“A crise da educação no Brasil não é uma crise: é um projeto”
Darcy Ribeiro
Foto de Alonzo Esteban
Não foi na última segunda-feira, com o vazamento do áudio da reunião realizada entre o chefe de gabinete da Secretaria Estadual de Educação, Fernando Padula, com dirigentes regionais do ensino público, que começou a guerra aos estudantes paulistas. Também seu final não será decretado com a queda do secretário de educação Hermann Voorwald, que na tarde desta sexta-feira, 4 de dezembro, deixou o cargo com o rabo entre as pernas. Muito antes da incursões policiais clandestinas nas escolas, da repressão brutal aos estudantes que fecharam ruas e da guerra informacional feita a partir de boatos de uma depredação que nunca existiu – existem sim, inúmeras provas contrárias ao boato, basta buscar na fonte – o Estado de guerra já havia chegado às escolas sob a forma do ensino precário, da falta de acesso ao patrimônio escolar, entre outros sintomas. Em uma expressão: abandono calculado.
Um dado curioso do movimento secundarista talvez remonte à influência dos secundaristas chilenos de 2012. Se por um lado o protagonismo dos estudantes é valorizado, a ponto de expulsarem de ocupações até mesmo organizações de esquerda que por alguma razão tentaram tomar as rédeas da luta secundarista (e que provavelmente usarão as fotos das visitas em campanha), por outro lado há um enorme espaço aberto para a sociedade organizada participar da luta. O verbo é “somar” – não “dirigir”. Quem se recusa a entender isso, simplesmente não compreendeu nada do que houve nas ruas de São Paulo, e do Brasil, de 2013 para cá.
Essa espaço de abertura de participação está no princípio do movimento e foi o que tornou possível o entendimento da realidade das escolas por parte das redes de apoiadores, muitas vezes ausentes da escola há mais de dez anos. Professores de outras escolas, jornalistas, médicos, enfermeiros, socorristas, artistas, cozinheiros e toda sorte de gente que vê na luta dos secundaristas algo em que se apoiar para o futuro esteve nas centenas de escolas ocupadas ao longo das últimas semanas oferecendo oficinas, aulas públicas e rodas de conversa. Foi em um desses eventos que este Correio pôde estar mais próximo da realidade de uma das escolas ocupadas.
E.E. Maria José Ocupada
Na sexta-feira, 27 de novembro, a declaração de guerra não havia sido verbalizada nas redes, mas os estudantes já estavam em alerta. Ao chegar, por volta das 8h:30m na Escola Estadual Maria José, na rua Treze de Maio, centro de São Paulo, encontrei alunos sérios e cautelosos na porta, conversando entre si sobre as insistentes abordagens da Polícia Militar nos portões. “Estão vindo todo dia fazendo e um monte de perguntas, mas estamos preparados. Eles perguntam quantas pessoas tem aqui e nós só falamos que tem muitas, que tem bastante, mas não damos o número”, relataram.
A escola atualmente comporta três ciclos educacionais: infantil, primário e secundário. De acordo com a proposta de reorganização do Governo do Estado, os ensinos primário e secundário seriam fechados e seus alunos transferidos para outras unidades, deixando a escola apenas para o ensino infantil. “Não queremos sair daqui, gostamos muito desse lugar e queremos melhorá-lo, como já estamos fazendo”, comentou um aluno do terceiro ano durante a roda de conversa sobre mídia e ativismo.
A aluna Lilith Cristina, do primeiro ano do ensino médio, levou a reportagem do Correio da Cidadania para uma caminhada pela escola, e foi explicando em linhas gerais o que vêm acontecendo há anos por trás dos muros. Atravessamos o refeitório que fica logo na entrada e subimos uma rampa para visitar as salas de aula. “O que incomoda são essas grades, parece que estamos na Fundação Casa”, lamentou. Foi a primeira frase que lhe ocorreu. Depois mostrou as infiltrações na parede, carteiras em estado lastimável e os ventiladores quebrados – praticamente feitos sucata, sem a mínima limpeza e manutenção, com fios desencapados, poeira e tudo o que anos de descaso dão direito.
Também cheio de pó estão os corredores e com as carteiras empilhadas. “Já era da rotina da escola antes da ocupação. Isso já estava assim, nós não mexemos. Inclusive eles começaram obras em algumas salas durante o período de aulas, tínhamos de prestar atenção na aula com um barulho de britadeira vindo do outro lado do corredor”, narrou.
No andar de baixo, a quadra está em reforma, sem aula de educação física há 6 meses. Como paliativo, a jovem estudante explica que abriram um espaço ao lado da quadra, antes tomado por carteiras e entulho, para que as crianças batessem bola e jogassem boliche ao visitar a ocupação, algo que a diretoria não tem medido esforços para impedir. “A sala de recursos foi reformada pela ocupação e ninguém sabia que ela existia. Eu trouxe muitos jogos de tabuleiro de casa para o pessoal passar o tempo e, principalmente para as crianças, mas aqui tem muito mais jogos do que os que eu trouxe e eles ficavam trancados. Se eu soubesse que eles existiam, não precisaria ter trazido os meus”, contou Lilith.
Mas o acesso negado à infraestrutura escolar não para por aí: “tem sala de informática, mas não podemos usar, não tem aula de informática para o ensino médio”. Também os instrumentos musicais, três violões e instrumentos de percussão sempre estiveram fora do alcance dos alunos, que sequer têm aulas de música e os descobriram após a ocupação.
Uma queixa frequente, tanto da moça que conversou conosco quanto de conversas aleatórias com outros alunos é de que os professores não apoiam a ocupação e a diretoria faz todos os esforços para boicotá-la. Uma das atividades que Lilith Cristina explicou que estava sendo desenvolvida pelos estudantes ocupados era a criação de uma espécie de creche na ocupação, não exatamente nessas palavras, onde as crianças do ensino infantil pudessem passar o dia e participar de atividades enquanto os pais trabalham.
“Nossa ideia é de até ajudar os pais e mostrar para eles que o que nós queremos aqui na escola é do interesse deles também, que a reorganização vai ser muito pior. Mas todos os dias, meia hora antes das crianças entrarem, o diretor fica na porta falando um monte de mentira sobre a ocupação, orientando mal os pais e alunos e nos impedindo de recebê-los aqui na escola por isso. Hoje faremos uma comissão especial para receber as crianças e pais”, contou.
Uma das acusações da diretoria é de que possa haver uso de substâncias ilícitas na ocupação, prática que a reportagem do Correio da Cidadania não presenciou, pelo contrário, diversos cartazes proibindo o uso de drogas foram espalhados pela escola.
A guerra
Declarada a guerra em reunião dominical pelo chefe de gabinete da secretaria de educação, já na segunda-feira os estudantes da E.E. Fernão Dias e outras da zona oeste ampliaram a tática. Ao invés de simplesmente ocuparem suas escolas, levaram as carteiras para a esquina das Avenidas Faria Lima e Rebouças e ocuparam a rua. Em resposta, houve um verdadeiro massacre da polícia militar sobre os estudantes secundaristas.
Paralelamente, pais e diretores contrários à ocupação contaram com o apoio da polícia para invadirem – sem mandato judicial – a E.E. Maria José. Depois de muitas “cenas lamentáveis”, os estudantes expulsaram os invasores e retomaram, dentro dos preceitos legais, a ocupação. Não só a “Ocupação Mazé”, como carinhosamente chamam os estudantes, mas houve a retomada em todas as outras escolas que sofreram o mesmo tipo de ataque. O preço dessas retomadas foram mais agressões a estudantes, ameaças, intimidações até mesmo à imprensa independente e a entrada de canais de televisão atrelados aos interesses daqueles que fecham escolas (e abrem prisões), que armaram a já obsoleta montagem do “vandalismo”.
Acontece que assim como em 2013, a PM acrescentou à mistura um ingrediente sangrento que se voltou contra aqueles que a ordena e sua mídia aliada. Novamente, a narrativa alternativa às versões oficiais e burocráticas reverteram o fluxo informacional, principalmente nas redes. Essa outra narrativa, vinda dos próprios estudantes e dos veículos de comunicação que se solidarizam com eles começou a ganhar a opinião pública. Afinal de contas, apesar de realidade, essa situação tem contornos de ficção, tão absurda que é.
Na terça, quarta e quinta-feira, mais estudantes ocuparam escolas, ruas, fizeram manifestações, barraram mais tentativas paramilitares de invasão das escolas ocupadas e colocaram a grande mídia de joelhos. Novamente vimos um certo apresentador da TV Bandeirantes se embananar ao vivo e matérias progressistas nos tabloides, ainda que alguns vídeos do canal de um desses tabloides na internet tenha sido reeditado, coincidentemente, no mesmo dia em que o governador visitou sua redação. A reação foi brutal. Prisões, balas de borracha, bombas, intimidação, força tática, choque, só faltaram os cavaleiros templários da ordem católica a qual pertence o governador, bem oposta à do Papa Francisco citado por ele no pronunciamento da tarde do dia 4.
Alckmin perdeu força. Sua incapacidade de dialogar sem apontar uma arma na cabeça da outra parte fez com que sua popularidade e aprovação caíssem, segundo estatística Datafolha. Também o Ministério Público e a Defensoria Pública, em conjunto, se colocaram no caminho e pediram, na última quinta-feira, a suspensão da reorganização em todo o estado, a legitimidade da permanência dos estudantes nas escolas e a apresentação de um calendário de debate para o ano de 2016 em torno do assunto. A Justiça deu ganho de causa, deixando um prazo de 72 horas para que a Fazenda do Estado se manifestasse.
O governador Geraldo Alckmin foi ele mesmo fazer o já citado pronunciamento, com a feições claramente cansadas e a derrota estampada no rosto. Puro teatro. Acatou as determinações da Justiça e adiou a reorganização para o ano que vem. Resta saber se o calendário de debates vai ser cumprido, se os estudantes serão respeitados enquanto ocupações e, principalmente, se todos os presos, feridos e agredidos durante essa semana de guerra imposta pelo Estado a um movimento de pessoas muito jovens serão devidamente indenizados e receberão pedidos públicos de desculpas dos seus agressores, mandantes e executores, públicos e privados.
Como bem resumiu o colega jornalista Carlos Eduardo Alves: “quem não é de São Paulo talvez não entenda o significado do que aconteceu aqui hoje. Então faz assim: imagine seu estado dominado pela mesma força política há, no mínimo, 20 anos. Nunca nenhuma categoria organizada, seja sindicato, partido político ou qualquer outra força conseguiu deter projetos dos sábios tecnocratas, impostos na base do ‘eu sei tudo o que é melhor para vocês’. Aí, sem que ninguém esperasse, meninas (muitas) e meninos de 14, 15 e 16 anos enfrentam revólveres na cara, bombas, ameaças de brucutus e fizeram um governador sair transfigurado, quase correndo, de um pronunciamento em que admite a derrota do fuzil contra o estilingue. Foi isso o que aconteceu em 4 de dezembro de 2015 em São Paulo”, declarou.
Enquanto isso, os estudantes permanecem nas ocupações. Segundo o seu próprio pronunciamento, feito às 19h30, horas depois da coletiva do governador, eles, organizados, decidiram manter as ocupações e estarão atentos aos movimentos institucionais. Foram enfáticos: “o recuo do governador é para nos desmobilizar”.
Rio de Janeiro, 30/11/2015 (Agência Brasil) – Nas últimas quatro décadas, a proporção de óbitos violentos no país, em relação ao total registrado, cresceu 3,8 pontos percentuais, passando de 6,4% em 1974 para 10,2%, em 2014. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados hoje (30), mostram ainda que a maioria (84,2%) das vítimas de mortes violentas é formada por homens, com idade entre 15 e 24 anos, e 16,8% são mulheres, na mesma faixa etária.
Apesar do aumento registrado no númerto total de óbitos violentos, a gerente da pesquisa Estatísticas do Registro Civil, Cristiane Moutinho, ressalta a “significativa” queda de mortes por causa violenta em alguns estados do país. “É preciso destacar que houve realmente uma variação muito grande por unidade da Federação, com reduções significativas em São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Rondônia, Roraima, Pernambuco e Acre, nesta faixa etária [de 15 a 24 anos]”.
Na outra ponta, a pesquisadora do IBGE destaca o Ceará como o estado onde houve maior aumento do percentual de mortes por causas violentas, principalmente na faixa etária entre 15 e 24 anos. “Quando você olha para o Ceará, por exemplo, o aumento de mortes por causas violentas nesta faixa etária chegou, na última década, a 224,4% na última década. Houve também aumento no número de mortes por causas violentas nos estados da Bahia, Maranhão, Alagoas, Rio Grande do Norte e Piauí, tanto entre as pessoas do sexo masculino quanto feminino”.
Os dados da pesquisa indicam, por exemplo, que a queda da mortalidade masculina por causas violentas no Rio de Janeiro chegou a cair 38,2 pontos percentuais, passando de 131,5, a cada 100 mil homens, para 93,3. Em São Paulo, o índice caiu 34,1 ponto percentual (de 125,7 para 91,6, a cada 100 mil homens). Já em Alagoas, o índice mais que dobrou ao subir 87,8 pontos (de 73 para 160,8, a cada 100 mil), enquanto no Ceará a variação foi 72,2 pontos, passando de 69,3 para 141,5 a cada 100 mil homens, nas últimas quatro décadas.
