Autor: Redação Lauro Campos

  • Tem cara de legal e tem jeito de legal, mas não passa de um golpe velhaco

    por Gilberto Maringoni*

    Pronto. A Câmara dos Deputados consumou o golpe paraguaio ou hondurenho, a depender do gosto do distinto freguês. Não mais tanques e tropas em torno do Palácio, mas um cipoal confuso de acusações à mandatária, embasado em flexíveis leituras da Constituição. Não mais “vivandeiras alvoroçadas que vão aos bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar”, como dizia o ex-ditador Humberto Castello Branco (1897-1967). Vivandeiras preferem agora bulir com financistas e juízes, tudo sob manto legal e afiançado por “renomados juristas”, a categoria da hora. Embora o processo siga para o Senado, a sorte está lançada: o governo Dilma acabou. Melhor: chegam a termo 14 anos de lulismo. Temos em Palácio uma presidente que já não dirige o país.

    PODRIDÃO

    O governo será – em poucas semanas – tomado de assalto pelo que há de mais apodrecido e corrupto na política brasileira. Setores sem voto e sem qualquer condição de alcançar o poder pela escolha popular se aboletarão no Planalto, na esplanada e nas estatais e darão prosseguimento a uma versão hard da cartilha que Dilma Rousseff já vinha adotando desde que jogou no lixo suas promessas e entrou de cabeça no programa do adversário de 2014. É preciso denunciar o golpe para avançar. Tão real quanto essa assertiva, é forçoso dizer: sem apontar opções e erros cometidos, não se avançará. Não se trata de ir atrás de culpados, mas de saber que a responsabilidade pelos 7 a 1 não é dos alemães, mas de nosso próprio time. O PT construiu, ao longo dos últimos 14 anos, um mito. O de que é possível mudar o Brasil sem conflitos ou rupturas. Durante um tempo de crescimento econômico – por fatores externos – essa senda pareceu exequível. Em tempos de retração, não mais.

    RITMO E INTENSIDADE

    Não haverá mudanças de rumo num governo Michel Temer. Elas serão de ritmo e de intensidade. Nas condições atuais, isso fará grande diferença. O que era o programa de Aécio, que Dilma escolheu para governar? Em rápidas palavras, fazia uma leitura de que os crescentes déficits orçamentários teriam de ser solucionados com um tratamento de choque. Haveria um descontrole inflacionário e a receita teria de ser uma trombada ortodoxa. Isso implicaria realismo tarifário nos preços administrados, austeridade orçamentária, elevação dos juros e toda a bula de manual neoclássico. O ajuste deflagrado no início de 2015 implicou cortes de investimentos e custeio, retirada de direitos trabalhistas, encarecimento do crédito e tesouradas do orçamento público.

    O ÊXITO DO AJUSTE

    O receituário, ao contrário do que se divulga, obteve êxito espetacular. Nunca foi propósito do ajuste promover desenvolvimento ou coisa que o valha. Através dele, realinhou-se o câmbio, reduziu-se a atividade econômica, derrubou-se o PIB, privatizou-se mais de vinte estatais – em especial do setor elétrico – aumentou-se o desemprego (era uma das molas mestras para se reduzir salários) e agravaram-se conflitos sociais. Tudo era perfeitamente previsível, ainda mais em meio à maior crise capitalista planetária das últimas oito décadas. Curiosamente, cumpria-se ali a máxima neoliberal: não há alternativas. Situação e oposição têm o mesmo diagnóstico e remédio. Ou, no senso comum lulista, todos podem se sentar em torno de uma mesa e chegar a um consenso sobre o melhor para o país.

    NÃO OUSA DIZER O NOME

    Há um problema nesse raciocínio: ele pode ser explicado, mas não pode ser dito. Durante a eleição, tornou-se para a campanha petista o programa que não ousa dizer o nome, para usar a terminologia de Oscar Wilde para o amor entre homens. Aécio e Dilma tinham em mente o mesmo ajuste. Ele anunciava como medidas salvacionistas. Ela execrou tal possibilidade. E ganhou.

    FICHA QUE NÃO CAI

    Talvez ainda demore para cair a ficha dos petistas sobre a imensa gravidade daquilo que ficou popularizado como “estelionato eleitoral”. Avaliam – penso eu – tratar-se de um problema, mas não tanto, pois FHC fez o mesmo em 1998. Prometeu estabilidade e, logo após tomar posse, houve fuga de capitais, crise cambial e elevação da selic a 44,95%, em março de 1999.
    O tucano colheu alta taxa de rejeição em todo o seu segundo mandato e perdeu a eleição de 2002. Como havia uma força política que se consolidava como nova organizadora do sistema – o PT – a institucionalidade não foi abalada.
    Ou seja, a agremiação de Lula começava a cumprir o papel de novo vetor de ordenamento político, em torno do qual as disputas se articulavam. Papel análogo foi cumprido pelo PMDB na segunda metade dos anos 1980 e pelo PSDB na década seguinte.
    Nas eleições de 2014, o quadro era outro.

    Um ano e meio antes, o Brasil fora convulsionado por espetaculares mobilizações. Sem compreender o mal estar social que se desenhava, as respostas oficiais foram insuficientes. Mas elas expressavam nas ruas um embate entre direita e esquerda, que viria à luz mais tarde.

    Em 2014, tivemos as mais disputadas e politizadas eleições presidenciais desde 1989, quando Lula e Fernando Collor terçaram armas em rede nacional. Na refrega que levou Dilma Rousseff ao seu segundo mandato, o diferencial foi em cima da independência do Banco Central, do comportamento da grande mídia e do repúdio ao ajuste e à perda de direitos. Algo raro em termos mundiais! Com um fator adicional: o enfrentamento se deu sem que houvesse um novo vetor organizador à vista. Para todos os efeitos, o PT seguiria cumprindo tal papel.

    LOGRO ELEITORAL

    A história a seguir é conhecida. Três dias após o fechamento das urnas, o BC eleva a taxa de juros – contrariando o discurso desenvolvimentista de campanha – vários personagens ligados à direita foram indicados para o ministério, medidas drásticas foram anunciadas na Economia e a popularidade da mandatária desabou logo nos primeiros meses. O eleitorado sentiu que havia sido logrado. Sentiu na conta de luz, no preço da gasolina, no aumento do desemprego e na queda da renda. E sequer recebeu explicação plausível para tão surpreendente guinada.
    O estelionato equivaleu a um torpedo disparado contra o principal pilar da democracia: a legitimidade do voto. O eleitor escolhe a partir de uma expectativa, lastreada em pregação dos candidatos. Quando se rompe a conexão entre voto e ação concreta, qual o valor das eleições? A ação petista desqualificou não apenas sua gestão, mas a própria prática democrática. E erodiu balizas de funcionamento da institucionalidade. Se a escolha popular nada vale, pode tudo, vale tudo.

    O AVANÇO DA DIREITA

    Ao voltar-se contra as bases sociais históricas do PT e perder seu apoio, Dilma aos poucos passou a ser uma presidente de rarefeita legitimidade popular. Ali pela metade de 2015, podia-se perguntar “Afinal, quem a presidente representa?”.
    As respostas são desencontradas. A tábua de salvação passou a ser alegar os 54,5 milhões de votos. Mas o número atesta uma situação específica do dia 27 de outubro de 2014. Garante a legalidade do mandato, mas não expressa um processo de perda objetiva de apoio.
    É justamente esse ponto, o da perda de apoios, que abre espaço para a direita.
    As forças conservadoras não mudaram. Seguem elitistas, excludentes e antidemocráticas como sempre foram. Mas ficaram contidas por mais de uma década diante da altíssima legitimidade dos ex-presidente Lula (2003-20010) e de Dima Rousseff em seu governo inicial (2011-2014). Isso garantiu que um pacto de convivência, estabelecido em 2002, fosse mantido.
    Ao perceber que o muro de contenção, materializado por sua representatividade social, fora implodido pela própria mandatária e que a prática democrática fora enfraquecida, a direita avançou em toda a linha, seja no Congresso, seja na mídia e nas ruas.

    DESCONFIÁVEL

    Dilma aplica o programa da direita, mas não é totalmente confiável à direita. Ela pode entregar o pré-sal, formular a Lei Antiterrorismo, sancionar a lei da mordaça contra a esquerda nas eleições, pode privatizar, financeirizar etc., mas não basta.
    Dois problemas apareceram.
    O primeiro é a profundidade da crise. Com o fim do superciclo das commodities, não há mais excedente a ser distribuído. Acabou o ganha-ganha para ricos e pobres e é necessário preservar os interesses dos de cima. Isso está sendo feito via recessão e desemprego. Sendo mais claro, acabou o pacto estabelecido em 2002, entre o PT e as classes dominantes. ACarta aos Brasileiros, em síntese dizia: podem governar, desde que não toquem em nada do que é essencial. Assim, preservou-se a política econômica de FHC, não se mexeu na Lei de Anistia, nos monopólios da mídia, na propriedade da terra e os ganhos do topo da pirâmide social ficaram intocados. O segundo é que agora, para concretizar tais ganhos, é essencial reprimir os de baixo. E isso, até agora, o governo Dilma não fez, até mesmo pelas ligações históricas do PT com o movimento popular.
    Numa situação de agudização da luta de classes, enfrentar esses setores é imprescindível. É urgente seguir o exemplo dos estados de São Paulo, Paraná e Goiás – governados pelo PSDB -, onde um Estado de exceção informal já vigora.

    O GOLPE

    É nesse quadro que aparece o atalho do impeachment para dar o golpe que não ousa dizer o nome. É bulindo com juízes carreiristas, instrumentalizando a Polícia Federal – diante da omissão governamental – e usando à larga os meios de comunicação (financiados e prestigiados pela administração federal) que se chega ao resultado de 367 a 137 na Câmara.
    O golpe não veio de fora da coalizão governamental, mas de seu interior. Não foi um embate clássico situação versusoposição, mas a expressão clara do esgotamento do pacto. Não foi um golpe em uma noite de verão. Foi meticulosamente construído pelos dois lados. A noite de 17 de abril de 2016 entrará para a História como uma infâmia. O rebotalho da política esganiçou-se ao microfone para agradecer à Deus, à família (e à propriedade, poderíamos dizer) e chancelou um tapetão institucional na democracia brasileira. O problema desta não é o fato de ser jovem e tenra. É o fato de ser uma democracia de classe, num país de abissais diferenças sociais. Por isso ela é instável.

