmente levarão a uma solução do tipo norueguesa, o que permitira ao próximo parlamento britânico encontrar a via até algum tipo de ajuste deliberado de comum acordo. Schäuble e Bruxelas baterão e soprarão, no entanto, inevitavelmente, buscarão um compromisso deste tipo com Londres. Os Tories vão se manter unidos, como sempre, guiados pelo potente instinto de seu interesse de classe. Todavia, apesar da relativa tranquilidade que seguirá ao atual choque, serão ativadas forças subterrâneas insidiosas dotadas de uma formidável capacidade para infligir danos à Europa e à Grã-Bretanha.

    Nem Itália, nem Finlândia, nem Espanha, nem França, nem, desde logo, Grécia são sustentáveis sob as atuais condições. A arquitetura do euro é garantia de estancamento e está aprofundando a espiral deflacionária da dívida que fortalece a direita xenófoba. Os populistas na Itália, na Finlândia, possivelmente na França, exigirão referendos ou outras sendas de desconexão.

    O único homem com um plano é o ministro alemão de finanças. Schäuble vê no pânico pós-Brexit sua grande oportunidade de implementar uma união permanentemente austeritária. As cenouras vêm em forma de um pequeno orçamento da eurozona destinado a cobrir parcialmente o desemprego e os seguros dos depósitos bancários. O garrote será um poder de veto sobre os orçamentos nacionais.

    Se eu estou correto e o Brexit leva à construção de uma jaula de ferro austeritária permanente para os estados membros que permanecem na UE, há dois resultados possíveis. Um é que a jaula de ferro se sustenta, em cujo caso a austeridade institucionalizada exportará deflação para a Grã-Bretanha, porém para a China (cujo ulterior desestabilização terá por sua vez negativas repercussões na Grã-Bretanha e na UE).

    Outra possibilidade é que a jaula se rompa (por abandono da Itália ou da Finlândia, por exemplo), resultando finalmente no abandono por parte da Alemanha de uma Eurozona em colapso. Porém, isso se tornará a nova  Deutschmark – que provavelmente se estenderá até a fronteira ucraniana – numa gigantesca máquina geradora de deflação (posto que a nova moeda vai se disparar em alta, e as fábricas alemãs perderão mercados internacionais). Grã-Bretanha e a China teriam, sob esse cenário, maiores possibilidades ainda de ser alcançadas por um choque deflacionário ainda maior.

    O horror desses possíveis desdobramentos, dos quais o Brexit não protegerá a Grã-Bretanha, é a razão de que eu e outros membros do DiEM25 buscamos salvar a UE do establishment que está levando o europeísmo ao abismo. Eu duvido muito de que, apesar do pânico que sentiram depois do Brexit, os dirigentes da UE sejam capazes de aprender a lição. Seguirão combatendo a democratização da UE e seguirão impondo-se através do medo. Pode surpreender que tantos progressistas britânicos tenham dado às costas a esta UE?

    Ainda que eu siga convencido de que o Leave era a opção equivocada, me congratulo da determinação do povo britânico para enfrentar a diminuição de soberania democrática causada pelo déficit democrático da UE. E me nego a ficar abatido, ainda que coloque entre os perdedores do referendo.

    O que agora devem fazer os democratas britânicos e europeus é aproveitar esse voto para enfrentar o establishment em Londres e em Bruxelas com mais afinco que antes. A desintegração da UE corre agora a toda velocidade. Estender pontes por toda Europa, unir os democratas através de todas as fronteiras e de todos os partidos: isso é o que a Europa necessita mais do que nunca para evitar deslizar para um abismo xenófobo e deflacionário como o dos anos 30 do século passado.

    Yanis Varoufakis é um economista, acadêmico e político grego, que ocupou o cargo de Ministro Grego das Finanças de janeiro a julho de 2015, quando ele renunciou.

    Fonte: http://www.sinpermiso.info/textos/brexit-consecuencias-e-impactos

     

     

    Miguel Urban – Dez teses sobre a crise do projeto europeu ao calor do Brexit

    Quando se secarem as lágrimas daqueles que há um ano chantagearam o povo grego com a expulsão da União Europeia caberá, como dizia Spinoza, “Nem rir, nem chorar, mas compreender”.

    1- O Brexit não é o começo da crise, mas o sintoma mórbido da mesma, consequência    de um processo falido de integração europeia desde seu início no começo dos anos 50.

    1. Este problema vem de longe e tem seus inícios na extensão à escala continental da revolução conservadora e do thatcherismo.     Um processo que favoreceu a mutação neoliberal da União Europeia    sentenciada no Tratado de Maastricht e que é a base da sabotagem do próprio projeto europeu. Com efeito,    o Tratado de funcionamento da União inscreve em seu terceiro artigo o objetivo de fomentar a a conexão econômica, social e territorial assim como a solidariedade entre seus estados-membro. Contudo, as    políticas efetivas da UE estão indo em sentido oposto: com uma União Monetária defeituosa desde seu começo, que contribuiu para polarizar a Europa entre um Sul devedor e um Norte credor, e umas políticas de austeridade e desmantelamento do Estado social que tem    recortado os direitos das classes populares.
    1. A crise política do projeto Europeu viveu seus primeiros sintomas no rechaço da Comissão Europeia nos referendos da França e da Holanda. Estas votações foram a expressão de um rechaço popular ao modelo de integração europeia que não só foram ignoradas pelas instituições e elites europeias, mas que ao contrário aceleraram a marcha das reformas estruturais do tratado de Lisboa com a máxima “melhor decretar do que perguntar”.
    1. O giro autoritário da UE teve sua maior demonstração no ano passado com o golpe de estado à vontade popular grega depois de um referendo onde mais de sessenta por cento da população votou contra a austeridade e ainda assim a troika aplicou um duríssimo corretivo em forma de “terceiro memorando que abundava em ajustes, recortes e privatizações. Uma medida que pretendia ser um aviso a navegantes para todas aqueles que ousassem questionar a ortodoxia austeritária, porém que ao cabo supôs uma ruptura do consenso    social sobre as instituições europeias.
    1. Durante estes anos temos contemplado a mutação da social-democracia em “social-liberalismo” com sua incorporação a uma elite política neoliberal que superou a tradicional divisão direita-esquerda convertendo-se no que o escritor Tariq Ali denomina “extremo-centro”. Em toda a Europa este processo supôs uma paulatina polarização da política e a substituição dos espaços    eleitorais tradicionais até opções políticas que até agora se encontravam em suas margens. Um bom exemplo desta situação é a    preponderância que tem ganhado um partido e algumas propostas como    as do UKIP na campanha do Brexit na Grã-Bretanha.
    1. É sintomático da crise do projeto europeu que os únicos que reivindicam as virtudes da UE de forma ritual são os membros de uma classe política muito desacreditada, que não parece ter nem memória nem ética. Quanto mais orgulho demonstram estas elites em decadência de sua crença na UE, mais a desqualificam, inclusive    ante muita gente que jamais deu mostras da menor simpatia pelo    anti-europeísmo conservador, nacionalista e xenófobo. Favorecendo que o voto de protesto anti-establishment seja fundamentalmente canalizado pelas opções de extrema-direita eurocéticas.
    1. Num ataque de sinceridade o comissário europeu de Imigração, Dimitris Avramópulos, afirmou há alguns meses que vivemos “um momento difícil para a Europa: o sonho europeu se desvaneceu”. Poderíamos dizer que mais do que um sonho se afastando, estamos nos adentrando progressivamente num pesadelo securitário que levanta muros entre    aqueles que devem ser protegidos e aqueles que estão excluídos de referida proteção.  A gestão da chegada de milhares de refugiados a Europa é outra fator que desponta na crise europeia, uma crise política, que está    demonstrando os limites da UE, sendo a mutação neoliberal e o recrudescimento da xenofobia institucional os motores da sabotagem do próprio projeto europeu, como temos comprovado no próprio debate sobre o Brexit. Podemos dizer que hoje mais do que nunca as fronteiras da Europa sangram e os alambrados brotam. E é assim que a UE está respondendo ao que possivelmente é seu maior desafio em décadas: levantando muros, instalando centros de internamento massivos e recortando direitos e liberdades a nativos e migrantes. Muros construídos sobre o medo ao outro, ao desconhecido e que    aumentam a brecha entre eles e nós. Muros entre os quais se reforçam os preconceitos identitários e os nacionalismos    excludentes. Muros que reavivam antigos fantasmas que hoje, de novo,    percorrem a Europa. Os mesmos fantasmas contra os quais supostamente aquele sonho europeu se levantou há décadas.
    1. Desde o início do giro neoliberal da UE, a desigualdade não parou de aumentar, acelerando-se de forma vertiginosa com a crise econômica e as políticas de ajuste estrutural. Assim, a pobreza, de igual forma para a migração, também se constrói como inimigo, porém o objetivo não é tanto acabar com a pobreza, mas acabar com os pobres. Deixamos de atender a pobreza a partir da extensão do Estado social, a combatê-la a partir do aprofundamento de um Estado policial que estigmatiza e criminaliza as pessoas pessoas empobrecidas. Ante a impossibilidade de solucionar a insegurança derivada das políticas de ajuste e austeridade, da precarização do mercado laboral e da perda de direitos e prestações sociais, se estigmatizam fenômenos como a migração ou a pobreza. As políticas de austeridade da UE estão construindo um imaginário de “escassez” que fomenta um mecanismo de exclusão e uma guerra entre pobres que canaliza o mal-estar social em seu elo mais frágil (o imigrante, o estrangeiro ou simplesmente o “outro”) eximindo assim as elites políticas e econômicas responsáveis da espoliação.

              9- O drama é que neste 23 de junho a impugnação da União com o Brexit não partiu de uma proposta de uma proposta europeísta de ruptura democrática e de conquista de direitos como pôde ser o referendo grego do OXI há um ano, desgraçadamente foi uma    combinação de nacionalismo excludente, demagogia anti-imigração e cansaço ante a desigualdade social que soube fazer eco, articulando o rechaço popular à institucionalidade europeia. Desta forma, o vazio que gera uma alternativa política crível europeia é ocupado pelo medo, a xenofobia, o preconceito identitário, o egoísmo estreito e a busca de bodes expiatórios.

    1. Quando mais Europa necessitávamos, mais fronteira interiores e exteriores estamos encontrando. Quando mais urgente resultava traduzir em políticas concretas aqueles valores de paz, prosperidade e democracia de que falavam os mitos fundadores da União, mais guerras, cortes e xenofobia vemos crescer ao longo do continente. Já conhecemos o resultado de combinar empobrecimento, capitalismo selvagem, intolerância e nacionalismo. A União Europeia pretende ser filha daquela vacina contra esses mesmos fantasmas do passado. Filha de um plano que começou como um sonho, porém que quando abandona os brilhantes painéis nos corredores e as comoventes declarações nos plenário, adota a forma de pesadelo crescente. Quando a austeridade se converte na única opção político-econômica de algumas instituições afastadas dos interesses da cidadania, esta UE realmente existente se torna um problema para as maiorias sociais e construir uma Europa diferente emerge como a única solução à deriva que vivemos.

    A UE tem hoje um plano que pouco ou nada se parece na prática com aqueles sonhos fundacionais. Um plano que engendra monstros e reaviva velhos fantasmas. Já sabemos como terminou aquela história, por isso uma mudança não é só possível ou desejável, mas que resulta urgente e necessário. Uma mudança de rumo que passa por construir um projeto Europeu que recupere as raízes democráticas do antifascismo dos partisan, da solidariedade, da paz e da justiça social. Um projeto europeu que exclua e expulse a ninguém, um    projeto do qual ninguém queira sair. Esta é a tarefa que hoje mais    do que nunca se torna imprescindível.

    Miguel Urbán é um ativista e político espanhol, co-fundador do PODEMOS e eurodeputado.

    Fonte: http://www.huffingtonpost.es/miguel-urban/diez-tesis-sobre-la-crisi_b_10669724.html

     

    John Weeks – Brexit e a extrema-direita

    Na quinta-feira, 23 de junho de 2016, a extrema-direita conquistou sua mais importante vitória na história eleitoral britânica. Sua campanha no referendo caminhou rumo a vitória em cima de uma questão: imigração.

    A percepção de que “outros” roubam os “empregos britânicos”, rebaixam os salários e sobrecarregam os serviços público dominou o debate da campanha e sobressaiu sobre todas as demais. Essa foi a vingança dos perdedores da globalização e dos marginalizados, com seus opressores liderando o processo.

    Todos os progressistas mais importantes – políticos, sindicalistas e jornalistas – apoiaram a adesão à UE. Jeremy Corbyn (o primeiro líder verdadeiramente progressista do Labour Party em décadas) e a executiva inteira dos trabalhistas defendeu continuar no bloco europeu. Todos os dirigentes sindicais mais importantes chamaram o voto pelo “Remain”, inclusive alguns dos mais progressistas.

    A suposição de que os progressistas, “a Esquerda”, ficou dividida no referendo representa não mais que wishful thinking de alguns grupos marginais (por exemplo, o Partido Comunista Marxista-Leninista da Grã-Bretanha e o Socialist Workers Party).

    Entre os que defenderam o Brexit, nós encontramos o protagonismo da extrema-direita. O primeiro e mais destacado é Nigel Farage e seu ultranacionalista UKIP. O programa econômico de Farage e dos tories brexiteers é uma versão extrema do neoliberalismo. Suas objeções à União Europeia incluem regulações que protegem consumidores e trabalhadores (inclusive, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), que em sua visão limita “livre-comércio” e o “livre fluxo de capitais”.

    A farsa mais descarada dos Brexiteer foi sua retórica ventilando temores sobre a imigração, enquanto planejam um pós-referendo com o programa de arrasar com os direitos humanos e civis do grupo-alvo. Sua estridente mensagem antiimigração carregou o subtexto: “impeçam os imigrantes de reduzir seus rendimentos e de prejudicar os serviços sociais para que nós possamos fazer isso mais profundamente através da privatização e da desregulamentação”.

    Ladeira abaixo

    O resultado do referendo sinaliza uma mudança fundamental na política britânica. Parafraseando Oscar Wilde, de repente nós temos o indizível controle da busca do inimaginável: Boris Johnson e/ou Michael Gove estão a passos do poder estatal.

    É possível que essa troca de guarda entre os Tories, da direita para mais à direita (ou a extrema-direita?) crie o espaço para os progressistas ocuparem? Poderia a desordem transitória na direita encorajar e inspirar a esquerda para a ação?

    Depois de semelhante choque político, todos deveriam ser extremamente cautelosos em se aventurar em predições sobre as coisas que estão por vir. No entanto, um processo pelo qual uma vitória eleitoral liderada pelos políticos mais direitistas do país poderia energizar a esquerda não me parece crível. Muito mais crível é o oposto, uma vitória da Direita fortalece a direita.

    A eleição de Jeremy Corbyn como líder do Labour Party é a mais importante mudança progressista no Reino Unido em décadas. Em vez de repreenderem o governo tory por criar a possibilidade e estabelecer as bases do Brexit, os parlamentares blairistas aproveitam o resultado do referendo para atacar a popularidade do líder eleito.

    Assim que os resultados apareceram na TV, a velha guarda do partido pediu a derrubada de Corbyn, acusando-o de culpado pelo resultado.

    Com um olho na divisão do Labour Party, o novo primeiro-ministro conservador pode realizar uma eleição rápida para solidificar seu poder. Isso combinado com um segundo referendo escocês poderia significar um golpe massivo para a política progressiva do que restaria na Grã-Bretanha.

    Nem tudo foi perdido no 23 de junho, mas uma grande parte já o foi.

    John Weeks é um economista e professor-emérito da School of Oriental and African Studies of the University of London

    Fonte: https://www.opendemocracy.net/can-europe-make-it/john-weeks/brexit-and-rise-of-far-right

     

    Vladimir Safatle – O Estado-Nação como patologia

    Muito já foi dito a respeito da decisão inglesa de sair da União Europeia. Ela é certamente um dos fatos mais importantes deste curto século por aquilo que explicita.

    A União Europeia nasceu com a promessa de ser o início de uma era pós-nacional, na qual os Estados-nação se submeteriam paulatinamente a uma engenharia institucional capaz de garantir a existência de sujeitos políticos pós-nacionais.

    Aos poucos, atribuições dos parlamentos nacionais passaram ao Parlamento Europeu, a criação de uma moeda única levou a um banco central transnacional, as universidades criaram sistemas de intercâmbio contínuo tendo em vista a formação de cidadãos europeus.

    Nesse sentido, não se tratava apenas de um espaço de livre comércio, mas da tentativa de criação de um espaço político que deixaria para trás as estruturas dos Estados nacionais. Diferente da Organização das Nações Unidas, que sempre foi algo mais próximo a um fórum de debates, a União Europeia representou, pela primeira vez, um processo efetivo de transferência de poder.

    No entanto, mais de 20 anos depois de sua instauração, a ira de parcelas expressivas de populações do velho continente contra a União Europeia é visível. A decisão inglesa, por mais suicida que seja do ponto de vista econômico e político (com a saída iminente da Escócia do Reino Unido), é apenas a ponta do iceberg. A razão de tal ira talvez esteja involuntariamente bem expressa na representação visual de sua maior invenção, a saber, o euro. Há uma certa ironia em perceber como as notas de euro não representam seres vivos (personagens históricos, animais, flora), mas objetos mortos, como pontes, viadutos e outras construções de infraestrutura. A ideia era louvar a circulação. Para ser mais preciso, a circulação de riquezas, de produção, de capital. Mas, de forma sintomática, nestas representações não há pessoas.

    De fato, durante todos estes anos a União Europeia foi uma engenharia institucional que só esteve de acordo em dois pontos: organizar políticas massivas de salvamento do sistema financeiro combalido desde a crise de 2008 e estabelecer políticas comuns de limitação de circulação de imigrantes.

    Os projetos iniciais de criação de uma Europa social, com estruturas transnacionais de garantias trabalhistas e defesa social, naufragaram rapidamente. No caso da Grécia, por exemplo, a União Europeia demonstrou toda sua irracionalidade ao impor medidas de austeridade durante anos com resultados catastróficos, decididas por tecnocratas sem rosto e sem disposição alguma para corrigir seus equívocos.

    No entanto, o voto britânico foi um dos mais impressionantes passos na direção errada da história recente. Ele foi animado por dois fatores: a crença de que o fortalecimento do Estado-nação serviria de contrapeso a estas políticas que levaram à pauperização do continente e o medo diariamente alimentado pelo próprio governo e por setores da imprensa local contra o além-mar (imigrantes, refugiados e estrangeiros).

    O primeiro fator é apenas a tentativa de ressuscitar um arcaísmo. O Estado-nação não existe mais e melhor seria que ele fosse desmantelado de vez.

    Ele é apenas um zumbi que se alimenta de algumas das piores patologias sociais de nossa época, como a paranoia identitária, a ilusão das fronteiras, a paixão pelo isolamento.

    O Estado-nação não decide mais nada, mesmo quando ainda tem o controle de sua moeda, como no caso inglês. Apenas implementa políticas decididas por um sistema econômico global. Por isso, ele será usado todas as vezes que for o caso de desviar o eixo do descontentamento não para cima, ou seja, em direção àqueles que realmente decidem, mas para o lado, a saber, em direção àqueles que servirão de bode expiatório da vez, sejam poloneses, ciganos, negros ou árabes.

