Autor: Redação Lauro Campos

  • Neoliberalismo, Estado de mal-estar social

    Neoliberalismo, Estado de mal-estar social

    Não basta que o pensamento procure se realizar; a realidade deve compelir a si mesma em direção ao pensamento.” – Karl Marx

    Sergio Granja
    Sergio Granja

    Na regulação das relações que os homens estabelecem entre si, configuram-se direitos sociais, que constituem garantias de solidariedade na comunidade humana. Em todos os tempos, eles são objeto de uma encarniçada disputa. Em torno deles se armou o cenário das lutas de classe nos países capitalistas centrais. Entre esses direitos, a escola pública gratuita, laica e universal foi uma das primeiras conquistas, nascida da Revolução Francesa. Seguiram-na como direitos sociais conquistados pelas forças populares: a saúde pública, a previdência social, a assistência social, etc.   Esse conjunto de direitos sociais deu origem, após a II Grande Guerra (1939-1945), aowelfare State [Estado de bem-estar], contra o qual o capital lançou a ofensiva neoliberal.

    Assim, ao longo das lutas de classes no mundo capitalista, foi se afirmando a ideia de que o Estado é responsável pela proteção dos setores sociais mais vulneráveis economicamente.  Mas foi só com o welfare State que se consolidou o conceito de Seguridade Social.

    A Seguridade Social abarca o tripé saúde, previdência e assistência social.   No Brasil, esse conceito foi plasmado pelo art. 194 da Constituição de 1988, baseado na noção de “pacto entre gerações” e no “princípio da solidariedade”, segundo os quais os benefícios presentes e futuros dos trabalhadores são custeados pelas contribuições passadas, presentes e futuras de toda a sociedade.

    A Constituição de 1988 consagrou direitos sociais que são contestados pela direita desde a sua promulgação.  Muitos desses direitos foram sistematicamente ignorados e, em alguns casos, revogados sumariamente.  Na linha de fogo dos ataques da direita encontra-se o próprio conceito de Seguridade Social nos termos em que está inscrito na Constituição de 1988.

    Collor, Fernando Henrique e Lula intentaram contrarreformas da Previdência Social, sempre na mesma linha de revogação de direitos sociais.  Alguns desses intentos contrarreformistas obtiveram êxitos e resultaram seja na perda de arrecadação de recursos da Seguridade Social (através de isenções fiscais e contrarreformas tributárias), seja na perda de direitos previdenciários de categorias específicas, seja na depreciação de aposentadorias, pensões e benefícios de uma forma geral, seja na dilatação do tempo de contribuição ou do aumento da idade para a aposentadoria.

    A Constituição de 1988 garantiu os recursos para o financiamento da Seguridade Social, assegurando o provimento dos direitos sociais.  Na atual quadra da vida política nacional, defender o marco legal da Constituição de 1988 é barrar a ofensiva neoliberal contra os direitos sociais por ela consagrados.  Por isso, é inadiável o comprometimento com a luta em defesa dos direitos sociais consagrados no dispositivo constitucional de 1988, particularmente no que se refere à Seguridade Social e à Previdência.  Aliás, o PSOL nasce da resistência dos trabalhadores e de uma fração dos parlamentares petistas à contrarreforma previdenciária levada a cabo pelo governo Lula.

    À política de desmanche do Estado – como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social -, de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego deu-se o nome de neoliberalismo.  Todavia o Estado neoliberal continua operando na esfera econômica como grande consumidor de mercadorias e contratador de serviços, mas também através de mecanismos tributários, fiscais e financeiros de transferência de renda para o setor privado e da contenção das lutas sindicais e populares.

    Trata-se da velha ideologia liberal, que correspondia à época do capitalismo de livre concorrência, só que ressurgida em condições históricas de crescente monopolização da economia, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, apontando não para o pluralismo, mas para a homogeneização, a massificação, a uniformização do consumo de descartáveis, a tendência ao pensamento único.  O discurso liberal é o mesmo, mas o acontecimento discursivo é outro.