    REBELIÃO E DESOBEDIÊNCIA

    Resta aos democratas a denúncia, a rebelião, a desobediência civil e a luta. E a necessidade premente de se reconstituir não apenas a esquerda, mas um novo vetor progressista. A grande novidade foi a constatação de que existe uma esquerda de massas viva e pujante. Talvez as frentes surgidas nessa guerra – A Povo Sem Medo e a Brasil Popular – sejam embriões de um novo polo organizativo. Não nos iludamos: o governo Temer terá imensas dificuldades para se estabilizar. A crise é profunda. Mesmo usando o discurso da “herança maldita”, brandido pelo PT há mais de uma década, sem melhorar minimamente a vida do povo, sua já escassa legitimidade irá pelo ralo.
    Enfim, é hora de lamber feridas.
    Mas é urgente examinar os erros e insuficiências desse período. Só assim será possível andar para a frente e não suar numa esteira, na qual tem-se até a ilusão de correr sem sair do lugar.

    * Professor de Relações Internacionais na UFABC e ex-candidato do PSOL ao governo de São Paulo, em 2014

  • Guilherme Boulos e as saídas à esquerda

    Guilherme Boulos e as saídas à esquerda

    “Nós não devemos ter a menor dúvida de que o que está em curso no país é um golpe”, enfatizou Guilherme Boulos em sua fala ocorrida na última sexta-feira, dia 15, no “Encontro pela Democracia e por mais direitos” promovido pela Fundação Lauro Campos com o apoio do Núcleo de Direitos Humanos, do Centro Acadêmico Florestan Fernandes e do Centro Acadêmico do Borba, todos da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

    Para o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), é necessário se ater ao que ele chamou de o “pacote do golpe”. O projeto do Michel Temer, denominado de “Ponte para o Futuro”, é o projeto que sequer o neoliberalismo de FHC teve a ousadia de propor, “é o pacote das contrarreformas estruturais da burguesia brasileira que representa uma política de terra arrasada no país”. Em pauta, as reformas trabalhistas, entendidas como o estímulo às terceirizações, o ataque ao décimo terceiro, à licença maternidade, às férias; assim como a busca pela desindexação do aumento do salário mínimo e o esfacelamento do sistema previdenciário.

    Para Boulos, Michel Temer seria o ator político ideal que poderia implementar esse pacote de reformas, já que ele “não foi eleito por ninguém e não vai pretender reeleição para ninguém. Ele não precisa prestar contas para a sociedade brasileira: ele vai precisar prestar contas para o Congresso Nacional de ratos, que significa fazer uma boa distribuição de cargos, e prestar contas para o empresariado e para a burguesia financeira do Brasil, que é quem está sustentando com sua mão invisível o golpismo”.

    boulos

    Continuando, apontou qual é o desafio para a esquerda que o atual cenário coloca: “é preciso identificar que há o esgotamento de um ciclo, há algo que chegou ao seu limite. Não há mais espaço para pacto conservador nesse sistema. A polarização da sociedade brasileira não é algo passageiro, e não é passageiro porque se esgotou um ciclo econômico, que é o ciclo do ganha-ganha, o ciclo da conciliação, que trouxe ganhos para os setores mais pobres deste país, é verdade, mas sem enfrentar um único privilégio da burguesia brasileira”. Boulos identificou também que há o esgotamento do sistema político brasileiro: “se há algo de progressivo na Operação Lava Jato, no meio de tanta arbitrariedade e abuso, é que ela demonstrou aquilo que a esquerda brasileira diz há 30 anos: que este sistema político é refém dos negócios privados, comandado por uma lógica de financiamento de campanha que faz com que o Estado brasileiro sirva aos mesmos donos, independentemente de quem ganha”.

    Sobre as saídas possíveis para esse cenário, são duas: “a saída à direita para o esgotamento do sistema político é este processo de impeachment e o ‘neoparlamentarismo’ que já falam por aí. A saída à direita para o esgotamento da política do ganha-ganha é a austeridade e a retirada dos direitos sociais”.

    Já saída à esquerda, defendida por ele, “é propor uma inversão do ajuste fiscal, é retomar a pauta das nossas reformas estruturais, é colocar o tema tributário, é colocar o tema da dívida pública. É trazer esse debate de forma viva. Porque se a gente ficar a vida inteira dizendo que não tem correlação de força para fazer, a gente nunca vai construir a correlação de força para fazer”.

    A saída à esquerda para o esgotamento do sistema político brasileiro é radicalizar a democracia: “vamos falar de uma democracia que não seja controlada pelo poder econômico. Vamos falar de uma democracia que tenha participação popular efetiva nas decisões não só de quatro em quatro anos no voto, que tenha instrumentos de participação popular que assegure a participação das mulheres, que assegure a participação dos negros. Falemos de uma democracia que não seja uma democracia racista que extermina a juventude negra, que não seja uma democracia machista que impede o direito das mulheres sobre seu corpo, que não seja uma democracia homofóbica que bloqueia o direito à diversidade sexual, vamos falar de democracia de verdade”.

    “Eles estão passando uma ideia que o governo Temer é um governo de pacificação nacional, baseados na ideia de que terão maioria parlamentar. Nós temos que furar isso: pode ter governabilidade no parlamento, mas não terá governabilidade nas ruas”, encerrou Guilherme Boulos.

  • Chico Alencar: “Na política brasileira, está em jogo, acima de tudo, repactuação do poder e estancamento da Lava Jato”

    Chico Alencar: “Na política brasileira, está em jogo, acima de tudo, repactuação do poder e estancamento da Lava Jato”

    “Acima de tudo, a crise é do modelo político e econômico brasileiro e, nesse momento conjuntural, se traduz em mera luta pelo poder. Mas na verdade o que está em questão é o Modelo Liberal Periférico. Tem-se o cenário de inflação, desemprego, desinvestimento e, consequentemente, queda de arrecadação dos entes federados e da própria União. É o ponto central. Se estivéssemos no cenário econômico de dois anos atrás não haveria possibilidade alguma de prosperar qualquer pedido de impeachment”, analisou.

    Na entrevista, realizada enquanto o deputado transitava no plenário da câmara em meio ao que chamou de “festival de cinismo”, Chico Alencar lamenta o grau de rebaixamento atingido pela política brasileira e afirma que acima de tudo está em jogo uma repactuação do poder, que visa inclusive estancar a Operação Lava Jato.

    “O Brasil é o país das transições intransitivas. O governo é péssimo, fazemos oposição, mas quem quer tirar a Dilma e por o Temer quer aplicar aquele velho princípio de mudar pra continuar como está. E inclusive quer obstaculizar a Lava Jato. Querem impor, eles mesmos, um novo programa de ataque aos direitos dos trabalhadores, desvinculação de receitas da União na Educação e Saúde etc.”, resumiu.

    A entrevista completa com o deputado federal Chico Alencar pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Como avalia a crise política que sacode o Brasil e mantém o governo Dilma na paralisia? Qual a complexidade de todo esse quadro, numa visão de perspectiva também histórica?

    Chico Alencar: Acima de tudo, a crise é do modelo político e econômico brasileiro e, nesse momento conjuntural, se traduz em mera luta pelo poder. Mas na verdade o que está em questão é o Modelo Liberal Periférico, dependente, que prioriza os ganhos do capital financeiro. Daí os valores estratosféricos da dívida pública, daí a própria Dilma vetar a auditoria da dívida, daí a queda dos preços das commodities no mercado internacional afetar tanto nossa dinâmica interna.

    Assim, tem-se o cenário de inflação, desemprego, desinvestimento e, consequentemente, queda de arrecadação dos entes federados e da própria União. É o ponto central. Ninguém tem dúvida de que se estivéssemos no cenário econômico de dois anos atrás não haveria possibilidade alguma de prosperar qualquer pedido de impeachment.

    Por outro lado, nosso padrão político com o atual Congresso, que se recusa a reformá-lo (tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado), é o mais rebaixado possível. Ele é voltado ao toma lá dá cá, aos interesses fisiológicos. O presidencialismo de coalizão obriga o presidente a negociar com esse Congresso pra ter maioria; há uma grande crise das lideranças, que não lideram e, salvo raras exceções, os partidos são todos fragmentados. Os partidos são mais escritórios de negócios pra disputar nacos do orçamento público do que agremiação com proposta, doutrina, visão de mundo, projeto de Brasil.

    E no meio de tudo o poder do dinheiro avassala. A Lava Jato está desnudando tudo, o que é muito positivo. Apesar das inequívocas arbitrariedades do Sérgio Moro, é uma operação preciosa porque está colocando a nu o padrão e o modelo de financiamento da política no Brasil, que é corrupto e corruptor.

    O imediato é a disputa pelo poder. O PMBD, que sempre participou de todos os governos, agora quer o governo por inteiro, para depois recompor o novo pacto das elites. Trata-se de um rearranjo. Setores econômicos mais poderosos, inclusive vinculados aos governos Lula e Dilma, agora pulam fora porque tal governo não lhes é mais funcional. E a Dilma tem dificuldade de articulação política, o que se soma à conjuntura de crise econômica, com seus elementos internacionais. Assim, todos aqueles que estiveram aliados aos negócios, Fiesp à frente, e participaram do neo-desenvolvimentismo que Lula e Dilma implementaram, agora abandonam o governo. Inclusive o BNDES foi o grande agente financiador de muitas obras dessas empreiteiras, no Brasil e no exterior.

    Agora, ao lado de setores expressivos da grande mídia, estão todos “contra” e fazem uma poderosa articulação para colocar o Michel Temer lá. Mas nem de longe o PMDB é solução; é parte do mesmo problema.

    Correio da Cidadania: O que pensa do processo de impeachment da presidente e o que comenta da comissão de impeachment, com mais de 30 parlamentares também investigados no comando dos trabalhos?

    Chico Alencar: Dos 65 deputados da comissão, 38 são investigados. Por ações judiciais diversas, nem todos são processados por corrupção, diga-se. Mas um detalhe: o que vejo, agora mesmo aqui dentro do plenário, é um festival de cinismo. Tem notório corrupto indignado com a corrupção; tem legalista de primeira hora aprovando burlas à lei e à Constituição; tem gente que apoiou a ditadura, passou a ser democrata radical e acha que democracia radical é tirar a Dilma… O rito do impeachment de fato tem abrigo constitucional, mas é muita hipocrisia, haja estômago.