    Nos últimos dias, os ingleses descobriram uma obviedade: sair da Comunidade Europeia é impossível, daí esta situação digna de Monty Python de um país tentando adiar a implementação de uma decisão que ele mesmo tomou. As economias nacionais não existem mais.

    Por essa razão, a luta pela defesa contra a espoliação econômica não passa pelos Estados nacionais, mas pela politização das decisões econômicas impostas por organismos transnacionais, como a União Europeia, o FMI e o Banco Mundial. Mas faz parte de uma certa gestão da política atual desviar continuamente os eixos reais dos problemas para espaços imaginários.

    Vladimir Safatle é professor da Faculdade de Filosofia da USP e colunista da Folha de São Paulo

    Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/07/1787343-o-estado-nacao-como-patologia.shtml

     

    Raquel Varela – É a democracia, estúpido!

    Bem sei que hoje acordamos ao som do Apocalipse da queda das bolsas. Só para avisar os mais distraídos – a queda das bolsas não significa a nossa crise, embora assim seja transmitida nos media, como a «crise de todos», pelo contrário, significa desvalorização dos activos ou activos futuros arriscados (investimento que se espera no futuro ter valorização), ou seja, a queda das bolsas significa desvalorização da propriedade. É o apocalipse só para quem vive não de trabalhar e produzir bens e serviços necessários mas da extracção da força de trabalho alheia e de produzir lucro – os chamados «mercados». A queda de 10 a 17% das bolsas significa desvalorização de capitais – bolsa para a maioria dos Europeus é uma coisa onde guardam o salário. Desconhecem a maioria dos europeus o significado de ter investido 400 mil em acções de uma fábrica onde se constrói automóveis, porque automóveis dão mais lucro que comboios, e onde a remuneração dessas acções é tanto maior quanto menos ganharem os operários e suas famílias, menos pagarem para a Segurança Social.

    E quando se compraram tantos robots e máquinas para produzir ainda mais automóveis e de repente ficaram com a fábrica cheia de automóveis que ninguém compra chamam os Estados para emitir dívida pública e pagar esses 400 mil, e despedem as pessoas dizendo «não há dinheiro» – nem para automóveis, nem para comboios, é a «crise». É o famoso «investimento que cria emprego». Financiar comboios e transportes públicos não criava emprego? Criava mas não mantinha as bolsas em «terreno positivo». Só com mistificação e ignorância se confunde produção de lucro e riqueza.  Na verdade, hoje, a produção de lucro implica destruição de riqueza – é assim que um hospital dá mais lucro se despedir médicos e menos riqueza porque não cura pessoas – e as bolsas, pagas através da remuneração da dívida pública com o despedimento do médico ficam em «terreno positivo». E um investidor inglês fica agora preocupado por causa da desvalorização cambial dos seus investimentos na dívida pública, nos carros ou em comprar títulos de um hospital privado, para onde foi o médico despedido do público trabalhar. Contra a desvalorização cambial a desvalorizaçao salarial de manter-se dentro da UE – é isso que defende a confederação patronal Inglesa – porque manter-se dentro da EU significa pela concorrência de salários e migrações a valorização das acções. A esquerda tinha uma oportunidade para defender um contrato igual de trabalho para toda a Europa – essa é a nossa Europa Unida mas anda atrás deste jogo de espelhos. Sem horizonte, sem projecto, sem coragem.

    O maniqueísmo é que resolve tudo com um «ou estás connosco ou contra nós». O Brexit foi liderado pela direita. Foi. Mas o Remain também. A esquerda aliás não lidera nada há muito nada, desde logo porque a esquerda que temos com voz massiva – a social-democracia, a la PS ou a la Syriza, está aprisionada às propostas da direita. A União Europeia tem sido a Desunião Europeia. Se há racistas que votaram no Brexit há zonas inteiras tradicionais de esquerda que votaram no Brexit. A imprensa em Portugal tem sido parcial, ao contrário de uma parte da imprensa mainstream inglesa onde se puderam ouvir as vozes de esquerda pela saída da União Europeia.

    A UE cada vez que é submetida a referendos cai como um castelo de cartas – França, Holanda, Irlanda, Grécia, Inglaterra. A UE – também conhecida como o Sindicato Internacional de Banqueiros – apesar de toda a chantagem que faz sobre os povos cada vez que ameaçam romper e que reúne os maiores lideres mundiais a pedir de 5 em 5 minutos para ficarem se não virá uma invasão de gafanhotos do deserto – não resiste cada vez que se ouve a voz dos seus povos.

    Que os Europeus acordem antes da guerra – porque a guerra virá da construção da UE, da natureza da UE, do que é a UE, e a resistência ou virá dos povos europeus ou não virá.

    Raquel Varela é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa

    Fonte: https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2016/06/24/e-a-democracia-estupido/

     

    George Monbiot – Brexit é um desastre, mas nós podemos construir sobre as ruínas

    Esta é uma crise de proporções espantosas, mas também é uma oportunidade para as mudanças que a esquerda há muito tem procurado

    Vamos despedir o eleitorado e nomear um novo: essa é uma demanda feita pelos deputados, advogados e os 4 milhões que assinaram a petição convocando um segundo referendo. É um grito de dor, e portanto compreensível, mas é também uma má política e uma má democracia. Reduzido a sua essência, isso equivale a graduados dizendo para não-graduados: “Nós rejeitamos a sua escolha democrática”.

    Se essa votação fosse anulada (não será), o resultado seria uma guerra entre classes e de cultura em larga escala, motins e talvez pior, progressistas de classe média investindo contra aqueles em cujo nome eles têm reivindicado falar, e permanentemente alienando as pessoas que passaram suas vidas sentindo-se sem voz e sem poder.

    Sim, o voto pelo Brexit empoderou a mais horrível coleção de ardilosos, ludibriadores, mentirosos, extremistas e marionetes que a política britânica produziu na era moderna. O Brexit ameça invocar uma nova era de demagogia, uma ameaça aguçada pelo pensamento que se isso pode acontecer, pode assim Donald Trump.

    Ele provocou o ressurgimento do racismo e de uma crise econômica, cujas dimensões permanencem desconhecidas. Esta situação compromete o mundo vivente, NHS, a paz na Irlanda e o restante da União Europeia. Promove o que o bilionário Peter Hargreaves alegremente antecipou como “insegurança fantástica”.

    Mas nós estamos presos a ele. Não há outra opção, a menos que você esteja a favor dos anos de limbo e de caos que resultariam de uma falha continuada ao acionar o artigo 50. Não é apenas que nós não temos nenhuma escolha a não ser aceitar o resultado; nós devemos abraçá-lo e fazer dele o que podemos.

    Não é como se o sistema que agora está ruindo a nossa volta estava funcionando. A votação pode ser vista como uma ferida auto-infligida, ou pode ser vista como a erupção de uma ferida interna causada ao longo de muitos anos por uma oligarquia econômica sobre os pobres e os esquecidos. As teorias falsas sobre as quais se fundaram nossa política e economia estavam em vias de se colidir com a realidade algum dia. As únicas questões eram como e quando.

    Sim, a campanha do Brexit foi conduzida por uma elite política, financiada por uma elite econômica e alimentada por uma elite midiática. Sim, a ira popular foi canalizada para os alvos que não mereciam – os imigrantes.

    Mas a votação também foi um grito de raiva contra a exclusão, a alienação e a autoridade remota. É por isso que o slogan “retome o controle” ressoou. Se a esquerda não pode trabalhar com isso, para que servimos?

    Então aqui é onde nós nos encontramos. O sistema econômico não está funcionando, exceto para os gostos de Philip Green. O neoliberalismo não entregou o nirvana meritocrático que seus teóricos prometeram, a não um paraíso para os rentistas, oferecendo retornos impressionantes para quem agarra o primeiro castelo enquanto deixa trabalhadores produtivos no lado errado do fosso.

    A era da empresa tornou a era dos lucros não-realizados, a era do mercado em era da falha de mercado, a era da oportunidade em uma gaiola de aço de contratos zero-hora, de precariedade e vigilância.

    O sistema político não está funcionando. Independente de quem você vota, as mesmas pessoas ganham, porque onde o poder afirma estar não é onde o poder está.

    Parlamentos e conselhos encorporam força paralisada, gesto sem movimento, uma vez que as verdadeiras decisões são tomadas em outro lugar: pelo dinheiro, para o dinheiro. Os governos têm conspirado  ativamente nesse desvio, negociando tratados comerciais falsos pelas costas de seus eleitores para impedir que a democracia controle o capital social.

    Financiamento político não-reformado garante que os partidos precisem ouvir o farfalhar das notas antes da agitação dos votos. Na Grã-Bretanha, esses problemas são agravados por um sistema eleitoral que garante que a maioria dos votos não contam. É por isso que um referendo é quase o único meio pelo qual as pessoas podem ser ouvidas, e por que tentar substituí-lo é uma ideia terrível.

    A cultura não está funcionando. A visão de mundo que insiste que tanto as pessoas quanto os lugares são fungíveis é inerentemente hostil à necessidade de pertencimento. Há anos que nos vem sendo dito que nós não pertencemos, que nós devemos partir sem reclamar enquanto outros serão girados para tomar nosso lugar.

    Quando as peculiaridade da comunidade e do lugar são varridas para longe pelas marés do capital, tudo aquilo que é deixado é uma cultura globalizada de shopping, no qual nós nos envolvemos com a passividade envidraçada. O homem nasceu livre, e ele está em toda parte nas redes de lojas.

    Em todas essas crises estão oportunidades – oportunidades para rejeitar, conectar e erigir, construir dessas ruínas um sistema que funcione para as pessoas desse país em vez de funcionar para uma elite offshore que se alimenta de insegurança.

    Se é verdade que a Grã-Bretanha terá que renegociar seus tratados comerciais, não é essa a melhor chance que temos em décadas para conter o poder das corporações – de insistir que as companhias que operam aqui devem oferecer contratos adequados, compartilhar seus lucros, cortar suas emissões e pagar seus impostos? Não é uma chance para recuperar o controle dos serviços públicos que escorregam de nossas mãos?

    Como a política nessa nação esclerótica mudará sem um turbilhão? Nesse caos nós podemos, se formos rápidos e inteligentes, encontrar uma oportunidade de chegar a um novo contrato: representação proporcional, devolução real e uma reforma radical do financiamento de campanha para garantir que milionários jamais possam novamente se apropriar de nossa política.

    A autoridade remota foi rejeitada, e por isso vamos usar esse momento para enraizar nossa política numa celebração comum do lugar, para combater a epidemia de solidão e reacender o propósito comum, transcendendo as tensões entre imigrantes recentes e imigrantes menos recentes (ou seja, todos os outros). Ao fazê-lo, nós podemos encontrar uma linguagem em que graduados liberais podem falar com o povo alienado da Grã-Bretanha, ao invés de para eles.

    Mas o mais importante: vamos abordar a tarefa que a esquerda e o centro têm catastroficamente negligenciado: desenvolver uma filosofia política e econômica para o século 21, em vez de repetidamente requentar no microondas as sobras do século 20 (neoliberalismo e keynesianismo). Se a história dos últimos 80 anos nos conta algo, é que pouco muda sem uma nova e feroz estrutura de pensamento.

    George Monbiot  é um jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido

    Fonte: https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/jun/28/brexit-disaster-crisis-changes-left

     

    Slavoj Žižek: Precisamos entender a esquerda que apoiou o Brexit

    Quando perguntaram ao camarada Stalin no final dos anos 1920 o que ele achava pior, a direita ou a esquerda, ele imediatamente rebateu: “Os dois são piores!” E essa é minha primeira reação ao Brexit. A Europa está presa agora em um círculo vicioso, oscilando entre dois falsos opostos: de um lado, a rendição ao capitalismo global, e de outro, a sujeição a um populismo anti-imigração. É preciso colocar a pergunta: qual é o tipo de política capaz de nos tirar desse impasse?

    O capitalismo global tem se caracterizado cada vez mais por acordos comerciais negociados a portas fechadas como o TISA ou o TTIP (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). Discuti a dimensão e o significado do TISA aqui, e também não há dúvida sobre o impacto social do TTIP: ele representa nada menos do que um ataque brutal à democracia. Talvez o exemplo mais explícito seja o caso dos ISDSs (Mecanismos de Resolução de Litígios entre Investidores e o Estado), que basicamente permitem que empresas processem governos se suas políticas ferirem sua margem de lucro. Para resumir, isso significa que corporações transnacionais (que não foram eleitas) podem simplesmente ditar as políticas de governos democraticamente eleitos.

    Então como avaliar o Brexit nesse contexto? É preciso entender em primeiro lugar que de uma certa perspectiva de esquerda há até justificativas para ter apoiado o referendo: afinal, um forte Estado-nação, livre do controle dos tecnocratas de Bruxelas pode estar numa situação melhor para proteger o Estado de bem-estar social e reverter políticas de austeridade. No entanto, o que é perturbador é o pano de fundo ideológico e político dessa posição. Da Grécia à França, uma nova tendência está surgindo a partir do que sobrou da “esquerda radical”: a redescoberta do nacionalismo. De uma hora para outra, deixou-se de falar em universalismo – ideia que passou a ser descartada como uma simples contraparte política e cultural (“superestrutural”, se quiser) do capital global “desenraizado”.

    A razão que explica esse movimento dessa esquerda parece evidente: o fenômeno da ascensão do populismo nacionalista de direita na Europa Ocidental. Por incrível que pareça, é o populismo nacionalista de direita que aparece agora como a mais expressiva força política a reivindicar a proteção dos interesses da classe trabalhadora, e ao mesmo tempo, a mais forte força política capaz de mobilizar verdadeiras paixões políticas. Então, a lógica é a seguinte: por que a esquerda deve deixar esse campo de paixões nacionalistas à direita radical? Por que ela não poderia disputar com o Front National de Le Pen a reivindicação da “pátria amada” [la patrie]?

    Nessa vertente de populismo de esquerda, a lógica do “Nós” contra “Eles” permanece, mas aqui o “Eles” não aparece na forma de pobres refugiados ou imigrantes, mas na figura do capital financeiro e da burocracia tecnocrática do estado. Esse populismo também vai além do velho anticapitalismo da classe trabalhadora; ele visa reunir uma multiplicidade de lutas, da ecologia ao feminismo,

    do direito ao emprego à saúde e à educação gratuitas.

    A tragédia recorrente da esquerda contemporânea é a velha história do líder ou partido que é eleito com entusiasmo universal junto à promessa de um “novo mundo” (o caso de Mandela e de Lula são emblemáticos aqui), mas que uma hora ou outra (geralmente depois de alguns dois anos), se vê diante do dilema fundamental: será que me atrevo a mexer com os mecanismos capitalistas, ou opto por “jogar de acordo com as regras do jogo”? E, claro, quando ousa-se perturbar os mecanismos do capital, logo vem o rebote das perturbações do mercado, o caos econômico e por aí vai… Então como pensar uma verdadeira radicalização passado o primeiro estágio de promessa e entusiasmo?

    Estou convicto de que nossa única esperança é agir em nível transnacional – só assim teremos a chance de fazer frente ao capitalismo global. O Estado-nação não é o verdadeiro instrumento para confrontar a crise dos refugiados, o aquecimento global e outras questões urgentes que se colocam. Então ao invés de se opor aos eurocratas em nome de interesses nacionais, por que não começar tentando formar uma esquerda europeia? Não vamos competir com os populistas de direita. Não vamos permitir que eles definam os termos da luta. O nacionalismo socialista não é a forma certa de combater o nacional socialismo.

    * A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.

    Slavoj Zizek é um filósofo, teórico crítico e cientista social esloveno

    Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/24/zizek-precisamos-entender-a-esquerda-que-apoiou-o-brexit/

     

    Eric Toussaint – “O Brexit é a maior crise da UE desde a sua criação

    O Brexit constitui a crise mais importante da UE desde a sua criação. É uma derrota das classes dominantes europeias e da Comissão europeia. Até esta data, a UE constituía um marco do qual não se podia sair. Porém, agora este marco – ou esta camisa de força – está arrebentando. Claro que teria sido melhor que a iniciativa partisse da esquerda britânica e não da direita, a qual lhe dá um conteúdo racista detestável. No entanto, estamos diante de um país que representa um oitavo da população da UE e que vai deixá-la. O debilitamento da UE é uma boa notícia e agora é preciso trabalhar uma alternativa de esquerda a favor de uma integração dos povos em favor dos povos. “A integração que foi levada a cabo no marco da UE foi contra os povos e a favor das grandes empresas. Uma integração para defender os interesses particulares do 1% mais rico contra a grande maioria da população e contra os bens comuns. Somos profundamente internacionalistas, antirracistas e portanto, queremos uma refundação radical da Europa, o que um implica um processo constituinte real.

    Eric Toussaint é um cientista político e historiador belga, membro do  Committee for the Abolition of the Third World Debt

    Fonte:

    http://cadtm.org/Eric-Toussaint-El-Brexit

     

     

    Rosana Pinheiro-Machado O Brexit e o fim da identidade dos trabalhadores

    Essa madrugada, para muitas pessoas no Reino Unido, foi um pesadelo. Bandeiras espalhadas pelas casas e gritos de alegria de vizinhos a cada voto para sair da União Europeia. Não sou europeia, mas a cada grito eu confirmava que Londres, Oxford e Cambridge são ilhas.

    Nestes últimos anos, tive a oportunidade de viver o que os ingleses chamam com orgulho de ser a Inglaterra: o interior, especialmente ao norte. A cada grito me senti expulsa. A cada grito eu entendia que este não é o meu lugar. Era o grito engasgado de muitas famílias inglesas que conheci fora das ilhas.

    Eu passei a madrugada acompanhando todos os debates em cada canto deste país. Nem vou citar aqui a questão da xenofobia – que é o tema mais discutido e mais óbvio da questão. A xenofobia é apenas um dos sintomas de uma grave crise que começou com o fim da classe trabalhadora (e sua capacidade de articulação) na Inglaterra desde os tempos de Thatcher.

    Foram semanas de movimentação. Brigas entre amigos e familiares – nada que nós brasileiros não estejamos acostumados. Foi uma decisão emocional – como sempre é – baseada na raiva que assolou a classe trabalhadora inglesa.

    Muitos gritaram “devolver o país aos ingleses”. É claro que a xenofobia é uma variável importante. Mas olhar só para ela é um erro imenso. O maior problema é a vida fodida da classe trabalhadora que perde seu estado de bem estar social. Aquela fase que o encanador tinha uma casa muito parecida com o do banqueiro acabou. Tudo acabou.

    Mas o que acabou principalmente é a consciência de classe (sem levar muito a sério o conceito aqui, certo?) da classe trabalhadora, especialmente do norte do país que empobreceu. O desmonte da identidade de classe começou com Thatcher, que agiu no âmago da troca de subjetividades e do orgulho de classe.