    Antes de se generalizar como diretriz de política econômica dos países capitalistas – em reação contrarreformista à estagflação gerada pela crise de 1973-1979, que colocou em xeque o welfare State –, o neoliberalismo foi implantado, primeiro, no Chile de Pinochet (1973-1990) e, em seguida, na Inglaterra de Thatcher (1979-1990) e nos Estados Unidos de Reagan (1980-1988).

    Perry Anderson, em Balanço do neoliberalismo (1994),  considera que a Inglaterra de Margaret Thatcher encarnou a forma canônica do neoliberalismo.  “O modelo inglês – diz Perry Anderson – foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.”

    No Brasil, o neoliberalismo surge como política de governo sob a presidência de Collor (1990-1992); atinge o seu clímax no PROER e no auge das privatizações durante os governos FHC (1995-2002); e tem seguimento, atenuado por políticas compensatórias, nos governos de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2014). Em 2015, a crise bate à porta dos brasileiros e as políticas de “ajuste” do governo Dilma apontam para o aprofundamento das políticas neoliberais, com novas perdas de direitos sociais e desidratação das políticas compensatórias.

    No ensaio A época neoliberal: revolução passiva ou contrarreforma?, Carlos Nelson Coutinho conceitua a época neoliberal como um período de contrarreformas.

    As consequências sociais do neoliberalismo são graves: a combinação de desemprego, exclusão social e apelo ao consumo – numa sociedade atomizada pelo individualismo e pela competitividade, na qual o marketing dita a moda e as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são – delineia um quadro de degradação da convivência social que fomenta a desesperança, a violência e a barbárie.

    Resistir aos “ajustes” é preciso!

    Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos

  • Cid Gomes no MEC: uma escolha coerente para aprofundar a contrarreforma da educação brasileira

    Cid Gomes no MEC: uma escolha coerente para aprofundar a contrarreforma da educação brasileira

    Roberto Leher
    Roberto Leher

    Os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff romperam com o projeto de educação do PT dos anos 1980 e 1990, elaborado no contexto das lutas do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, em especial na Constituinte e na LDB, nas quais sobressaiu a liderança de Florestan Fernandes, e no período de elaboração do Plano Nacional de Educação dos Congressos Nacionais de Educação (1996-1997): por isso, jamais admitiram considerar o Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira elaborado pelos trabalhadores da educação, entidades acadêmicas, estudantes, reunidos no referido Fórum.

    A opção destes governos, por suas alianças de classes, foi subordinar a educação pública aos anseios do capital, por meio de parcerias público-privadas, operacionalizadas pela expansão do FIES e pela criação de um programa de isenções fiscais para o setor mercantil (ProUni), possibilitando o crescente controle da educação privada pelo setor financeiro, pela incorporação da totalidade da agenda educacional dos setores dominantes (Todos pela Educação) nas diretrizes oficiais para educação básica (Plano de Desenvolvimento da Educação, 2007; Plano Nacional de Educação, 2014) e pela admissão de que cabe aos patrões conceber a educação profissional da classe trabalhadora (Pronatec).

    O PT, após 2003, parece ter assimilado a nova agenda sem maiores questionamentos: os seus ministros a implementaram de modo diligente. Não haverá descontinuidade na política com o afastamento do PT do comando do MEC, mas haverá mudanças. O novo ministro aponta um aprofundamento da contrarreforma e, pelo retrospecto de seus mandatos como governador, um recrudescimento do confronto do governo com os trabalhadores da educação básica e superior.