    E o Brasil é o país das transições intransitivas. O governo é péssimo, fazemos oposição, mas quem quer tirar a Dilma e por o Temer quer aplicar aquele velho princípio de mudar pra continuar como está. E inclusive quer obstaculizar a Lava Jato. Acham que já “cumpriu” sua função, de colocar o carimbo de corrupção no PT (não sem razão), tirar a Dilma e dizer “chega”, porque depois o normal seria pegar tucanos, mais gente do PMDB etc.

    A investigação não pode parar e tem de ir fundo, mas o pacto de rearranjo do poder implica também na contenção da Operação Lava Jato. Aliás, aquele procurador suspeito de ser contra o PT – Carlos Fernando dos Santos Lima – falou com todas as letras, em evento público em São Paulo, que se deve reconhecer que o PT, tão incriminando nas investigações, permitiu ao Ministério Público e à Polícia Federal agirem com mais autonomia, o que não ocorria há anos – palavras dele. E tem de ser assim, quem errou, quem se lambuzou, tem de pagar.

    Correio da Cidadania: Como analisa a suposta saída do PMDB do governo e a postura do vice Michel Temer, dentro da dinâmica “rompe-não-rompe”, ministros que não entregam os cargos etc.?

    Chico Alencar: É o PMDB. Por excelência o partido do poder no Brasil. O projeto nacional do PMDB é estar no governo. Sempre. Portanto, tem muita dificuldade em sair do poder. Quando declara formalmente que vai sair faz esse papel patético. É assim desde que acabou a ditadura e em toda a Nova República. Com exceção do Henrique Eduardo Alves, não saiu ainda.

    Fica, de um lado, um acordão em torno do Temer, para uma nova configuração do poder, e de outro lado, o varejão que o governo faz pra sobreviver, oferecendo cargos a pequenos políticos e mantendo aqueles do próprio PMDB que não quiserem se desligar do governo.

    Claro, de novo estamos falando do padrão atual da política. Mudar de governo não quer dizer mudar o sistema e tudo aquilo que gera tantos problemas ao Brasil de hoje.

    Correio da Cidadania: E o que pensa, nesse sentido, da repactuação de cargos e ministérios pretendida pelo governo em favor de partidos como PP e PR, caso os ministros do PMDB realmente entreguem seus cargos?

    Chico Alencar: É o rearranjo em parâmetros rebaixados. Não tem nada a ver com projeto ou programa. É puramente a tentativa de sobrevivência do governo, em situação crítica e necessitado de pelo menos 171 apoios no Congresso pra sobreviver ao impeachment.

    E mesmo que a Dilma sobreviva terá de repaginar o governo todo. Assim, espero que nós e a sociedade consigamos avançar numa reforma política profunda, numa reforma tributária que taxe os mais ricos, o patrimônio, as grandes fortunas. Aí mudaria tudo.

    Com Michel Temer, em vez de “Ponte Para o Futuro” (nome da agenda apresentada pelo partido), teremos uma Pinguela Para o Passado. Ataque aos direitos trabalhistas, prioridade do negociado sobre o legislado, retirada da indexação do salário mínimo ao crescimento do PIB… É o arrocho, a ortodoxia que Dilma tentou implantar ao lado do Levy durante 2015 inteiro. Foi aí que ela cometeu estelionato eleitoral em relação ao que disse na campanha. E o PSDB, ao se opor a tais medidas de arrocho e ajuste fiscal duro, também praticou estelionato eleitoral (risos).

    Querem impor, eles mesmos, um novo programa de ataque aos direitos dos trabalhadores, desvinculação de receitas da União na Educação e Saúde etc. Obviamente, vai inclinar forças ultraconservadoras, a ultradireita parlamentar, assanhadíssima com o impeachment, o que significará muito mais repressão e tensão social.

    O futuro não é nada promissor, qualquer seja a saída, embora nós do PSOL defendamos, em nome da democracia e não da Dilma, o cumprimento do seu mandato. Se teve caixa 2 e o TSE cancelar a chapa Dilma-Temer, tudo bem, é outro departamento. Mas o impeachment não tem sustentação política, jurídica ou orçamentária.

    Correio da Cidadania: Quanto à oposição conservadora, como enxerga, mais especificamente, sua atuação neste momento, dentro e fora do Congresso?

    Chico Alencar: Ela opera no passionalismo, na raiva, no ódio, mal escondendo sua reação às cotas, aos direitos das mulheres etc. Toda a pauta regressiva está subjacente. E vemos nas ruas e carros de som coisas muito reacionárias mesmo, com elementos de fascismo. Eu mesmo ouvi carros de som falando “vamos expulsar os socialistas e os comunistas do Brasil”, “vamos acabar com essa história de direitos homossexuais”, “vamos acabar com cotas pra botar negro na universidade”. São coisas que eu mesmo ouvi quando vieram protestar em frente ao Palácio.

    Correio da Cidadania: E o que dizer sobre Eduardo Cunha, ainda pontificando na política parlamentar, mesmo diante de denúncias bastante robustas de recebimento de propinas, contas na Suíça etc.?

    Chico Alencar: O Cunha na cadeira de presidente da Câmara é a nobre expressão do cinismo mais abjeto, das incongruências totais. Ele é réu, a cada dia surgem novas denúncias, como nessa própria quinta-feira. Ele tenta atrapalhar e obstruir ao máximo o Conselho de Ética, usa do cargo pra manipular tudo. E tem uma rede de cumplicidade com deputados, que devem alguma coisa pra ele, que é impressionante. Eduardo Cunha deslegitima as funções da Câmara dos Deputados, é uma coisa vergonhosa. Algo que chancela o chamado cretinismo parlamentar.

    O pior é que ele não reconhece nada, não fala nada, simplesmente se dá ao luxo de ignorar todas as críticas e denúncias pesadas. Quando subimos à tribuna falamos do “deputado-réu” e ele vira de costas, fica digitando no celular, fingindo que não é com ele… Eu nunca vi isso. Mas é claro que não tem o menor futuro. Pode até demorar, mas ele não tem o menor futuro como figura pública e já está indo para o lixo da história. No entanto, já fez um estrago.

    Correio da Cidadania: A Operação Lava Jato tem cheiro de pizza?

    Chico Alencar: Ela incomoda todo o sistema político, seja governo ou a oposição de direita, conservadora. O sonho de todos é que ela pare, deixe de avançar. Mas pode contribuir muito.

    Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, sexta-feira, 8 de abril de 2016

  • “A diabetes é uma desadaptação do ser humano à sociedade que criámos”

    “A diabetes é uma desadaptação do ser humano à sociedade que criámos”

    Em entrevista ao esquerda.net, José Manuel Boavida, diretor do programa nacional para a diabetes, salienta o papel da cidadania, destacando que em Portugal fundou-se a primeira associação de diabéticos do mundo, e aponta que a alimentação é uma “questão fundamental” e “está nas mãos de 4 ou 5 multinacionais”, “que modificam muitos dos nossos comportamentos”.

    Nesta entrevista ao esquerda.net, publicada no Dia Mundial da Diabetes – 14 de novembro – José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”. Em Portugal, “temos hoje mais de um milhão de pessoas com diabetes, entre os 20 e os 80 anos, e temos cerca de 30% de pessoas em risco de virem a ter diabetes”, refere. José Manuel Boavida fala também do papel da cidadania na prevenção e tratamento da doença e aborda a alimentação, como “uma questão fundamental que é pouco falada”.

    José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”
    José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”

    Qual é a situação atual da diabetes em Portugal, particularmente os efeitos dos últimos anos de austeridade?

    José Manuel Boavida: A diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém, não só no mundo dito mais desenvolvido mas também nos países em vias de desenvolvimento. Os países que hoje têm mais diabetes são os países como a China, a Índia, o Paquistão, o Egito, o Brasil, coisa que não era de maneira nenhuma expectável e a maior parte das pessoas, que não sabe, pensa ainda que são os EUA e os países que são normalmente apontados como os países da obesidade e da diabetes. Não é verdade.

    A diabetes é um problema de uma desadaptação do homem a esta sociedade que criámos. Obviamente que uma situação de crise agrava esses problemas. O acesso à alimentação torna-se um acesso a uma alimentação mais barata e, normalmente, mais hipercalórica e menos saudável. Todo o stress ligado às situações de desemprego, de afastamento, de isolamento social, são situações que são também criadoras de diabetes, diabetogénicas.

    E temos também uma sociedade que deixa de pensar as cidades do ponto de vista da mobilidade das pessoas, do desenvolvimento da atividade física. Afastámos o exercício, a atividade física, do trabalho, pelo próprio desenvolvimento da sociedade, e tudo isso condicionou estes três elementos: a alimentação, a atividade física e o stress são considerados hoje em dia os elementos fundamentais do desenvolvimento da diabetes.

    Mas, é evidente que isto se insere numa sociedade que é hoje o resultante dos mais capazes, que foram selecionados pela espécie, que são os sobreviventes. E, portanto, estes sobreviventes são pessoas muito resistentes e que estão preparados mais para as épocas de fome do que para as épocas de abundância e esta é a contradição e o grande problema do desenvolvimento da diabetes.

    A diabetes em Portugal. Neste momento os números, do ponto de vista de percentagens, são também agravados pela emigração da população jovem, pelo envelhecimento, e portanto, os números têm vindo a aumentar – aumentaram cerca de 2% nos últimos cinco anos, o que demonstra bem o impacto: temos hoje mais de um milhão de pessoas com diabetes, entre os 20 e os 80 anos, e temos cerca de 30% de pessoas em risco de virem a ter diabetes.

    Em primeiro lugar, é evidente que é preciso tratar as pessoas com diabetes, mas em segundo lugar, é preciso dirigirmo-nos àqueles que estão em risco de a vir a desenvolver, porque são esses que hoje podem atuar, corrigindo alguns destes problemas. Aqui também numa perspetiva de que a correção não é individual. Ou seja, se estamos à espera só de que os comportamentos individuais modifiquem as condições nunca iremos muito longe. Poderemos conseguir grandes vitórias isoladas, mas temos de ter uma visão social, porque a diabetes é claramente uma doença social, é uma doença da sociedade moderna e da desadaptação do homem a esta sociedade moderna.

    Para combater e para responder ao problema da diabetes qual é o papel da cidadania, tanto mais que nesta sexta-feira se comemora o Dia Mundial da Diabetes?