Com a publicação de hoje, a pesquisa Estatísticas do Registro Civil completa 40 anos desde o início da divulgação de informações sobre o tema no Brasil, em 1974, quando o Instituto assumiu os encargos de coletar, sistematizar e divulgar os dados remetidos pelos Oficiais dos Cartórios do Registro Civil de Pessoas Naturais.
Segundo o IBGE, essas informações são “de suma importância, já que esses eventos permitem construir Tábuas de Mortalidade que irão subsidiar as projeções populacionais por método demográfico”. O instituto lembra que nesses 40 anos, o país passou por mudanças profundas nas componentes da dinâmica demográfica, principalmente em relação aos níveis e padrões de fecundidade e de mortalidade, “influenciando significativamente a composição por sexo e idade da população brasileira”.
Rio de Janeiro, 30/11/2015 (Agência Brasil) – O Brasil registrou 1,1 milhão de casamentos entre cônjuges dos gêneros masculino e feminino em 2014. O dado faz parte da pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2014, divulgada hoje (30) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O número é 37,1% superior ao total de casamentos registrados em 1974, data da primeira pesquisa feita pelo IBGE. Na época, o país teve 818,9 mil casamentos registrados entre pessoas do sexo masculino e feminino. Já os casamentos entre cônjuges do mesmo sexo totalizaram 4.854.
Ao longo da série histórica da pesquisa (1974 a 2014), a idade média dos homens ao se casar passou de 27 para 30 anos, enquanto a das mulheres passou de 23 para 27 anos. Já nos casamentos homoafetivos, em 2014, a idade média observada foi de 34 anos tanto para homens quanto mulheres.
A pesquisa do IBGE indica que, entre 2013 e 2014, a variação no número de uniões civis foi 5,1%, o que, em termos absolutos, representou 53,9 mil casamentos a mais. A relação de uniões civis por mil habitantes de 15 anos ou mais de idade, ficou em 7,14 no ano passado, uma relação que se mantém estável desde 2006.
O levantamento indica que, nos últimos 40 anos de levantamento de registros de casamentos civis realizados no país – depois das altas taxas de nupcialidade legal observadas na década de 70, quando se registravam, em média, 13 casamentos por grupo de mil habitantes – há uma tendência de queda na taxa de nupcialidade desde a década de 80, quando este indicador passou a apresentar valores em torno de 11 casamentos por grupo de mil habitantes.
Na década de 1990, segundo o IBGE, ocorreu a redução mais acentuada da série, com a taxa passando de 7,96 por grupo de mil habitantes para algo próximo de 7 uniões civis por grupo de mil habitantes no fim do período.
Os registros de casamentos entre os cônjuges masculino e feminino ocorreram em maior número na Região Sudeste, onde foram contabilizados 533 mil casamentos, o equivalente a 48,4% do total do país, seguido das regiões Nordeste, com 23,5%; Sul, com 12,5%; Centro-Oeste, com 8,4%; e Norte, com 7,2%.
Já no que diz respeito às unidades da federação, São Paulo apresentou o maior percentual de registros de casamentos (55,4%) e, em proporções ligeiramente menores, o destaque ficou com o Paraná (46,6%), Goiás (46,5%) e Pará (40,6%). No outro extremo, as menores proporções foram constatadas no Amapá (2,6%), Roraima (3,2%) e Sergipe (3,4%).
Divórcio cresce mais de 160% em uma década
O número de divórcios no país cresceu mais de 160% na última década. Dados da pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2014, divulgados hoje (30) pelo IBGE, indicam que, no ano passado, foram homologados 341,1 mil divórcios, um salto significativo em relação a 2004, quando foram registrados 130,5 mil divórcios.
Os dados indicam que em 1984, primeiro ano da investigação, a pesquisa contabilizou 30,8 mil divórcios. Já em 1994, foram registradas 94,1 mil dissoluções de casamentos, representando um acréscimo de 205,1%. E, em 2004, o aumento foi percentualmente menor, 38,7%, com 130,5 mil divórcios.
Na avaliação do IBGE, a elevação sucessiva, ao longo dos anos, do número de divórcios concedidos revela “uma gradual mudança de comportamento da sociedade brasileira, que passou a aceitá-lo
com maior naturalidade e a acessar os serviços de Justiça de modo a formalizar as dissoluções dos casamentos”.
Nas últimas três décadas (de 1984 a 2014), o número de divórcios cresceu de 30,8 mil para 341,1 mil, com a taxa geral de divórcios passando de 0,44 por mil habitantes na faixa das pessoas com 20 anos ou mais de idade, em 1984, para 2,41 por mil habitantes em 2014. A maior incidência de divórcios deu-se no Distrito Federal (3,74 por grupo de mil) e a menor no Amapá (1,02).
A idade média das mulheres na data da sentença do divórcio, em 2014, era 40 anos, enquanto a dos homens era 44 anos. Apesar de persistir a predominância das mulheres na responsabilidade pela guarda dos filhos menores de idade a partir do divórcio (85,1%), em 2014, a pesquisa detectou um crescimento de 3,5% nos pedidos da guarda compartilhada, em 1984, para 7,5%, em 2014.
Número de uniões homoafetivas alcança 4.854 em 2014 e apresenta aumento de 31%
Dados da pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2014, divulgados hoje (30), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que foram realizados no ano passado 4.854 casamentos entre cônjuges do mesmo sexo, o que representa aumento de 31,2%.
Foram 1.153 uniões homoafetivas a mais que em 2013. No total, em 2014, os casamentos homoafetivos representaram 0,4% do total de casamentos efetuados no país. Os dados sobre casamentos entre pessoas do mesmo sexo vêm sendo levantados pelo IBGE há apenas dois anos.
Dentre os casamentos entre cônjuges do mesmo sexo, verificou-se que 50,3% eram entre cônjuges femininos e 49,7%, entre cônjuges masculinos.
O maior número de uniões homoafetivas deu-se na Região Sudeste, com 60,7% do total; seguida, em proporções bem menores, pelas regiões Sul (15,4%); Nordeste (13,6%); Centro-Oeste (6,9%); e Norte (3,4%).
Entre as unidades da Federação, de acordo com a distribuição percentual regional, São Paulo evidenciou a maior concentração percentual de uniões homoafetivas, registrando 69,6% do total da Região Sudeste, seguido de Santa Catarina, com 45,7%; Goiás registrou 39,0% das uniões homoafetivas da Região Centro-Oeste, seguido do Distrito Federal, com 38,7%. Na Região Norte, o maior número desse tipo de união foi registrado no Pará, com 34,7%.
O Brasil apresentou a meta de diminuir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025 e em 43% até 2030, tendo 2005 como ano-base. Para o secretário-executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl, no entanto, o país tem capacidade para fazer muito mais e o governo brasileiro terá oportunidade de melhorar sua contribuição contra o aquecimento global na 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP21), que começou hoje (30) e segue até o dia 11 de dezembro, em Paris.
A contribuição brasileira levada à COP, chamada Contribuição Nacionalmente Determinada Pretendida (INDC, na sigla em inglês), contém ainda ações como o fim do desmatamento ilegal na Amazônia, a restauração e reflorestamento de 12 milhões de hectares, a recuperação de 15 milhões de hectares de pastagens degradadas e o alcance de 45% na participação de energias renováveis na composição da matriz energética.
As contribuições apresentadas pelo Brasil e pelos países da convenção das Nações Unidas para a COP21 tem o objetivo de limitar o aumento da temperatura média da Terra a 2 graus Celsius (ºC) até 2100, em relação aos níveis pré-Revolução Industrial. Ultrapassar esse limite provocaria mudanças climáticas severas.
Segundo Rittl, é possível limitar as emissões brasileiras em 1 bilhão de toneladas de gases de efeito estufa até 2030, com ganhos econômicos. “O Brasil apresentou um meta de redução de emissões com uma direção interessante, uma natureza interessante, porque trata-se de uma meta que inclui redução absoluta de redução de gases de efeito estufa, mas o nível de redução de emissão insuficiente”, disse, contando que hoje o país emite em torno de 1,5 bilhão de toneladas de gases.
Em entrevista à Agência Brasil, ele diz que, com a atual meta brasileira “estamos em uma trajetória de aumento superior a 2ºC”. “Então, temos certeza que o governo brasileiro tem uma margem de manobra interessante para aumentar seu nível de ambição”, disse.
O Observatório é uma rede brasileira de articulação sobre mudanças climáticas globais e conta com 38 instituições, entre membros e observadores.
Agência Brasil: Qual sua avaliação sobre as contribuições dos principais atores na negociação climática?
Carlos Rittl: A análise da própria Nações Unidas indica que, mesmo com esses esforços, com essa mobilização, com esse engajamento dos países, nós ainda estaríamos, em 2030, em uma trajetória de aumento de emissões globais, em uma taxa menor do que ocorre hoje, mas em ascensão, o que é muito preocupante. Outro relatório produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente mostra que ainda existe uma grande lacuna entre aquilo que os países estão se comprometendo a fazer e aquela que seria uma trajetória de segurança climática, aquela que nos daria maiores chances de limitar o aquecimento global no limite de 2ºC. Outras análises mostram que, entre os grandes emissores, que inclui Estados Unidos, União Europeia, China, Índia, Brasil, África do Sul, México, Japão, Rússia, Canadá, nenhum deles está fazendo o suficiente, todos estão fazendo menos que o proporcional à sua responsabilidade e sua capacidade de redução de emissões. Então é necessário fazer muito mais e isso inclui o Brasil.
Agência Brasil: Durante a COP21 poderemos alcançar um consenso mais positivo?
Carlos Rittl: A COP é uma oportunidade para que os países apresentem um maior nível de ambição, isso pode acontecer. Acreditamos que todos colocaram na mesa seus níveis de ambição inicial e estão preparados para assumir compromissos maiores, em Paris e no pós-Paris. Com uma meta indicativa conseguimos, sistematicamente, fazer a análise do impacto agregado das reduções de emissões de todos os países para identificar qual a lacuna dessas metas, em relação ao que a ciência recomenda. Então, a negociação de Paris não é só importante para o nível de ambição que sai de lá, mas para elevar esse nível ao longo do tempo.
Agência Brasil: O que pode melhorar na meta brasileira?
Carlos Rittl: Temos capacidade de fazer muito mais. A própria lista de ações que estão informadas na proposta de compromissos do Brasil demonstra isso. Estamos discutindo a eliminação do desmatamento ilegal só na Amazônia e só em 2030. Mas sabemos que, desde 2008 temos um Plano Nacional de Mudanças Climáticas que estabelece a meta de chegarmos em 2015 com um desmatamento líquido zero em todas regiões do país. Então não é possível que em 2030 estejamos almejando algo inferior ao que estabelecemos como compromisso sete anos atrás.
Sobre o aumento da participação de fontes renováveis de energia, podemos ter um impulso muito maior com energia solar, eólica e biomassa. Depois do anúncio de compromissos do país para a COP, foi colocado em consulta pública um plano para expansão da geração de energia no Brasil que inclui o aumento dos investimento em combustíveis fósseis. Setenta e um por cento dos investimentos projetados para os próximos dez anos vão para petróleo, gás natural e carvão mineral. Isso está em descompasso como essa urgência de reduzir emissões. O Brasil é um país muito vulnerável. Neste ano, mais de 25% dos municípios brasileiros decretaram situação de emergência ou calamidade pública em função de desastres naturais ligados ao clima extremo e sabemos que isso está se agravando, então deve ser do nosso interesse não só reduzir as emissões para diminuir a nossa vulnerabilidade, mas para aproveitar o potencial que nós temos.
Agência Brasil: Sobre o financiamento, qual seria o modelo ideal para o Fundo Verde do Clima?
Carlos Rittl: Financiamento é de fato um tema-chave para o sucesso da negociação. Os países desenvolvidos assumiram, em 2009, o compromisso de chegar até 2020 com US$ 100 bilhões em recursos para apoiar ações de redução de emissões e de adaptação de mudanças climáticas em países em desenvolvimento, especialmente países mais pobres. Foi estabelecido o Fundo Verde do Clima, mas é um grande fundo ainda sem muitos recursos. Ele precisa ser alimentado com o aumento do compromisso de apoio por parte de países desenvolvidos, através da criação de mecanismos inovadores. Por exemplo, está na mesa de negociação uma proposta de taxação de emissões de transporte aéreo e marítimo internacional. As emissões de um avião que sai do Brasil para Paris não são atribuídas a nenhum desses países. As emissões do transporte de carga, de exportação de soja ou carne do Brasil para China, também não são atribuídas nem ao Brasil nem à China. A taxação das emissões desse transporte, por um lado, ajudaria a regular as emissões e promover a eficiência desses sistemas de transporte e, por outro lado, ajudaria a arrecadar fundos que poderiam alimentar o fundo e aumentar o aporte internacional de recursos.
Agência Brasil: Qual deverá ser a contribuição internacional do Brasil?