    Cid Gomes e as universidades estaduais: uma relação de confronto

    A trajetória do novo ministro é afim ao projeto em curso de expandir a oferta privada, com recursos estatais, e de refuncionalizar as universidades como organizações de serviços e ensino. A sua relação com as universidades estaduais do Ceará foi hostil e rude, manifestando disposição de federalizá-las (1) e mesmo de fechar o prestigioso curso de medicina da UECE, provavelmente por ser muito custoso (2). Mesmo diante da enorme falta de docentes, mais de 800 nas três universidades estaduais, procrastinou a realização de novos concursos (optando por deletérios contratos temporários e terceirizações) até o final de seu segundo mandato.

    Uma breve cronologia das lutas permite magnificar a intransigência e a ausência de prioridade à educação no governo de Cid Gomes: os sindicatos protocolaram a pauta em fevereiro de 2011, realizaram diversos atos, mas o governador somente recebeu as entidades e os reitores em novembro de 2012. A intransigência se manteve. No lugar de concursos, Cid autorizou apenas a contratação de professores substitutos que recebem menos da metade dos efetivos. Em outubro de 2013, objetivando acelerar a resolução dos problemas, os docentes deflagraram uma greve que se prolongou até janeiro de 2014. Os docentes suspenderam a greve a partir do compromisso de que o governo negociaria com a categoria. Novamente, as principais reivindicações não foram negociadas e, em setembro de 2014, a greve foi retomada. A gestão Cid Gomes foi encerrada sem que o governador tivesse negociado com os docentes que, após 4 meses marcados pela ausência de diálogo, no início de janeiro de 2015 ainda se encontravam em greve para impedir o total sucateamento das estaduais.

    Ao justificar a sua recusa em autorizar novos concursos, o governador argumentou que os docentes ministram poucas aulas, propondo que a carga-horária em sala de aula deveria corresponder a 52% da jornada de trabalho, aproximadamente 21 horas-aula, o que ele chamou de “chão de sala de aula”, sem considerar nem mesmo o tempo para planejamento das aulas, o que inviabiliza as orientações, a pesquisa e a extensão.

    Embora tenha havido crescimento nominal dos recursos para as três estaduais, houve decréscimo em termos da participação do orçamento das universidades em relação ao orçamento total: em 2007, os gastos das estaduais correspondiam a apenas 1,54% do orçamento; em 2012, o percentual foi reduzido para minguados 1,46%. Desse modo, os gastos ficaram muito aquém da expansão de vagas e foram destinados, especialmente, aos contratos temporários (os gastos nesta rubrica cresceram, entre 2007 e 2012, 169,63%) e para as terceirizações do pessoal (2007-2012: +1.643%) (3).

    A consequência prática dessas medidas foi o favorecimento do setor empresarial, que seguiu expandindo vorazmente no estado. Com efeito, no Ceará, as matrículas entre 2000-2010 cresceram 114%, sendo que o setor privado teve expansão de 245% e o público de 45%. No Ceará, o setor mercantil foi turbinado pelo FIES e o PROUNI, que, entre 2010 e 2013, ampliou em 358% os beneficiários dos subsídios públicos para o setor mercantil. A grande expansão se deu no FIES que, no período, cresceu 559%, enquanto o PROUNI cresceu 80% (4), ampliando de modo impressionante os estudantes endividados. A expansão do setor mercantil conheceu um período de ouro nas gestões Lúcio Alcântara, PSDB (2003-2007) e Cid Gomes (2007-2014).

    Educação básica

    A despeito de que o governador não tenha sido um membro orgânico da criação do lobby empresarial, a exemplo de Fernando Haddad e de José Henrique Paim, foi em sua gestão na prefeitura de Sobral e, depois, no governo do Ceará, que uma das mais importantes medidas da agenda empresarial foi testada: o Programa Alfabetização na Idade Certa, posteriormente incorporada pelo MEC como política nacional no Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa – PNAIC. Com efeito, o governador assinou em 24 de maio de 2007 adesão ao programa Compromisso Todos pela Educação e, desde então, aplicou diligentemente a agenda empresarial, sendo reconhecido pelos donos do dinheiro e do poder como um importante protagonista da reforma empresarial da educação na região Nordeste, no caso, do ensino fundamental.