    José Manuel Boavida: Portugal tem aí um exemplo grande, que fundou a primeira associação de diabéticos do mundo. E essa associação foi criada numa altura em que se descobriu um medicamento que era caríssimo, que era inacessível às pessoas e houve um conjunto de pessoas que se juntaram e formaram a Associação Protetora dos Diabéticos e foi ela que dava a insulina, mas sempre numa perspetiva de autonomia, de integração social das pessoas, de devolução, que era o termo utilizado na altura, de devolução das pessoas com diabetes à sociedade. Ou seja, as pessoas vinham, aprendiam a tratar-se e a insulina era-lhes enviada pelo correio, que é uma forma absolutamente revolucionária de encarar a doença e de encarar a situação das pessoas. Há frases dos anos 20 [do século XX] absolutamente fantásticas como, por exemplo, do professor Pulido Valente, influenciado pelo doutor Ernesto Roma, que foi o fundador desta associação, em que diz que o papel do médico é menos tratar o doente do que ensiná-lo a tratar-se ele próprio. Isto dá bem a imagem de como a diabetes encara a cidadania e a participação ativa das pessoas no seu próprio tratamento. E, já desde esse processo se desenvolveram núcleos de apoio à associação pelo país. Com a crise económica e com as guerras mundiais esses núcleos fecharam, mas nos anos 80 começaram a surgir novos núcleos associativos pelo país.

    Hoje há mais de cinquenta associações de pessoas com diabetes pelo país fora que, normalmente, comemoram este dia mundial com organizações que vão desde colocar os edifícios camarários a azul, monumentos a azul, palestras, encontros, marchas, convívios, discussão sobre os seus próprios problemas e as suas dificuldades.

    Este movimento associativo teve um grande impulso no tempo da Maria de Belém como ministra da Saúde, em que se reivindicou o acesso aos materiais de autocontrole. Ou seja, serem as próprias pessoas a poderem determinar os seus valores de açúcar e assim adaptarem a alimentação, o exercício físico e a medicação consoante os valores que têm. Esse processo reivindicativo correspondeu depois a uma manifestação na Assembleia da República, que foi vitoriosa e criou um fôlego que hoje se transforma no que são hoje as comemorações do Dia Mundial.

    Este ano o Dia Mundial da Diabetes foi preparado por um grande encontro que decorreu no Estoril que são os fóruns da diabetes. Esses fóruns da diabetes – já vamos no oitavo ano consecutivo – reúnem associações de todo o mundo. A Marisa Matias já esteve em três destes fóruns e tem estado associada a este processo. Este ano, o embaixador da diabetes foi o Ricardo Araújo Pereira, que conseguiu, com o seu humor, transmitir também muita força, que é necessária para a situação atual, para que, além do viver com a doença, as pessoas sejam capazes de encarar com coragem, com força, com determinação, e encontrar as saídas necessárias para uma sociedade melhor e mais humana.

    Por fim, gostava que falasses sobre a ligação da diabetes com a alimentação e com o modo como comemos hoje.

    José Manuel Boavida: A questão da alimentação é uma questão fundamental que é muito pouco falada. Hoje, a alimentação está nas mãos de 4 ou 5 multinacionais, com forças absolutamente incríveis e que modificam muitos dos nossos comportamentos.

    Há o primeiro lóbi que é o lóbi dos cereais, que transformou todo o movimento dos pequenos almoços: se nos recordarmos do que era o pequeno almoço há 20 anos e agora a panóplia que existe de produtos para o pequeno almoço, que estão cheios de sal, que estão cheios de açúcar, e que são dados às crianças como modo absolutamente saudável e rico do ponto de vista alimentar com minerais, com ferro, com isto e com aquilo – tudo publicidade enganosa. Não quer dizer que não sejam produtos bons, mas são produtos manufaturados, com imensos produtos aditivos, que não sabemos a sua influência porque nunca foram estudados.

    Nos últimos 20 anos foram introduzidos na alimentação mais de 4.000 produtos, que na sua grande maioria são estudados pelo efeito sobre o cancro, mas que não são estudados pelo efeito sobre a obesidade ou sobre a diabetes ou sobre as hormonas e muitos deles terão aqui um papel bastante importante.

    O segundo grande lóbi é o lóbi da carne e temos Portugal como um bom exemplo do que é a cultura intensiva da vaca, que ocupa espaços agrícolas em grande terreno e uma cultura da carne de vaca que era uma coisa que também não existia há 30 anos – a vaca era introduzida na alimentação em pequenas quantidades.

    Depois existe enfim toda a panóplia dos refrigerantes. Hoje, infelizmente, não entramos em casas de pessoas, muitas vezes com mais dificuldades, onde o refrigerante não seja considerado algo que apesar de tudo lhes dá algum prazer. O problema é que esse prazer está ligado claramente à obesidade, à diabetes e portanto às doenças do coração, em geral. Poderíamos continuar por aqui e percebermos que há uma transformação da própria alimentação. Os alimentos são cada vez mais calóricos. O aumento de preço dos produtos como os refrigerantes é praticamente nulo, nos últimos dez quinze anos, enquanto o aumento do preço dos vegetais, da fruta, dos produtos mais complexos é exponencial.

    Em Portugal, por exemplo, um dos alimentos que mais tem desaparecido nos últimos anos é as leguminosas, é o feijão, o grão, ervilhas e favas que foram os alimentos que sempre constituíram a base da alimentação ao longo de anos no mundo e tem vindo a reduzir-se drasticamente.

    Obviamente que depois temos outro problema que tem a ver com a alimentação: o dia a dia e a falta de tempo. Hoje, por exemplo, as pessoas preferem os fritos que são muito mais rápidos do que os cozidos. Antigamente, estava a panela ao lume, todo o dia, ia preparando a comida em lume brando, ia cozendo devagar e agora queremos isso em cinco minutos, porque as pessoas não têm tempo. Ou então, comermos com ajuda do micro-ondas, nada melhor que pré-feitos e aí vem outro lóbi que é o da indústria dos alimentos pré-fabricados, que é só aquecer e comer e a que vemos a juventude recorrer.

    Já não vou falar da fast-food, que é mais do que falada, mas toda a compreensão de como esta sociedade se desenvolve de uma forma anárquica, virada unicamente para o lucro, e sem consideração nenhuma nem pela espécie humana nem pela saúde das populações é claramente marcante.

    É neste sentido que é fácil o caminho da culpabilização das pessoas. As pessoas são gordas porque comem demais… as pessoas são gordas porque têm uma genética de resistência à fome e da sobrevivência que lhes faz com que absorvam bem os alimentos e que se lhes dão alimentos que não são bons obviamente se tornam gordas.

    É preciso enquadrar bem esta questão da alimentação. É um debate para o qual penso que todos os movimentos se devem aproximar, devem aprofundar, porque é complexo e tem forças enormes por detrás dela que é necessário enquadrar. A publicidade é um dos aspetos menores disso. Mas não é por acaso que entre as notícias dos canais televisivos, nos noticiários da noite, aparecem anúncios de chocolates para crianças, que é influência sobre os pais e sobre os avós. Esta subtileza de todos estes lóbis é extremamente pouco subtil, mas infelizmente extremamente eficaz e, portanto, temos que encontrar formas de a combater decididamente.

    Entrevista realizada por Carlos Santos e Nino Alves para esquerda.net

    Fonte: Esquerda.Net, 14 de novembro, 2014

  • O pacificador

    O pacificador

    Lula discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e pela democracia em São Paulo no dia 18 de março de 2016
    Lula discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e pela democracia em São Paulo no dia 18 de março de 2016

    A convite da professora Natalia Brizuela, participei há cerca de duas semanas do lançamento do dossiê especial da revista Film Quarterly (vol. 69, no. 3) dedicado ao legado do cineasta Eduardo Coutinho. O evento ocorreu no intervalo da apresentação de dois documentários de Coutinho, Boca de Lixo (1993) e Peões (2004), no prédio recém-inaugurado do Berkeley Art Museum and Pacific Film Archive (BAMPFA). Natália pediu-me pra introduzir o filme Peões ao público presente no mais novo museu da Universidade da Califórnia em Berkeley. Rapidamente, fiz alguns comentários sobre o método etnográfico “radical” de Coutinho e sua habilidade de condensar os dilemas da visão social de mundo dos subalternos em entrevistas traspassadas por um profundo sentido de dignidade humana.

    Além disso, busquei contextualizar historicamente o tema de Peões, isto é, o filme que, rodado em 2002, ano da eleição de Lula da Silva, Coutinho dedicou à trajetória da classe operária fordista do ABCD paulista. Observei como o documentarista foi hábil em restituir a agência histórica aos próprios trabalhadores. Afinal, tendo em vista o sucesso de Lula da Silva e da burocracia sindical de São Bernardo, muitas vezes não nos lembramos que foi aquela classe operária semiqualificada retratada nas telas por meio de algumas trajetórias individuais exemplares a verdadeira protagonista do ciclo das greves de 1978, 1979 e 1980. Os peões explicam o ativismo de Lula da Silva, mas Lula da Silva não consegue explicar o ativismo dos peões.

    Lembrei ao público que após o golpe de 1964, a ditadura civil-militar interveio nos sindicatos, perseguindo as lideranças comunistas do ABCD paulista e substituindo-as por antigos pelegos diversas vezes batidos nas eleições sindicais e usualmente alinhados aos setores conservadores da igreja católica. Paulo Vidal foi o mais bem-sucedido desses pelegos. Conhecido por entregar militantes de esquerda pra polícia e ameaçar quem falasse em greve, Vidal foi o predecessor de Lula da Silva na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O “sindicalismo autêntico”, como ficou conhecida essa corrente sindical, nada mais era do que uma tentativa extemporânea de negociar com as multinacionais da região pequenas concessões materiais ao estilo do business unionism estadunidense (sindicalismo de negócios) no qual a nova burocracia de São Bernardo espelhava-se.

    Batendo de cara com o total desinteresse das empresas em negociar com os trabalhadores, afinal, o golpe de 1964 serviu exatamente pra barrar as concessões materiais ao operariado conquistadas pelas greves do período populista, e pressionados pelo aumento da mobilização das suas próprias bases, a escolha de Lula da Silva como sucessor de Paulo Vidal em 1976 marcou o momento da renovação das velhas práticas pelegas de controle da insatisfação operária pela burocracia sindical. Diante da inevitabilidade da greve, Lula da Silva soube se reinventar politicamente, passando de instrumento do assistencialismo sindical à principal liderança de um movimento operário intempestivo e, até certo ponto, imprevisível.