Carlos Rittl: O Brasil tem um papel muito importante na cooperação sul-sul, já que o Brasil é uma grande economia em desenvolvimento e tem um arcabouço de políticas de ações e um arcabouço institucional que é mais forte do que muitos países, por exemplo, o continente africano. Nós podemos intensificar nossa cooperação sul-sul compartilhando o conhecimento que nós temos, seja em monitoramento de floresta, seja em uma produção mais limpa. Ao longo do tempo, vencendo os desafios de crescimento e desenvolvimento do país, podemos considerar aportar recursos ao longo das próximas décadas para manter o Fundo Verde do Clima e manter o apoio a esses países menos desenvolvidos, que são aqueles que não têm nenhuma responsabilidade sobre o problema e que pagam um preço muito alto porque não conseguem lidar com os eventos extremos que já os assolam, como secas e tempestades e o risco de elevação do nível do mar.
Agência Brasil: O que representa essa elevação de 2ºC?
Carlos Rittl: Dois graus é o limite considerado seguro, que ainda permite gerenciar os impactos sem consequências muito graves. Dados da Universidade Federal de Santa Catarina, do período de 1991 a 2012, mostram que 127 milhões de brasileiros estiveram em regiões que foram atingidas por eventos climáticos extremos ou situação de emergência ou calamidade pública, nesse período de 22 anos. De 2001 a 2012, a intensidade média de eventos foi 40% superior do que da primeira metade do período. Ou seja, já estamos sujeitos ao aumento da frequência de desastres e risco maiores.
Com 2ºC, teríamos consequências severas não só para a biodiversidade mas para a população que depende de um ambiente natural bem conservado para sua subsistência, seja pela questão da água, seja pela questão dos alimentos obtidos da natureza.
Com 2ºC, se vivemos hoje uma situação de estresse e de crise hídrica no Brasil, no Sudeste e no Nordeste, a tendência é que as consequências sejam piores. Estamos falando de risco crescente para vida, para qualidade de vida, para a economia e para o ambiente como um todo. Temos que cobrar de todos que estão em Paris que façam aquilo que é necessário e eles sabem o que é preciso fazer.
Conferência com 195 países em Paris tenta chegar a novo acordo climático
O mundo já sente os efeitos das mudanças climáticas que podem piorar ao longo deste século se não forem tomadas medidas para combatê-las. Secas severas e prolongadas em alguns locais e chuvas torrenciais que causam alagamentos e resultam em perdas humanas e econômicas podem ser cada vez mais intensas.
Na tentativa de reverter esse quadro, 195 países e a União Europeia, membros da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC na sigla em inglês), estão comprometidos a fechar um novo acordo global climático na 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima (COP21), entre 30 de novembro e 11 de dezembro, em Paris, para reduzir a emissão de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento global.
O principal objetivo é conter o aumento da temperatura média da Terra em 2 graus Celsius (ºC) até 2100, em relação aos níveis pré-Revolução Industrial. A meta de 2 ºC, acordada na COP de Copenhague, em 2009, é considerada razoável para evitar catástrofes climáticas.
Para o secretário executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl, se o aumento da temperatura não ficar no limite de 2ºC, as consequências serão muito severas. “Com menos de 1ºC de aquecimento já temos, toda semana, uma má notícia em algum lugar do mundo, inclusive no Brasil, de acidentes ligados a climas mais extremos, chuvas fortes, secas que se intensificam, tornados, deslizamentos de terra. Isso vem acontecendo com frequência e intensidade maior nos últimos anos e tende a se agravar, mesmo dentro do limite dos 2ºC”, disse.
Estudo do Instituto Meteorológico britânico (Met Office) apontou que as temperaturas médias globais na superfície terrestre em 2015 vão superar, pela primeira vez, em 1°C os níveis verificados na era pré-industrial.
O Acordo de Paris deve entrar em vigor em 2020 em substituição ao Protocolo de Quioto. Válido desde 2005, Quioto prevê metas de redução de gases que provocam o aquecimento global para 37 países desenvolvidos.
Países desenvolvidos e em desenvolvimento apresentaram este ano as Contribuições Nacionalmente Determinadas Pretendidas (INDCs na sigla em inglês), um conjunto de metas de redução de gases de efeito estufa.
A Organização das Nações Unidas, entretanto, considerou os compromissos voluntários apresentados pelos países insuficientes para evitar a alta da temperatura.
A organização analisou 146 INDCs e concluiu que, mesmo que os países implementem totalmente as medidas que aprovaram, a elevação das temperaturas atingirá 2,7 ºC.
“Todo mundo sabe de antemão que vai ter um gap [brecha]. Politicamente você entra na questão de como é que vai preencher esse espaço, esse vácuo entre o que vai ser feito e o que é necessário que seja feito, quando você compara com os cenários propostos pelo IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas]”.
Para o Observatório do Clima, é importante que a COP de Paris abra um processo de revisão, já que as metas apresentadas serão cobradas a partir de 1º de janeiro de 2021. “Que ela prepare um processo para que essa ambição que falta hoje seja adicionada ao longo do tempo, já que existe a proposta de revisão de metas até 2020, daquilo que se tornar compromisso de fato, e de revisões sistemáticas ao longo do tempo”, disse Carlos Rittl.
Veja as metas de redução de gases de efeito estufa estabelecidas por Brasil, pelos Estados Unidos, pela China, União Europeia e Índia:
O Brasil ainda passará muito tempo fazendo o inventário da tragédia do rompimento da barragem de resíduos de minério de ferro, da Samarco, empresa da Vale e BHP Billiton, no distrito de Bento Rodrigues, localizado na cidade Mariana (MG). E para tentar dimensionar os prejuízos, falamos com Makely Ka, ex-funcionário da Vale do Rio Doce, ou seja, testemunha do projeto de privatização da empresa, até hoje muito controvertido.
“Além de conivente, o governo é irresponsável. É uma tragédia ambiental sem precedente no país. E parece que o governo quer amenizar. A própria ministra do Meio Ambiente participou de um encontro em Mariana, e quando um padre lhe fez um questionamento disse que ‘tinha um compromisso’”, falou.
Na conversa, Makely lembrou de outros acidentes nos últimos anos, ignorados pelo noticiário midiático, a seu ver outro ente irresponsável diante da situação. Além disso, critica fortemente a relação entre governos e empresa, que chega ao cúmulo de a última cuidar por si mesma da “cena do crime”, e afirma algo que deveria soar óbvio a respeito do amparo às vítimas.
“Pela legislação brasileira, aquilo foi crime ambiental, os responsáveis deveriam estar presos e os documentos e computadores da empresa apreendidos para laudo e perícia. A multa deveria ser aplicada e a Samarco, mineradora das mais lucrativas, deveria estar pagando todos os custos dos prejuízos que gera desde o acidente”, resumiu.
Agora, fica o enorme passivo ambiental no trecho percorrido pela lama tóxica, que já se estende pelo litoral brasileiro. Sem esquecer de projetos como a flexibilização do Código de Mineração nas gavetas parlamentares. A entrevista completa, gravada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: O que pode contar da sua experiência como funcionário da mineradora que pertence às gigantes transnacionais Vale e BHP Billiton, em sua transição para a privatização? Já havia desconfianças quanto às questões de segurança nos empreendimentos da empresa?
Makely Ka: Entrei na Vale como estagiário, na área de automação, pois fiz curso de eletrônica. Trabalhava na manutenção dos tanques de flotação, para onde se envia o minério depois que vem do britador – o minério passa por três britadores antes de entrar no tanque de flotação que separa os rejeitos, que por sua vez vão para a barragem dos metais descartados. Depois, fui funcionário de uma empreiteira que prestava serviço para a Vale, pois ela não contratava mais, já que estava no processo de privatização.
Naquele momento, não tinha rede social, não tinha esse movimento todo nas comunicações, de modo que tudo corria pela imprensa tradicional ou pelo sindicato, que divulgava algumas coisas. Mas presenciei três acidentes, que não foram divulgados. Foram abafados.
Um deles foi um choque entre duas locomotivas em cima do pontilhão. Elas caíram e os dois maquinistas morreram. Nesse caso saiu matéria no jornal do sindicato porque alguém conseguiu fotografar. Outro caso foi de um trabalhador que caiu dentro do britador e virou minério. Nunca se achou nenhum vestígio dele. E outro caso foi de um caminhão haulpak, daqueles que carregam até 50 toneladas: passou em cima de um carro dentro da mina, que virou papel, claro, já que os pneus são da altura de uma casa de dois andares. Enfim, os acidentes aconteciam e viravam estatística dentro da empresa, não saíam na mídia.
Existia uma pressão muito grande. No meu departamento, por exemplo, de automação industrial, quando estragava alguma coisa que fazia a mina parar, ocorria uma pressão gigante sobre os funcionários, tanto que os mais velhos, que tinham mais tempo de empresa, tomavam algum tipo de remédio tarja preta. Era f…
Correio da Cidadania: O que pensa das reações do governo mineiro e também da empresa e suas respectivas respostas oferecidas até aqui, tanto para a sociedade como para os afetados diretamente pela tragédia?
Makely Ka: Vejo que praticamente todos, desde prefeito e governador até ministros de Meio Ambiente e Desenvolvimento e presidência da República (que demorou, mas anunciou uma multa), estão numa relação de conivência, rabo preso. O governador deu entrevista dentro da sede da Samarco. O que simboliza dar uma entrevista nesse contexto e afirmar que a empresa fez tudo que podia fazer?
O governo tem soltado comunicados com as alegações da Samarco, como se sua alegação pudesse ser considerada um fato apurado e a lama comprovadamente não fosse tóxica. Além de conivente, o governo é irresponsável, pois vários especialistas já testaram a lama e se pronunciaram no sentido de dizer que é extremamente tóxica, tem metais pesados e vários indícios de ser prejudicial à saúde.
Ainda que não fosse prejudicial à saúde, uma inundação de 62 bilhões de litros de lama, mesmo que fosse medicinal, causou mortes, inviabilizou um município inteiro e a captação de água em várias cidades no trajeto do rio Doce, que virou um mar de lama e está sendo cimentado, acabando com os peixes.
É uma tragédia ambiental sem precedente no país. E parece que o governo quer amenizar. A própria ministra do Meio Ambiente participou de um encontro em Mariana, e quando um padre lhe fez um questionamento disse que “tinha um compromisso”. Que compromisso pode ser maior para um ministro do Meio Ambiente do que o maior crime ambiental de que se tem notícia nos últimos tempos?
Correio da Cidadania: Falando em responsabilidade com as informações, o que pensa da abordagem midiática, que não poucas vezes bate na tecla do acidente, como se a maior causa da tragédia fosse alguma espécie de azar do destino?
Makely Ka: Acho vergonhosa a cobertura midiática. Vai virar tese acadêmica, exemplo de como foi conivente. Sabemos que o posicionamento dos governos está evidentemente ligado às doações de campanha, que por sua vez são investimentos. As empresas querem receber o dela depois. E a mídia que se coloca como isenta e independente faz esse jogo. A cobertura tem sido vergonhosa nos principais canais de TV e jornais.
Até se tentou passar a ideia de que o abalo, de acordo com alguns observatórios, de 2,5 pontos na escala Richter pode ter sido causador do desastre. Um abalo de 2,5 na escala Richter não derruba nem um castelo de cartas! Falar nisso é uma piada mórbida, chega a ser brincadeira com quem perdeu familiares e com seus sentimentos. Absurdo.
Pra se ter ideia, todo dia tem explosão de dinamite em mina de lavra aberta. É necessário deslocar rochas e abrir crateras, pois a mineração de lavra aberta broca o chão e, para isso, se usa dinamite. Todo dia temos impactos de pelo menos 3 pontos na escala Richter, por conta do próprio procedimento de escavação.
Portanto, se a barragem não suporta um abalo de 2,5 pontos, que nem é sentido pelos humanos e só os sensores detectam, é porque houve negligência. É importante ainda entender que a escala Richter não é linear. Quatro pontos não são o dobro de dois. A progressão é aritmética. Um abalo de 2 graus não derruba nem casa de pau a pique, tanto que não existe rachadura nas casas de Ouro Preto, devido aos abalos sísmicos de Mariana.
Se um tremor de terra pode derrubar uma barragem, era pra estar tudo em Estado de Emergência. É uma completa canalhice a imprensa divulgar notícias como essas. E acho que ela se compromete e desmascara cada vez mais, porque as notícias circulam nas redes, as pessoas divulgam outras informações e a verdade, mesmo aos poucos, surge.
Correio da Cidadania: que pensa da política de mineração brasileira de modo geral, tendo a própria Vale como grande símbolo de prosperidade e geração de divisas para o país?
Makely Ka: Acho que o valor pelo qual venderam a Cia Vale do Rio Doce foi um crime. Equivaleu ao lucro de apenas um ano. Caberia inclusive um questionamento judicial sobre a forma como foi feita a privatização da empresa e o que acarretou para o país. Não acho que teria sido diferente se tivesse continuado como empresa estatal de capital nacional, mas o procedimento foi errado. Não quero isentar nenhum governo. O atual, que não propôs mudanças mesmo em 12 anos, foi tão conivente quanto o anterior, que a vendeu a preço de banana. Ambos são responsáveis pela tragédia. Pela venda, pela conivência com as licenças ambientais etc.