    Como diz o escritor britânico Owen Jones, romantizar o trabalhador de uma mina de ferro tampouco é o ideal, mas certamente a identidade negada da classe trabalhadora resulta não apenas na xenofobia, mas no ódio irrestrito à classe política e à própria classe trabalhadora. “O problema são os pobres” – gritava uma trabalhadora de uma universidade que ganha um salário mínimo e referia-se aos camponeses.

    Os trabalhadores mostravam rejeição a toda forma política. “Nós queremos chutar para fora todos os políticos” – mas, no fim das contas, chutou-se contra si mesmo, pois quem vai pagar a conta da recessão certamente é a classe trabalhadora.

    Todas as comunidades pobres que votaram para sair anunciaram que votaram porque não aguentavam mais a austeridade – o que é uma loucura tremenda, mas que temos que ouvir e entender.

    Temos, como no Brasil (pedindo desculpa por esta comparação rasa e anacrônica) uma massa perdida e revoltada e uma esquerda – o Partido Trabalhisa – incapaz de reorganizar a classe trabalhadora.

    Uma massa – como diria o historiador E. P. Thompson – cuja economia moral é defensiva. Ela age para não perder o que tem. É o que aconteceu aqui esta madrugada. As pessoas votavam – cegamente – pela sua vida empobrecida, mas movida pelo sentimento de ódio a tudo, muito bem aproveitado pela extrema direita, que agora se junta ao coro do “odiamos a política tradicional”.

    Como sempre, são os mais fracos que vão pagar pelo desmonte do Estado britânico. Não tenho esperanças numa eleição de Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, ameaçado de perder o posto. A classe trabalhadora desde Thatcher odeia a si própria, assim como odeia o Outro. Projeta-se no mito do sucesso dos empreendedores ao mesmo tempo em que rejeita o imigrante.

    Por fim, uma questão que não quer calar: Quem é de esquerda e acredita na democracia teve de se deparar com questões muito intrigantes nos últimos tempos do referendo. Eu tenho ouvido muitos políticos que admiro se perguntando “como dar uma decisão tão importante para o povo ignorante?”.

    Este é o ponto central para todos aqueles que acreditam na democracia direta. Então, não se pode dar ao povo a decisão porque o povo é ignorante? Quando que pode se dar ao povo então a capacidade de decidir? Quando houver debates intelectuais? Quando isso vai acontecer?

    Quando vai existir esse dia em que votaremos racionalmente e não com emoção? Quando teremos debatido o suficiente para escolher o rumo de um país? Eu tive que aguentar a noite vendo políticos trabalhistas dizendo que o povo era ignorante. Que paradoxo.

    Esse tipo de questão abre diversas frentes de discussão que se referem ao próprio Brasil, sua democracia representativa e a possibilidade de chamar eleições novamente. Afinal, o povo é soberano ou não é? É um momento para pensar o que entendemos por democracia e, finalmente, olharmos seriamente para os anseios e as penúrias das classes trabalhadoras sacrificadas no Reino Unido, no Brasil e no mundo.

    Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford

    Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-brexit-e-o-fim-da-identidade-dos-trabalhadores


  • Revista nº 11 – julho de 2016

    Revista nº 11 – julho de 2016

    A Fundação Lauro Campos faz chegar até você nossa revista, buscando estimular reflexões, apresentando novos pontos de vista e lembrando acontecimentos e personagens que merecem estar em nossa memória.

  • Mohamed Abdelaziz, presente!

       Filho de um suboficial do exército marroquino, foi ao final dos anos de 1960 que Mohamed Abdelaziz encontrou os primeiros militantes nacionalistas saarauis que frequentavam as universidades de Casablanca e de Rabat. Depois de fazer suas primeiras atuações políticas no meio universitário, ele se engaja na luta armada primeiramente de forma clandestina, depois abertamente.

    Em maio de 1973, junto com Mustafá Sayed El-Ouali, se torna um dos membros fundadores da Frente Polisario, criada pelo conselho constitutivo reunido em Zouerat, na Mauritânia, sendo também um dos principais chefes militares do movimento.

    Três anos mais tarde, em 1976, é eleito secretário geral da Frente, que proclama a República Árabe Saarauí Democrática, ainda que este Estado nãos seja amplamente reconhecido pela comunidade internacional. Continua exercendo suas atividades como líder militar do movimento até se consagrar inteiramente às funções políticas, com sua eleição à presidência da República Saaraui em 1982.

    Depois de um primeiro encontro com o rei do Marrocos Hassan II, em 1989, as negociações prosseguem até a conclusão de um cessar-fogo em 1991. Um referendo sobre a autodeterminação da região, sob a égide da ONU, também está previsto. Entretanto, após 27 anos, Mohamed Abdelaziz morreu sem que este referendo fosse realizado, pois sofre a resistência do Marrocos que busca manter a região sob seu domínio, ainda que dando algum grau de autonomia. “O povo saaraui seguirá o combate”, prometeu Mohamed Keddad, dirigente da Polisário, e prossegui: “as qualidades de Mohamed Abdelaziz vão iluminar o caminho à conclusão da liberação do Saara Ocidental”.

    A Fundação Lauro Campos lamenta a morte do companheiro Mohamed Abdelaziz e se solidariza com a luta do povo saaraui pela sua independência.

    (Fontes: RFI Afrique, France24, AFP. Tradução: Rodolfo Vianna)

  • PSOL denuncia golpe em evento nos EUA

    PSOL denuncia golpe em evento nos EUA

    Entre os principais temas do evento estão as perspectivas abertas pela histórica campanha de Bernie Sanders, que disputa a prévia do Partido Democrata contra a ex-Secretária de Estado Hilary Clinton. Em diversos painéis o tema foi discutido e o colaborador da Secretaria de Relações Internacionais do PSOL, Fred Henriques, chegou a estabelecer contatos com dirigentes da campanha do senador democrata com vistas à realização de um debate no Brasil.

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        Outro momento que contou com a participação do PSOL foi o debate realizado no domingo. Com o tema “Entendendo o Brasil hoje: luta de classes e democracia sob ameaça”, o painel contou com a presença do presidente da Fundação Lauro Campos, Juliano Medeiros, que apresentou a análise do partido sobre as razões do golpe ocorrido recentemente por aqui. Além dele, participaram do debate Baraham Jendi, dirigente doGreen Party, e Aline Piva, dos Amigos do MST.

         Com um plenário lotado, os participantes tiraram dúvidas sobre a situação brasileira, as razões que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff e as medidas necessárias para ampliar a rede de denúncia contra o golpe. O sociólogo Márcio Rosa, dirigente do PSOL/SP e que acompanhou o evento, destaca a importância do momento: “há um enorme interesse sobre a situação política do Brasil, ao mesmo tempo em que uma visível desinformação sobre o que está acontecendo. Eventos como esse, com a presença do PSOL, têm uma importância vital”. A salvadorenha Marta Hernández, participante do Left Forum, afirma que “eventos desse tipo deveriam se multiplicar por todo o mundo”. Nesta terça-feira (24), Juliano Medeiros e Márcio Rosa falam sobre a situação brasileira em evento promovido pelo coletivo Solidarity, além de realizar outros encontros com lideranças políticas em Nova Iorque e Washington.

  • Comunicação em debate: se a cidade fosse nossa

    Comunicação em debate: se a cidade fosse nossa

    por Rodolfo Vianna

       A etapa realizada do Ciclo de debates “Se a cidade fosse nossa” realizada em Fortaleza, Ceará, no dia 7 de maio teve duas mesas de discussão. Pela manhã, o Direito à Comunicação foi a pauta e, à tarde, discutiu-se Ecossocialismo. A atividade foi realizada no Espaço de Capacitação, Formação e Pesquisa Frei Humberto, e contou com o apoio do diretório Estadual do PSOL-CE (que transmitiu ao vivo o debate em sua página do Facebook – e o registro pode ser conferido AQUI).

       O deputado estadual Renato Roseno e o vereador de Fortaleza João Alfredo participaram das atividades, conjuntamente com filiados do PSOL e militantes da temática abordada de diversas cidades do interior do estado do Ceará.

       A primeira mesa de facilitadores da discussão contou com a participação de Helena Martins, do Coletivo Intervozes, Roger Pires, do Coletivo Nigéria e de Aldenor Jr., ex-secretário de comunicação da gestão de Edmilson Rodrigues da prefeitura de Belém do Pará.

       Ao iniciar, Helena Martins lembrou da formulação da Unesco que diz que “todas as pessoas têm o direito de produzir, receber e fazer circular informações. É mais do que o direito de liberdade de expressão, que já está consagrado em todas as cartas de Direitos Humanos”. Assim, a ideia de Direito à Comunicação é romper com o desnível existente dos fluxos comunicacionais e garantir de fato que as pessoas possam produzir informação e cultura, fazendo com que essas produções possam chegar até as demais.

      Sobre a legislação que trata da Comunicação no país, Helena acredita que a Constituição brasileira possui aspectos importantes na garantia ao Direito à comunicação, como a previsão da repartição do espectro entre entidades públicas, privadas e estatais de comunicação como também a proibição da formação de monopólios e oligopólios. Entretanto, ressalta a militante, estas restrições não são postas em prática, faltando a regulamentação dos dispositivos constitucionais que não foi realizada até hoje: “nós temos um princípio geral que é progressista mas que na prática não se revela como política”.

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       Roger Pires deu sequência à discussão, informando que o Coletivo Nigéria é uma produtora de audiovisual que, enquanto coletivo de comunicação, funciona como uma cooperativa de comunicadores e de realizadores de vídeos, já com seis anos de produção de conteúdo alternativo. Roger focou sua intervenção sobre como a comunicação no âmbito municipal reflete a segregação existente na própria cidade: a representação dos centros é hegemônica, enquanto que as periferias não se apresentam representadas nos grandes veículos: “qual é o Ceará que nós vemos na televisão?”, questionou, dizendo que sempre que se “vê” a cidade de Fortaleza se “vê” a região da orla da cidade, a Beira-Mar. Porém, para quem vive na cidade mas que não frequenta ou frequenta pouco a região nobre, qual é a significação que essa imagem possui? “Significa muita desigualdade e, apesar de não ser um discurso direto, é um discurso de imagens muito forte”.

       Outra distorção apontada por Roger Pires é a imagem existente da produção jornalística e seus profissionais envolvidos. Enquanto é raro ver negros ou índios frente às câmeras, a imagem dos jornalistas engravatados não representa as condições precárias de trabalho desse segmento profissional, de alta cobrança de produção e de baixos salários. A isso, soma-se a crise dos sindicatos dos profissionais que sofrem de baixa adesão, acarretando uma crise de representatividade e uma perda de força na disputa por melhores condições trabalhistas.

       Como medidas a serem encampadas pelos programas de governo, o militante ressaltou a bandeira da Banda Larga gratuita, que possibilitaria uma maior democratização da comunicação tanto na produção de conteúdo como na sua circulação: “para nós do Coletivo Nigéria, sem internet a gente não distribuiria os vídeos e filmes que a gente faz. A gente acredita muito no potencial da internet para libertar as pessoas seja da TV, seja do rádio ou desses tipos de modelos”.

       Último a oferecer a sua contribuição, Aldenor Jr. apresentou a sua experiência como Secretário de Comunicação da Prefeitura de Belém durante os dois mandatos do então prefeito Edmilson Rodrigues (1997-2005). Em consonância com o eixo da protagonismo popular que orientou a experiência do Executivo da qual participou, Aldenor Jr. lembrou que a comunicação não foi pensada “como uma empresa”, mas sim “a partir do olhar ‘dos de baixo’, como uma ferramenta para educar, para organizar e para politizar o povo” e emendou dizendo que tanto na campanha eleitoral quanto na gestão, a comunicação foi uma ferramenta decisiva como uma política contra-hegemônica na disputa de valores.

       “Um governo de esquerda sempre vai ser um governo sob cerco”, alertou o ex-secretário, narrando que a desconstrução da experiência protagonizada por Edmilson Rodrigues em Belém começou antes mesmo de ele assumir o mandato, partindo das forças contrárias às transformações propostas pelo seu programa de governo: “e, aliás, quando ele não é um governo sob cerco, é porque ele não é um governo de esquerda”, alertou.

       A primeira arma da “comunicação militante”, conceito basilar da proposta desenvolvida à frente da prefeitura de Belém, seria a presença física junto àqueles a quem se quer dirigir a mensagem. A intervenção urbana também é essencial, com a presença das marcas, mensagens, logotipos, etc. nas ruas, prédios e obras. Outra arma é o incentivo e a aposta na mídia espontânea, que foge da dinâmica convencional concentrada nos grandes veículos de comunicação; o que não implica descartar a mídia tradicional, que também precisa ser ocupada de forma inteligente. Sobre os mandamentos da “comunicação militante”, está o respeito ao povo e às suas tradições; manter a política sempre no comando e criar as comunidades reais, e não virtuais, já que estas são voláteis. “A comunicação como um chamado à ação: esta é a mensagem que a comunicação militante traz”, ressaltou Aldenor Jr.

       Encerrada as primeiras falas, o debate foi aberto aos participantes. Na parte da tarde houve a discussão com os presentes sobre Ecossocialismo, cujo relato se encontra em texto separado.

  • Nota da Fundação Lauro Campos contra o golpe

    Nota da Fundação Lauro Campos contra o golpe

    Na manhã de 12 de maio, a democracia brasileira sofreu mais um ataque com a admissão pelo Senado Federal do “processo de impeachment” da presidenta Dilma, que culminou com seu afastamento temporário por 180 dias.

       Michel Temer, vice-presidente que assume interinamente a Presidência da República, foi um dos conspiradores e grande articulador da manobra política que invalidou o resultado das urnas. No dia de hoje ele já anunciou um novo governo que contempla o projeto político que foi derrotado pela vontade popular nas eleições de 2014.

    Mas esse fato não chega a ser uma novidade. As classes dominantes no Brasil são pródigas em golpes. A primeira Constituição do país foi promulgada por Dom Pedro I, em 1824, depois de prender deputados e cercar com as tropas imperiais a Assembleia Constituinte. No início dos anos 1840, o chamado “Golpe da Maioridade” daria início ao segundo reinado com o objetivo de debelar as insurreições regionais que tomavam o país. Duas décadas depois, seguindo os passos do pai, Dom Pedro II destituiria o Gabinete Liberal e restauraria o poder dos Conservadores através de um golpe. A monarquia chegaria ao fim por um golpe militar em 1889.

    Dois anos depois o então presidente Floriano Peixoto fecharia o Congresso Nacional e se manteria no poder após a renúncia de Deodoro da Fonseca, contrariando o que mandava a Constituição Federal: convocar novas eleições. Em 1937, apenas três anos após a promulgação de uma nova Constituição, um golpe liderado por Getúlio Vargas instauraria um estado parafascista que reprimiu com violência seus adversários políticos. Ironicamente, o Estado Novo chegaria ao fim com a deposição forçada de Vargas pelos comandantes militares em dezembro de 1945, através de um novo golpe.

    Em 1961 a instalação do parlamentarismo, embora justificado como forma de contornar uma nova crise institucional, foi mais um golpe que contrariou a Constituição Federal para impedir a posse de Jango. Em 1964 o mais célebre dos golpes instaurou uma ditadura militar amparada por um forte aparato político-econômico-midiático.

    O ocorrido em maio de 2016 é uma nova face de um mesmo processo de impor um projeto político que não é referendado pelo voto popular. Com o acionamento de manobras parlamentares, com o auxílio da grande mídia (que sempre teve papel preponderante nos ataques à democracia em tempos recentes), dos grandes interesses econômicos nacionais e internacionais, tentou-se dar um aspecto de “legalidade” e “institucionalidade” à velha disposição dos grandes interesses de impôr o seu projeto político à revelia da vontade popular.

    Que a democracia brasileira tem suas fragilidades é sabido, principalmente por aqueles que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária. Que o governo liderado pelo PT passou longe de enfrentar efetivamente os grandes interesses do capital, também. Entretanto, o que está em marcha agora é um ataque às mínimas premissas democráticas existentes, e nenhum retrocesso às garantias democráticas duramente conquistadas por décadas de luta e sangue devem ser admitidas.

    A Fundação Lauro Campos, em consonância com a posição das instâncias do PSOL e de sua bancada na Câmara dos Deputados, não reconhece a legitimidade de Michel Temer como presidente da República Federativa do Brasil. É hora de desatar um ampla campanha pelo imediato afastamento de Temer, com a convocação de eleições presidenciais antecipadas, como prevê a Constituição Federa. A defesa da democracia brasileira passa pelo enfrentamento desse golpe travestido de “impeachment” e evitar, assim, que novamente a História se repita como farsa.

    Fundação Lauro Campos – 12/05/2016

  • Cidades Negras: etapa de debate realizada em Salvador

    Cidades Negras: etapa de debate realizada em Salvador

    por Rodolfo Vianna

    Ocorreu no último dia seis de maio em Salvador, Bahia, mais uma etapa do ciclo de debates “Se a cidade fosse nossa”. Promovidas pela Fundação Lauro Campos, as atividades têm como objetivo incentivar as discussões e dar subsídios à formulação dos programas municipais a serem apresentados pelo PSOL nas eleições deste ano. Na etaparealizada na última sexta-feira, o tema foi “Cidades Negras: racismo, territorialidade e identidades no contexto urbano” e teve o apoio do Setorial de Negros e Negras e do diretório estadual do PSOL-BA.

    A mesa foi composta por Dennis de Oliveira, professor da USP e militante da Rede Quilombação; pelo advogado e professor da UFBA Samuel Vida e pela professora da UESF, Linesseh Ramos. Os trabalhos tiveram a coordenação de Fábio Nogueira, pré-candidato à prefeitura de Salvador neste ano. Militantes de nove estados brasileiros participaram do debate, assim como o vereador de Salvador Hilton Coelho e o candidato ao senado em 2014, o professor Hamilton Assis.

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    Primeiro a usar a palavra, Dennis de Oliveira frisou a necessidade de compreender os três aspectos centrais da constituição do Estado brasileiro. O primeiro, é o de ser um Estado voltado para a manutenção da concentração de renda e do patrimônio; segundo, é um Estado voltado a ter uma concepção restrita de cidadania e, terceiro, é um Estado que se realiza a partir da violência como prática política central, na qual a violência não é episódica. Apesar de vivermos em uma sociedade com um regime democrático institucional, Dennis de Oliveira lembrou que nas periferias ainda existe uma prática característica dos regimes autoritários: “você tem invasões de domicílios sem mandato de busca, você tem execuções extrajudiciais, prisões ilegais e tortura nas delegacias. Isso significa o quê? Isso significa que você tem ainda o contexto de um regime autoritário”.

    Retomando as três características do Estado brasileiro, Dennis de Oliveira entende que o “racismo é a ideologia que vai estar de forma transversal nesses três elementos. O racismo vai definir quem tem e quem não tem patrimônio e renda; o racismo que define quem é e quem não é cidadão e é o racismo que define quem é o autor e quem é a vítima da violência. Ele vai ser o elemento que vai justificar essa crivagem que acontece pela lógica do Estado brasileiro”. Esses elementos acabam por colocar a população negra na “franja da sociedade”, e essa posição acarreta aos negros e negras a perda do direito à cidade. “O conceito de periferia tem uma dimensão espacial, mas também uma dimensão simbólica: o que é periferia? Periferia é estar excluído do centro da política”, atestou o professor, “e essa periferia é para a gente a reconstrução simbólica da senzala”.