    No entanto, o documentário de Coutinho mostra uma dimensão ainda mais sutil dessa história. Na realidade, o filme captou a relação dialética entre a insatisfação, os desejos e as iniciativas políticas dos peões, verdadeiros sujeitos de sua própria história, e a tentativa de controlar esta agência empreendida por Lula da Silva. Recorrendo a outros filmes da época, em especial, o já clássico Linha de Montagem (1982) de Renato Tapajós, Coutinho revelou por meio de detalhes – o choro, a ansiedade, a chantagem emocional e o pedido do voto de confiança –, o nascimento de uma liderança política ainda desconfiada de sua própria força. Ao mesmo, tempo, o cineasta mostrou como nesses instantes de fragilidade de Lula da Silva, os dilemas dos próprios operários em seu “fazer-se” história condensavam-se e encontravam um sentido mais ou menos consciente.

    Sabemos que daí surgiu um líder cuja legitimidade deriva do controle da insatisfação popular por meio de negociações que lentamente garantem pequenas concessões aos trabalhadores. Uma força social reformista a afiançar o armistício entre a autonomia dos subalternos e a presunção dos dominantes. Quando isso não é possível, sua utilidade tende a declinar até o ponto em que o estabelecimento de um novo pacto volte a ser uma opção crível. No mundo do trabalho, o colapso do armistício entre as classes geralmente vem sob a forma de uma onda grevista.

    De fato, de acordo com os últimos dados do Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG-Dieese), os trabalhadores brasileiros protagonizaram em 2013 uma onda grevista inédita na história do país, somando 2.050 greves. Isto significou em crescimento de 134% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 877 greves. Este número superou o ano de 1990, configurando um novo recorde na série histórica do SAG-Dieese. Em termos de horas paradas, tivemos 111.342 horas paradas, em 2013, representando um crescimento de 28% em relação ao ano anterior. Trata-se do maior número desde o ano de 1990, quando foram registradas 117.027 horas paradas.

    Assim, o país superou o declínio grevista das últimas duas décadas e o movimento sindical readquiriu certo protagonismo político. Em várias capitais, as greves bancárias tornaram-se rotineiras. Além disso, professores, funcionários públicos, metalúrgicos, operários da construção civil, motoristas e cobradores reconciliaram-se com a mobilização sindical entre 2013 e 2015. Um notável protagonismo da esfera privada tornou-se saliente, consolidando a tendência iniciada em 2012. Proporcionalmente, as greves da esfera privada representaram 54% do total, superando as greves da esfera pública.

    No tocante às greves ocorridas na esfera privada, por exemplo, a maior parte das greves defensivas (46%) esteve diretamente associada ao descumprimento de direitos sociais e trabalhistas por parte dos empregadores. Em comparação com o ano de 2012, nota-se um importante aumento (21,6%) na proporção do número de greves relacionadas ao pagamento de salários atrasados, um indício claro da deterioração das condições gerais de reprodução do regime de acumulação. Com um crescimento de 332% em relação a 2012, em apoio à tendência identificada acima, vale destacar a verdadeira explosão de greves ocorrida no domínio que acantona com mais frequência os grupos de trabalhadores não qualificados ou semiqualificados, terceirizados, sub-remunerados, submetidos a contratos precários de trabalho e mais distantes de certos direitos trabalhistas, isto é, o setor de serviços privados.

    Além de oito greves nacionais realizadas pelos trabalhadores bancários, nota-se, também, um particular ativismo existente entre os trabalhadores em turismo, limpeza, saúde privada, segurança, educação e comunicação. No entanto, a maioria das greves foi deflagrada por trabalhadores dos transportes. Além disso, é possível notar uma tendência semelhante quando observamos os trabalhadores do serviço público. Tanto em termos de administração direta quanto em relação às empresas estatais, o aumento mais expressivo das greves deu-se nos municípios.

    Nesse sentido, a atividade sindical ampliou-se para categorias diferentes daquelas já tradicionalmente mobilizadas. Aqui também a atividade grevista avançou na direção dos grupos de trabalhadores mais precarizados do Estado. Em termos gerais, considerando tanto a esfera privada quanto a pública, é possível identificar uma expansão do movimento do centro para a periferia em uma espécie de transbordamento grevista. Além da presença cada vez mais saliente das reivindicações defensivas nas pautas sindicais, este avanço das greves para a periferia dos diferentes setores econômicos revela uma forte aproximação do precariado urbano em relação à mobilização sindical.

    Diante do atual ciclo de greves, desconfio que, entre as incontáveis explicações para a atual crise política, a mais subestimada talvez seja essa: as classes dominantes simplesmente não precisam de uma burocracia sindical incapaz de controlar suas próprias bases. Sobretudo, no momento em que o único projeto realmente crível para os dominantes consiste em restaurar a acumulação capitalista aprofundando a espoliação social por meio do ataque aos direitos dos trabalhadores. Em suma, aos olhos dos dominantes, Lula da Silva tornou-se uma liderança embaraçosa, passível de ser encarcerada por uma razão qualquer, justificável ou não.

    Mas o que a burguesia brasileira parece ter subestimado na atual crise é exatamente aquilo que Eduardo Coutinho revelou tão bem em seu filme: os dilemas do “fazer-se” história dos subalternos condensam-se num significante ambivalente. E no último dia 18 de março, Lula da Silva ressurgiu à frente de uma multidão formada por 100 mil pessoas em plena Avenida Paulista. Diante de um golpe legislativo-midiático-judiciário em curso contra sua afilhada política, ele relembrou um país dividido e conflagrado qual seu papel histórico: ser o grande pacificador da luta de classes. Será suficiente para barrar o golpe? Aposto que não. Afinal, na atual crise orgânica brasileira, soluções mediadas perderam seu lugar. O cimento ideológico da redução da pobreza não é mais eficiente diante do quadro de aumento do desemprego e aprofundamento das desigualdades entre as classes. De fato, estamos diante do retorno ruidoso da luta de classes no país.

    No entanto, tendo em vista a atual volatilidade política, Lula da Silva soube entregar sua mensagem ao país. Dentro ou fora da prisão, se o golpe da direita avançar, ele irá liderar a resistência legalista. E se as classes dominantes decidirem improvisar uma solução negociada, novamente, será ele a afiançar o pacto conservador. Apoiando-se na mobilização dos trabalhadores organizados, sobretudo, Lula da Silva é transforma-se em uma força política incontornável. E o que quer que aconteça nos próximos meses no país, será ele – e não Sérgio Moro – que estará no centro do palco pronto a se reinventar politicamente, tal como ocorreu em 1978 em São Bernardo.

    * * *

    PARA APROFUNDAR A REFLEXÃO… 5 DICAS DE LEITURA DA BOITEMPO
    A legalização da classe operária, de Bernard Edelman, uma análise didática e aprofundada sobre como a institucionalidade jurídica burguesa enquadra e cerceia a luta popular procurando domesticar ferramentas como as greves e as representações trabalhistas em sindicatos, e partidos.
    A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, o estudo desbravador de Ruy Braga que analisa as novas configurações da luta de classes no Brasil de hoje e indicava já em 2012 como a despeito da relativa “satisfação” acusada pelas eleições presidenciais e da aparente estabilidade do modo de regulação proporcionada pelo “transformismo” petista, a hegemonia lulista encontrava-se assentada em um terreno historicamente movediço.
    Hegemonia às avessas: Economia, política e cultura na era da servidão financeira, organizado por Ruy Braga, Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, volume clássico do Cenedic sobre a forma avessa de dominação que configura a era lulista, inspirado em uma releitura de Gramsci e no artigo homônimo de Chico de Oliveira. Vem aí, em 2016, o novo volume do Cenedic sobre o Brasil atual Desigual e combinado: capitalismo e Modernização Periférica no Brasil do Século XXI, coletânea organizada por André Singer e Isabel Loureiro com reflexões de Ruy Braga, Maria Elisa Cevasco,Wolfgang Leo Maar, Cibele Rizek, Ana Amélia da Silva entre outros.
    De que lado você está, de Guilherme Boulos, é um livro de intervenção de leitura obrigatória para pensar (e transformar) o Brasil de hoje, com reflexões de fôlego sobre a conjuntura nacional recente que mostra a zona cinza em que a disputa polarizada se encontra.
    Revista Margem Esquerda #22, com homenagem a Eduardo Coutinho, escrita por Felipe Bragança, além de dossiê especial dedicado aos 50 anos do Golpe.

    * * *

    Ruy Braga

    Ruy Braga

    Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

    Fonte: Blog da Boitempo, 28/03/2016

  • ‘Governo arruinou a Petrobras; Brasil já perdeu janela aberta pelo Pré-Sal pra se alavancar’

    ‘Governo arruinou a Petrobras; Brasil já perdeu janela aberta pelo Pré-Sal pra se alavancar’

    PetrobrasO Brasil continua paralisado em meio à briga de clãs que disputam o poder central. Um show de retóricas, seja à esquerda ou à direita do espectro político, na defesa de pontos de vista cujas grandes diferenças jamais ficam claras. A questão do petróleo e em especial do Pré-Sal não escapa à lógica, mas será que os projetos governistas e oposicionistas sobre sua exploração econômica são tão diferentes? Foi sobre isso que conversamos com o cientista político e consultor em economia Pergentino Mendes de Almeida.

    “Tivemos uma janela de, teoricamente, usar o Pré-Sal para alavancar (desculpem o palavrão!) este país e lançá-lo para uma posição firme, independente, com indústria própria, agricultura robusta e diminuição da desigualdade social. Teria de ter sido um empreendimento iniciado rapidamente, com união nacional, entusiasmo e exaltação da confiança pública no país. Não foi”, criticou Pergentino. Mediante as atuais circunstâncias do país e também da Petrobras, o consultor considera apropriado o PLS 131 do senador tucano José Serra, que basicamente significa acelerar a venda do petróleo, mesmo em meio à baixa de seu preço.

    A seguir, o entrevistado deixa claro que considera o gerenciamento dessa riqueza uma repetição da lógica colonial, a exemplo da era açucareira do Nordeste, e que no fim das contas tudo dependerá de como se resolverão as contendas do momento. “Precisamos desenvolver a tecnologia adequada, e isso a Petrobrás pode fazer: ela tem engenheiros competentes e capazes. Mas aí entra a política. Onde está o dinheiro? E mais: seria possível desenvolver tecnologias inovadoras num ramo isolado como o petróleo, sem uma política industrial e megaeconômica, diversificada, de longo prazo? Corremos o risco, se fôssemos nos basear na economia do petróleo e do Pré-Sal apenas, de termos de pagar para produzir e exportar petróleo”.