Pra se ter ideia, há algumas semanas o governador petista Fernando Pimentel apresentou projeto de lei na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALEMG) no sentido de agilizar e facilitar licenças ambientais, uma demanda das mineradoras, que sempre questionaram e acusaram de burocrático e moroso o processo.
Se eles são patrocinados em suas campanhas pelas mineradoras, vão fazer o quê? A campanha do Pimentel foi uma das mais caras do país em 2014 e muito do dinheiro que teve veio das mineradoras. Claro que elas vão cobrar seu investimento. E, por ironia do destino, na semana anterior à tragédia ele entrou com tal projeto, em caráter de “urgência”.
Além disso, existe no Congresso Nacional a proposta de rever o Código de Mineração do país. Outro acinte, outro capitulo vergonhoso. Tanto na ALEMG quanto no Congresso, grande parte dos deputados envolvidos nas comissões que discutem a reforma das legislações mineradoras é patrocinada pelas mineradoras. Vão defender o interesse de quem?
Correio da Cidadania: Qual a dimensão que você atribui a este episódio na história das tragédias ambientais? Equipare-se a outras de repercussão mundial na humanidade?
Makely Ka: Vi algumas comparações, como o crime ambiental da Exxon no Golfo do México, entre outras. São realidades diferentes. Ainda não temos nem dimensão do que aconteceu a respeito da lama da Samarco. Há poucos dias, surgiu a gravíssima informação de que a Samarco estaria removendo corpos, retirando-os do local com ambulâncias do IML e helicópteros, de modo a minimizar o impacto, já que poderia ser diminuída a contabilidade dos mortos. Algo mórbido, pra não dizer outra coisa.
O impacto não é só em Bento Rodrigues, completamente destruída, Mariana e municípios vizinhos, mas se estende por mais de 500 km. O rio Doce está morto, vai levar no mínimo 10 anos pra se recuperar. A lama já chegou no mar. As cidades que captam água do Rio Doce vivem situação desesperadora.
Governador Valadares vive quase uma guerra civil. Tem saques aos caminhões pipa, aos supermercados que têm água… Os moradores chegaram a fechar os trilhos da estrada de ferro para impedir a passagem dos trens da Vale, que vão para o porto de Tubarão (SC) embarcar o minério para a China.
Não temos sequer dimensão do impacto, nem sabemos exatamente quantas pessoas morreram. Quem cuida da cena do crime é a própria Samarco, coisa absurda. É kafkiano: “eu cometo crime, mas pode deixar que eu cuido da cena, vejo qual foi minha motivação…” E o governo é conivente.
Pela legislação brasileira, aquilo foi crime ambiental, os responsáveis deveriam estar presos e os documentos e computadores da empresa apreendidos para laudo e perícia. A multa deveria ser aplicada e a Samarco, mineradora das mais lucrativas, deveria estar pagando todos os custos dos prejuízos que gera desde o acidente.
Sabemos que a mineração do país é atividade predatória. Exploramos matéria-prima, bruta, vendendo-a a preço de banana, para depois comprar computadores, celulares e eletrodomésticos a preço de ouro. Se ao menos houvesse uma fábrica de transformação do lado da mina, podíamos pensar em benefícios, porque o minério sairia dali, já entraria na fábrica e teríamos computadores a preço de custo, permitindo, por exemplo, que todos os alunos de escola tivessem um. Mas não. Vendemos matéria-prima que se esgotará. Não existem reservas infinitas de minério. Vai acabar. E o preço inclusive caiu no mercado mundial. Mas continuamos cavando buraco, destruindo regiões…
No ano passado, foi criado o Parque Nacional da Serra do Gandarela, que fica numa região considerada a caixa d’água da região metropolitana e atende 5 milhões de pessoas. Foi criado já com lobby da Vale, no sentido de picotar sua área. Assim, todas as áreas de interesse da Vale, que incluem nascentes e outras que não podem ser mineradas, ficaram fora do parque. Quando a Dilma divulgou o decreto de criação do Parque Nacional, fomos surpreendidos com o “desaparecimento” de 10 mil hectares.
Quer dizer, só o lucro interessa, não a vida das pessoas. São atividades predatórias e criminosas. Outros crimes, desastres e tragédias como essa virão. Eles não vão parar se não nos posicionarmos. Há alguns dias, teve um protesto em Iracema, cidade pequena próxima de BH, porque tem um projeto de construção de uma barragem três vezes maior que a de Bento Rodrigues. Compromete inclusive o rio das Velhas, um dos principais afluentes do São Francisco.
Vemos pessoas comuns e famílias saqueando água em Valadares, já que o Rio Doce era a única fonte de captação de água e não sabemos por quanto tempo continuará inviável. Enfim, está muito complicado, as pessoas têm de se dar conta.
A trajetória de Woody Allen, como a de Chaplin e dos irmãos Marx e outros cineastas americanos voltados para a comédia, nasceu no palco dos teatros, em stand up comedys. A chegada do cinema divulgou seus trabalhos ao resto do mundo. Mas Allen é um intelectual, e como cineasta viveu forte influência dos gênios de sua época, especialmente Bergman e Fellini. Alguns de seus primeiros filmes, classificados como homenagens a esses cineastas eram na verdade tentativas de trilhar caminhos mais complexos. Nunca fez feio, mas seu público sempre o viu como o comediante brilhante que escreve suas próprias estórias.
A idade reduziu bastante a sua capacidade histriônica e Allen voltou a mirar em objetivos mais altos, criou obras de arte como Tiros na Broadway eMatch Point onde a comédia e o drama foram se fundindo. Blue Jasmineé o ponto alto desse momento. Cate Blanchett é a ex mulher de um trapaceiro internacional, interpretado por Alec Baldwim. Inspirado em Bernard Madoff, que administrava uma pirâmide financeira bilionária, seu personagem vive como um magnata, cercado de luxo e das mais belas mulheres. Cate é sua esposa e entra em desespero quando ele lhe informa que será trocara por uma jovem mais bela. Seu impulso a faz ligar para o FBI e entregar o marido. Ele é preso e se suicida na cadeia, mas ela também perde tudo. Arrepende-se, mas é tarde. Sua única saída é ir morar com a irmã pobretona da Califórnia. Essa personagem causa ao espectador sentimentos ambíguos. Seu desprezo pelo entorno e auto-comiseração a fazem um dos personagens mais desprezíveis e frágeis da história do cinema. Cate Blanchett está magnífica no papel e o filme coloca Allen ao lado daqueles diretores que ele desejou imitar no início da carreira. Hoje ele é um deles.
Neste 25 de novembro, data que marca o Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher, poderíamos falar de múltiplas formas de violência que atingem as mulheres. Para as mulheres negras a violência é incrementada pelo racismo. Para as lésbicas, pela lesbofobia. Para as trans, pela transfobia. Eu poderia falar das mulheres trabalhadoras que sofrem com assédio moral, que também é um tipo de violência. Das mulheres que não querem ser mães e sofrem a violência de se submeter a um aborto clandestino ou de criar seus filhos sozinhas. Das jovens que andam na rua amedrontadas pelo fantasma do estupro…. São tantas as formas de violência!
Mas hoje pela manhã, lendo os jornais me deparei com uma notícia no jornal Zero Hora: UMA MULHER FOI ASSASSINADA A CADA TRÊS DIAS neste ano na Região Metropolitana de Porto Alegre. Não é uma estimativa, é o que ocorreu! Uma realidade que, infelizmente, não é só gaúcha. O depoimento da delegada Rosane de Oliveira, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, ilumina esta tragédia: “Há muito ciúme, sentimento de posse e relação de domínio e de controle total. Relações que eram para ser marcadas pelo afeto acabam destruídas pelas características machistas. Muitas vezes com o álcool ou com as drogas ilícitas como combustível, homens matam mulheres com a ótica machista e possessiva do tipo ‘se não for minha, não será de ninguém’”.
É preciso dizer bem claramente: o machismo é violento, o machismo mata! Acabar com ele seria uma passo gigante no combate à violência contra as mulheres. E nós, mulheres, que somos as vítimas, também temos em nossas mãos o poder para impulsionar a mudança. Somos nós que educamos os homens. Eles são nossos filhos, sobrinhos, netos e também nossos alunos nas escolas. A primeira lição é esta: as mulheres não pertencem aos homens. Educação e a linguagem são fundamentais na mudança desta (falta de) cultura da posse. Proponho então que a gente não aceite mais a definição “esta é a minha mulher”, tão repetida por maridos e namorados sempre que se referem às suas companheiras.
Não, não somos mulheres de ninguém. Podemos sim ser esposas, companheiras, namoradas, mas enquanto mulheres não somos de ninguém, pois não temos dono!
Luciana Genro é presidente da Fundação Lauro Campos
Acabamos de testemunhar aquele que talvez seja o maior desastre ambiental da história do Brasil. A população de Bento Rodrigues e Mariana (centro do estado das sugestivas Minas Gerais) está sem água e boa parte desabrigada. Isso sem contar os danos ambientais, calculados em mais um século em termos de recuperação do ecossistema do Rio Doce. Para oferecer uma visão técnica e amplificada da desgraça, entrevistamos a coordenadora do Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará, Simone Pereira.
“Tenho quase que plena certeza que esse evento não foi natural. O próprio Ministério Público de Minas Gerais está dizendo que não foi um acidente, mas negligência. Havia, sim, indícios de que esse desastre poderia acontecer. E a empresa não tomou as providências”, afirmou.
Para ela, dois fatos foram cruciais no desenrolar da tragédia: a falta de monitoramento das bacias de rejeitos, o que inclui a falta de tratamento adequado aos rejeitos não inertes e tóxicos, e a não existência de mecanismos de monitoramento autônomos em relação à empresa, fruto da histórica relação de promiscuidade entre poder público e poder econômico no Brasil.
“Será que abrir para o mercado privado a exploração minerária influi no aumento da produção e diminuição do cuidado ambiental? Devido à questão do lucro isso pode acontecer. A empresa não quer gastar muito dinheiro com questões ambientais. Para o capital, a questão ambiental é secundária. o problema vem, basicamente, de dois fatores: falta de monitoramento e falta de fiscalização. Se houvesse abertura para o monitoramento dos rejeitos tóxicos, além do que a própria empresa faz, e se as SEMAs por todo o Brasil fizessem de fato a fiscalização que deveriam, nada disso teria acontecido”, criticou.
Para a especialista, é importante que empreendimentos do porte da Vale, da Samarco e também da Belo Sun (ao lado da hidrelétrica de Belo Monte) precisam ser discutidos com a sociedade antes de postos em prática. Ela defende que a comunidade afetada deve decidir a presença, ou não, de empreendimentos como este. Aliás, sua descrição do que acontece na mineração de ouro em Belo Monte já nos obriga a atentar para futuros e similares desastres.
“Aqui, é o paraíso para quem não quer cumprir a lei. Temos muitas leis e elas são muito avançadas. O problema é como elas são aplicadas e muitas vezes ignoradas, por conta dessa influência do poder econômico no poder público”.
A entrevista completa com Simone Pereira pode ser lida na íntegra a seguir.
Correio da Cidadania: Como você mesma defende, existe uma relação entre a mineração e as bacias onde depositam seus rejeitos com os desastres da barragem de Mariana (MG) que inundou com lama tóxica uma série de cidades próximas do curso do Rio Doce. Pode nos explicar, em linhas gerais, como se dá esse processo, do que é formada essa lama tóxica e se há alguma relação também com a mineração no Rio Xingu, tema abordado por você?
Simone Pereira: Eu me referi à implantação dessas bacias na Volta Grande do rio Xingu, que é o empreendimento chamado Belo Sun, no qual uma mineradora canadense vai usar cianeto na exploração do ouro na região. Há a possibilidade de um desastre similar acontecer lá também. No estado do Pará, em todo o seu território, há uma intensa atividade de mineração. É o segundo em exploração mineral do país, atrás apenas de Minas Gerais. Temos aqui a maior mina de ferro do mundo, a de Carajás, onde existem várias barragens como esta que rompeu em Mariana. É uma preocupação constante.
A política de depositar os resíduos em bacias já está estabelecida no mundo inteiro e não é um privilégio do Brasil. A prática está difundida no mundo todo por ser a forma mais simples e barata de as empresas disporem dos rejeitos que produzem na atividade minerária. Qual é o problema? O problema é que, quando se processa o minério com explosões, trituração, aplicação de processos físicos e químicos, acabam liberadas no ambiente as substâncias ligadas à rocha, como por exemplo os metais tóxicos e outros elementos que acabam por ser perigosos para os seres vivos e meio ambiente. Não vemos as Secretarias Estaduais de Meio Ambiente (SEMAs) fazerem um monitoramento adequado da parte estrutural das bacias e muito menos um efetivo controle do que se produz em termos de rejeitos tóxicos. Se exige, quando muito, é automonitoramento das empresas.