    Desse modo, os setores dominantes lograram difundir uma nova concepção de alfabetização funcional ao trabalho simples, restrita ao velho paradigma das primeiras letras referenciado na decodificação de letras, sílabas e palavras, desvinculadas da semântica, do uso social da escrita e da leitura, situação que explica, em grande parte, a existência de milhões de crianças e jovens que, a despeito de serem considerados alfabetizados, não são capazes de utilizar criativamente a escrita como uma dimensão da comunicação e do diálogo.

    O capital, nesse momento, almeja estender essa concepção instrumental e minimalista para todo ensino médio. Após ter hegemonizado a concepção de ensino fundamental, o Todos pela Educação vem orientando seus publicistas para difundir a necessidade da reforma do ensino médio, tido como muito abrangente e pouco focado nas “competências” instrumentais de português e matemática. Para isso, os seus funcionários vêm defendendo a necessidade de reformar o currículo do ensino médio. Argumentam que, no Brasil, ciência, cultura, arte, conhecimentos histórico-sociais são um luxo anacrônico. Não surpreende que, em sua primeira declaração como ministro da Educação, Cid Gomes tenha explicitado que essa reforma do ensino médio será a sua prioridade, meta reafirmada por Dilma Rousseff em seu discurso de posse.

    A sua nomeação, na cota pessoal de Dilma, anuncia também o recrudescimento das ações contra os docentes que, em especial, desde 2011, vêm promovendo cada vez mais lutas em prol de uma carreira digna. Ao lado dos governadores de RS, MS, SC e PR, em 2008 patrocinou uma ação no STF contra a lei do piso salarial (Lei 11.738/08). O magro piso foi conquistado no estado após uma dura greve de 64 dias, em 2011, a exemplo da conquista do (reduzido, apenas 1/3 da jornada) tempo de preparação de aulas, uma vitória dos trabalhadores da educação pois, na ocasião, o governador sustentou, ao patrocinar a ADIN contra a lei do piso, que o docente deveria permanecer 40 h em aula (5). Diante desta áspera greve, Cid Gomes afirmou: “Quem quer dar aula faz isso por gosto, e não pelo salário. Se quer ganhar melhor, pede demissão e vai para o ensino privado” (6). Na ocasião, um docente graduado, em regime de 40 h, recebia um vencimento de R$ 1,3 mil.

    O retrospecto de seu governo indica que a educação será a “prioridade das prioridades” de forma sui generis: o governo tucano de Lucio Alcântara (cabe grifar, tucano!) destinou para a função educação 28,25% do total do orçamento. Cid Gomes, em 2012, destinou apenas 18,06% (Anexo II, RREO, LRF), queda que pode ser magnificada também pelo percentual do PIB do Ceará destinado à educação : em 2007, 3,93%, em 2012, 2,6% (IPCE, Anexo II, RREO e balanço geral).

    As suas prioridades foram outras. Nem todas as atividades públicas deveriam ser caritativas, praticadas “em nome do amor”. Em 2007, fretou um jatinho por R$ 340 mil e levou a família para passear na Europa, hospedando-a nos mais caros hotéis, uma conta de R$ 35 mil (7). Em 2010 foi denunciado pela “farra do caviar”. Trata-se de um contrato de um buffet por R$ 3,4 milhões para servir a residência e o palácio de governo com caviar, escargots etc. (8).

    Sentidos da política educacional em curso

    O fato de o novo ministro não ter sequer mencionado a universidade em sua primeira entrevista – a despeito do peso relativo das universidades federais para o MEC – é uma demonstração de organicidade e coerência com as atuais políticas educacionais e com o aprofundamento da agenda do Todos pela Educação. Afinal, um ensino médio instrumental, focalizado nas ditas competências mínimas, expressa um projeto educacional em que o conceito de universidade pública é uma ideia fora do lugar. As políticas atuais, dirigidas pelo empresariado, têm como pressuposto que o setor produtivo, ou melhor, o mercado, não demanda força de trabalho complexa e, por isso, o nexo lógico é o PRONATEC e seus cursos de curta duração, instrumentais, destinados a suprir a força de trabalho simples e a socializar, ideologicamente, o exército industrial de reserva. A nomeação de Kátia Abreu da CNA para a pasta da agricultura e de Armando Monteiro da CNI para o ministério do Desenvolvimento robustecem a presença do Sistema S na educação profissional brasileira, respectivamente por meio do PRONACAMPO e do referido PRONATEC.