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    Na sequência, o professor Samuel Vida fez a sua contribuição. Para ele, há três questões importantes para se abordar o tema das “cidades”, como também para discutir o país e a sociedade brasileira. O primeiro é o “racismo institucional”, que apesar de ter sido formulado há quase 50 anos pelos jovens ativistas dos Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, na obra “Black Power: The Politics of Liberation”, “vem enfrentando um rebaixamento conceitual e interpretativo em todo o mundo, inclusive no Brasil, que é o de dizer que o racismo institucional é o fracasso do provimento de serviços equânimes do ponto de vista racial e étnico pelos organismos de serviços públicos e privados”. Essa compreensão para o professor é equivocada por vários aspectos, dos quais ele destacou dois: “primeiro, ao falar em fracasso presume que essas instituições são neutras e estão aptas a operar políticas de diversidade, o que é um grande equívoco: essas instituições nunca foram concebidas para operar políticas de diferença. Segundo, pressiona o enfrentamento do racismo institucional em torno dos funcionários, dos servidores” sendo que a solução muitas vezes proposta restringe-se à programas de reeducação de servidores. “Não é esta a questão principal”, afirma Samuel Vida.

    O segundo aspecto é 0 da necessidade de se dialogar mais com os conceitos de “biopolítica” e “biopoder”. “Há a necessidade de se aprofundar o entendimento sobre o porquê que algumas vidas, alguns corpos, algumas culturas persistem como vulneráveis”. E, como terceiro aspecto, a importância de se dialogar com o conceito de “Estado de exceção”, com o reconhecimento de que, para além das experiências formais de ditaduras ou de autoritarismo, há uma funcionalidade excludente dirigida focalmente contra certos setores “e que foi amplamente acolhida por todas as experiências de gestão de todos os matizes, inclusive as dos matizes de esquerda, e que se traduz numa normalização da exceção”. Para Samuel Vida, “falar de racismo institucional é tentar entender como esses mecanismos operam de formas distintas e com várias roupagens, podendo ocorrer, inclusive, em espaços governados e administrados por pessoas negras”.

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    Encerrando as contribuições dos convidados da mesa, a professora Linesseh Ramos centrou sua fala na luta antiproibicionista que desenvolve, especialmente como repercute para as mulheres negras. A política de guerra à drogas tem um marco histórico no Brasil que coincide com uma política internacional de contenção de grupos que é o período da Lei Áurea, fator que é fundamental para compreender que a política da guerra à drogas “é uma política essencialmente racista”. A professora lembrou que muitas drogas, especialmente a maconha e alguns chás, tinham um papel simbólico e ritualístico na cultura negra, e por isso sofreram uma política de estigmatização e de construção de uma relação negativa ao uso feito pelos negros.

    Lançando mão de dados do Ipea, Linesseh Ramos informou que o Brasil é o quinto país que mais encarcera mulheres negras, e o principal motivo para isso é a política de guerra às drogas, que serve de cobertura para a utilização do aparato repressivo do Estado de forma a violentar as mulheres negras, invadir seus espaços e matar seus filhos. “Muitos de nós, e falo de nós da esquerda em geral, inclusive muitos dos companheiros brancos, não assumem ou não podem assumir que fumam maconha por uma diversidade de estigmas, e não assumem também esse debate porque ele é colocado como um tabu. E, reparem, a gente trata na sociedade como um tabu uma política que mata jovens todos os dias”.

    Continuando, a professora deixou claro que “o empoderamento da mulher negra é algo que não volta mais atrás: a questão de colocar que nós podemos assumir espaços de poder na academia, na política e na própria vida não volta mais atrás, e isso é fundamental na luta democrática”, e atestou: “o empoderamento das mulheres negras é fundamental à luta democrática. O racismo atua no sentido de manter a faxina ética. Não existe socialismo e liberdade se não tivermos o fim do racismo”.

    Encerrada as falas da mesa, a palavra foi aberta aos participantes do evento que deram prosseguimento ao debate com diversas intervenções sobre o tema. Encerrada a discussão, todos foram convidados para a inauguração da nova sede do PSOL estadual da Bahia, já apelidada pela militância de “Casa Amarela”, que fica na Avenida Sete de Setembro, em frente ao antigo Hotel da Bahia, no bairro de Campo Grande.

    Em breve a Fundação Lauro Campos disponibilizará o registro da atividade na integra.

  • Economia e crise política foram os temas do último debate do Coletivo de Conjuntura

    Economia e crise política foram os temas do último debate do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

       O Coletivo de Conjuntura da Fundação Lauro Campos, coordenado por Gilberto Maringoni, reuniu-se no dia 25 de abril em São Paulo e contou com a participação de mais de cem pessoas, entre convidados e público em geral. Divididas em dois períodos, as discussões centraram-se sobre a situação econômica do país, pela manhã, e sobre a crise política na parte da tarde. Os deputados federais do PSOL Chico Alencar, Glauber Braga e Ivan Valente participaram do evento, assim como dirigentes do partido, militantes e intelectuais. A Fundação Lauro Campos disponibilizará o registro na íntegra da atividade.

       Antes do início dos trabalhos, “Grândola, vila morena” foi tocada no auditório como homenagem aos 42 anos da Revolução dos Cravos. A transmissão da música, de autoria de Zeca Afonso, feita pela Rádio Renascença na madrugada do dia 25 de abril de 1974 serviu como sinal para que se iniciasse a movimentação que derrubou a ditadura portuguesa.

       “Economia ladeira a baixo”, nome dado à primeira mesa de debate, teve a contribuição dos economistas Pedro Paulo Zaluth Bastos, professor da Unicamp, e José Luís Fevereiro, dirigente do PSOL. O deputado federal Chico Alencar abriu a discussão com um breve panorama dos acontecimentos recentes no Congresso Nacional. Sobre a votação da admissibilidade do processo de impeachment, ocorrida no dia 17 de abril, o parlamentar disse: “o que que na verdade a gente viu ali? A expressão verbal condensada, predominante de maneira avassaladora, da degradação política do nosso sistema político de maneira geral”, e que foi exposto de forma clara o “intestino grosso da pequena política”. “A ‘pequena política’ no Brasil tornou-se a ‘grande’, e só não se tornou a única por que existem os heróis da resistência”, afirmou Chico.

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       A intervenção do economista Pedro Paulo apresentou o diagnóstico que a direita faz da realidade atual da economia, para se ter mais clareza de qual projeto ela busca implementar. “A ideia básica deles é a seguinte: o pacto social da redemocratização, cristalizado na Constituinte de 1988, implica uma forte ampliação do gasto social, do gasto corrente”, e esta visão é o que sustenta o projeto que agora eles apresentam. Após a explanação das razões que levaram ao crescimento da economia nacional a partir de 2003, afirmou que “o entendimento neoliberal é completamente errado a respeito do motivo do crescimento da economia brasileira na década anterior”, e elencou quatro limitadores estruturais do modelo do crescimento econômico que se impuseram no primeiro mandato da presidenta Dilma.

       O primeiro, “não houve nenhuma tentativa de mudar a ordem tributária, de forma a deixá-la mais progressiva, e essa é uma limitação essencial para se entender o motivo pelo qual o resultado fiscal piorou tanto em 2014, antes mesmo da virada para a austeridade”. O segundo problema foi o de não ter se evitado o custo fiscal e apreciação cambial determinados pela entrega do Banco Central para os rentistas, e isso “tem um enorme impacto fiscal”. De 1997 até 2013, o Brasil teve superávits fiscais primários superiores a 2% do PIB, e a dívida pública, principalmente a líquida, caiu muito pouco “basicamente pela política de juros”.

       O terceiro ponto refere-se à limitação da expansão da infraestrutura social e de bens públicos, devido ao alto custo fiscal da política monetária, que faz com que mesmo com o aumento da arrecadação não sobre recursos para sua ampliação; e, por fim, o fator de que o crescimento do mercado interno não assegurou a reintegração das cadeias produtivas perdidas na década de 90, o que permitiria a ampliação do investimento produtivo na indústria.

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       José Luís Fevereiro iniciou sua exposição apontando as cinco grandes reformas que eram necessárias com a eleição de Lula em 2002. “Falávamos da necessidade de acelerar a reforma agrária, de forma a democratizar a propriedade do campo; fazer uma reforma tributária, que fizesse com que a renda e o patrimônio pagassem a maior parte dos impostos, e não o consumo e a produção; pensávamos num enfrentamento ao sistema financeiro, para que nós deixássemos de ser o país recordista em taxas de juros no mundo; pensávamos numa reforma política e numa regulamentação dos meios de comunicação. Uma por uma, o governo Lula não fez nenhuma dessas reformas, rigorosamente nenhuma delas”.

       Sobre a questão da dívida pública, o economista afirmou que “dívida pública é algo necessário à construção de uma economia, porque ela ajuda o governo a regular a liquidez e a criar os estímulos ao crescimento ou à redução do crescimento para segurar a inflação”, e é um “mecanismo para fazer com o que se possa realizar investimentos em infraestrutura e diluir o custo disto no tempo”. É para isso que a dívida pública existe em quase todos os país do mundo, “mas no Brasil não é assim”, contestou.

       O problema da dívida não é a sua existência e nem é o seu tamanho (a dívida líquida brasileira não chega a 40% do PIB, sendo relativamente pequena, já que a dos EUA chega a quase 100% do PIB, a grega a 180% e a japonesa a 230% do PIB), mas sim o seu custo. E a dívida brasileira é extremamente cara. Desde 1997 o Brasil realiza superávits contínuos, com exceção de 2014 e 2015, e mesmo assim “nós continuamos tendo uma dívida pública que, grosso modo, se mantém nos mesmos patamares em que ela estava há 10, 15 anos atrás”, e continuou “quando se tem taxa de juros da ordem da existente no Brasil, essa dívida não serve ao desenvolvimento, não serve ao financiamento de longo prazo, para a construção de infraestrutura, ela serve apenas para criar uma transferência regressiva de renda de baixo para cima”.

       Sobre o projeto apresentado por Michel Temer, o “Ponte para o Futuro”, José Luís Fevereiro acredita que, se ele assumir a presidência, não vai implementá-lo de forma imediata do jeito que está anunciado, “eles vão fazer todas as sinalizações de longo prazo, vão mexer na regulamentação do pré-sal, vão mexer na variação de correção do salário mínimo – o que não tem nenhum impacto nos próximos dois anos, porque não há variação positiva do PIB e, portanto, não haverá aumento real do mínimo -, vão fazer todas as sinalizações ao mercado para tentar criar o tal ‘milagre’, que é convencer o empresário a investir num mercado que não tem demanda”, entretanto não vão fazer tudo o que se comprometeram agora, como a desvinculação do reajuste do piso da previdência com o salário mínimo ou mesmo a extinção do Bolsa Família. “Precisamos racionar que podemos enfrentar um governo Temer que vai agir com pragmatismo”, e a batalha política pela legitimação do governo Temer está na rua: “de um lado nós, os movimentos sociais, e do outro lado Michel Temer e os grupos empresariais com os quais ele está articulado que vão ter que, por um lado, ponderar as suas necessidades estratégicas que motivaram o golpe e, por outro lado, construir alguma legitimidade social para esse governo”, concluiu.

       Depois das falas dos convidados para a primeira mesa, a atividade do Coletivo de Conjuntura seguiu com a abertura da palavra aos presentes e a discussão sobre o tema.

    “Política, até onde irá a crise?”

       A segunda mesa, cujo enfoque foi a crise política, foi aberta pelo deputado federal pelo Rio de Janeiro Glauber Braga, cuja declaração de voto contrário à abertura de processo de impeachment teve grande repercussão e na qual chama de “gângster” Eduardo Cunha. Sobre ele, o parlamentar disse que é necessário entender que o atual presidente da Câmara dá sustentação e é sustentado por uma base de deputados que constantemente cobram sua fatura. “Se empoderou aqueles que representam a direita mais extremada dentro do parlamento”, continuou, e disse que “quem fazia e quem dava os gritos de guerra em nome do impeachment, não deixando essa bandeira morrer, é exatamente esse campo, e é esse campo que se fortaleceu a partir da agenda formulada por Cunha”. Num possível governo Temer, questionou Braga, “esse campo vai ser enquadrado ou o governo vai ter que continuar o processo de conciliação também com esses segmentos?”

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       Relatando que somente em uma manhã chegou a receber mais de 60 mensagens em seu telefone celular com insultos e ameaças, Glauber Braga atestou que esses segmentos e suas lideranças na Câmara necessitam da violência que seus discursos promovem: “essas lideranças são também violentas por sobrevivência, porque elas são vazias do ponto de vista dos argumentos daquilo que eles defendem”. Sobre o cenário que se aproxima, o deputado afirmou que, dentro do campo institucional, é necessária a luta constante pela deslegitimação do possível governo Temer, “não importa se as reformas dele serão realizadas a prazo ou à vista”. Essa luta deve ser feita no campo institucional, mas também nas ruas, porque serão as ruas que darão a sustentação a essa batalha dentro do parlamento.

       O jornalista Cid Benjamin foi o que deu sequência às falas, afirmando que a estratégia do PSOL deve ter por centralidade a defesa da democracia, e que “não podemos ter uma relação oportunista, utilitarista com a democracia, o que não nos impede de criticarmos os limites da democracia no capitalismo, em particular em um país capitalista tão desigual quanto o nosso”. Sobre o possível governo Temer, a avaliação feita foi a de que “a nossa oposição ao governo Michel Temer deverá ser diferente da oposição que fazemos ao governo Dilma, porque o governo Dilma é um péssimo governo, e um governo de direita, mas é um governo cuja legitimidade nós não questionamos. É diferente de um governo de Michel Temer, que é um governo ilegítimo e que não devemos reconhecer, e isso dá um outro tipo de relação política”.

       Um governo Michel Temer terá muitas dificuldades, ainda na avaliação de Cid Benjamim, já que terá questionamentos sobre sua legitimidade e enfrentará uma situação econômica dificíl. Há ainda um outro elemento complicador que é a Operação Lava Jato: “parar a Lava Jato hoje não é fácil, e figuras de proa desse novo governo estão implicados nela”. Diante desse quadro, a política assumida pelo PSOL, em seu entendimento, deve ser a de “questionar de cabo a rabo a legitimidade do governo de Michel Temer” uma vez que o processo de impeachment já deve ser considerado como um jogo jogado, não havendo a possibilidade do não afastamento da presidenta Dilma. Nesse quadro, a saída deve ser a bandeira das novas eleições presidenciais, por dois motivos: “primeiro, porque isso parece ser algo que a população quer e, em segundo lugar, tem tudo a ver com você não reconhecer o governo como legítimo”, chamando o povo a se manifestar “sobre o que deve ser posto no lugar dele”.

       O professor de Ciência Política da Unicamp, Armando Boito Jr., iniciou dizendo que, por não ser membro do PSOL, sua fala não se ateria à atuação do partido nesse momento atual e que tocaria num ponto central: “o caráter profundo e prolongado da crise que estamos vivendo”. Em 2013 houve as grandes manifestações de rua, o ano de 2014 foi tomado pela polarização fruto da disputa eleitoral e 2015 foi, desde o início, marcado pela discussão do impeachment, o que seriam sucessivas e diferentes fases da crise que se apresenta, e “nós temos que entender a sua natureza, entender a sua dinâmica”.

       “Eu entendo que a crise é tão profunda e prolongada porque se trata, sim senhor, de luta de classes. E não adianta a gente ficar estudando teoria das classes sociais, ou a gente, no partido, ficar o tempo todo falando da luta da classe trabalhadora, e quando se defronta com o aguçamento da luta de classes, tropeça, não reconhece e vai em frente”. Mas por que se aguçou assim a luta de classes?, pergunta Boito, para responder que, em sua visão, esse acirramento foi derivado do fato de que “o governo do PT não é, de jeito nenhum, igual ao governo do PSDB”. E não é por que? Porque os interesses de classe que o PT representou são distintos, o que não significa que o governo do PT seja um governo marcado pelos interesses da classes trabalhadoras: “pelas medidas que tomou e pelas medidas que não tomou, não dá para falar que é um governo da classe trabalhadora”.

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       Seguindo sua explanação, o professor da Unicamp afirmou se tratar de uma forma peculiar do acirramento da luta de classes porque o PT representou uma fração da burguesia que é a “grande burguesia interna”. “Essa fração controla a construção pesada, os fornecedores da Petrobrás, a construção naval, grande parte do agronegócio, parte da industria de transformação. Essa parte de burguesia apoiou de forma ativa o governo do PT”. Foi uma frente política policlassista que deu sustentamento ao governo do PT, “e o governo está em crise hoje porque essa frente está em crise”. O outro campo é o capital financeiro internacional e a fração da burguesia a ele integrada. “Sem entender essa cisão no seio da burguesia, não dá para entender o aprofundamento e o prolongamento da crise atual”, concluiu Armando Boito Jr.

       O último convidado da mesa da tarde foi Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e militante do movimento negro, que ressaltou que o debate sobre a natureza do Estado é fundamental para se analisar a conjuntura, e a natureza do Estado brasileiro tem três aspectos: “o primeiro, é um Estado voltado para a manutenção da concentração de renda e do patrimônio; segundo, é um Estado voltado a ter uma concepção restrita de cidadania; e, terceiro, é um Estado que se realiza a partir da violência como prática política central, a violência não é episódica, mas sim prática política central”. Diferentes governos tentam trabalhar com essa natureza do governo brasileiro, afirmou o professor. O governo do PT dos último anos, em sua visão, não realizou nenhuma reforma estrutural que pudesse transformar esses aspectos, ainda que de forma pontual, apesar de certas políticas de inserção social realizadas por meio do acesso ao consumo de parcelas da população antes excluídas. “Ao mesmo tempo que você percebeu uma certa inserção social a partir de programas de transferência de renda e de políticas públicas, uma melhoria relativa nas condições sociais, foi feita num período que se recrudesceu, por exemplo, o que o movimento negro chama de ‘genocídio da juventude negra’, um aumento da violência e do extermínio de jovens negros nas periferias”.

       Como forma de enfrentamento, Dennis de Oliveira acredita ser central o desenvolvimento de estratégias para potencializar essas novas formas de organização que surgem nas periferias, “construídas a partir da luta contra o racismo e contra o machismo”, e que existem dois atores políticos importantes nessa conjuntura que são a juventude negra e as mulheres negras, cujas lutas apontam que a questão racial é “a fronteira que define quem tem ou não tem patrimônio, quem é o autor e quem é a vítima da violência e quem é cidadão e quem não é cidadão”, e que é fundamental se construir uma narrativa inclusiva e política que incorpore esses segmentos e suas inovadoras formas de organização no debate político, concluiu o professor.

       A partir das falas dos convidados, outra sessão de debate foi aberta com a participação dos presentes e a reunião do Coletivo de Conjuntura se encerrou por volta das 18h. O registro em vídeo da atividade será disponibilizado na página da Fundação Lauro Campos.