Hoje, o que as pessoas mais perguntam é: qual a composição da lama que desceu como um tsunami pelo vale e acabou chegando ao Rio Doce, invadiu cidades e destruiu tudo? A resposta é: não sabemos. As mineradoras não permitem que os institutos, as universidades ou qualquer outro tipo de entidade façam um monitoramento à parte ao que ela própria é obrigada a apresentar para as SEMAs. Sabemos, por notícias vinculadas, que a análise do rio está apresentando resultados elevados para elementos tóxicos, como cádmio, chumbo, mercúrio etc.
Geralmente, as SEMAs não cobram o efetivo cumprimento da lei, que garante que as substâncias tóxicas não cheguem aos rios em valores acima do permitido pela legislação e fiquem retidas nas bacias. Nenhuma bacia comporta o volume de chuvas, principalmente na época do inverno, e tais produtos acabam descartados no rio mais próximo. Somado a isso, as empresas não dão informações sobre o tratamento que o material recebe.
Aqui e ali vejo tratamentos para controlar níveis de pH ou para diminuir a turbidez, mas desconheço no Brasil qualquer mineradora que faça tratamento nos afluentes para a retirada dos produtos tóxicos. Já visitei algumas empresas que lidam com tal tipo de atividade e não encontrei em nenhuma delas laboratórios químico-ambientais para fazer tais análises. Geralmente, contratam algum laboratório de fora para fazer o automonitoramento, que é uma prerrogativa da lei. A própria empresa pode contratar outra empresa para fazer o controle. Na minha opinião é um erro, mas é a lei e eles podem fazer assim.
Portanto, o problema vem, basicamente, de dois fatores: falta de monitoramento e falta de fiscalização. Se houvesse abertura para o monitoramento dos rejeitos tóxicos, além do que a própria empresa faz, e se as SEMAs por todo o Brasil fizessem de fato a fiscalização que deveriam, nada disso teria acontecido.
Correio da Cidadania: Como enxergou, estruturalmente, a tragédia do rompimento da barragem que armazenava rejeitos oriundos da exploração de minério de ferro pela empresa Samarco, na cidade de Mariana (MG)?
Simone Pereira: As barragens nada mais são do que uma grande vala cavada no solo, não muito fundo por conta do lençol freático, e que aos poucos se acrescentam nas laterais até atingirem um máximo de altura de talude. As barragens têm, aqui no estado do Pará, em torno de 2 e 3 metros de profundidade. Algumas empresas, que produzem rejeitos tóxicos, fazem o revestimento destas bacias porque se não os efluente com produtos perigosos podem infiltrar no solo e chegar ao lençol freático. Pelo que vi em Bento Rodrigues, não houve qualquer tipo de impermeabilização de bacia e o rejeito foi depositado diretamente no solo.
O que temos em Mariana e em outros locais é uma barragem feita com o próprio material geológico, como rochas e britas. Não é uma construção de alvenaria. É uma barragem para cima. O talude é a altura da barragem. Assim, quando a barragem começa a saturar, eles aumentam o talude, e são feitas emendas à barragem original. O problema é que a cada tonelada de minério processado, são produzidas outras toneladas de rejeitos. Esse material não é de interesse para a empresa e fica depositado na bacia. Podemos imaginar que são necessárias bacias e mais bacias para que seja possível continuar o processamento do minério.
Quando uma bacia se esgota e não pode mais receber rejeitos, eles simplesmente cessam a operação naquela bacia, colocam solo por cima, revegetam e partem para outra bacia. Mas os produtos tóxicos ficam ali para sempre. É preciso entender que o minério quando está no solo, na crosta terrestre, está imóvel. Costumamos dizer que está imobilizado e não representa risco, porque está geralmente protegido pelos óxidos e hidróxidos, que são ligações fortes que não deixam esse metal sair das proteções e se tornar disponível para o ambiente.
Quando se começa a trabalhar o minério, a primeira coisa que acontece são explosões. Em outras palavras, para retirar o minério da crosta colocam-se dinamites e explodem. Esse material particulado gerado pelas explosões – pode ser inalado por uma pessoa – contém elementos tóxicos. E muitas vezes acontecem processos de intoxicação por inalação nas comunidades próximas à mina.
À medida que você explode a rocha e começa a abrir a mina, que geralmente tem quilômetros de profundidade, e vai sendo aberta em níveis diferentes até o fundo, de onde é extraído o minério, a rocha é exposta às intempéries, como a chuva que produz a descarga ácida de minas (DAM), que contém ácidos fortes e solubiliza os elementos antes imóveis na rocha. Este minério, quando transportado do fundo da mina para o processador, onde será britado, lavado, centrifugado, vai sofrer processos de aquecimento, às vezes processos químicos etc. Produz rejeitos sólidos e efluentes ricos em elementos tóxicos que ficarão como uma herança maldita.
O ferro produzido, por exemplo, não sai da mina na forma como é exportado. Uma mina de ferro para ser viável precisa ter um minério com teor acima de 60% de ferro. Mas e os outros 40%? São rejeitos, argila, escória e todo esse material que vemos por aí, além de uma pequena percentagem de elementos tóxicos que em pequenas quantidades podem causar problemas de saúde sérios na população e danos ao meio ambiente. Se uma empresa, ao liberar efluente de bacia de rejeito contendo, por exemplo, chumbo, arsênio, cádmio e mercúrio (esses dois últimos se bioacumulam), no rio e as pessoas consumirem essa água, em 30 anos aquela pequena quantidade de metais acaba bioacumulando-se no corpo e causa problema de intoxicação.
À medida que todo o rejeito não é utilizado pela mineradora, logo é descartado. Há dois tipos de materiais classificado nos rejeitos: um se chama pilha de estéril, composta de material inerte, onde não tem produção de material tóxico na parcela do que é descartado; a outra parcela é a pilha de rejeitos, que, no caso de Bento Rodrigues, foi classificada como classe 2, ou seja, é um material considerado não perigoso, porém não inerte. Isso significa que o material continua reagindo, se combinando, formando novos compostos e podendo ser perigoso para a população e ao meio ambiente, em algum nível, caso venha a ser liberado, como aconteceu.
Eu não conheço e nunca analisei o material de Minas Gerais, são informações da própria mineradora e de artigos que tenho lido depois da tragédia em Mariana, onde dizem que aquele material é classificado como classe 2, de resíduos não inertes. Isso já basta para eu afirmar que podem apresentar riscos.
Se não bastasse, a presença da lama, a própria argila, constituída de materiais comuns como os silicatos, seria suficiente para mudar completamente a qualidade dos ecossistemas locais. Minha pergunta é: a empresa vai remediar todos os ecossistemas atingidos pelo rejeito? É preciso retirar a lama e recuperar o ambiente. Mas será que de fato vai acontecer? No Brasil, não vejo acontecer.
Temos problemas semelhantes aqui no Pará, houve em 2007, no município de Barcarena, o rompimento de uma barragem de rejeitos que deixou o Rio Pará branco, com rejeito ácido de caulim de uma empresa produtora de pigmentos. Até hoje o fundo do rio continua cheio de rejeito. Será mesmo que vão limpar a sujeira de Minas Gerais? Ainda mais agora que a lama está chegando no Espírito Santo? Como é que vão recuperar tudo? E o rio? E as pessoas que estão perdendo seu modo de vida e sua saúde?
Correio da Cidadania: Agora vemos que as consequências adquirem amplitude quase inimaginável, com os rejeitos e a lama tóxica, como dito, chegando ao litoral e podendo se estender por uma vasta parte da costa brasileira. O que dizer diante disso? O acidente da barragem da Samarco se equipara, como alguns já dizem, a acontecimentos como o vazamento de petróleo no golfo do México ou o vazamento dos rejeitos nucleares da usina japonesa de Fukushima, entre outros episódios?
Simone Pereira: Eu não compararia isto a Chernobyl ou Fukushima, por não se tratar de um evento envolvendo produtos radioativos. Nós temos visto a natureza sendo agredida por diversas vezes, como na Hungria, onde houve também um rompimento de uma barragem de lama vermelha – lá, eles estão conseguindo recuperar. A empresa foi autuada para fazer a recuperação e aos poucos vai se fazendo. Acontece que a dimensão de Mariana é algo muito maior do que na Hungria. Mesmo com a lama vermelha da Hungria sendo composta de um material ainda mais perigoso que a de Mariana, as dimensões do desastre foram menores. De toda forma, eu não faria tais analogias, que muita gente vem fazendo. O importante é sabermos que em Mariana houve um grande evento.
No Brasil, é o maior acidente ambiental do qual já tive notícia. Já tivemos acidentes muito graves de derramamento de óleo, a exemplo da Repar no Paraná, quando houve um derramamento de óleo no rio. Foi um grande evento, até atingiu outros estados, e a Petrobrás chegou a ser multada em 200 milhões quando isso aconteceu – foi a maior multa ambiental, até então, da história do Brasil. No entanto, tais eventos ajudaram a trazer novas tecnologias de tratamento de solo e a própria Petrobrás esteve desenvolvendo técnicas para recuperar o meio ambiente.
Eu não sei se em Mariana vamos ter uma ação igual. Já vemos o prefeito dizer que o Ministério Público não pode fechar a mineradora, porque a economia da cidade depende disso, ou seja, dos royalties e do que arrecada em torno da atividade da mineradora. A medida que a mineradora não é acionada ou o acontecimento for passando despercebido da opinião pública, ela continua agindo da mesma forma com a qual agia até então, e é lógico que os problemas poderão ocorrer novamente. E não é só a barragem de Bento Rodrigues que está nessa situação. Temos lido notícias que falam de outras barragens que correm o mesmo risco.
Portanto, acho que agora a produção tem de ser interrompida. Não tem como eles continuarem a colocar material dentro de uma barragem que já corre risco de se romper, seria uma irresponsabilidade. O Ministério Público agiu certo em interromper a produção, mas a gente tem a consciência de que a mineradora não vai acabar, não vai mudar suas práticas e as coisas continuam sempre do jeito que já conhecemos. Essa é a situação de Mariana e todas as cidades onde funcionam mineradoras que operam com barragens na região.
As barragens não são de fato monitoradas como deveriam e, outra coisa, não se ouviu falar em Mariana em plano de contingência. Bento Rodrigues foi massacrada e sequer teve o tempo de correr. As pessoas foram pegas na sua rotina, no seu lazer, e não havia uma sirene sequer para avisar. Nunca se treinou a cidade para um evento como esse. Simplesmente não havia um plano de contingência para que as pessoas pudessem sair rapidamente de suas casas e evitar que as mortes ocorressem.
Correio da Cidadania: As privatizações e aberturas ao mercado, no sentido de se explorar riquezas minerais diversas sem grandes fiscalizações, têm qual grau de influência na tragédia?
Simone Pereira: Não acredito que as privatizações tenham influenciado de alguma forma na prática, que considero delituosa, de se colocar rejeito sem qualquer cuidado e monitoramento. Essa prática acontece há décadas. Temos exemplos antigos no Amapá, temos outras explorações minerárias aqui no estado do Pará, assim como em Minas Gerais, que já vêm de muito tempo. Não foi o fato de privatizar uma empresa que acabou por mudar a prática que já era consolidada no Brasil e no mundo inteiro. Não vejo qualquer relação entre a privatização e a prática de depositar rejeitos em bacias.
Mas entra outra questão: será que abrir para o mercado privado a exploração minerária influencia no aumento da produção e diminuição do cuidado ambiental? Devido à questão do lucro, isso pode acontecer. A empresa, quando se instala, não quer gastar muito dinheiro com questões ambientais. Para o capital, a questão ambiental é secundária. O importante é o lucro. Se a empresa tem o lucro estabelecido, tudo bem. Se por ano a empresa consegue um lucro líquido de 200 milhões de reais, por que não reserva uma parcela para aplicar em tecnologia, preservação ambiental e desenvolvimento de pesquisas no tratamento dos rejeitos, na recuperação da água? Pois se gasta água demais neste tipo de operação e hoje em dia é essencial reutilizar aquilo que se gasta muito. Se a mineradora não vê e não tem o interesse de anexar ao seu produto um selo verde de exploração sustentável, ela simplesmente vira as costas para tudo e só pensa no lucro. O lucro é o principal.
O fato de a exploração mineral ser aberta para qualquer empresa do Brasil e do mundo demonstra ser necessário um diálogo e uma participação da população da região no processo. É preciso consultar as pessoas sobre a instalação de bacias de rejeitos. Há um atropelo nas audiências públicas, não há uma discussão aprofundada com a mídia como estamos fazendo agora, é preciso chamar os técnicos e os analistas e explicar os fatos: desde a composição química dos rejeitos, até as medidas que a empresa vai tomar para tratar o rejeito e retirar os elementos tóxicos. Não existe isso porque a empresa só visa lucro.
Aplicar em práticas sustentáveis significa gastar dinheiro, e gastar dinheiro não representa um atrativo para as empresas no sentido de resolver problemas graves que temos aqui – e tais práticas vêm de décadas. Por que não se trata o rejeito, não se retiram produtos que às vezes nem se sabe que estão lá?