    Pergentino considera ainda ilusória a promessa de financiamento da educação a partir da renda do pré-sal. “As coisas ficam mais bonitinhas de se olhar, mas o contingenciamento de verbas e a margem para pagamento dos juros aos bancos e para a manutenção das nossas reservas cambiais são esquecidos. E é precisamente aí que estão as prioridades escolhidas pelo governo brasileiro. Ou melhor, pela banca internacional, já que são eles que mandam aqui. O Brasil vem depois, colhe as sobras, que sempre são poucas para as necessidades. O dinheiro do Pré-Sal, se houvesse, vai sumir nesse sorvedouro. A prioridade são os juros bancários. Afinal, isto é o Capitalismo Financeiro”.

    A entrevista completa com Pergentino Mendes de Almeida pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como enxerga a aprovação no Senado do PLS 131, de iniciativa de José Serra, que visa desobrigar a participação de ao menos 30% da Petrobrás em todos os consórcios de blocos do Pré-Sal?

    Pergentino Mendes de Almeida: Se é para se explorarem as reservas do Pré-Sal, a justificativa apresentada pelo Senador José Serra ao seu PLS 131 parece-me oportuna. Por que deixar essa riqueza enterrada? Não faz sentido, o Capital vai nos asfixiar em CO2 se puder. O PL 131 é a última chance de conseguir alguma vantagem para o Brasil. Quero deixar claro logo de início que tenho pontos de vistas mais ou menos divergentes dos que norteiam o centro, a direita e a nossa pseudo-esquerda, populista e fascistóide. Para simplificar: a pergunta é de simples resposta, se vale a pena aproveitar recursos que temos (claro que sim!), mas a resposta contém detalhes onde reside o diabo.

    Tivemos uma janela de, teoricamente, usar o Pré-Sal para alavancar (desculpem o palavrão!) este país e lançá-lo para uma posição firme, independente, com indústria própria, agricultura robusta e diminuição da desigualdade social. Teria de ter sido um empreendimento iniciado rapidamente, com união nacional, entusiasmo e exaltação da confiança pública no país. Não foi. O resto do mundo está trabalhando para a implantação inevitável de tecnologias alternativas mais sofisticadas, a fim de reduzir as emissões de CO2, com a inevitável e paulatina perda da importância do petróleo. Agora está ficando tarde, temo.

    É hora de recuperarmos a Economia e a Petrobras para que esta tenha capacidade de atuar com eficácia. O problema é que eles podem ir adiante, antes de resolvermos os problemas legais da regulamentação do Pré-Sal e de recebermos as sondas e plataformas encomendadas e por encomendar. No mundo todo, para todos os países, os atrasos na entrega desses equipamentos são normais, de cinco a oito anos, às vezes mais de dez anos. O pré-sal, conforme as previsões iniciais, poderia constituir uma alavancagem para o desenvolvimento nacional e as finanças públicas. Mas a coisas me parecem mais complicadas do que vemos, hoje, a partir de nossa perspectiva míope.

    A era do petróleo atingiu seu pico. De hoje em diante, a longo prazo, tende a decair. Quando jovem, participei da campanha “O Petróleo é nosso”. Isso quer dizer monopólio da Petrobrás. Getúlio Vargas foi suicidado por causa disso e da Vale do Rio Doce. O que aconteceu desde então, em que pé estamos depois de vários mandatos de um partido que se diz de esquerda, mas que não passa de um populista a serviço da banca? A Petrobrás está arruinada. A Vale só deu lucro depois de entregue à iniciativa privada e o governo contribuiu para isso. O resgate do Pré-Sal exige mais dinheiro do que tem a Petrobrás e uma política macroeconômica mais bem azeitada, a longo prazo. A Petrobrás está arruinada. Ela publica que está “vendendo ativos para poder investir”. Para mim, isso quer dizer que ela está desinvestindo, em vez de investir.

    Mas o tema tem sido tratado de uma maneira tão ufanista que me faz duvidar do muito que se disse a respeito. A questão virou um tema político, no sentido mais rasteiro do termo, e isso me deixa meio cético com relação a todas as expectativas oficiais. O mais sensato diagnóstico a respeito, durante as discussões no Senado, enquanto os governadores e prefeitos se reuniam para pressionar a seu favor a distribuição e o adiantamento dos royalties, foi uma tirada do Lula: “a pescaria nem começou, mas a turma já tá brigando pelo pirão”.

    Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos favoráveis ao projeto, levando em conta o atual momento de baixa internacional dos preços do petróleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: O mercado é volátil, ele sobe e desce. Parece que a coisa tende a ficar inviável para nós. Eis uma situação que me deixa confuso: já li, em fontes diversas, citações (rumores?), de que o preço mínimo do barril de petróleo para viabilizar o Pré-Sal seria de 80 dólares (quando estava a 120), ou 60, ou 40 dólares, como agora. O preço do barril no mercado atingiu a casa dos 30 dólares. É previsível que haverá períodos de baixa (prejuízo) e alta (lucros), mas onde fica o nosso ponto de equilíbrio?

    Lembremo-nos de que estamos falando em águas profundas, mais profundas do que as empresas de petróleo estão habituadas a explorar, e a distâncias maiores da costa, maiores distâncias do que os poços do Caribe ou do Alaska, exemplos de catástrofes ambientais nas mãos de respeitabilíssimas megaempresas do ramo, Exxon e BP. Isso significa maiores custos, seguros muito mais caros, recursos provavelmente mais caros, em termos de equipamento e logística – e mais tempo.

    Precisamos desenvolver a tecnologia adequada, e isso a Petrobrás pode fazer: ela tem engenheiros competentes e capazes. Mas aí entra a política. Onde está o dinheiro? E mais: seria possível desenvolver tecnologias inovadoras num ramo isolado como o petróleo, sem uma política industrial e megaeconômica, diversificada, de longo prazo, adequada ao crescimento harmônico de toda a economia? O que os governos do PT fizeram até agora foi distribuir recursos públicos para os pobres comerem, e isso pode ser louvável; porém, o mais importante seria estimular a produção e o investimento – ou seja, o emprego e a diversificação e fortalecimento de nossa economia. Comida você come e descarrega o que sobrou dela. Emprego é um pouco melhor. Pelo menos você conta com algum rendimento do mês seguinte, depois de gastar o salário deste mês.

    O PT fez o contrário. Tornou o dólar atrativo para especular e comprar empresas nacionais, alienou nossa indústria e concedeu créditos e isenções fiscais aos bancos e à indústria automobilística, para facilitar a remessa de lucros destinados a aliviar os coitados dos países ricos, quando entraram em recessão. Estamos cada vez mais especializados em exportar commodities e destruir o meio ambiente. Enquanto isso, nossa indústria está se desmoronando. Caminhamos para a mesma situação do Brasil-Colônia, nos tempos da cana-de-açúcar do Nordeste.

    Naquela época, os brasileiros (brancos lusos) eram o povo mais rico da Terra em termos de patrimônio per capita. Os escravos e índios eram parte de seu ativo, não eram gente. Corremos o risco, a longo prazo, se fôssemos nos basear na economia do petróleo e do Pré-Sal apenas, de termos de pagar para produzir e exportar petróleo. O que, aliás, já ocorre quando vendemos gasolina abaixo do preço do mercado e do barril de petróleo bruto. A doença venezuelo-holandesa já começou antes da pescaria.

    Correio da Cidadania: E o que pensa dos argumentos que dizem se tratar de um crime contra o futuro do financiamento da educação, afirmando que se trata de uma perda de 25 bilhões de reais/ano?

    Pergentino Mendes de Almeida: Considerando tudo o que eu disse antes, você pode imaginar a importância que atribuo à Educação. Dez vezes mais do que hoje atribuímos à superior, dez vezes o valor da superior para o médio e dez vezes mais para o ensino básico. É uma pirâmide de carências proporcional à pirâmide de distribuição de renda. Diz-se que o rendimento do Pré-Sal seria destinado à Educação. Isso não me comove. O sistema das finanças públicas tem por valor absoluto a ideia de que todo o dinheiro do Estado fica unificado no Tesouro, afinal, é tudo dinheiro do governo. Juntando tudo num só cofre, nas mãos dos nossos políticos, eles vão falar de superávit primário, não do nominal.

    As coisas ficam mais bonitinhas de se olhar, mas o contingenciamento de verbas e a margem para pagamento dos juros aos bancos e para a manutenção das nossas reservas cambiais são esquecidos. E é precisamente aí, nos juros, nos interesses dos bancos e dos especuladores que estão as prioridades escolhidas pelo governo brasileiro. Ou melhor, pela banca internacional, já que são eles que mandam aqui. O Brasil vem depois, colhe as sobras, que sempre são poucas para as necessidades.

    Por que cada parcela do orçamento, reservada para uma finalidade social considerada importante, não compõe um fundo específico que deve gerar dividendos e prestar contas, por exemplo, aos trabalhadores, no caso do FGTS, às escolas e professores nos fundos para Educação e assim por diante? Eu sei que estou falando besteira, não sou economista nem contador, portanto, tenho o direito de dizê-las. Mas mesmo que eu tivesse, ou tenha razão, os políticos e os tecnocratas rejeitariam a proposta. O dinheiro do Pré-Sal, se houvesse, vai sumir nesse sorvedouro. A prioridade são os juros bancários. Afinal, isto é o Capitalismo Financeiro.

    Correio da Cidadania: A propósito, como enxerga a atual crise financeira da Petrobrás, permeada por casos de corrupção de grande monta em diversas diretorias e setores da empresa? Nesse sentido, a empresa teria perdido de fato a capacidade de exploração do petróleo, como, por exemplo, na própria camada do Pré-Sal, justificando um projeto como o do senador Serra?

    Pergentino Mendes de Almeida: Catastrófica. Há século e meio um ditado do bom senso nunca foi desmentido: o primeiro melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada; o segundo melhor negócio é uma empresa de petróleo mal administrada. Pois o PT conseguiu desmontar a nossa maior empresa e desmentir a sabedoria secular desse ditado. É uma proeza e tanto! É claro que, nesta altura dos acontecimentos, tanto faz. A situação até que justifica o PLS 131 do senador José Serra. A Petrobras precisa se recuperar e deixar de ser um peso morto na exploração do Pré-Sal, pois não tem substância financeira para arcar com 30% de todos os investimentos necessários.