  • A crise no Brasil

    A crise no Brasil

    Os países dos BRICS estão em apuros. Por um tempo eles foram os dínamos do crescimento global enquanto o Ocidente estava envolto na pior crise financeira e recessão econômica desde a Grande Depressão, mas agora eles se tornaram a principal fonte de preocupação nos quartéis-generais do FMI e do Banco Mundial. A China, acima de todos eles, por causa do seu peso na economia global: produção desacelerada e um Himalaya de dívidas. A Rússia: sitiada, com a queda dos preços do petróleo e as sanções tirando seu quinhão. A Índia: segurando melhor as pontas, mas com preocupantes revisões estatísticas. A África do Sul: em queda livre. As tensões políticas emergem em cada um deles: Xi e Putin respondem às tensões com força bruta, enquanto Modi vai se afundando nas pesquisas e Zuma é jogado na lama junto com seu próprio partido. Todavia, em nenhum outro lugar as crises política e econômica se fundiram de forma tão explosiva quanto no Brasil, cujas ruas no último ano viram mais manifestantes do que o resto do mundo combinado.

    Escolhida por Lula para a sucessão, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira que se tornou chefe de Estado, venceu a disputa presidencial em 2010 com uma maioria esmagadora de votos. Quatro anos depois ela foi reeleita, mas dessa vez com uma margem muito menor de votos, uma vantagem de 3% sobre o seu oponente, Aécio Neves, governador de Minas Gerais, num pleito marcado por uma polarização regional nunca antes vista, com um Sul-Sudeste industrializado voltando-se contra ela e com um Nordeste lhe dando uma vantagem ainda maior do que em 2010, com 72%. Mas, ainda assim, foi uma vitória definitiva, comparável à de Mitterrand sobre Giscard, e maior, para não dizer também mais limpa, do que a de Kennedy sobre Nixon. Em janeiro de 2015, Dilma – e nesse ponto vamos abandonar os sobrenomes, como os brasileiros costumam fazer – começou sua segunda presidência.

    Em três meses, grandes manifestações lotaram as ruas das principais cidades do país, com cerca de pelo menos dois milhões de pessoas que exigiam sua saída. No Congresso, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de Neves e seus aliados, encorajados pelo fato de que as pesquisas mostravam a queda vertiginosa na popularidade de Dilma, se movimentaram para conseguir seu impeachment. No dia Primeiro de Maio, ela não conseguiu nem mesmo dar seu discurso tradicional transmitido pela televisão a todo o país. Anteriormente, quando seu discurso no dia Internacional da Mulher foi transmitido, as pessoas começaram a bater suas panelas e fazer buzinaços, numa forma de protesto que ficou conhecida como panelaço. Da noite para o dia, o Partido dos Trabalhadores (PT), que desfrutara do mais longo e maior índice de aprovação do Brasil, tornou-se o partido mais impopular do país. Confidencialmente, Lula teria lamentado: ‘Nós vencemos a eleição. No dia seguinte, nós a perdemos’. Muitos militantes se questionaram se o partido iria sobreviver a tudo isso.

    Como a situação chegou a esse ponto? No último ano do governo Lula, quando a economia global estava ainda se recuperando da primeira onda do crash financeiro de 2008, a economia brasileira cresceu 7,5%. Ao assumir o governo, Dilma instituiu uma política de controle contra o superaquecimento da economia, o que deixou satisfeita a imprensa financista, naquilo que parecia ser uma política semelhante a que Lula teve durante o início de seu primeiro mandato. Mas tão logo o crescimento experimentou uma queda vertiginosa e as finanças globais pareceram sombrias novamente, o governo mudou seu prumo, criando um pacote de medidas que visavam priorizar os investimentos em desenvolvimentos subsidiados. As taxas de juros foram reduzidas, as dívidas trabalhistas foram abatidas, os custos da energia elétrica foram reduzidos, a moeda se desvalorizou e foi imposto um limitado controle sobre o movimento do capital.[1] No embalo de todo esse estímulo, durante a primeira metade de sua presidência, Dilma desfrutou de um índice de aprovação de 75%.

    Mas, ao invés de decolar, a economia desacelerou de um crescimento medíocre de 2,72% em 2011 para mero 1% em 2012. Além disso, com uma inflação que já ultrapassava os 6%, em abril de 2013 o Banco Central aumentou os juros de forma abrupta, minando assim a base da “nova matriz econômica” de Guido Mantega, o ministro da Fazenda. Dois meses depois, o país foi acometido por uma onda de protestos de massas cuja origem estava nas passagens de ônibus em São Paulo e no Rio, mas que rapidamente aumentaram sua dimensão tornando-se expressões generalizadas de descontentamento com os serviços públicos e, estimulados pela mídia, também de hostilidade contra um Estado incompetente. Rapidamente a aprovação do governo caiu para a metade. Em resposta, ele bateu em retirada, dando início a reduções caucionárias nos gastos públicos e permitindo que os juros aumentassem novamente. O crescimento caiu ainda mais – ele seria praticamente zero em 2014 – mas o desemprego e os salários permaneceram estáveis. No fim de seu primeiro mandato, Dilma liderou uma desafiadora campanha para reeleição ao assegurar a seus eleitores que ela continuaria priorizando as melhorias nas condições de vida dos trabalhadores, assim como atacando o seu oponente do PSDB por planejar reverter os acúmulos sociais feitos pelo PT, cortando benefícios e atingindo assim os mais pobres. Apesar do contínuo ataque ideológico sofrido contra ela pela imprensa, ela conseguiu chegar à vitória.

    Antes mesmo de seu segundo mandato começar formalmente, Dilma mudou o seu rumo. Ela rapidamente passou a defender que um pouco de austeridade se fazia necessária. O arquiteto da nova matriz econômica foi então dispensado do ministério da Fazenda e quem assumiu foi alguém orientado em Chicago, o diretor da gestão de ativos do segundo maior banco privado do Brasil, assumindo um mandato que deveria reduzir a inflação e restaurar a confiança. Os imperativos tornaram-se o corte nos gastos sociais, reduzir o crédito dos bancos públicos, leiloar propriedades do Estado e aumentar taxas para trazer o orçamento de volta a uma situação de superávit primário. Rapidamente o Banco Central aumentou sua taxa de juros para 14,25%. E já que a economia se encontrava estagnada, o efeito desse pacote pró-cíclico foi de mergulhar o país numa recessão generalizada – queda nos investimentos, salários diminuindo e o desemprego dobrando. Enquanto o PIB contraía, as receitas fiscais diminuíam, piorando ainda mais o quadro de déficit e dívida pública. Nenhum índice de aprovação do governo poderia ter aguentado a rapidez de tal deterioração econômica. Mas a crise da popularidade de Dilma não foi resultado apenas de um resultado previsível sobre o impacto da recessão nas condições de vida do povo. Ela também foi, ainda que seja mais dolorido admiti-lo, o preço a ser pago por ela ter abdicado das promessas pelas quais ela foi eleita. De forma generalizada, a reação de seus eleitores foi de que sua vitória poderia ser qualificada como ‘estelionato’, ou seja: ela enganou seus apoiadores ao cumprir o programa dos seus adversários de campanha. E isso não gerou apenas desilusão, mas também raiva.

    Ainda que ocultas, as raízes dessa debacle vingaram justamente no solo do próprio modelo petista de crescimento. Inicialmente poderia se dizer que seu sucesso dependia de dois tipos de nutrientes: um superciclo de aumento nos preços das commodities e um boom do consumo doméstico. Entre 2005 a 2011, os ganhos comerciais do Brasil aumentaram para mais de um terço, pois a demanda por matéria-prima da China e de outras partes do mundo aumentou o valor das suas principais exportações, assim como o volume de retorno fiscal para gastos sociais. No final do segundo mandato de Lula, a fatia correspondente da exportação de bens primários dentre as exportações brasileiras subiu de 28 para 41%, no que o espaço dos bens manufaturados caiu de 55 para 44%; no final do primeiro mandato de Dilma, as matérias-primas eram responsáveis por mais da metade do valor das exportações. Mas de 2011 em diante, os preços das principais mercadorias comercializadas pelo país entraram em colapso: o minério de ferro caiu de 180 dólares para 55 dólares a tonelada, a soja caiu de aproximadamente 40 dólares a saca para 18 dólares, o petróleo cru despencou de 140 dólares para 50 dólares o barril. E reagindo ao fim da bonança do comércio exterior, o consumo doméstico também entrou em declínio. Durante seu governo, a principal estratégia do PT foi expandir a demanda interna ao aumentar o poder de compra das classes populares. E isso foi possível não apenas com o aumento do salário mínimo e com transferências de renda para os pobres – o ‘Bolsa Família’ – mas também por uma massiva injeção de crédito aos consumidores. Durante a década de 2005 a 2015, o total de débitos controlados pelo setor privado aumentou de 43% para 93% do PIB, com empréstimos aos consumidores atingindo o dobro do nível dos países vizinhos. Quando Dilma foi reeleita, em 2014, os pagamentos de juros no crédito mobiliário estavam absorvendo mais de 1/5 da renda média disponível dos brasileiros. Junto com a exaustão do boom das commodities, a época de gastança também não era mais viável. Os dois principais motores do crescimento tinham estagnado.

    Em 2011, o alvo da nova matriz econômica de Mantega foi estimular a economia a partir de um aumento nos investimentos. Mas os meios para fazê-lo tinham diminuído. Desde 2006, os bancos estatais passaram a aumentar gradualmente sua quantidade de empréstimos, indo de um terço para metade de todo crédito – o portfólio do banco de desenvolvimento do governo, o BNDES, chegou a aumentar em sete vezes seu valor desde 2007. Ao ofertar taxas preferenciais de juros para as grandes companhias num valor muito mais alto do que os outros subsídios para as famílias pobres, a ‘Bolsa Empresarial’ passou a custar ao tesouro nacional o dobro do que custava a ‘Bolsa Família’. Favorável ao agronegócio e às construtoras, essa expansão direta dos financiamentos públicos foi um anátema pelo qual a classe média urbana passou a aderir a um movimento cada vez mais violento anti-PT, com a mídia nacional – amplificada pela imprensa financista de Nova York e Londres – fazendo vitupérios sobre os perigos do estatismo. Assim, ao mudar de direção, Mantega esperava impulsionar os investimentos do setor privado com concessões tributárias e juros mais baixos, mas isso impactou na redução dos investimentos nas estruturas públicas do país, assim como pela desvalorização do Real que ajudou nas exportações manufatureiras. Mas todos esses agrados à indústria brasileira foram em vão. Estruturalmente, as finanças são uma força muito maior no país. A capitalização combinada dos dois maiores bancos privados do Brasil, Itaú e Bradesco, é hoje duas vezes maior do que da Petrobrás e da Vale, as duas principais empresas extrativas do país, e com finanças muito mais saudáveis. As fortunas desses e de outros bancos foram concebidas de acordo com o maior sistema de juros de longo prazo do mundo – um horror para os investidores, mas verdadeiro maná para os rentistas – e com um abissal spread bancário, com mutuários pagando de cinco a vinte vezes mais pelos seus empréstimos. Além disso, somando-se a esse quadro, há também o sexto maior bloco de fundos de pensão do mundo, sem falar no maior banco de investimento da América Latina, uma verdadeira constelação de fundos de cobertura e de private equity.

    Na esperança de que isso trouxesse o setor industrial para o seu lado, o governo confrontou os bancos ao força-los a aceitarem a recuarem o patamar sem precedentes de 2% dos juros no final de 2012. Em São Paulo, a Federação das Indústrias (FIESP) brevemente expressou satisfação perante a medida, para logo depois pendurar bandeiras em apoio aos manifestantes anti-estatistas de Junho de 2013. Os industrialistas ficaram felizes em colher os frutos de altos rendimentos durante o período de crescimento elevado do governo Lula, no qual virtualmente cada grupo social viu sua posição melhorar. Mas quando isso terminou durante o governo Dilma e as greves recomeçaram, eles não tiveram qualquer compaixão por quem lhes favorecera anteriormente. E não apenas as grandes empresas, assim como suas parceiras do Norte global, se encontravam cada vez mais em holdings financeiros que eram afetados negativamente por conta das políticas rentistas – e por essa razão, não poderiam dar às costas totalmente aos bancos e fundos de investimento –, mas o próprio grupo social a que pertenciam a maior parte dos empresários era formado por uma alta classe média que tornara-se mais numerosa, vocal e politizada do que os antigos grupos de empresários, manifestando assim maior capacidade de comunicação e coesão ideológica perante a sociedade em geral. A furiosa hostilidade desse estrato para com o PT foi inevitavelmente seguida também pelos industrialistas. Tanto os banqueiros do andar de cima e os profissionais do andar de baixo, ambos estavam comprometidos a derrubar um regime que agora viam como ameaça aos seus interesses comuns, o que significou que os empresários tinham cada vez menos autonomia.

    Contra essa frente, que tipo de apoio o PT poderia esperar? Os sindicatos, ainda que mais ativos no governo Dilma, eram apenas uma sombra do seu antigo passado. Os pobres seguiram sendo beneficiários passivos do governo petista, que nunca se dispôs a educa-los ou organizá-los, quanto muito mobilizá-los em torno de uma força coletiva. Movimentos sociais – dos sem-terra e dos sem-teto – foram mantidos distantes do governo. Intelectuais acabaram sendo marginalizados. Mas não houve apenas uma ausência de potencialização política das energias vindas dos subalternos. Também não existiu uma verdadeira política de redistribuição de riqueza ou de renda: a infame estrutura tributária regressiva legada de Fernando Henrique Cardoso para Lula, que penalizava os pobres e deixava os ricos intocados, foi mantida. Houve, de fato, alguma distribuição que acabou melhorando consideravelmente as condições de vida dos mais miseráveis, mas isso foi feito de forma ainda individualizada. Com o ‘Bolsa Família’ tomando forma de recompensa para mães de filhos em idade escolar, isso era um resultado esperado. Aumentos no salário mínimo significaram também um aumento no número de trabalhadores com ‘carteira assinada’, o que lhes garantiria acesso aos direitos formais do emprego; mas não houve aumento, e pode ter havido até mesmo uma queda, na sindicalização. Acima de tudo, com a chegada do ‘crédito consignado’ – os empréstimos bancários com juros altos deduzidos diretamente dos salários – o consumo privado cresceu sem amarras e às custas dos gastos com serviços públicos, cujas melhorias teriam sido uma forma mais cara de estimular a economia. A compra de eletrônicos, bens de consumo e veículos foram estimuladas (a compra de automóveis recebeu incentivos fiscais), enquanto o suprimento de água, pavimentação, ônibus eficientes, saneamento básico aceitável, escolas decentes e hospitais públicos foram negligenciados. Os bens coletivos não tinham prioridade nem ideológica e nem prática. Logo, junto com a tão necessária melhoria nas condições de vida doméstica, o consumismo em sua forma mais deteriorada se espalhou nas camadas populares através de uma hierarquia social em que a classe média se deslumbrava, ainda que por padrões internacionais, com revistas e shopping centers.

    O quão prejudicial isso foi para o PT pode ser observado através da questão da moradia, onde necessidades individuais e coletivas mais visivelmente se intersectam. Nela, a bolha de consumo se transformou cada vez mais numa dramática bolha imobiliária, na qual vastas fortunas foram feitas por empreiteiros e empresas de construção enquanto o preço dos imóveis disparou para a maioria das pessoas que viviam nas grandes cidades e cerca de um décimo da população não tinham acesso a moradias adequadas. Entre 2005 a 2014, o crédito para a especulação imobiliária e construção civil aumentou vinte vezes; em São Paulo e no Rio de Janeiro os preços por metro quadrado quadruplicaram. Somente no ano de 2010, os aluguéis em São Paulo aumentaram 146%. E nesse mesmo período, havia cerca de 6 milhões de apartamentos desocupados, com sete milhões de famílias sem teto. E ao invés de aumentar a oferta de casas populares, o governo financiou construtoras privadas para construírem condomínios mediante um belíssimo lucro em áreas periféricas, cobrando aluguéis mais caros do que aqueles que os mais pobres poderiam pagar, ao mesmo tempo que ele apoiava as autoridades locais e os despejos feitos em ocupações. Diante de tudo isso, os movimentos sociais ganharam fôlego com os sem-teto e agora são uma das principais forças do Brasil: esses movimentos não estão dentro, mas sim contra o PT.

    Sem contar com uma força-tarefa popular capaz de lidar com a pressão das elites do país, Dilma sem dúvida torceu para que, após sua apertada reeleição, ao bater em retirada economicamente, com uma política inicial de apertar os cintos semelhante a que Lula fez nos seus primeiros anos no poder, ela poderia então reproduzir o mesmo tipo de virada de mesa. Mas as condições externas impediram qualquer comparação possível. A dança dos commodities já se foi e uma recuperação, seja lá quando vier, parece não ter sustentação. Pode se argumentar, observando esse contexto, que a extensão das atuais dificuldades não deve ser exagerada. O país está passando por uma severa recessão, com o PIB caindo 3,7% no último ano e provavelmente a mesma coisa acontecerá esse ano. Por outro lado, o desemprego ainda está longe de atingir os níveis da França, o que dirá da Espanha. A inflação é ainda mais baixa do que os anos de FHC e o país possui mais reservas. O déficit público é metade do déficit da Itália, ainda que com os juros brasileiros o custo de reduzi-la seja bem maior. O déficit fiscal ainda está abaixo da média dos Estados Unidos. Tudo isso tende a piorar. Todavia, a atual profundidade do abismo econômico não encontra respaldo no volume do clamor ideológico que existe sobre ele: a oposição militante e a fixação neoliberal possuem interesses em aumentar o grau de martírio do país. Mas isso, por sua vez, não reduz a escala da crise a qual o PT está agora envolto, que não é apenas econômica, mas também política.

    * * *

    Pode-se dizer que as origens desse dilema residem na estrutura da Constituição Brasileira. Em praticamente quase todos os países da América Latina, presidências inspiradas pelo modelo estadunidense coexistem com parlamentos aos moldes europeus: ou seja, Executivos superpoderosos de um lado e, do outro, Legislativos eleitos por um sistema proporcional de representação – e não no modelo distorcido de past-the-post, tal qual nos sistemas anglo-saxões.

    O resultado típico desse modelo, ainda que não seja invariável, é uma presidência com enormes poderes administrativos cuja fraqueza reside no fato de que nenhum partido consegue ter uma maioria parlamentar com poder significativo. Todavia, em nenhum lugar o Executivo se separou tanto do Legislativo como no Brasil. Isso é porque, acima de tudo, o país possui o mais frágil sistema partidário do continente. No Brasil, a representação proporcional toma forma de um sistema de lista aberta na qual os eleitores podem escolher qualquer candidato dentro de um enorme número de indivíduos que nominalmente estão dentro da mesma disputa, em legislaturas que geralmente recebem cerca de pouco mais que dois milhões de votos. As consequências dessa configuração são duais. Na maioria dos casos, eleitores escolhem um político que eles conhecem – ou acham que conhecem – ao invés de escolherem um partido do qual eles pouco ou nada sabem, enquanto os políticos, por sua vez, precisam obter uma grande quantia de dinheiro para financiar suas campanhas e garantir que os eleitores se identifiquem com eles. A grande maioria dos partidos, cujos números aumentam a cada eleição (atualmente há 28 partidos com representação no Congresso), não possuem qualquer coerência política, o que dirá disciplina política. O seu propósito é simplesmente assegurar favores dos chefes do Executivo diretamente para os seus bolsos e, claro, dar algum retorno para assegurar a reeleição de seus correligionários, oferecendo aos governos votos favoráveis nas diferentes câmaras.