Há produtos que talvez possam até ser comercializados. O que para nós é rejeito, na China pode ser um minério importante. Há nos rejeitos produtos altamente valorizados no mercado exterior. A geoquímica brasileira é riquíssima. Temos, por exemplo, o disprósio, que é jogado fora como rejeito. O disprósio é um minério supervalorizado no exterior, é dele que fazem foguetes, satélites, e aqui é jogado no lixo. Não temos nem a tecnologia para fazer sua extração. É preciso uma mudança de paradigma.
Existem empresas estrangeiras que em seu país de origem seguem todas as normas ambientais, porque senão pagam multas astronômicas e podem até fechar. Mas quando chegam aqui no Brasil não mostram a mesma conduta. Elas sabem que aqui as leis não são cumpridas. Sabem que aqui o poder político anda de mão dada com o poder econômico. É comum vermos falas como a do prefeito de Mariana, que estava desesperado pelo fato de o município ficar sem verba, e ele não está errado. A cidade precisa de renda.
O fato de a empresa pagar os royalties para a cidade, a meu ver, pode ser uma maneira de afrouxar a fiscalização. O poder político acaba sendo cooptado a fazer coisas erradas junto com as mineradoras e não vê que pode acabar prejudicando a população, que a prática pode causar danos ambientais etc. Na medida em que o poder político e o poder econômico vão se associando, quem vai sofrer é o meio ambiente e a população. Há um relaxamento da lei, da fiscalização e o caos pode ser instalado no país inteiro devido ao descaso.
Aqui, é o paraíso para quem não quer cumprir a lei. Temos muitas leis e elas são muito avançadas. O problema é como elas são aplicadas, e em alguns casos ignoradas, por conta da influência do poder econômico no poder público.
Correio da Cidadania: Como você avalia a abordagem que fala em “acidente”, “desastre natural”?
Simone Pereira: Tenho quase a plena certeza de que o evento não foi natural. Eles estão alegando que houve tremores antes, o que poderia ter causado o rompimento da barragem. O Ministério Público de Minas Gerais já havia acionado a empresa para fazer a recuperação da barragem, que estava com problemas muito antes de tudo acontecer. Assim, já havia um procedimento do MP, anterior a qualquer coisa, que obrigava a empresa a fazer a recuperação da bacia. O fato de não terem tomado a medida correta para parar a produção e tomar as medidas exigidas pelo Ministério Público leva a crer que simplesmente ignoraram o procedimento. E aconteceu o que aconteceu.
O próprio MP está dizendo que não foi acidente, mas negligência. Agora, a minha opinião: eu não estava lá, não fiz vistoria e não sei o que de fato aconteceu, de modo que não posso afirmar “sim” ou “não”, estou dizendo apenas pelo que tenho lido e o Ministério Público divulgado sobre o fato de acionar a empresa para resolver o problema. Havia, sim, indícios de que o desastre poderia acontecer. E a empresa não tomou as providências.
Correio da Cidadania: Há denúncias de acobertamento de responsabilidade da Samarco. Você vê um movimento nesse sentido, inclusive da parte da imprensa?
Simone Pereira: Antes da internet e das redes sociais, as pessoas acreditavam no que a imprensa divulgava. Era muito comum sermos influenciados por grandes meios de comunicações, grandes redes de televisão, jornais e revistas, porque aquilo era dado como verdadeiro. Com o passar dos anos e com as redes sociais no mundo, a informação verdadeira passou a ser pública. Há uma parte da mídia que serve aos poderes econômicos e políticos. Isso nós sabemos, não sei se é o caso de Mariana. Não tenho dados para te fazer tal afirmativa.
A minha interpretação é de que a grande imprensa brasileira não é isenta. Aqui ou ali, a imprensa acaba se influenciando por questões políticas, econômicas e tem certa tendenciosidade ou a acobertar ou a omitir ou a minimizar certos acontecimentos, que para a população são graves, mas no final acabam minimizados. Após passar um ou dois dias na mídia, o interesse de publicar determinado assunto cai, sai de pauta, vai para o esquecimento. Estamos vendo isso em relação à Mariana. Já não se fala tanto sobre o assunto como nos primeiros dias após o rompimento das barragens, daqui a alguns dias não se falará mais nada sobre o assunto e a população vai ficar lá, sem apoio, com o meio ambiente irremediavelmente destruído e sem solução.
Esse é o grande problema. A mídia quando se interessa por um assunto, é por muito pouco tempo. Ela não vai a fundo, não divulga, por exemplo, os nomes de quem de fato são os responsáveis. A gente não sabe como funcionam os processos. Para onde foi o processo? Quantas pessoas foram presas? Não vemos nada na mídia. Você já viu o diretor de alguma indústria protagonista de desastre ambiental ir para a cadeia? Esses processos simplesmente não andam. Não seguem até o final, quando muito se faz um TAC (termo de ajustamento de conduta).
Seria interessante se a mídia cobrasse de fato as devidas responsabilidades, se ficasse em cima, fosse a fundo, mostrasse realmente o drama das pessoas, porque as vidas dessas pessoas mudaram da noite para o dia. A mídia simplesmente tira do ar e não fala mais. Como se aquele evento acontecesse durante uma semana e depois estivesse resolvido. Tivemos aqui no Pará o afundamento de um barco com 5 mil bois no início do mês de outubro e os bois continuam lá dentro do navio, ninguém tirou. Ainda existem milhares de litros de óleo dentro do barco, que também podem vazar a qualquer momento e ninguém fala mais. Esse é o problema da mídia. Para a população afetada, ela não está sendo útil como as redes sociais.
Correio da Cidadania: De tempos em tempos, vemos a reforma do Código da Mineração aparecer nos corredores políticos. No atual contexto, o que pensa de tal possibilidade?
Simone Pereira: Quanto a esse assunto não posso te dar informação, porque não é uma área na qual eu seja especialista. Tais questões políticas sempre vão acontecer. Sempre existirão grupos dentro do Congresso que tentarão formar lobbies para que as práticas nocivas ao meio ambiente sejam favorecidas. Em qualquer área: mineradoras, indústrias, agronegócio, enfim, sempre haverá pessoas querendo mudar leis e códigos já estabelecidos para se beneficiarem.
Correio da Cidadania: Como está o Brasil no aspecto da proteção legislativa e também da apropriação da renda auferida na mineração?
Simone Pereira: Aqui no Brasil, alguns municípios recebem royalties da mineração. Parauapebas, o município que recebe os royalties da mineração de ferro no Pará, é a cidade com a segunda arrecadação no estado, só perde para a capital Belém. Imagina um município que recebe 600 milhões de reais por ano. Esse dinheiro deveria ser aplicado no próprio município, correto? Você chega lá na cidade de Parauapebas e não vê esgoto na cidade, não tem tratamento. As escolas também não são lá essas coisas. E pra onde vai o dinheiro todo? Eis a pergunta. Há outros exemplos de municípios que recebem royalties ou impostos e continuam muito pobres.
Se as empresas pagam tal quantia ao município, porque não vemos o dinheiro aplicado por lá? Para onde vai? Portanto, o município arca com todos os problemas ambientais e sociais que a exploração traz e no final não recebe muita coisa em troca. Ou seja, os lucros não são revertidos para a população na forma de melhorias da saúde, educação, saneamento básico e assim por diante. O poder político acaba dando diversos benefícios para as mineradoras e indústrias e não os vemos voltarem para a população e nem o meio ambiente. Vai beneficiar a quem?
Sempre dão como desculpa a geração de empregos. Veja bem: a empresa se instala em uma região pobre, com índices de IDH baixos. Não há uma população especializada para trabalhar nas empresas que pretendem se instalar. O que deveriam fazer? Antes da implantação, deviam colocar escolas técnicas, formar pessoal, fazer parcerias com as universidades para ter gente de nível superior trabalhando na indústria. Mas não. Isso custa dinheiro, leva tempo. E o que fazem? Contratam pessoal de fora, já pronto, porque assim não gastam recursos com a formação. A grande parte dos diretores, supervisores, gerentes, pessoal de nível superior, técnicos especializados etc. é de fora, não são moradores dos locais onde se dão as explorações dos recursos.
Não há um trabalho de base, uma prévia instalação, nem um preparativo para o lugar suportar o impacto do empreendimento. Não há nada. Olhe para Bento Rodrigues. Era uma comunidade rural. De repente chega uma mineradora daquele porte e se instala. Será que a maioria dos moradores locais largou suas vidas simples e foi trabalhar na mineradora ou continuou com sua vida do campo? O que será que mudou na vida da população local com a implantação da mineradora ali? Quais benefícios a mineradora trouxe? Por que não perguntam para a população se ela queria a mineradora ali?
O problema é a população não ser ouvida. As audiências públicas, quando ocorrem, são feitas de maneira velada, sem publicidade. Poucas pessoas vão e as que vão já estão cooptadas a responderem aquilo que eles querem ouvir. Já vi acontecer muitas vezes. Eu espero que o que aconteceu em Bento Rodrigues seja tomado como exemplo para o país inteiro, que as práticas sejam mudadas e que desastres como estes não venham mais a acontecer no Brasil.
Correio da Cidadania: Finalmente, aproveitamos para falar de um empreendimento citado no início e localizado no estado em que você trabalha e vive. Na Volta Grande do Xingu, como você avalia os impactos dos grandes empreendimentos da região: a hidrelétrica Belo Monte, já em operação, e a mineradora de ouro da empresa canadense Belo Sun, em vias de implantação? Podem apresentar problemas semelhantes ao que pudemos observar em Minas Gerais?
Simone Pereira: Eu posso falar da Belo Sun. A hidrelétrica de Belo Monte é um empreendimento que já está em andamento e tem um aspecto bem diferente daquele da exploração de ouro. Logicamente, todo empreendimento tem fases e nós participamos de várias discussões sobre Belo Monte. Não somos contra a hidrelétrica. Particularmente, acho que o Brasil necessita das hidrelétricas. A região amazônica tem vocação para uso da hidroeletricidade. O problema é que deve ser feito com o mínimo de impacto possível e cumprindo-se as condicionantes estabelecidas para poder beneficiar a população e impactar o menos possível o meio ambiente. Mas, de fato, quando as empresas começam a não cumprir aquilo que prometem a coisa fica difícil.
Outro aspecto é que a hidrelétrica implantada na região amazônica deveria trazer de alguma forma benefícios para a população. Se nós, amazônidas, arcamos com a implantação da hidrelétrica e os seus impactos ambientais e socioeconômicos, esperamos que ela seja bem vinda. Mas quais os benefícios que a população daqui da Amazônia vai ter com a implantação de uma hidrelétrica? A nossa conta de energia é a maior do país. Se nós produzimos energia elétrica aqui na Amazônia, por que nossa conta é a mais alta do país? Por que não se faz uma reforma tributária para aquela energia exportada a outros estados voltar como isenção de impostos? Nós pagamos mais de 30% de impostos – só impostos estaduais. Portanto, ainda podemos entrar no assunto de “bandeira tarifaria”, pois quando o sul está passando por seca, somos nós que pagamos pelo acionamento das termelétricas.
Quanto a Belo Sun, é um problema que está nas mãos do Ministério Público Federal. O órgão já foi acionado, já foi feita a denúncia, já se embargou em parte a liberação da licença para o início da operação das mineradoras, mas também já conseguiram derrubar a liminar do MP Federal e está em curso a implantação da mineradora.
O problema da Volta Grande é que eles vão usar cianetação para poder processar o ouro. Esse processo de cianetação é usado em várias mineradoras, mas por ter registrado vários acidentes ambientais ao redor do mundo está sendo banido. O cianeto está sendo substituído por outras substâncias na exploração do ouro. Existe um movimento para poder banir o cianeto da exploração do ouro. O problema é que até agora não foi encontrado um outro produto que o substitua tão bem, e ele será usado nas bacias de rejeitos da Belo Sun na Volta Grande do Rio Xingu.
O cianeto vai ser controlado, a menos que haja problemas em alguma válvula que porventura ocasione o seu derramamento no rio, mas o grande problema, e não falado, é o que vão fazer com os elementos tóxicos que estão no solo junto com o ouro e estarão em contato com o ambiente – assim como eu expliquei no início da entrevista a partir da mineração do ferro.
Acontece que a mineração do ouro ainda contém arsênio, que é ligado ao ouro geoquimicamente, e teremos mercúrio, chumbo, cádmio e assim por diante. E em todo o projeto, que eu tive a oportunidade de ler da primeira à última página, não há qualquer referência acerca do tratamento desses metais tóxicos.
Continua a mesma prática. Ou seja, vão pegar o minério, explodir, triturar, tratar quimicamente com cianeto, complexificar os elementos químicos, separar o lodo e o que sobrar vai ser colocado em bacias de sedimentação. Logicamente, o efluente gerado por tal prática acaba sendo rico em cianeto e metais tóxicos. O problema é que o tratamento do afluente dará conta apenas do cianeto. Vão tratar o cianeto com ácido que, ao reagir, quebra-o e produz nitrogênio e gás carbônico. Portanto, à medida que você usa esse ácido torna o rejeito mais ácido, o que biodisponibiliza os elementos tóxicos de uma maneira ainda mais eficiente para o ambiente. É preocupante, já que não dizem como vão tratar esses metais.