    Além disso, ela tem, a meu ver, outras prioridades a atender. Como é que ela se pode propor, na sua propaganda institucional, a ser uma empresa de energia, quando não tem alcance para salvar sequer o petróleo que já tem e as refinarias que já comprou? De quais energias estamos falando? Eu acredito no corpo técnico da Petrobras, mas não na sua administração.

    Correio da Cidadania: Qual é a seu ver o sentido maior, hoje, de exploração do Pré-Sal, considerando a conjuntura atual nacional e também a internacional?

    Pergentino Mendes de Almeida: É ganhar uns trocados ou uma pequena fortuna – se tudo correr bem. Mas já sabemos que nem tudo está correndo bem para nós aqui e para o mundo em geral. E nem uma pequena fortuna, com as atuais políticas, iria melhorar as condições sociais do povo brasileiro. Poderia valer a pena se tudo tivesse sido planejado a longo prazo, dentro de um pensamento holístico, e começado há uns dez anos. Agora passou a janela. Mais uma vez.

    A Era do Petróleo e da produção abundante de CO2 para gerar energia chegou ao pico e tende a retrair-se. Não acho que a extração de petróleo vai acabar de vez, ele ainda será necessário para as indústrias de corantes, plásticos, cosméticos, perfumaria e medicamentos. Mas deverá ser suplantada por um conjunto de fontes alternativas de energia para transporte, iluminação, comunicações etc. Quem não ficou rico com o petróleo até agora não fica mais, principalmente com a complexidade e custos crescentes da tecnologia necessária. Uma coisa é certa e aceita, ainda que entre quatro paredes, pelas empresas exploradoras do petróleo: o futuro exige a redução de emissões de CO2 , custe o que custar. E ponto. O que elas podem fazer é ganhar um tempinho.

    As grandes multinacionais do petróleo sabem disso e preparam-se para uma nova fase de geração de energia. A Shell, os Emirados, a Arábia Saudita investem pesado em pesquisa de fontes alternativas. Talvez a Shell seja a organização com resultados mais avançados – no nível experimental. Ok, suponha então que você é a Shell e dispõe do conhecimento e da tecnologia necessários para mudar tudo. Agora pense: por que lançar uma inovação tecnológica neste momento, solução que está pronta e segura na sua prateleira (onde entram as leis de patentes, a batalha crítica na ONU e OMC!), quando ela irá desmantelar todo o seu sistema altamente lucrativo, que funciona de modo eficiente há mais de um século? Por que desperdiçar a rede de distribuição, caminhões-tanque, torres de petróleo, tanques de armazenamento, gasodutos, contratos com distribuidores e fornecedores, valor da marca, além das relações com os produtores, que custaram guerras históricas e invasões para se consolidarem, enquanto todo esse aparato continua rendendo lucros?

    Note, o investimento feito desde o século 19 pela Shell, Exxon, BP e todas as outras já foi amortizado há muitas décadas, agora é só usufruir. Nenhum investidor é suicida (isto é, do ponto de vista da economia capitalista) para abandonar o jogo enquanto está ganhando.

    Ou seja, o Brasil não apenas deixou sua maior empresa ser engolida por interesses particulares, como ainda perde o bonde da inovação tecnológica em que a própria Petrobrás poderia ser líder.

    Agora surgem ameaças de cantos inesperados, que não faziam parte do jogo. Carros sem motorista, movidos a energia elétrica: o Modelo Google já funciona em algumas cidades nos Estados Unidos. A Ford negocia um acordo com o Google para eventual produção em massa. A GM se adiantou e acabou de lançar um modelo inteiramente elétrico, possante e com autonomia de 300 km com uma só carga elétrica. A Toyota já vende o seu híbrido elétrico no mercado. A Nissan começou agora.

    As novas gerações não estão mais dando o mesmo valor à posse de um reluzente carro como nós sempre demos. Por que não alugar um veículo elétrico apropriado à sua viagem, pagando só pelas horas de utilização, como você hoje faz com as bicicletas do Itaú? Na França e nos Estados Unidos (se não me engano, também no Japão) a experiência está em curso. E está dando certo.

    Por falar em energia atômica, ninguém sabe que os Estados Unidos estão desenvolvendo usinas atômicas de IV Geração, capazes de superar em custos, benefícios, eficiência, facilidade de instalação, mobilidade (sim, mobilidade!) tudo o que chamamos hoje de usinas nucleares. De acordo com um depoimento do Departamento de Energia ao Senado norte-americano, o que se procura é criar um sistema tal que torne obsoletas todas as demais formas de obtenção de energia por meio de uma nova tecnologia nuclear avançada.

    Essa nova tecnologia oferece a segurança que as atuais usinas não oferecem, são menores e fáceis de transportar e montar, e produzirão energia mais barata in loco. Mas serão de domínio norte-americano. O objetivo declarado nesse depoimento é transformar os Estados Unidos num monopólio mundial de energia. Isso introduz uma outra variável geopolítica importante: a esfera jurídica e a tendência à globalização, com poucas, enormes e diversificadas corporações ditando suas políticas internacionais em todas as áreas de atividade, na indústria, no comércio, nos serviços, nas políticas nacionais subordinadas a elas.

    Daqui a vinte, trinta anos, o mundo não será o mesmo. Que fique claro: quase todas as alternativas de geração de energia mencionadas acima têm seus problemas, inclusive ambientais, mas estes são solucionáveis pela tecnologia. Juntas, darão conta do recado. Existe um potencial nelas que não é abertamente reconhecido. Alguns cientistas acreditam que a energia eólica, a solar e a das marés poderiam eventualmente satisfazer, conjuntamente, todas as necessidades globais de energia. Nem todos concordam, mas o ponto que quero salientar é que nesse campo existem mais coisas entre o céu e a terra do que as grandes corporações deixam entrever.

    O ponto a salientar é que pouco provavelmente uma só delas venha a substituir o petróleo ou o gás natural, próximo protagonista de nossa história. O que podemos esperar é a adoção de um mix de tecnologias de produção de energia, do qual o petróleo ainda participará, em proporções decrescentes. A única “surpresa” que pode salvar o planeta em um cenário diferente é a invenção de uma tecnologia que permita controlar a fusão nuclear. Pode acontecer amanhã, na semana que vem ou daqui a dez anos, ou nunca. Mas existem investimentos não desprezíveis tentando descobrir a fonte praticamente infinita e limpa de energia.

    Em qualquer caso, o problema de transmissão tornar-se-á numa questão estratégica de repercussões mundiais. Acho que aqui também deverá ocorrer uma verdadeira revolução tecnológica. Compondo esse problema logístico já existe um outro ainda pior. O volume de CO2 na atmosfera hoje já é suficiente para gerar enormes desafios e perigos futuros. Não há mais como evitá-los. Agora é tarde. Teremos de desenvolver sistemas viáveis de sequestro e captura de carbono do ar.

    Correio da Cidadania: O que pensa, nesse sentido, dos argumentos mais radicados no ambientalismo, que condenam de lado a lado as fórmulas propostas para a extração do óleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: Não os conheço todos, mas não vejo como estancar, neste século, a extração de petróleo. Quero dizer, na prática.

    Correio da Cidadania: E o que comenta sobre os argumentos de corte geopolítico que condenam o projeto?

    Pergentino Mendes de Almeida: Também não os conheço bem. Não sei que alternativas são propostas. Mas qualquer alternativa deverá ser realista: vivemos no mundo da especulação do capitalismo financeiro, que é uma espécie de “socialismo” a favor do capital. Nenhum país rico, nenhuma economia evoluída na Europa, América, Ásia, foi capaz de desenvolver o seu sistema capitalista sem forte e constante apoio dos governos. Isso vale para todas as potências ditas liberais, inclusive os Estados Unidos. O que desejo salientar é que o problema é muito mais complexo sob todos os ângulos: geopolítico, econômico, financeiro, técnico etc. Não se pode buscar uma resposta simples.

    Acredito que o problema reside exatamente aí: há uma falta de visão de conjunto a longo prazo, para beneficio de toda a sociedade e para a modernização, diversificação e ampliação de nossa indústria, que, infelizmente, está sendo sucateada e vendida ao capital estrangeiro. Não é à toa que nem se menciona mais o termo clássico da Economia, “Produto Nacional Bruto”; fala-se em “Produto Interno Bruto”. As vendas de Volkswagen no Brasil contam como nosso produto interno, mas são produto nacional da Alemanha. A Toyota do Brasil é um ativo do Japão, não do Brasil, e daí por diante.

    Correio da Cidadania: Qual deveria ser, em sua visão, a relação do Brasil e seus governos com essa riqueza finita? Qual seria o modelo ideal de gestão do petróleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: Primeiro, quero dizer que não considero, na prática, o petróleo uma riqueza finita. Sempre que aumenta o preço do barril de petróleo, o volume das reservas mundiais certificadas aumenta também. Estão sempre um pouco acima da curva de consumo. O que vai limitar a indústria do petróleo é a necessidade de reduzir o volume de CO2 na atmosfera, além do fato de que as fontes alternativas de energia em desenvolvimento hoje podem ser mais eficientes do que o petróleo.

    A vantagem do petróleo é que ele sempre foi barato; antes da crise dos anos 1970, da organização da OPEP, o preço do barril variava pouco acima de um dólar – o mesmo barril que hoje está perto dos 30 dólares e que deveria subir para 100 dólares a fim de compensar o Pré-Sal e várias outras fontes alternativas de energia. Por outro lado, considere que estamos falando numa economia fortemente sustentada. Mas estamos falando de uma economia sobre quatro rodas, com motor a explosão, movido a combustível fóssil. Isso é uma tecnologia relativamente rudimentar. Um motor a combustão interna com gasolina utiliza pouco mais de 10%, 15% da energia contida na gasolina queimada. O que significa que quase 80% do consumo de gasolina é um subproduto indesejável: calor (que precisa ser arrefecido no radiador) e poluição. No futuro isso deve mudar contra o petróleo, como aconteceu com as fontes de energia, ainda existentes, mas já superadas: a lenha e depois o carvão.

    Quanto a um modelo ideal de gestão do petróleo, não podemos considerá-lo isoladamente de todo o resto que mencionei aqui. Temos de pensar a longo prazo. Um século é pouco para planejarmos e as incertezas são inúmeras. O Brasil deveria explorar todos os seus recursos para gerar uma economia autônoma e diversificada. Deveria usar tudo o que tem para incrementar a indústria de base, a indústria pesada, os portos, as estradas, os estaleiros, o saneamento, a criação de empregos úteis. E isso num tempo em que tudo é robotizado e a mão de obra participa cada vez menos do produto gerado.