    Quando o Brasil emergiu após duas décadas de Ditadura Militar em meados dos anos 1980, esse sistema foi criado por uma classe política que se moldara sobre ela. Objetivamente, a sua função era (e ainda é) neutralizar a possibilidade de que a democracia levasse à formação de algum tipo de vontade popular que ameaçasse a grandeza da desigualdade brasileira, ao anestesiar as preferências eleitorais num miasma de disputas subpolíticas por vantagens venais. Cabe ressaltar que o que acentua os problemas desse sistema é também sua massiva desproporção geográfica. Todo os sistemas federais exigem algum tipo de equalização dos pesos de cada região, geralmente envolvendo uma sobrerepresentação das áreas menores e rurais numa câmara mais alta, às custas das áreas maiores e mais urbanizadas, tal como o Senado dos EUA. Contudo, poucos países chegam perto do grau de distorção criado pelos engenheiros do sistema brasileiro, no qual a proporção dessa sobrerepresentação entre os pequenos e maiores Estados atinge uma proporção de 88 para 1 (nos EUA ela fica em torno de 65 para 1). E o problema não é apenas o fato de que as três mais pobres e atrasadas regiões controlam 3/4 dos assentos do Senado e contam com cerca de 2/5 da população (assombradas, na maior parte, pelos mais tradicionais ‘caciques’ que dominam as clientelas mais submissas). Mas de forma única, eles também comandam a Câmara dos Deputados. Ou seja, ao invés de corrigir esse problema conservador do sistema, a democratização o aumentou, criando inclusive novos estados com população pequena, desequilibrando ainda mais o cenário.

    Nesse cenário, ao contrário de outros países da América Latina que emergiram do domínio dos militares nos anos 1980, nenhum partido político significativo do período anterior à ditadura sobreviveu. Na verdade, o palco foi inicialmente ocupado por duas forças derivadas das invenções dos generais: o partido da oposição permitida, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e seu partido de situação, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – ridicularizados por serem vistos como os partidos do ‘sim’ e do ‘sim senhor’. O primeiro posteriormente renomeou-se como Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e boa parte do segundo se transformou em Partido da Frente Liberal (PFL). Com a saída dos militares, o primeiro governo estável de fato só aconteceu com a presidência de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, nascida de um pacto de uma dissidência do PMDB que ele ajudara a criar, nominalmente social-democrática, mas na realidade social-liberal (o PSDB), cujo eleitorado se concentrava nas regiões Sul e Sudeste. Ao lado do PSDB estava o nominalmente liberal, mas na realidade conservador PFL, cuja base se encontrava nas regiões Norte e Nordeste. Esse foi um pacto entre os oponentes moderados e os tradicionais ornamentos da Ditadura e conseguiu construir uma grande maioria no Congresso, agindo a serviço daquele que se tornaria o principal programa neoliberal do país, afinado com o Consenso de Washington. Enquanto candidato presidencial, Cardoso – tomado pelo grande capital como uma garantia contra radicalizações – recebeu enormes quantias de dinheiro: os ricos sabem reconhecer seus amigos. O custo relativo de suas campanhas, num país mais pobre, foi maior até mesmo que os gastos das campanhas de Clinton no mesmo período. Concorrendo contra ele estava Lula, diante de uma montanha de dinheiro que financiava a campanha de Cardoso. Mas assim que assumiu o cargo, FHC geralmente não precisou de dinheiro para comprar o apoio do Congresso – embora exista pelo menos uma notável exceção nessa afirmativa – pois sua coalizão com os clãs das oligarquias do Nordeste, ainda que sujeitas às suas disputas regionais, não era meramente oportunista, mas sim baseada numa parceria natural para objetivos comuns. O acordo foi estável e, nos anos recentes, foi muito elogiado por admiradores de Cardoso no Brasil e nos países anglófonos, considerado um modelo de ‘presidencialismo de coalizão’, tomado inclusive como um exemplo esperançoso para o resto do mundo, em lugares onde os modelos de governo europeu ou americano raramente conseguem vingar.

    Ainda assim, os cofres das campanhas de FHC estavam ‘limpos’ no sentido dos financiamentos americanos, onde os Super PACs compram votos, e sua coalizão era ideologicamente sólida, já que uma vez eleito, nem seus objetivos e tampouco os de seus aliados poderiam ser atingidos por outros meios. Tanto seu vice-presidente, Marco Maciel, assim como seu mais poderoso aliado no Congresso, Antônio Carlos Magalhães, eram verdadeiros eixos da política repressiva no Nordeste – ambos instalados pela Ditadura como governadores, o primeiro em Pernambuco e o segundo na Bahia, algo feito tão logo eles apoiaram a derrubada do regime democrático em 1964 – e sem nenhuma intenção de alterar esses métodos tradicionais. ACM, como gostava de ser chamado, bravateava: ‘Eu ganho eleições com um saco de dinheiro na mão e um chicote na outra’. Seu filho, Luís Eduardo, era o político favorito de Cardoso no Congresso, o delfim apontado para sucedê-lo e assim seria se não tivesse morrido precocemente. O próprio FHC, que por um bom tempo sustentou que a reforma do sistema partidário era uma prioridade para o Brasil e prometeu entrega-la, mudou de ideia tão logo chegou no Palácio do Planalto, afirmando que a maior prioridade era revisar a Constituição para que ele próprio pudesse ser reeleito para um segundo mandato. Abandonando qualquer tentativa de racionalizar ou democratizar a ordem política, ele presidiu – e para isso, sim, foi necessário – uma campanha direta de subornos a deputados para comprar uma super-maioria no Congresso requerida para passar a emenda da reeleição.

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    Quando Lula foi finalmente eleito em 2002, o PT estava numa posição diferente. Assim que ele passou a reassegurar que não atacaria bancos e empresas, e tão logo pareceu que sua vitória era certa, essas companhias passaram a financiá-lo, ainda que numa escala menor do que a de seu predecessor. Mas dentro do Congresso ele não possuía aliados naturais que tivessem muita expressão. O PT, apesar de toda a moderação da campanha de Lula na presidência, era visto – e ainda é – como um partido radical, posicionado à esquerda do verdadeiro pântano que domina o Legislativo. Lá, ele nunca conseguiu mais do que 1/5 dos deputados, somando uma votação três vezes menor do que a do próprio Lula. Como garantir algum tipo de maioria funcional para apoiá-lo em meio a esse verdadeiro marais? O método tradicional, concretizado numa escala heroica durante a primeira presidência civil após a Ditadura – a de José Sarney, outro antigo lacaio dos generais –, era o de comprar apoios distribuindo ministérios e cargos de confiança para aqueles que tivessem interesse e pudessem trazer consigo a maior quantidade de votos. Inicialmente isso ocorreu dentro das facções de seu próprio partido, o PMDB, a maior e mais fisiológica entidade política do país e que, uma década depois, tornara-se a fossa na qual desaguavam todas os riachos da corrupção política. O caminho clássico para o PT era então fazer acordos com essa criatura, alocando para eles uma boa parte de seus ministérios e agências estatais. Todavia, essa solução fora rejeitada pelo partido – há uma disputa sobre quem, dentro da cúpula, estava a favor e quem estava contra – pois havia receio de que as consequências seriam criar um peso-morto ideológico dentro do governo que poderia neutralizar o momentum progressista que se criara. Ao invés disso, a decisão foi de costurar um grupo de apoiadores de uma densa camada de partidos pequenos, sem conceder assim muito terreno para um deles em específico, mas pagando-os com dinheiro em troca de apoio na câmara num esquema de propina. De fato, o PT tentou compensar a falta de parceiros naturais (algo que FHC não teve que lidar) e sua recusa em retomar o sistema concebido por Sarney, criando assim um sistema de estímulos materiais para cooperações dentro do Congresso e por uma moeda de troca mais barata: ou seja, usando de mesadas para não usar de lugares específicos dentro do governo.

    Quando esse esquema veio à tona em 2005, o chamado escândalo do ‘Mensalão’ (ou seja, de pagamentos mensais aos deputados) fez com que Lula perdesse o apoio do eleitorado de classe média e por muito pouco não terminou precocemente com sua primeira presidência. Tão logo ele sobrevivera e fora triunfantemente reeleito no ano seguinte, o PT não teve outra escolha senão recuar e aceitar a solução que tanto temia em abraçar: o PMDB então entrou no bloco do governo, garantindo assim alguns importantes ministérios e postos centrais no Congresso, e assim permaneceu até o primeiro mandato de Dilma e no primeiro ano do segundo mandato. Contudo, isso não significa que a corrupção tenha diminuído e sim que ela aumentou drasticamente. Isso não apenas porque o PMDB era o campeão do saque dos recursos públicos em âmbitos municipais e estaduais (por décadas o partido inclusive abandonara as disputas presidenciais), mas também porque um gigantesco pote de mel, maior do que tudo que se podia imaginar, estava se concretizando com a expansão da Petrobrás, a empresa de petróleo estatal cujas atividades equivalem a 10% do PIB nacional; nesse momento, uma capitalização a tornaria a quarta mais valiosa empresa do mundo. A construção de novas refinarias, petrolíferas, poços, plataformas, complexos petroquímicos oferecia vastas oportunidades para retribuições e logo um esquema acabou sendo estabelecido. Leilões seriam tomados por um verdadeiro cartel composto pelas principais empreiteiras do país, mas os contratos eram cobrados a partir de grandes somas de dinheiro que iam direto para os bolsos dos diretores da Petrobrás e para os partidos políticos que estivessem envolvidos – calcula-se cerca de 3 bilhões de Dólares em subornos. Esse tipo de prática não era novidade na história da companhia, sendo que FHC preferiu fingir que ela não acontecia, e até a primavera de 2013, a companhia desfrutou da costumeira impunidade oriunda da riqueza e do poder no Brasil.

    O que mudou nisso tudo foram três efeitos pós-Mensalão. A delação premiada foi introduzida no Brasil; a prisão cautelar, um antigo poder judiciário usado para lotar as cadeias do país com pobres, tornou-se pela primeira vez um instrumento aceitável para dobrar aqueles de classes superiores; e as sentenças na primeira instância não podiam mais ser deferidas por intervenção do Supremo, o que permitia apressar as prisões. Os dois primeiros efeitos foram as mesmas armas que os magistrados italianos utilizaram para derrubar a classe política e empresarial italiana nos escândalos da Tangentopoli, nos anos 1990. Mas o terceiro efeito eles nunca conseguiram. Inclusive no Brasil foi criada uma forma de extrair confissões daqueles sob prisão preventiva: ameaçar a estender o mesmo tratamento à esposas e filhos. Em 2013, gravações feitas num caixa de uma empresa de lavagem de carros (um ‘lava-jato’) em Brasília levou à prisão de um contrabandista com longa ficha criminal. Mantido em Curitiba, na região Sul, para proteger sua família, esse ‘doleiro’ passou a revelar a escala do sistema de corrupção da Petrobrás, na qual ele havia sido um dos principais intermediários na transferência de recursos entre contratantes, diretores e políticos dentro e fora do país. Num primeiro momento, as acusações caíram sobre nove das principais construtoras e empreiteiras do Brasil, com seus famosos chefes e diretores sendo presos, junto com outros três diretores da Petrobrás, em investigações que atingiram ainda mais de cinquenta políticos, tanto deputados e senadores como até mesmo governadores.

    Os três principais partidos envolvidos – eles eram sete no total – foram o PMDB, o Partido Progressista (PP, um partido oriundo da Ditadura) e o PT. Quem ganhou mais no esquema ainda não está claro. Mas já que não existiam ilusões sobre os dois primeiros, foi a exposição do terceiro que realmente ganhou relevância política. O ‘Mensalão’ foi somente uns trocados em comparação com a enormidade do ‘Petrolão’, enquanto o primeiro não teve nenhum benefício privado para políticos do PT, o segundo, por sua vez, apagou completamente os limites entre fundos de campanha e enriquecimento pessoal. Dentre outros detalhes, veio à tona que o próprio chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu (o arquiteto por trás da formação do PT enquanto partido), que havia sido afastado por conta de seu envolvimento no ‘Mensalão’, havia insistido que uma parte do ‘Petrolão’ fosse dirigida para suas próprias contas bancárias. Se o grosso dessas retribuições eram utilizadas para financiar as campanhas e o aparato do partido, a presença contínua de grandes somas de dinheiro clandestino não tinha como não corromper aqueles que botavam suas mãos nele. O sociólogo Chico de Oliveira alertara, antes mesmo do ‘Petrolão’ ter sido descoberto, que o PT estava caminhando a passos largos para um processo de transfiguração numa aberrante espécie taxonômica de vida política, algo que não mais podia ser visto como uma metáfora. (O autor refere-se aqui ao ensaio “O ornitorrinco”, de Chico de Oliveira, publicado no volume da Boitempo Crítica à razão dualista/O ornitorrinco).

    Liderando o ataque ao ‘Petrolão’, a equipe investigativa de Curitiba se tornou, assim como os juízes e policiais de Milão que os inspiravam, verdadeiras estrelas midiáticas. Jovens, de cara limpa, queixos quadrados, beneficiando-se de seu treinamento legal em Harvard, o juiz Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol pareciam saídos direto de um desses seriados americanos de tribunais. Sobre o seu zelo no combate à corrupção e o valor do choque que aplicaram nas elites políticas e empresariais do país, não havia dúvidas. Mas assim como na Itália, objetivos e métodos nem sempre coincidiram. A delação premiada e a prisão preventiva sem acusações combinaram induzimento e intimidação: instrumentos obtusos em busca da verdade e da justiça, mas no Brasil eles estavam dentro da lei. Contudo, o vazamento de informações, ou às vezes até de suspeições, por parte dos investigadores para a imprensa, não é: eles são claramente ilegais. Na Itália, eles foram constantemente utilizados pela equipe de Milão e foram usados ainda mais ostensivamente pela equipe de Curitiba. Desde o início os vazamentos pareciam seletivos: eles almejavam o PT e, persistentemente, – ainda que não exclusivamente, pois os estilhaços se espalhavam – aparecendo nas principais revistas da bateria anti-governo, como a semanal Veja, que após semanas de exposição fez uma edição a ser lançada poucas horas antes da eleição de 2014 com as imagens de Lula e Dilma sob uma sinistra meia-luz com tons de vermelho e negro com a exclamação “Eles sabiam de tudo!”, alertando os eleitores para quem eram as verdadeiras mentes criminosas por trás do ‘Petrolão’.

    Mas será que o fato dos magistrados terem alimentado a mídia com vazamentos significa que seus objetivos eram os mesmos, ou seja, que eram fruto – tal como o PT sustentou – de uma operação comum? Pode-se dizer que o judiciário brasileiro, assim como seus colegas de promotoria e Polícia Federal, compartilha muito da identidade de classe média brasileira, cujas camadas eles pertencem, com suas preferências e preconceitos de classe típicos. Nenhum partido operário, por mais emoliente que seja, consegue atrair simpatia particular desse meio. Mas será que os vazamentos contra o PT são resultado de uma aversão militante, ou fruto de uma ideia de que não há melhor forma de enfatizar os horrores da corrupção do que pegar aquela que é a principal força política do país por mais de uma década, que inclusive é justamente aquela que a mídia, por suas próprias razões, estaria mais disposta a divulgar as revelações? Histórias que atingissem o PMDB seriam banais e o PSDB poderia ser poupado, em âmbito nacional, pois sendo um partido de oposição teria menor acesso aos cofres públicos, independente do seu domínio dentro dos estados.

    O escândalo da Lava Jato estourou de fato na primavera de 2014 e sucessivas prisões e acusações chegaram às manchetes durante a corrida presidencial no outono. A virada econômica de Dilma, tão logo eleita, pode ser vista em parte como conduzida pela esperança de aplacar a opinião neoliberal o suficiente para que a mídia moderasse seu discurso sobre o PT, que estava sendo tratado como uma gangue de ladrões. Mas se foi isso de fato, ela foi em vão. Superando até mesmo o PSDB na virulência de seus ataques, uma nova direita passou a ganhar proeminência nas manifestações massivas contra Dilma em março de 2015. No Brasil, o slogan tradicional da direita era “Deus, Família e Liberdade”, verdadeiros banners do conservadorismo que clamou pelo golpe militar que gerou a Ditadura de 1964. Meio século depois, os gritos dos manifestantes mudaram. Recrutados a partir de uma geração mais jovem de militantes de classe média, uma nova direita – e geralmente com orgulho de afirmar-se assim – passou a falar menos em termos de religiosidade, menos ainda em termos de família e reinterpretou o sentido de liberdade. Para eles, o livre mercado era a base necessária para todas as outras liberdades, concebendo assim o Estado como uma espécie de hidra de muitas cabeças. Essa política se iniciou não nas instituições da ordem decadente, mas sim nas ruas e nas praças, onde cidadãos poderiam se reunir contra um regime de parasitas e ladrões. Surfando na onda das manifestações massivas contra Dilma, os dois principais grupos dessa direita radical – ‘Vem Pra Rua’ e ‘Movimento Brasil Livre’ – modelaram suas táticas assimilando elementos do ‘Movimento Passe Livre’, um movimento de extrema-esquerda que desencadeou os protestos de 2013, inclusive com o MBL deliberadamente fazendo um acrônimo com o MPL. Ambas organizações da direita eram pequenas, mas dependiam de um intenso trabalho de mobilização de massas por meio da internet. O Brasil possui mais viciados em Facebook do que qualquer outro país, perdendo somente para os Estados Unidos, e tanto o ‘Vem Pra Rua’ como o ‘MBL’ e outros grupos da direita – o ‘Revoltados On-Line’ (ROL) é outro movimento proeminente – vem conseguindo mobilizar a população com muito mais sucesso do que a esquerda, embora seja importante levar em consideração o previsível perfil de classe de quem adentra na rede social de Zuckerberg. Até então, o efeito multiplicador desses grupos de direita tem sido muito maior.