O que mais preocupa é que vão tirá-los dos efluentes, mas existe a possibilidade de jogarem no Rio Xingu. Isso está cantado, com todas as letras. Não se fala no texto do projeto sobre proteção ao Rio Xingu e as comunidades indígenas que vivem próximas do empreendimento e utilizam a água do rio para o seu consumo cotidiano. Elas não têm água tratada, nem mineral, e usam a água do rio. Assim, se os metais pesados forem jogados, logicamente vão afetar as comunidades indígenas. E não só elas, mas também diversas cidades ao longo do curso do rio.
Correio da Cidadania: Em suma, continua tudo armado para novas tragédias ambientais no Brasil.
Simone Pereira: Minha análise é baseada no próprio projeto, que eles disponibilizaram na página da Secretaria de Meio Ambiente. Não há qualquer referência ao tratamento dos metais pesados, assim como em Minas Gerais e em outros empreendimentos daqui do Pará.
Existe uma legislação que obriga as indústrias e as empresas a fazerem controles de efluentes. Não pode jogar metal tóxico no rio, há um limite máximo permitido. Só que como não é feita a fiscalização, não há a exigência do controle de todos aqueles metais. As SEMAs acabam fazendo exigências de coisas que não têm nada a ver, como pH e turbidez. E os metais continuam sendo jogados no rio. Lá tem essa particularidade. Eu fiz análise do Rio Xingu naquela área e já há um aumento de arsênio, até seis vezes maior do que o limite permitido. Isso ocorre porque ali já existe uma exploração de ouro feita artesanalmente por pequenos garimpeiros, que usam mercúrio na atividade de extração do ouro.
Se com a atividade artesanal já há um aumento do arsênio, imagina como este componente vai aumentar quando vier a mineradora em esquema industrial. Com a previsão de várias toneladas de ouro por ano a serem produzidas, teremos também muitas toneladas de arsênio no meio ambiente. E não há qualquer tipo de referência ao tratamento deste material no projeto da Belo Sun.
Raphael Sanz e Gabriel Brito são jornalistas do Correio da Cidadania
Chego à sacada e vejo a minha serra, a serra de meu pai e meu avô, de todos os Andrades que passaram e passarão, a serra que não passa. (…) Esta manhã acordo e não a encontro. Britada em bilhões de lascas deslizando em correia transportadora entupindo 150 vagões no trem-monstro de 5 locomotivas – o trem maior do mundo, tomem nota – foge minha serra, vai deixando no meu corpo e na paisagem mísero pó de ferro e este não passa.
“A montanha pulverizada” Carlos Drummond de Andrade.
Mariana (MG) – Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil)
Mariana (MG), quinta feira, 05 de novembro de 2015. A barragem do Fundão, repleta de uma lama tóxica (oriunda dos rejeitos da mineração de ferro), se rompe causando o maior desastre ambiental da história do país. A empresa responsável é a Samarco, de propriedade da Vale e da BHP Biliton, a maior mineradora do mundo.
Sexta feira, 13 de novembro de 2015. Mais de 130 pessoas são assassinadas em 6 ataques terroristas no 11º distrito de Paris. Mais de 350 feridos. A “cidade luz” se apagou. O mundo se estarreceu. O terror foi cirúrgico e coordenado em seu ataque.
Também em Paris, em janeiro, o terrorismo do Estado Islâmico (EI) atacou a redação do jornal “Charlie Hebdo”, matando 12 de seus integrantes, entre eles alguns dos chargistas que criaram imagens irônicas ao profeta Maomé.
Dois ataques, dois objetivos. No primeiro o objetivo era explícito: calar uma voz crítica ao “islamismo puro” do EI. No ataque de sexta, o objetivo era igualmente explícito: estádios de futebol, boates, bares e cafés não são mais lugares seguros em Paris, a cidade mais visitada do mundo. Turistas e parisienses não terão paz em locais de diversão.
Lembremos que o ataque da Al-Qaeda de 11 de setembro de 2001 nos EUA tinha como endereço o coração financeiro e político do imperialismo: as torres gêmeas do World Trade Center, o Pentágono e a Casa Branca. Terroristas gostam de mandar mensagens, explícitas ou subliminares, em seus ataques.
Muitas pessoas no Brasil se indignaram com o destaque, na verdade um verdadeiro massacre midiático das principais redes de TV, rádio e jornal do país, que exploraram e continuam explorando, à exaustão, o ataque, muitas vezes com informações pra lá de inúteis. Horas e mais horas de “coberturas exclusivas”, na maioria das vezes atrás de audiência a partir da desgraça alheia. Até a presidente Dilma, que demorou mais de uma semana para se pronunciar sobre o desastre humano/ambiental provocado pela Samarco-Vale-BHP Billiton em Minas Gerais, foi rápida em prestar solidariedade ao povo e ao presidente francês, François Hollande.
Não se trata de estabelecer paralelo ou comparações sobre o que é mais chocante ou mais digno de solidariedade. Se o escopo da abordagem se limitar a esse viés, essa é uma discussão estéril e que não nos serve de muita coisa. Não é mais “revolucionário” e/ou “válido” se solidarizar com Mariana e rechaçar a solidariedade ao povo francês. A questão é mais profunda.
Devemos repudiar veementemente o ataque terrorista em Paris. As vítimas, a maioria trabalhadores, com certeza inocentes, não tem responsabilidade direta sobre a nefasta política externa do governo francês. Ao mesmo tempo devemos manifestar nossa irrestrita solidariedade ao povo mineiro atingido pelo desastre do rompimento das barragens de lama tóxica da Samarco-Vale-BHP Billiton.
O desastre em Minas tem proporções extraordinárias. Os desaparecidos, os mortos, as cidades destruídas, as milhares de pessoas atingidas pela lama e pela falta de água, o crime ambiental, os animais mortos, o rio que de doce se transformou em fel, são apenas a ponta de um iceberg de descaso e destruição impostos pelo modelo de exploração de nossas riquezas naturais. Alguns especialistas afirmam que levará mais de 100 anos para que a situação volte ao normal. Exagero ou não, a verdade é que há cidades como Governador Valadares, com mais de 280 mil habitantes, que passaram dias e mais dias sem água para beber. Os caminhões-pipa chegaram a ser escoltados pela polícia, pois muitos foram saqueados. A que ponto chegamos? Brasileiros e brasileiras saqueando caminhões que transportam água! A empresa, que sequer tinha plano de emergência para um possível evento destes, está mais preocupada com o prejuízo econômico, que com as vidas perdidas e a destruição do meio ambiente. Nada de novo, afinal essa é a lógica do capitalismo.
Vamos agir e exigir que a Samarco-Vale-BHP Billiton seja devidamente responsabilizada pelo desastre. Mais que isso, precisamos saber das reais condições de segurança das 735 barragens semelhantes à do Fundão, que existem atualmente em Minas Gerais.
Outro “detalhe” importante, que não podemos esquecer: a Vale é uma das empresas que mais “doam” dinheiro nas campanhas eleitorais. Em 2014, através da Vale Energia, Vale Manganês, Salobo Metais, Minerações Brasileiras Reunidas e Mineração Corumbaense, todas ligadas à Vale, “contribuiu” com mais de 22 milhões de reais aos principais partidos. Foram mais de 11,5 milhões ao PMDB, mais de 3,1 milhões ao PT e ao PSDB, 1,5 milhão ao PSB e ao PCdoB e assim vai. Aliás, a imprensa já relatou que a maioria dos deputados estaduais de Minas Gerais, do Espírito Santo e mesmo os federais encarregados de investigar o rompimento das barragens, recebeu “doações” da Vale em valores que vão de 368 mil a meio milhão de reais.
As doações ao PMDB foram quatro vezes maiores que as feitas ao PT e ao PSDB por uma simples razão: o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), uma autarquia vinculada ao Ministério das Minas e Energia (MME), é o órgão responsável pela fiscalização da mineração no país. Tanto o DNPM quanto o MME são controlados pelo PMDB. Coincidência? Pouco provável.
Voltando a Paris e aos ataques terroristas. Algumas pessoas manifestaram uma certa simpatia acanhada ao ataque do EI. Afinal, raciocinam, atingiu um dos baluartes do império do capital. Pensamento simplista e equivocado. O ataque terrorista não atinge a política imperial francesa. Muito possivelmente vai não só reforçá-la, mas aprofundá-la. É possível que a direita francesa, capitaneada por Jean-Marie e Marine Le Pen, se fortaleça em sua xenofobia. Outra possibilidade, que já está se dando, é que o próprio Hollande, na tentativa de recuperar sua imagem, endureça a política externa.
A questão dos refugiados deve se acirrar depois dos ataques. Justamente o que o EI quer. Isso mesmo, o Estado Islâmico quer medidas mais radicais para combater a fuga das populações iraquianas e sírias dos territórios ocupados. Umas das maiores evidências dessa intenção são os indícios de que os terroristas e os homens bomba levavam passaportes sírios nos ataques, numa clara demonstração de que mesmo depois de mortos eles serviriam à causa de reprimir a acesso de refugiados ao velho continente. O Estado Islâmico está longe de ser uma organização progressista. O fundamentalismo religioso é a base de uma estrutura teocrática reacionária e fascista.
O EI é responsável pelo maior seqüestro de mulheres deste século. São cerca de 5 mil mulheres, na maioria crianças, chamadas de “sabya” (escravas de guerra) seqüestradas no Iraque, boa parte são da minoria Yazidi. Não menos que 80% delas são sistematicamente violentadas e estupradas. Há relatos de jovens estupradas por 18 homens durante horas. Muitas se matam, enforcadas, eletrocutadas ou degoladas. Crianças de 9 anos são violentadas em nome de uma leitura deturpada dos princípios islamitas. Usar perfume, roupa estampada ou menos de três véus, pode significar ser chicoteada ou apedrejada até a morte. Ao total são mais de 4 milhões de mulheres sob domínio facínora do Estado Islâmico. Não, isso nada tem de progressivo.
Entre tiros e bombas, a hipocrisia de Obama!
“Trata-se de um ataque não só contra os franceses, mas contra toda a humanidade e contra os valores que compartilhamos“. Com essa frase de efeito o presidente americano Barack Obama expressou sua “solidariedade” ao povo francês.
Vale a pena se debruçar sobre essa frase. O que afinal, o todo poderoso presidente americano quer dizer com “crime contra a humanidade”? Só o terrorismo do estado Islâmico é um crime contra a humanidade? Será que a política externa/militar dos EUA, que consome bilhões de dólares anualmente, não é uma ameaça à “humanidade”?
Uma pesquisa feita pela Worldwide Independent Network of Market Research (WINMR) e Gallup International, feita em 2013, e que ouviu mais de 66 mil pessoas em 68 países, constatou que uma em cada quatro pessoas vê os EUA como a mais importante ameaça ao planeta e à paz mundial. Lembrando que os EUA têm mais de mil bases militares estratégicas, espalhadas por mais de 100 países em todos os continentes. Atualmente o governo americano está diretamente envolvido em cerca de 80 conflitos ao redor do mundo. Na verdade desde a Guerra da Secessão (1861/65), não há um dia sequer que os EUA não estejam em guerra com alguma nação mundial. São 150 anos ininterruptos de guerra permanente. A rigor o maior estado terrorista do mundo é o próprio estado americano, os milhares de inocentes mortos em nome de sua “guerra ao terror”, não deixam dúvida disso.
Além disso, as agências de espionagem americanas mantêm um invasivo programa de vigilância global que elimina qualquer possibilidade de privacidade. Que o digam Angela Merkel e Dilma, que tiveram suas comunicações espionadas pela CIA.
Mas não apenas isso. Os EUA continuam a financiar e treinar militarmente diversos grupos pelo mundo afora, sempre em consonância com seus interesses econômicos, militares e políticos Recentemente o governo americano anunciou que desistiu de treinar soldados sírios e iraquianos que lutam contra o Estado Islâmico. Não por dor na consciência, mas por falta de material humano. O Secretário de Defesa americano, Ash Carter, reconheceu que a meta de treinar 5.400 soldados sírios, fracassou, pois só 60 candidatos se habilitaram para o programa, que tem recursos da ordem de 500 milhões de dólares. Há mais de três mil especialistas americanos em solo iraquiano, tentando treinar e armar grupos paramilitares para enfrentar o EI na região.
Aos olhos do mundo, e ao seu público interno, os EUA querem aparecer como principais oponentes do Estado Islâmico. Mas a verdade não é bem essa: o fato é que, num passado bem recente, os EUA treinaram, armaram e financiaram grupos como a Al-Qaeda, Saddam Hussein e o próprio Estado Islâmico. Para comprovar isso temos, além das revelações feitas pelo site Wikileaks (que disponibilizou mais de 3 mil documentos secretos sobres esse tipo de operação), a farta documentação divulgada pelo jornal inglês The Guardian. Além disso, basta observar as aparentemente contraditórias manobras político/militares estadunidense na região nos últimos 30 anos.