    Temos de gerar empregos e adotar métodos modernos de produção, o que parece contraditório. Alguns países conseguiram isso. Ou melhor, praticamente todos os países ditos desenvolvidos passaram por esse teste, mas só conseguiram superá-lo pela presença ativa do Estado. É o que chamo de “socialismo” a favor do Capital, principalmente o financeiro. Como fazê-lo de modo decente é o nosso problema. O Pré-Sal pode ajudar ou não (espero que sim).

    Meu ideal seria o governo investir pesadamente na criação de polos de excelência onde ainda podem existir bolsões de oportunidade para atender as necessidades do futuro, que serão diferentes das da nossa história. Seria necessário concatenar e concentrar nossos recursos, esses sim, finitos demais, para investir no aproveitamento de oportunidades que arrastassem consigo os setores industrial, agrícola, comercial. Ainda que, a exemplo dos países liberais, tivéssemos de passar por um período protecionista – digamos, para que não me apedrejem, protecionista “contido”, racional, consentido e planejado. Mas não para beneficiar os amigos do Rei.

    Correio da Cidadania: Considera que ao tentar acelerar a venda do petróleo o Brasil também perde no sentido de se preparar para promover e financiar outras formas de geração de energia, limpas e renováveis?

    Pergentino Mendes de Almeida: Acho que sim, e essa é a arapuca em que costumamos sempre cair. Foi assim no tempo do Brasil-Colônia, com o açúcar; e depois o café e o algodão, até o Juscelino fatiar o que o Getúlio havia preparado, para entregar ao capital estrangeiro. Quem sabe é exatamente nessa área, a das energias limpas e renováveis, que reside uma dessas oportunidades de darmos um salto para a frente – que os norte-americanos chamariam de “leapfrog”. Temos de ser ambiciosos e acreditar, é necessária uma revolução cultural aqui, no bom sentido.

    Tome a energia eólica. O Norte e o Nordeste do Brasil estão na faixa mundial das monções – ou seja, uma energia constante, inesgotável e infalível, enquanto o planeta girar. Podemos exportar energia para outros continentes, como se considera hoje um projeto de exploração da energia solar do Saara para o Norte da África e toda a bacia das nações mediterrâneas e centrais da Europa. E o Sol, que castiga o nosso sertão? E as possíveis oportunidades tecnológicas que podem ser criadas a partir daí?

    Hoje exportamos doutores para as grandes universidades mundiais, que podem se dar ao luxo de escolher os melhores para retê-los, em benefício dos seus países. Depois nos vendem suas conquistas. E a Educação? E a Saúde? Os desafios são enormes, na proporção do nosso atraso, mas não custariam mais do que nos custam a inércia histórica, a burocracia, a dívida nacional subordinada ao Capital Financeiro e a corrupção, combinadas.

    Correio da Cidadania: O que a aprovação do PLS 131 significa frente ao atual momento político, econômico, social e ambiental do país, de modo mais geral?

    Pergentino Mendes de Almeida: Não sei. Depende do que se pode fazer com ele. Seria muito mais proveitoso, como sugeri acima, numa gestão eficiente a longo prazo, que tivesse atuado com agilidade há dez anos. Mas isso não aconteceu e não vejo qual a eficiência com que podemos contar dos nossos políticos e governo atuais. Se der uns trocados, como mencionei acima, nas mãos de quem ficariam e para quê? A bola de cristal agora precisa ser sintonizada na política, assim rasteira, e na Política, com P maiúsculo.

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 30/03/2016

  • Castelo de cartas marcadas

    Castelo de cartas marcadas

    House_of_CardsA série House of Cards, da Netflix, é comentada por políticos e jornalistas como exemplo do tipo de política que a democracia burguesa pratica. Não com essas palavras, é claro. Mas soubemos por informantes da Casa Branca que Obama é fã da ficção televisiva. Na semana passada, o senador Aécio Neves comentou que a série é superada pela realidade brasileira, o que indica que ele também a assiste. Metade do planeta por via da Smarth TV pode acessar a história de Frank Underwood, o carreirista que chega à presidência dos EUA usando todos os tipos de expediente.

    House of Cards é uma adaptação do romance homônimo escrito pelo inglês Michael Dobbs, inspirado em Shakespeare. O bardo já nos havia prevenido que o poder é adquirido após uma luta que corrompe os oponentes até o imprevisível.

    Mas como diversão e mesmo reflexão vale a pena assistir a Kevin Spacey derrubando seus antagonistas por todos os meios, inclusive o assassinato. Ele é um MacBeth… Um Nixon… Ainda não tivemos alguém desse nível no Brasil… Felizmente…

    Flávio Braga é escritor

  • Dia Internacional da Mulher

    Dia Internacional da Mulher

    Mulheres reivindicando seus direitos
    Mulheres reivindicando seus direitos

    Em 1975, a assembleia geral da ONU declarou oficialmente o 8 de março Dia Internacional da Mulher.  A origem da data não está muito clara e existem várias versões. A mais verossímil é que foi o 8 de março de 1857, quando um grupo de trabalhadoras têxteis decidiu sair às ruas de Nova Iorque para protestar contra as míseras condições em que trabalhavam. Essa seria uma das primeiras manifestações de luta por seus direitos laborais. Distintos movimentos e eventos se sucederam a partir dessa data.

    Um dos eventos mais destacados ocorreu em 25 de março de 1911, quando se incendiou a fábrica de camisas Shirtwaist, em Nova Iorque. 123 mulheres e 23 homens morreram. A maioria era de jovens imigrantes com idades entre 14 e 23 anos. Foi o desastre industrial mais mortífero da história da cidade e motivou a introdução de novas normas de segurança e de saúde do trabalho nos EEUU.

    A data sempre esteve ligada a movimentos de esquerda em defesa da igualdade de gênero e da emancipação feminina.

    Em 28 de fevereiro de 1909, Nova Iorque e Chicago realizaram atos pelo ‘Dia da Mulher’, organizados por destacadas mulheres socialistas como Corinne Brown e Gertrude Breslau-Hunt.

    Na Europa, foi em 1910, na II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, celebrada em Copenhague com a participação de mais de 100 mulheres de 17 países, que se decidiu proclamar o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. A proposta dessa iniciativa partiu de defensoras dos direitos das mulheres como Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo. Não se marcou uma dia determinado, mas um mês: março.

    Como consequência desse encontro feminista de Copenhague, no mês de março de 1911 se celebrou por primeira vez o Dia da Mulher na Alemanha, na Áustria, na Dinamarca e na Suíça. Organizaram-se comícios nos quais as mulheres reivindicaram o direito de votar, de ocupar cargos públicos, de ter acesso ao trabalho e à formação profissional, de receber salário igual ao do homem pelo mesmo serviço e de não sofrer discriminação no emprego. Coincidindo com a primeira guerra mundial, a data ensejou protestos em toda a Europa contra a deflagração bélica, assumindo conotações pacifistas.

    A celebração foi-se ampliando progressivamente a mais países. A Rússia adotou o Dia da Mulher após a Revolução Socialista de 1917. Seguiram-lhe muitos outros países. Na China, o dia se comemora desde 1922; em Cuba, desde 1931. O ato cubano foi no Centro Operário, em Havana, organizado pela Central Nacional Operária de Cuba e pela Federação Operária de Havana. Na Espanha, foi celebrado pela primeira vez em 1936, sob a República espanhola em armas contra o ditador Franco.

    A inglesa Emily Wilding Davison (1872-1913), que se atirou à frente do cavalo do rei no célebre Derby de 1913, foi a primeira mártir do movimento sufragista, que conquistou, com a aprovação do Representation of the People Act de 1918, o voto feminino no Reino Unido, tornando o sufrágio universal.

    Fruto das lutas do movimento feminista (dito sufragista), o voto feminino no Brasil foi reconhecido plenamente no Código Eleitoral de 1932, embora ainda persistisse uma distinção de gênero: enquanto o voto do homem era obrigatório, o da mulher era facultativo. Mas a conquista do sufrágio universal no Brasil só se completou com a promulgação da Constituição de 1988, que, ao lado do voto obrigatório para os maiores de 18 anos e do voto facultativo para os maiores de 16 anos, estendeu o direito de voto (facultativo) aos analfabetos.

    Todavia, foi só em 1975, que a ONU instituiu o 8 de março como Dia Internacional da Mulher, com um objetivo, que hoje em dia continua vigente: lutar em prol da igualdade, da justiça, da paz e do desenvolvimento. “O Dia Internacional da Mulher se refere às mulheres comuns como artífices da história e se enraíza na luta plurissecular da mulher para participar na sociedade em pé de igualdade com o homem”, recorda a ONU.

  • A busca de sentido

    A busca de sentido

    filho_de_SaulOs horrores dos campos de concentração nazistas colocaram o século XX ao lado da Inquisição na Idade Média e aterrorizam e envergonham a humanidade até hoje. Alguns momentos do cinema buscaram retratar a sordidez humana desses centros de extermínio, mas nenhum deles chegou perto de O filho de Saul, de  László Nemes, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.  Mas o que torna essa obra tão poderosa? Entendo que há uma evolução na linguagem cinematográfica presente neste filme. É a narrativa na primeira pessoa. Toda a cena se dá com o protagonista em PP (primeiro plano). O espectador está sempre junto a ele, vivendo o seu terrível drama. O quadro fechado nos permite ver apenas trechos de imagens dramáticas, partes de corpos amputadas, incêndios, assassinatos… Se a opção tivesse sido o PA (plano Americano) o filme seria inviável para o público médio. A trilha sonora é muito importante num filme assim. Ouvimos os gritos, as vozes desesperadas, o choro das crianças, os disparos e montamos com a nossa imaginação os horrores que não visualizamos.

    Praticamente não há diálogos no filme, apenas troca de palavras quase sem sentido, ordens, gritos. O protagonista, que trabalha ajudando a se desfazerem dos cadáveres é também um prisioneiro condenado. Ele faz isso sabendo que será morto nos próximos meses. Seus colegas planejam um levante, mas ele imagina ter encontrado o corpo do próprio filho e busca um Rabino que o ajude na cerimônia de enterro. Mas isso não é permitido. Os cadáveres são incinerados. Ele esconde o corpo do menino e continua nessa busca insana. Fica para o espectador a dúvida se, de fato, o garoto era seu filho ou sua determinação é apenas em busca de um sentido diante do absurdo real.

    Flávio Braga é escritor