    No horizonte de toda essa situação, há também a ambígua nébula de uma nova religião. Mais de 20% dos brasileiros atualmente são convertidos a alguma variedade de protestantismo evangélico. Seguindo o padrão da Igreja da Unificação do Reverendo Moon, muitas delas – certamente as maiores – são verdadeiros balcões de negócios que ficam ordenhando o dinheiro de seus fiéis para erigir verdadeiros impérios financeiros para os seus fundadores. A fortuna de Edir Macedo, o líder da Igreja Universal do Reino de Deus, cujo gigantesco ekitsch Templo de Salomão na região do Brás em São Paulo – próximo do menos grotesco, mas ainda impressionante templo da rival Assembleia de Deus, numa espécie de Wall Street religiosa – onde ocorrem performances de melodramáticos exorcismos nos telões e em que os fiéis cantam e oram, ultrapassa mais de 1 bilhão de Dólares. Parte desse império se associa também ao controle da segunda maior rede de televisão do país. Atualmente bastante próspera nas periferias, a organização de Macedo prega uma “teologia da prosperidade”, prometendo sucesso material na Terra, ao invés de mera salvação celestial. Diferente dos evangelistas americanos, as Igrejas Evangélicas no Brasil não possuem perfis ideológicos muito específicos além de assuntos como aborto e direitos LGBT. Macedo chegou a apoiar FHC como uma forma de impedir o comunismo, mas nas eleições seguintes apoiou Lula e desde então vem criando sua própria organização política. Mas muitas dessas igrejas operam no descrédito dos partidos brasileiros: elas são veículos a serem contratados, trocando votos por favores, com a diferença de que elas apoiam candidatos de qualquer partido – a bancada evangélica no Congresso, cerca de 18% dos deputados, inclui congressistas de 22 partidos. Seus principais interesses residem em garantir concessões de rádio e televisão, evasão fiscal para igrejas e acesso à zoneamento urbano para a construção de monumentos faraônicos.

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    Ao mesmo tempo, ainda que mais passivas e promíscuas do que seus iguais nos Estados Unidos, essas Igrejas formam um reservatório conservador para os agressivos líderes da direita no Congresso. Sintomaticamente, o presidente da Frente Evangélica é um musculoso pastor e ex-policial que senta na bancada do PSDB. Ali também se encontra o Presidente da Câmara dos Deputados, eleito em fevereiro de 2015 – esse sendo o cargo mais importante do Congresso e o terceiro da linha sucessória depois do vice-presidente –, o deputado Eduardo Cunha, um corretor da bolsa evangélico do Rio e líder da bancada do PMDB. Geralmente identificado como o mais perigoso inimigo de Dilma – ela inclusive tentou impedir sua eleição – seu jeito garboso e modos imperturbáveis escondem um excepcionalmente talentoso e cruel político, um mestre nas artes obscuras da manipulação parlamentar e na administração, uma pessoa a quem grandes números do chamado “baixo clero” do Congresso tornaram-se dependentes de seus favores desde que assumiu o cargo, enquanto outros vivem acuados diante de sua força sem conseguir enfrenta-lo. E tão logo as manifestações nas ruas clamaram pelo impeachment de Dilma, ele logo tornou-se o ponta de lança dentro do Legislativo que garantiria a saída da presidente, sob o pretexto de que antes das eleições ela havia transferido, de forma imprópria, fundos dos bancos estatais para contas federais.

    Atingindo um crescendo no mês de setembro, o movimento para depô-la atingiu números impressionantes, configurando diferentes forças e personagens que se entrecruzavam de diferentes formas, desde os “jovens turcos” do MBL e ROL posando para fotos com Cunha, até pilares da lei como Moro e Dallagnol (que também é evangélico) encontrando-se com políticos do PSDB e lobistas pró-impeachment, sem contar também com a imprensa atacando virulentamente o PT e o Planalto com novas denúncias diárias. Ou Dilma havia ilegalmente legado um déficit nas contas do Estado para seguir sendo reeleita, ou ela havia permitido grandes injeções de verbas ilegais para financiar sua campanha eleitoral…ou ambos – em qualquer caso, material suficiente para acelerar o processo de retirada dela da presidência enquanto afronta a probidade pública. Naquele momento, cerca de 80% da população queria que ela fosse embora.

    Nesse meio tempo, uma bomba explodiu. Em meados de outubro, as autoridades suíças notificaram o Procurador Geral da República em Brasília de que Cunha tinha nada mais do que quatro contas secretas na Suíça – e outra logo em seguida foi descoberta nos Estados Unidos – uma delas no nome de sua esposa, outra no nome de uma companhia empresa-fantasma em Cingapura que recebia direto de outra empresa-fantasma da Nova Zelândia. O valor total era de 16 milhões de Dólares, ou trinta e sete vezes mais a riqueza que ele havia declarado no Brasil. À disposição do casal também havia duas companhias locais – e, desafiando o escárnio, uma delas se chamava Jesus.com – além de uma frota de nove limusines e caminhonetes no Rio de Janeiro. As evidências de que ele acumulava propinas da Petrobrás começaram a se acumular. Mesmo para a mais obediente imprensa isso era demais. No Congresso, uma comédia às avessas tinha início. Segundo a Constituição Brasileira, o Presidente da Câmara possui o poder solene de dar início à moção de impeachment presidencial. Por meses o PSDB ficou cortejando Cunha, conferenciando com ele em conclaves íntimos sobre as táticas e o momento do processo. A revelação da sua caixa-forte na Suíça, com muito mais evidências do que aquelas que caíam sobre Dilma, tornou-se um profundo constrangimento para o partido. O que deveria ser feito? Cunha ainda controlava as chaves para o impeachment, que se fosse bem-sucedido poderia até mesmo anular as eleições de 2014 e garantir, assim, a vitória de Neves. O partido então se silenciou sobre as ondas que vinham de Berna, no que vale mencionar que o próprio Cunha ainda não havia se pronunciado e era tomado como inocente até que se provasse o contrário. Mas seus apoiadores na mídia não conseguiram conter os questionamentos: como pode o partido da moralidade dar cobertura para tamanha criminalidade? Diante do clamor, o PSDB foi forçado a bater em retirada e tirar o apoio ao Presidente da Câmara – um pequeno partido socialista independente [o PSOL], a essa altura do jogo, havia entrado com recurso para tirar Cunha da Câmara. Ao perceber que o PSDB deixara de lhe dar apoio, Cunha rapidamente fez um jogo de dupla-face. Negociando a portas fechadas, ele ofereceu trancar o impeachment de Dilma se o PT o protegesse das tentativas de anulação de seu mandato e expulsão do Congresso. E isso rapidamente aconteceu. Os ministros do PT, tanto desavergonhados quanto os políticos do PSDB, concordaram em auxiliá-lo a manter-se no cargo, desde que ele não fizesse nenhum movimento contra Dilma. Esse surreal carrossel foi demais para as bases do partido que estavam afastadas do Congresso e o acordo teve de ser cancelado. Por um breve momento, pareceu que a posição de Cunha era insustentável e a causa do impeachment estava tão desgastada pela sua exposição que havia, portanto, quase nenhuma chance de ela passar.

    * * *

    Nos bastidores, contudo, o principal repositório das esperanças de acabar com o PT não tinha desistido. Desde o início da crise, FHC tornou-se onipresente na mídia – sua imagem estava em toda parte, numa enxurrada de entrevistas, artigos, discursos, diários. Bastante estimado pelos barões da mídia e seus lacaios, sua renovada proeminência era fruto de um cálculo político mais imediato de ambas as partes. Apresentado como o estadista ancião da República, a cuja sabedoria se deve a estabilidade atingida, editores e jornalistas esforçaram-se para construí-lo como um pensador de renome internacional, a voz da sanidade e da responsabilidade diante das mazelas do país, inclusive com a imprensa e a academia anglófona cotejando-o, engolindo todo esse coro de sicofantia. A razão para toda essa apoteose é bastante simples: a presidência de Cardoso administrou ao Brasil uma generosa dose de administração pró-mercado, um remédio que parecia ser mais urgente do que nunca diante do escárnio populista do PT. O próprio Cardoso, que quando presidente lamentou a “enorme dificuldade” de que “o Brasil não gostava do sistema capitalista”, estava tranquilo em exercer esse papel. Mas ele também tinha uma questão pessoal no meio de todos esses holofotes. Quando ele saiu da presidência, seu índice de aprovação não era muito mais alto do que o de Dilma hoje, e por oito anos ele sofreu uma dura comparação com Lula, um presidente muito mais popular que repudiou seu legado e transformou o país de forma decisiva, assegurando ao PT mandatos que duraram o dobro do seu.

    Isso foi algo duro de suportar. Será que a aura do pensador poderia suportar a perda de seu prestígio como governantes? Objetivamente, o segundo mandato foi – e isso é bastante normal – menos popular do que o primeiro. Na busca pela presidência, Cardoso sacrificou não apenas suas antigas convicções, que inclusive eram marxistas e socialistas, mas com o tempo até mesmo seus padrões intelectuais. A banalidade dessa mudança chega a ser disparatada – bromas elogiosas para os efeitos da globalização e ansiedade com seus efeitos colaterais. Em raras ocasiões ele acabava sendo sincero: “Eu devo admitir que, ainda que meu lado intelectual seja forte, eu sou basicamente um Homo politicus”, disse ele certa vez. Mas subjetivamente, a vaidade – atingida pelo apelo político grandioso de um ex-operário sem educação formal – não permite que pretensões mais cerebrais sejam colocadas de lado. Tingido pelo verde e amarelo da Academia Brasileira de Letras, uma cópia tropical da versão original e pomposa dos franceses – com uma espada a seu lado, ele declarou que o sociólogo e o presidente nunca divergiram, demonstrando uma carreira coerente e uma administração criativa, inteiramente em sintonia uma com a outra.

    Por anos ele teve motivos para reclamar que, enquanto oposição, o próprio PSDB foi insuficientemente leal à memória de seu líder máximo, evitando qualquer defesa mais vigorosa de sua modernização nacional e seu corajoso programa de privatizações. Agora, contudo, diante da crise do ‘lulopetismo’ – seu uso mais desdenhoso, implicando algo ainda focado nas bases, mais demagógico do que o mero suporte petista, ou ‘petismo’ – fica claro o quão certo Cardoso esteve todo esse tempo. Se houve algo de bom durante o governo do PT, isso se deve à herança deixada por FHC. Se houve algo desastroso e terrível, então a culpa não é dele, pois havia alertado a todos o que aconteceria. Era tempo de erguer novamente as bandeiras de 1994 e 1998, sem qualquer inibição, colocando assim um fim ao desgoverno do PT. Ainda que ele mesmo não tivesse evocado o impeachment, ele o reconhecia como um processo legítimo, desde que tivesse base legal para isso. E ainda que não tivesse, Dilma ainda poderia ser removida politicamente. Mas – e aqui os cálculos de Cardoso mostram-se diferentes daqueles feitos pela nova geração de políticos do PSDB no Congresso, ansiosos para tomar o poder rapidamente – era melhor esperar pelo Judiciário, que poderia ser tido como um instrumento para que a Justiça Política fosse cumprida.

    Essa confiança vinha das íntimas conexões entre os juízes mais veteranos e estava longe de estar errada. Indicado para presidir o caso contra Dilma no Supremo Tribunal Eleitoral estava Gilmar Mendes, um parceiro próximo indicado pelo próprio Cardoso para o Supremo Tribunal Federal, ocupando este lugar até os dias de hoje – e que nunca fez nenhum segredo sobre o seu desgosto para com o PT. Mas Dilma era o alvo menos importante. Para FHC, o alvo crucial a ser destruído era Lula e não apenas por questão de vingança, embora isso tenha sido muito saboreado no âmbito privado, mas porque havia risco, dada sua antiga popularidade, de que ele voltasse em 2018 – supondo que Dilma sobrevivesse até então, algo que assustava o PSDB e seu programa de orientar o país novamente para uma modernização responsável. E tão logo as deixas de Cardoso começaram a encontrar eco, uma série de vazamentos feitos pela força tarefa da Lava Jato passaram a aparecer na imprensa, implicando Lula em dúbias transações financeiras de tipo pessoal: viagens em jatos empresariais, palestras remuneradas por empreiteiras, apartamentos confortáveis, melhorias num sítio, sem falar nos ganhos obscuros de um de seus filhos. Logo em seguida veio a apreensão de um amigo milionário fazendeiro, acusado de repassar as retribuições de um contrato da Petrobrás para o tesoureiro do PT. Aparentemente, a rede estava se fechando sobre ele.

    * * *

    Rapidamente, durante a primeira semana de março, uma força-tarefa da Polícia Federal chegou na porta da casa de Lula às seis da manhã, levando-o sob custódia para ser interrogado no aeroporto de São Paulo. A imprensa, informada de antemão, estava esperando do lado de fora para invadir com suas câmeras, esperando obter o máximo de publicidade. O pretexto para todo esse show é de que se Lula fosse convidado a dar esclarecimentos, ele poderia ter se recusado. Na semana seguinte, a maior manifestação no Brasil após a Ditadura – de acordo com a polícia, com 3,7 milhões de pessoas nas ruas – clamou por justiça contra Lula e impeachment para Dilma. Três dias depois, Dilma apontou Lula como ‘chefe da Casa Civil’ de seu governo – algo equivalente a um Primeiro Ministro. Como ministro, Lula teria imunidade perante as acusações de Moro em Curitiba, possibilitando que ele, assim como os demais membros do governo, respondesse somente ao Supremo Tribunal. Moro não perdeu tempo. Na mesma tarde, ele publicou as gravações de uma conversa telefônica entre Lula e Dilma, na qual ela disse a ele que mandaria os papéis necessários para que ele assinasse e assumisse, “se necessário”. Sua fala foi ambígua. Mas o escândalo midiático foi ensurdecedor: aqui, pega com a boca na botija, estava uma manobra para fugir da Justiça e salvar Lula, deixando-o longe do alcance da lei. Dentro de 24 horas, um juiz em Brasília impediu a nomeação – um juiz que, como se soube mais tarde, havia postado imagens nas redes sociais de quando ele estava nas manifestações pelo impeachment, ostentando alegremente uma camiseta do PSDB. Mas esse juiz rapidamente foi apoiado por Gilmar Mendes e, naquela mesma noite, o PMDB anunciou que estava saindo do governo, no qual ele controlava a vice-presidência e outros seis ministérios, pavimentando o caminho para uma rápida deposição de Dilma no Congresso.

    Nessa dramática escalada da crise política, o protagonista central era o Judiciário. A noção de que a operação de Moro estava agindo de forma imparcial em Curitiba, inicialmente defensável, acabou sendo prejudicada com a cobertura gratuita e espetaculosa da imprensa sobre a condução coercitiva de Lula, o que acabou ainda sendo seguida por uma mensagem pública saudando as manifestações a favor do impeachment: “o Brasil está nas ruas”, anunciou o juiz. “Sinto-me tocado”. Contudo, ao publicar as gravações da conversa entre Lula e Dilma, horas depois do grampo ter sido anulado pela Justiça, ele violou a lei duas vezes: violou o sigilo das interceptações, ainda que fosse permitido o grampo, e sem falar também no princípio da confidencialidade que supostamente protegia as comunicações da chefe do Executivo. Ficou tão evidente que essas coisas eram ilegalidades que logo Moro foi repreendido pelo juiz do Supremo responsável por Moro, mas sem qualquer sanção efetiva. Ainda que “inapropriado”, seu superior notou delicadamente que a ação do juiz havia atingido seu objetivo.

    Na maioria das democracias contemporâneas, a separação dos poderes é uma ficção bem-educada, com os Supremos Tribunais – no que o caso americano é uma importante exceção – curvando-se perante os governos. Os contorcionismos do Tribunal Constitucional Alemão – geralmente visto como exemplo de independência judicial – ao sustentar as violações do país tanto noGrundgesetz e no Tratado de Maastricht e favorecer os diferentes regimes de Berlim pode ser visto como uma norma geral. No Brasil, a politização do Judiciário é uma tradição longínqua. A figura inverossímil de Gilmar Mendes é talvez um caso extremo, ainda que seja revelador. Como presidente, Fernando Henrique Cardoso defendeu seu amigo de acusações criminais ao lhe promover como Ministro antes de elevá-lo ao STF – e Mendes agora se volta contra Dilma por ela fazer o mesmo com Lula. Ao colocá-lo no posto e tentando evitar chamar atenção, FHC entrava pelo prédio sorrateiramente pelo edifício da garagem, encontrando Mendes no estacionamento. Bastante militante em relação ao PSDB – ‘tucano demais’, considerando que a ave é o símbolo do partido – até mesmo para Eliane Catanhêde, uma respeitável jornalista de direita, Mendes geralmente era visto almoçando com proeminentes líderes do partido após ter sido absolvido das acusações e o juiz não hesitou em utilizar dinheiro público para ‘alistar’ seus subordinados a partir de uma escola privada de advocacia que ele possui, algo feito enquanto ele já era juiz no maior tribunal da nação. Seus ataques contra o PT são constantes.

    Sergio Moro, por sua vez, é de uma geração mais jovem e vinho de outra pipa. Os Estados Unidos, país que ele visita com regularidade, é sua principal referência. Um sujeito trabalhador e provinciano, ele considera que nada deve aos sistemas de patronagem e compadrio. Mas vale destacar que, quando Moro tinha pouco mais de 30 anos, ele demonstrou também sua indiferença com os princípios básicos das leis e das regras num artigo exaltando o exemplo dos magistrados italianos nos anos 1990, “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, nos termos que antecipariam seus procedimentos uma década depois. Recusando-se a pesquisar na literatura mais extensiva sobre a Tagentopoli, ele utilizou somente duas eulogias feitas pela equipe de Milão e que foram traduzidos para o inglês, citados sem qualquer dose de reflexão crítica, inclusive confiando no depoimento de um chefe da máfia que vivia com um salário do Estado enquanto delator, ainda que ele tenha sido rejeitado pela corte. A presunção da inocência não poderia ser tida como ‘absoluta’, tal como ele declarara: ela era apenas um ‘instrumento pragmático’ que poderia ser desfeita de acordo com a vontade do magistrado. Ele celebrou os vazamentos seletivos para a mídia como forma de ‘pressão sobre os acusados’, usados quando ‘os meios legítimos não podem ser atingidos por outros métodos’.

    O perigo de ter um Judiciário atuando nesse espírito é o mesmo no Brasil do que foi na Itália: uma campanha absolutamente necessária contra a corrupção se torna tão infectada com o desdém pelo devido processo, com um conluio tão inescrupuloso com a mídia, que ao invés de instalar qualquer nova ética de legalidade, ela acaba confirmando o longo desrespeito social pela lei. Berlusconi e seus herdeiros são a prova viva disso. Todavia, a cena no Brasil se difere da situação na Itália por dois aspectos. Não há nem Berlusconi ou Rinzi no horizonte brasileiro. Moro, cuja celebridade agora excede qualquer um dos seus modelos italianos, sem dúvida está sendo solicitado para suprir o vazio político, caso a Lava Jato faça de fato uma limpeza sobre a velha ordem. Mas o medíocre destino de Antonio di Pietro, o mais popular dos magistrados de Milão, pode ser lido como um aviso para Moro, por mais puritana que seja a sua aparência, evitar a tentação de envolver-se na política. O espaço para uma ascensão meteórica também tende a ser menor, pois há uma diferença crucial entre as duas cruzadas contra a corrupção. O assalto feito pela Tagentopoli foi direcionado contra os principais partidos do país, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, que estiveram no poder durante trinta anos. A Lava Jato, por sua vez, não parece estar focada nos partidos tradicionais do poder político no Brasil que, diga-se de passagem, estão bastante divididos, mas sim nos sistemas que possibilitaram que eles chegassem lá. Nesse ponto, ela parece mirar somente num alvo e, sendo assim, mais manipuladora.