Durante a guerra Irã x Iraque o governo americano aliou-se a Saddam Hussein. Em 1985, ainda durante a guerra, Saddam Hussein enfrentou uma rebelião interna do povo curdo. Com a anuência dos EUA, Hussein aniquila a rebelião curda, usando para isso todas as armas possíveis, inclusive as já proibidas armas químicas. As baixas, entre iraquianos e iranianos, chegaram a 700 mil pessoas.
Na mesma época os EUA se envolvem em outro conflito importante: a guerra do Afeganistão. Desta vez apoiaram ninguém menos que um próspero jovem saudita chamado Osama Bin Laden, que coordenava um exército de aproximadamente 4 mil soldados.
Todas estas movimentações, que a princípio parecem erráticas, fazem parte das estratégias e táticas dos EUA e seus aliados para a região. A lógica parece ser a famosa “inimigo do meu inimigo, meu amigo é”. O problema é que, na maioria dos casos, os grupos financiados, treinados e armados pelos EUA, acabam, cedo ou tarde, se voltando contra estes mesmos americanos e aliados. O velho ditado “diz-me com quem andas e te direi quem és”, parece se aplicar perfeitamente aqui. Os EUA, que já andaram de braços dados com Saddam Hussein, Osama Bin Laden e o Estado Islâmico, tem pouca ou nenhuma autoridade para se posicionarem como paladinos da ética, da democracia e da luta em prol da “humanidade”.
Ao relembrar a frase de Obama, “Trata-se de um ataque não só contra os franceses, mas contra toda a humanidade e contra os valores que compartilhamos”, resulta óbvio que o central de suas preocupações está mais nos “valores” que ele tem, que na “humanidade”. Seus valores são a manutenção do domínio americano na região, a disposição de infringir derrotas ao governo russo, o monopólio dos recursos de combustíveis fósseis da região, o controle de uma região estratégica que funciona de ligação entre ocidente e oriente, a manutenção do estado de Israel como seu enclave militar, entre outros “valores” nada humanizados.
Outro registro de hipocrisia foi o revoltante silêncio que a imprensa mundial destinou ao ataque terrorista do grupo Boko Haram à aldeia de Kukawa, perto do lago Chade, no nordeste da Nigéria, quando 100 pessoas foram executadas. Parece que a morte de negros não é tão relevante quanto a morte de brancos.
Este histórico, cheio de siglas e com eventos ocorridos há décadas, foi necessário para demonstrar que os EUA não têm escrúpulos na sua política internacional. O que move seus posicionamentos são seus interesses econômicos, políticos e militares. Isso nada tem de “humano”. Se analisarmos a imbricada história da CIA nos golpes militares na América Latina, veremos o mesmo pragmatismo: o negócio e o lucro acima de tudo.
Dito isto reiteramos que estes atos terroristas não são ferramentas revolucionárias. São ações vanguardistas, apartadas das lutas de massa e que em geral acabam por prejudicar a luta revolucionária ao fortalecer indiretamente os setores mais à direita e ao se isolar da vida real dos movimentos sociais. A verdadeira luta contra o poder imperial do capitalismo se desenvolve nas ocupações urbanas, nas greves e mobilizações do povo trabalhador, nas lutas da juventude, na luta contra as opressões e contra a corrupção endêmica da sociedade burguesa. A revolução socialista será obra de milhões, e não de um grupo de iluminados, por mais abnegados e corajosos que estes sejam. O que, diga-se de passagem, não é o caso do Estado Islâmico.
Uma das conseqüências mais nefastas destes ataques vai ser sua associação ao afluxo de refugiados oriundos da Síria. A Europa já recebeu, só esse ano, mais de 700 mil refugiados. Se vimos muitas demonstrações de solidariedade, também vimos comportamentos xenófobos extremamente violentos. A guerra na Síria assumiu as proporções atuais justamente porque é uma peça do tabuleiro mundial da disputa das potências capitalistas, logo o continente europeu é diretamente responsável pelo que acontece na Síria. Assim sendo não pode se omitir ou rechaçar a horda de homens, mulheres e crianças que diariamente chegam ao continente. As pessoas estão fugindo da morte, da miséria e da guerra. No passado ninguém ousaria rejeitar ou repatriar os milhões que fugiram do nazi-fascismo. Não aceitamos o fechamento das fronteiras. Se quisermos resgatar o “humano” nisso tudo, devemos exigir abrigo e acolhimento aos refugiados.
Não nos esqueçamos que muitos países europeus (Inglaterra, Espanha, Portugal, França, entre outros) construíram boa parte de sua bonança, saqueando países na Ásia, África e América. Os conquistadores e invasores europeus não bateram na porta, não pediram permissão. Se impuseram pela força da espada e da baioneta, não pela diplomacia.
Lembremos ainda, que a sociedade burguesa-democrática não se estabeleceu democraticamente. Muito menos por meios pacíficos. A sociedade socialista também significará uma ruptura. O grau de virulência e violência que essa ruptura terá não pode ser estabelecido de antemão, mas é pouco provável que seja tratada no campo da diplomacia. Logo a polêmica aqui não é entre pacifistas e não pacifistas, mas quais métodos são válidos na luta revolucionária e quais não são. E este tipo de ataque definitivamente não se encaixa na luta socialista. Nem pelo método, nem pelos protagonistas.
Com o alarmante número de homicídios que o Brasil tem, a cada dois ou três dias temos números iguais, ou superiores, aos dos atentados de Paris. Nossa juventude, em geral os negros da periferia, morrem aos montes, seja nas chacinas tradicionais cada vez mais freqüentes, seja na chacina de “doses homeopáticas” que acontece diariamente pelo Brasil afora. Isso não parece incomodar mais ninguém. Foi naturalizado. O estado trata da questão como estatística e boa parte da sociedade já não se incomoda com esse genocídio diário a que estamos submetidos. Alguns até defendem.
Por isso mesmo não podemos nos calar diante desse massacre e nem diante dos ataques terroristas. É preciso denunciá-los e repudiá-los de forma veemente.
Mariana e a morte da inocência
A volúpia e a sanha capitalista não têm o menor pudor em sacrificar a vida e a natureza. O que parece insano, na verdade segue a lógica do capital. Vejamos os números da fome no planeta na opinião de um especialista na área. Jean Ziegler, relator para o direito à alimentação da ONU entre 2000 e 2008, revela que a cada 5 segundos, uma criança de menos de 10 anos morre de fome no mundo. Mais de 56 mil pessoas morrem de fome a cada dia e 1 bilhão de seres humanos são permanentemente subalimentados. Em 2013 aproximadamente 70 milhões de pessoas morreram. Destes, 18,2 milhões morreram de fome ou de suas conseqüências imediatas. A fome é, portanto, a maior causa de mortalidade do nosso tempo!
Não existe falta de alimentos, o que falta é a comida chegar a quem precisa. Atualmente a população global gira em torno de 7,2 bilhões de habitantes. A agricultura mundial poderia alimentar normalmente, com uma dieta de 2,2 mil calorias por dia, 12 bilhões de pessoas. O setor de alimentos é o mais concentrado e cartelizado da economia mundial, mais até do que o petróleo. Há 10 grupos multinacionais que controlam 85% dos alimentos comercializados no mundo. A fome é, fica evidente, um problema político e econômico. Só quem tem dinheiro pode comer. Outros direitos universais, como educação e saúde seguem a mesma lógica irracional.
Se o capitalismo faz isso com a humanidade, que dizer do que faz com a natureza? O “humanizado” Barak Obama se recusa a assumir compromissos efetivos na redução do aquecimento global e na redução do efeito estufa. A cada ano os EUA despejam 5.762.050 toneladas de gás carbônico na atmosfera, sem o menor compromisso com a qualidade de vida no planeta. Aliás, este será um dos temas a ser debatido em Paris, quando da realização da COP21 (Conferência Mundial do Clima).
O desastre em Mariana revela toda a hipocrisia de nossa legislação e prova, na prática e de maneira dramática, que o propalado “compromisso social” das empresas não passa de propaganda enganosa. Vejamos o exemplo do rompimento das barragens, que já é considerado como uma das maiores tragédias do mundo na área da mineração. A empresa Samarco-Vale-BHP Biliton, não possuía Plano de Ação para situações como essa. Pelos seus “cálculos” o município de Bento Gonçalves, destruído pela lama, não fazia parte da área de abrangência dos impactos da barragem. A “vistoria” e o “laudo” atestando perfeitas condições da barragem podem ser feitos pela própria empresa ou por alguém pago por ela. É como se colocássemos o lobo para tomar conta do galinheiro, esperando que ele zele pela segurança e saúde das galinhas.
A Vale, que tirou o rio doce de seu nome, está ajudando a Samarco a matar o rio que lhe deu origem.
Segundo o IBAMA, foram 5 rompimentos de barragens nos últimos 10 anos, o que comprova o risco dessa atividade e a decadência das legislações em vigor. A morosidade da lei beneficia os grandes empreendimentos. O DNPM, que deveria fiscalizar e controlar a produção mineral, funciona mais como uma subsecretaria das grandes mineradoras e não como órgão de controle. Em 2014, tinha à sua disposição 10 milhões de reais para garantir a fiscalização da produção mineral, mas só usou 13% desse valor, ou seja 1,3 milhão. Em Minas Gerais, tem apenas 4 fiscais para as mais de 700 barragens no estado. A situação do IBAMA não é menos revoltante: aplicou mais de 4,8 bilhões de reais de multas. Mais de 2 bilhões são multas sem qualquer possibilidade de recurso, mas como quase ninguém paga essas multas, o órgão só arrecadou pouco mais de 140 milhões de reais. As multas aplicadas à Samarco até agora somam R$ 250 milhões. A pedido do Ministério Público Federal e do MPE de Minas Gerais a Samarco, através de um acordo, vai desembolsar 1 bilhão de reais para recuperar o meio ambiente da região. Uma ninharia se comparada à multa de mais de 170 bilhões de reais, aplicada pelo governo dos EUA à empresa BP, que em 2010 causou um vazamento de óleo no Golfo do México.
A produção minero-metalúrgica tem alavancado a economia de muitos estados e do país, mas os custos sociais, o gasto com energia e com água, os impactos ambientais e a degradação da natureza são enormes. O lucro imediato sacrifica a vida futura. Esse é um preço que não deveríamos pagar.
Estima-se que o transporte do minério de ferro, via mineroduto (que usa água como vetor de transporte) utilize anualmente mais de 13 trilhões de litros de água. A Samarco-Vale-BHP Biliton tem um dos maiores minerodutos do mundo. Enquanto isso a população mineira e do entorno das barragens sofre com rios mortos e sem água. Tudo isso é visto como normal pela lógica do capital.
O Brasil, atolado até o pescoço no mar de lama da corrupção, agora está atolado literalmente na lama dos grandes projetos, que causam impactos terríveis ao meio ambiente sem que nenhum retorno seja proporcionado às comunidades atingidas. A “mitigação” desses efeitos ou as “políticas compensatórias” beiram o ridículo e a provocação ao bom senso. É como se uma mega empresa derrubasse sua casa e desse em troca uma rede para atar entre os postes de energia elétrica e esperasse que você ficasse satisfeito e feliz.
Muitos estudiosos chamam essa volúpia predatória, esse saque desenfreado e ensandecido que destrói irremediavelmente a natureza, de terrorismo ambiental. Uma nova espécie de violência continuada que, em nome de um suposto “desenvolvimento”, está exaurindo recursos naturais, criando demandas artificiais e supérfluas para satisfazer o deus-mercado, que move a engrenagem do mundo do capital.
Não se trata de propaganda panfletária nem de uma visão catastrofista. Trata-se de uma definição bastante real, que aponta para a real dimensão dos danos que estão perpetrados contra a humanidade e a natureza.
Paris e Mariana são, portanto, vítimas de ataques terroristas. São dois lados de uma mesma moeda. Não construamos falsas dicotomias entre estes dois eventos. A causa, por mais simplista que possa parecer, está no capitalismo. Um sistema que deixa 56 mil pessoas morrerem de fome a cada dia e que prostitui a natureza, em nome do “desenvolvimento e do progresso”, não merece mais prosperar. O capitalismo, já está mais que comprovado, esgotou suas possibilidades de solução criativa e harmônica dos dilemas que ele mesmo engendrou. Está na hora de pensarmos grande, na hora de construirmos o fim desse sistema. Está na hora do Socialismo e da Liberdade.
A serra do poeta Drumond de Andrade não existe mais, britada que foi em milhões de lascas. O rio que desde suas margens viu Sebastião Salgado crescer está cego e morto. A poesia perdeu a inspiração. A vida, para reflorescer, precisará de muito tempo. Um tempo que talvez não tenhamos mais. Fica a lição, a revolta e a certeza da falência desse modelo.
Só um modo de produção livre das amarras do mercado e da propriedade privada pode estabelecer relações harmônicas entre a técnica, a humanidade e a natureza, construindo uma unidade de interesses em nome do bem comum e da superação definitiva dos antagonismos e das opressões que tem marcado a história recente da humanidade. Utopia? Pode até ser, mas uma bela utopia que vale à pena ser vivida.
Belém, novembro de 2015.
Fernando Carneiroé membro do DN do PSOL e vereador em Belém do Pará