    Tal manipulação pode ser acentuada naquilo que se considera como a segunda diferença entre a Itália dos anos 1990 e o Brasil de hoje. Quando a Tagentopoliatingiu o sistema político, a mídia italiana formou um cenário homogêneo. Jornais independentes passaram a apoiar o Judiciário de Milão em toda parte. O chefe do conglomerado midiático do Olivetti, De Benedetti, cujo jornal recebeu a maior parte dos vazamentos, acusou duramente os democratas cristãos e socialistas ao mesmo tempo em que ficou quieto sobre as implicações em outros partidos. O império de jornais e televisão de Berlusconi enalteceu e instigou os magistrados. E o resultado foi que, com o passar do tempo, havia ainda mais questionamentos sobre as ações de diferentes esferas do Judiciário – muitas delas bastante corajosas, enquanto outras eram mais dúbias – do que no Brasil. Ali a mídia tem sido bastante monolítica e partidária em sua hostilidade anti-PT e nada crítica quanto à estratégia de vazamentos e pressões vindas de Curitiba, do qual a imprensa age como sua porta-voz. O Brasil possui alguns dos melhores jornalistas do mundo, cujos textos vem analisando a atual crise num nível intelectual e literário que vai além do que fazem o Guardian ou o New York Times. Mas tais vozes são sufocadas por uma enorme floresta de conformistas que nada mais fazem do que ecoar as visões de patrocinadores e editores.

    Comparar a cobertura da mídia sobre qualquer vazamento que prejudique o PT com o tratamento dado às informações ou rumores que afetam a oposição é uma forma de medir a extensão da sua política de dois pesos e duas medidas. Enquanto a Lava Jato estava se desenrolando, veio à tona um pujante exemplo. Em 1989, num dos mais famosos momentos decisivos da história moderna brasileira, Lula – que na época era visto como um perigoso radical pelas elites – estava perto de assegurar uma vitória em sua primeira corrida presidencial, quando dias antes da eleição, uma ex-namorada sua apareceu na televisão em nome de Collor, paga pelo próprio irmão de Collor, acusando Lula de querer que ela abortasse de um filho de ambos. Aquele momento, amplificado até o limite pela mídia, foi fundamental na sua derrota eleitoral. Dois anos depois, Cardoso – na época um proeminente senador do PSDB, já cotado como futuro candidato à presidência – ficou conhecido no meio político por ter uma amante trabalhando na mesma rede de televisão que prejudicou a campanha de Lula, a TV Globo. Quando ela teve um filho do ex-senador, ela saiu do país e foi mandada para Portugal. Em meados de 1994, depois de ter sido Ministro da Fazenda, Cardoso estava disputando a presidência e o trabalho dela passou a ser somente nominal, ainda que a Globo seguisse pagando seu salário. Tão logo FHC foi eleito, seu braço direito, o jovem Magalhães, instruiu ela a não retornar para o Brasil por medo de comprometer sua reeleição. Quando a Globo a tirou da folha de pagamento, um trabalho ficcional foi feito para ela, fazendo pesquisas de mercado na Europa para uma cadeia de lojas duty-free que recebera do próprio FHC direitos monopolísticos nos aeroportos brasileiros. Por meio dessa firma, ela teria lavado cerca de cem mil dólares via uma conta bancária nas Ilhas Cayman – teria sido pensão alimentícia ou suborno para ficar calada? A história veio à tona em fevereiro, em meio ao furacão das denúncias sobre as reformas no sítio de Lula. A mídia fez de tudo para que isso recebesse o mínimo possível de cobertura. A firma agora está sob investigação por transação criminosa. Cardoso protesta sua inocência. E ninguém espera que ele sofra qualquer inconveniência.

    Será que isso pode ser generalizado para toda a oposição? Moro lançou seus grampos incendiários no dia 16 de março. Uma semana depois, a polícia de São Paulo invadiu a casa de um dos executivos da Odebrecht, a maior empreiteira da América Latina, cujo diretor recém havia sido sentenciado por 19 anos pelo crime de suborno. Na casa os policiais encontraram uma lista com 316 políticos com quantias de dinheiro ligadas aos seus nomes. Estavam inclusas figuras tradicionais do PSDB, do PMDB e de vários outros partidos – um verdadeiro panorama da classe política brasileira. Objetivamente falando, essa lista produzia muito mais barulho do que a conversa entre Lula e Dilma. Mas era um barulho menos conveniente: diretamente de Curitiba, Moro rapidamente tomou uma posição contrária, ordenando que as listas fossem colocadas sob sigilo para impedir qualquer especulação. Ainda assim, o alarme havia soado: a Lava Jato poderia sair do controle. Se Dilma tinha que cair, era preciso fazê-lo antes que as listas da Odebrecht pudessem ameaçar seus próprios acusadores. Poucos dias depois, o PMDB anunciara que abandonava o governo e começaria uma contagem de votos a favor do impeachment. Os 3/5 de votos necessários na Câmara dos Deputados, algo que parecia muito difícil de atingir no início das discussões, agora estava mais perto do alcance. A opinião pública passou a perceber a farsa de um Congresso cheio de ladrões, tendo Cunha à sua frente, solenemente derrubando uma presidente por crime de responsabilidade fiscal.

    Quais são as chances de Dilma resistir a esse desfecho e as perspectivas caso o impeachment não aconteça? As esperanças do Planalto residem em duas contingências: de que com suficiente apoio no Congresso se possa bloquear o impeachment, oferecendo assim mais ministérios e cargos para partidos menores que não conseguiriam acesso ao governo antes, visando com isso reverter a saída do PMDB; e a outra, de que com muitas manifestações em defesa do governo possam desestimular as grandes manifestações feitas a favor do impeachment. Ambos objetivos exigem o retorno de Lula para Brasília, de onde ele poderia – ainda que lhe seja negado o direito de ocupar formalmente o ministério – informalmente cumprir ambas tarefas que lhe foram atribuídas, ou seja, de aproximar-se de deputados relutantes para o campo governista e de estimular o apoio popular vindo das ruas. Mas o cenário está mudando e isso tudo parece cada vez mais distante. As relações entre Lula e Dilma se fragilizaram desde que ela optou pela austeridade após sua reeleição. Culpando-a pela falta de habilidade política e pela sua recusa em aceitar conselhos, Lula falaria, no âmbito privado, que “ela foi minha Chefe da Casa Civil e ela ainda age como uma, e não como uma presidente”, ou então que “ela é como se fosse a minha filha, que sempre diz pra mim que me ama, mas nunca presta atenção no que eu falo pra ela”. Mas é duvidoso se faria alguma diferença a flexibilidade tática, ainda que importante, diante das dificuldades enfrentadas por ela. Desde o início, sua segunda presidência foi pega em um círculo vicioso de escândalos políticos e indicadores econômicos deteriorados, cuja interação forma um obstáculo nada fácil de superar para recuperar sua autoridade. O problema da Petrobrás, com inúmeras delações, vem gerando demissões em massa de trabalhadores; o mesmo vem acontecendo com as empreiteiras cujos diretores e executivos estão na cadeia. A incerteza sobre onde soprará a Lava Jato tem feito os investidores mais temerosos e deixado o mercado financeiro assustado: em novembro, o chefe do fundo bilionário BTG-Pactual, o maior banco de investimento do continente, a menina dos olhos do Financial Times e do Economist, foi levado algemado para a delegacia. No Congresso, o corte de gastos neoliberal e o aumento tributário proposto pelo governo foi derrubado pelo próprio neoliberal PSDB, buscando criar todo um constrangimento político: o orçamento de 2016 sequer foi aprovado. Mesmo que um virtuoso trabalho de base feito nos corredores do poder possa conseguir colocar temporariamente o impeachment em xeque, ele não conseguiria resolver o temível impasse do atual governo.

    A mobilização popular para impedir a saída de Dilma, da forma como está pensada, também tem problemas. Mas isso está conectado diretamente aos legados dos governos do PT. O partido está numa frágil posição para convocar seus beneficiários para defende-lo por pelo menos três razões. A primeira é simplesmente porque se a corrupção fez com que a classe média perdesse a simpatia que o partido antes desfrutou, a austeridade alienou a base de classes populares que tinham conquistado. As manifestações feitas para impedir o impeachment foram, até agora, muito menos impressionantes do que aquelas feitas por aqueles que querem que ele aconteça. Os manifestantes têm sido arregimentados principalmente entre funcionários públicos e sindicatos: os pobres ainda não têm comparecido nessas manifestações. A força rural do Nordeste onde o PT se consolidou estão ainda socialmente dispersos, enquanto as grandes cidades do Sul e Sudeste são as fortalezas da nova direita no momento. Há também a inevitável desmoralização do partido conforme sucessivos escândalos surgem com o seu nome, criando um sentido de culpa coletiva difusa, ainda que não explícita, mas que enfraquece qualquer espírito de luta. E por fim, mas fundamentalmente, na época que Lula chegou ao poder, o partido tornou-se uma máquina eleitoral, financiada principalmente por doações de grandes corporações, ao invés de – como ele era em seu início – pelas doações de membros e simpatizantes, com eles inclusive aderindo passivamente ao nome de seu líder, sem qualquer vontade de construir uma ação coletiva com os eleitores. A mobilização ativa que fez o PT ser uma força nas regiões urbanas e industriais do Brasil tornou-se uma memória distante conforme o partido passou a ganhar força em regiões sem indústrias, enraizadas numa tradição de submissão à autoridade e medo da desordem. Isso foi uma cultura política entendida por Lula e que ele não fez nenhuma tentativa séria de termina-la. Segundo sua própria visão, ele considerava que mudar isso teria um custo potencial alto demais. Para ajudar as massas ele buscou harmonia com as elites, para as quais qualquer polarização vigorosa era um tabu. Em 2002 ele finalmente ganhou a presidência, na sua quarta tentativa, com um slogan de “paz e amor”. Em 2016, diante de um linchamento político, ele ainda seguiu falando essas palavras para uma multidão que esperava por algo mais combativo.

    Tal descompasso entre partir para o ataque e o discurso de responsabilidade é uma marca comum de um padrão que, desde a virada do século, vem distinguindo a política do Brasil em relação à América Latina. O país não é o único que viu um conflito de classes se tornar uma crise. Mas em nenhum lugar isso foi tão unilateral como no Brasil. Mesmo quando Lula estava no auge de seu prestígio enquanto estava na presidência, sempre houve uma assimetria entre as políticas moderadas e comodistas do PT e a hostilidade de uma classe média enragé e da mídia contra ele. Nos últimos dezoito meses, essa expressão de abominação unilateral se tornou ainda mais violenta. Um vereador [Roberval Fraiz, de Araraquara] do PMDB no interior de São Paulo falou publicamente que Lula deveria ser morto como uma cobra, tendo que pisar em sua cabeça. No Rio Grande do Sul, no Sul do país, uma pediatra se recusou a atender uma criança de um ano porque a mãe era uma ‘petista’, e foi absolvida de infração ética pelo Conselho Regional de Medicina e pela Associação de Médicos. O juiz do Supremo Tribunal, Teori Zavascki, responsável por ter repreendido Moro, foi presenteado com uma série de faixas e cartazes que o chamavam de “traidor” e “pilantra do PT”, enquanto manifestantes cantavam sua canção símbolo que fala que o “capitalismo veio pra ficar”. Conforme aproxima-se do Dia D do impeachment, os militantes fanáticos vêm recebendo endereços de deputados indecisos ao redor do país e intimidando-os, acampando em frente de suas casas. Meticulosamente deve-se dizer que o mercado de ações vem mantendo um ritmo: ele subiu quando Lula foi preso, caiu quando ele foi feito ministro e subindo novamente quando a sua posse foi impedida.

    Um golpe teatral (um coup de théâtre) ainda é possível, com uma virada de eventos salvando Dilma no último minuto, mesmo que não pareça que isso irá acontecer. A maior probabilidade é de que se forme um regime liderado pelo vice-presidente que a abandonou, o veterano sepulcral do PMDB – comparado com o mordomo de um filme de terror – Michel Temer. De fala mansa e cerimonioso, ele preparou o caminho alguns meses atrás, criando um programa para deixar claro que o país estaria seguro assim que ele assumisse. Seu pacote trata-se de um plano de estabilização convencional, agilizando privatizações, reforma da previdência e abolindo os gastos mandatórios constitucionais em saúde e educação, acompanhados de promessas de cuidar dos menos afortunados. Se Dilma sofrer o impeachment, tendo uma maioria de 3/5 do Congresso lhe apoiando, Temer não teria nenhum problema em formar um governo de coalizão junto com PMDB, PSDB e uma grande quantidade de partidos nanicos, colocando uma pitada de tecnocratas em ministérios centrais. Já que tal combinação poderia passar uma série de leis, às quais Dilma não pode, e isso garantiria o retorno da confiança do mercado, isso certamente traria melhorias aos indicadores econômicos feitos pelos mercados financeiros, não importa o quanto isso custaria aos pobres. Mas dada a conjuntura global adversa e a teimosa baixa taxa de investimentos que persiste no Brasil desde o fim da Ditadura, é difícil ver qualquer alívio para o país num horizonte futuro.

    Politicamente também a estabilidade não estaria garantida. Uma questão óbvia que surge é se será que o choque do impeachment irá sufocar o que resta do espírito de luta daqueles que apoiam Dilma, ou o contrário, ou seja, que isso provoque uma resistência ainda mais feroz contra as elites do país. Ambas alternativas não são fáceis para a fileira dos vitoriosos – se eles de fato conseguirem o impeachment da presidenta. Um juiz do Supremo Tribunal Federal ordenou que Cunha também colocasse em votação o impeachment de Temer, usando da mesma referência legal do impeachment da Dilma, já que quando ela estava fora do país, ele também assinou os decretos de responsabilidade fiscal que são atribuídos a ela – algo que pegaria desprevenido aqueles que querem derrubá-la e esperam instalar Temer como presidente rapidamente. Caso esse ataque seja evitado, outro curioso problema se avizinha. Ainda está pendente no Supremo Tribunal Eleitoral uma acusação de que a campanha de 2014 de Dilma e Temer violaram o regulamento eleitoral, uma acusação trazida pelo PSDB quando ainda esperava forçar uma situação de novas eleições. Se levada adiante, a ação derrubaria ambos. O processo não pode mais ser retirado e seria um constrangimento se o impeachment de Dilma fosse concretizado e Temer tomasse o poder. Mas desde que Gilmar Mendes torne-se presidente do Supremo em maio, a Justiça brasileira provavelmente superará essa questão sem dificuldade. Mas, claro, uma interrogação maior surge sobre qual o impacto subsequente que a Lava Jato poderia ter sobre os deputados pró-impeachment. Acelerar o procedimento do impeachment serviu para desviar os olhares da opinião pública sobre a lista da Odebrecht. Mas essas listas podem ser apagadas da consciência da população após o impeachment? Dentro de suas fileiras, toda a classe política está em risco. Será que a Justiça brasileira também poderia minimizar essa dificuldade, nos interesses, digamos, de uma reconciliação nacional?

    Que o Partido dos Trabalhadores tenha se juntado, por uma transformação ocorrida internamente, às deformadas fileiras do resto da fauna política brasileira – PMDB, PSDB, PP e o restante da corja – não pode ser negado. Até agora, dois presidentes do partido, dois tesoureiros, um presidente e um vice-presidente da Câmara dos Deputados e o líder do partido no Senado foram todos presos, afundados na lama da corrupção que desconhece fronteiras políticas. De forma emblemática, o último dos notáveis e com a delação mais volumosa, o senador Delcídio do Amaral era um refugiado do PSDB, uma importante engrenagem do partido de FHC nas operações da Petrobrás. Mais da metade do Congresso está na lista de pagamento das empreiteiras, cujas doações financiam suas campanhas eleitorais. A degradação do sistema político se tornou tão evidente que no outono passado o STF – que está longe de ser algum tipo de areópago da integridade imparcial – finalmente decidiu que o financiamento privado de campanha era matéria inconstitucional e proibiu as empresas de doarem para as campanhas. O Congresso imediatamente reagiu com emendas constitucionais para permitir as doações, mas o assunto segue congelado na Câmara. Se confirmada a decisão do Supremo sem ser driblada, a decisão permitirá uma espécie de revolução no funcionamento da democracia brasileira: a única coisa inequivocamente positiva em meio a toda essa crise.

    O Partido dos Trabalhadores acreditou, durante determinado período, que ele poderia se valer da ordem institucional brasileira para beneficiar os pobres sem prejudicar os ricos – e até mesmo contando com a ajuda deles. E de fato houve benefícios aos pobres, tal como eles se propuseram. Mas uma vez aceito o preço de entrar num sistema político moribundo, a porta para voltarem atrás fechou-se. O próprio partido passou a definhar, tornando-se um enclave do Estado, sem qualquer autocrítica ou direção estratégica, tão cego que chegou a ostracizar André Singer, seu melhor pensador, para colocar uma mistura de marqueteiros e relações públicas, tornando-se tão insensíveis que passaram a conceber o lucro, não importa de onde viesse, como condição para o poder político. Suas conquistas ainda permanecerão. Mas se o partido terá o mesmo destino, isso é uma questão em aberto. Na América do Sul, um ciclo está chegando ao fim. Por uma década e meia, sem a pressão direta dos Estados Unidos, fortalecidos peloboom das commodities, e amparando-se em grandes reservas de tradição popular, o continente foi a única parte do mundo em que movimentos sociais rebeldes coexistiram com governos heterodoxos. No despertar de 2008, há agora cada vez mais desses movimentos. Mas não há mais nenhum desses governos. Uma exceção global está chegando ao seu fim e sem nenhum sinal de mudança positiva no horizonte.

    * Artigo publicado originalmente na edição de Abril da London Review of Books. A tradução é de Fernando Pureza, para o Blog Junho.

    NOTA

    * André Singer escreveu a principal análise sobre esse conjunto de medidas e seu desenrolar no artigo ‘Cutucando onças com varas curtas’ (Novos Estudos 102, jul. de 2015), um ensaio que pode ser lido como um epílogo de seu estudo sobre a trajetória do PT, Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador (Cia das Letras, 2012), que investiga a mudança do seu eleitorado após 2005, conforme ele perdera o apoio das classes médias e passou a ganhar a confiança dos pobres, que antigamente, com medo de desordem, votavam contra o partido. Numa combinação de sobriedade crítica e lealdade ao PT, Singer é talvez seu mais preparado intelectual – e talvez possa se argumentar que seja o mais impressionante pensador social de sua geração na América Latina. Secretário de comunicação de Lula durante o primeiro mandato, desde que ele se tornou professor universitário acabou sendo mentalmente descartado pelo PT, que não demonstrara nenhum interesse sobre o seu trabalho.

    ***

    Perry Anderson é um historiador inglês nascido em 1938. Professor da UCLA, Estados Unidos, foi editor da New Left Review, a principal revista de esquerda do mundo anglófono. Ensaista político, Anderson é conhecido por seu trabalho em história intelectual, e filia-se à tradição do Marxismo Ocidental do pós-1956. É autor, entre outros, de Espectro, Afinidades seletivas e o mais recente A política externa norte-americana e seus teóricos, além de ser colaborador da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.

    Fonte: Blog da Boitempo