    Desse modo, o desprestígio das universidades federais, expresso por sua invisibilidade na campanha eleitoral – Dilma Rousseff nada disse sobre a importância das mesmas nos debates e entrevistas, a exemplo de Aécio Neves –, é congruente com a política econômica em prol do setor bancário, das finanças, do extrativismo e das commodities em geral. Cabe destacar a pertinência dessas orientações com as políticas de Ciência e Tecnologia em curso. Não é casual que o novo ministro da Ciência e Tecnologia, Aldo Rabelo, tenha sido um dos líderes da aprovação do novo código florestal brasileiro, confrontando as entidades científicas e os movimentos sociais. As suas críticas aos relatórios do órgão da ONU Painel Intergovernamental para a Mudança Climática – IPCC, na sigla em inglês –, ecoando a tese de que o aquecimento global é uma “controvérsia”, nos mesmos termos dos cientistas financiados pelas corporações petrolíferas e da indústria automobilística, igualmente merecem destaque, pois congruentes com a política extrativista e de fortalecimento da economia baseada em commodities.

    Todos esses setores (financeiros, commodities, serviços) não demandam universidades capazes de produzir conhecimento novo. Após um curto período de relativa expansão de recursos (2007-2012), muitas universidades federais voltaram ao cotidiano dos anos 1990: contas de energia e telefonia atrasadas, terceirizações toscas, que sequer são custeadas até o final do ano, interrompendo serviços importantes, e visível decadência das instalações físicas, que já não pode ser edulcorada por argumentos de que, no futuro, tudo estará bem.

    Se a pesquisa acadêmica, direcionada para os problemas lógicos e epistemológicos do conhecimento, não tem lugar na agenda, nem tampouco a ciência e tecnologia comprometidas com os problemas atuais e futuros dos povos, o mesmo não é verdade em relação à prestação de serviços. É cristalina a orientação da presidenta Dilma. Em seu discurso de posse, a missão da universidade é uma só: servir o setor produtivo a partir de parcerias. Fomentando o mercado educacional nos países centrais, manterá a custosa prioridade ao programa Ciência sem Fronteiras, ainda que a quase totalidade dos estudantes tenha uma muito breve interação com essas universidades, em geral duas disciplinas e pouca ou nula inserção na pesquisa. Os recursos destinados para o Programa originalmente seriam custeados meio-a-meio com o setor empresarial, que, entretanto, não demonstrou interesse. Assim, os recursos que jorram para adquirir serviços educacionais dentro e fora do país são justamente os que faltam para melhor estruturar a universidade brasileira.

    Em resumo, a presidenta mostrou coerência com o seu projeto e com a sua aliança de classes. Contrariando expectativas pueris, optou por um ministro que já demonstrou que o seu modus operandi para enfrentar os docentes é rude e sabe enxugar o orçamento educacional. O novo ministro muito dificilmente irá se contrapor ao projeto em curso que aprofunda a adaptação das universidades ao modelo da educação terciária minimalista, nos moldes de Bolonha e dos community colleges. O teor ideológico da educação foi magnificamente sintetizado pela presidenta: “Brasil, Pátria Educadora”. O dever de assegurar a educação é difuso, diluído no suposto patriotismo, a despeito das classes sociais, encaminhado pelos “valores da pátria”, um discurso que orgulharia o Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo e os formuladores da educação e moral e cívica dos anos de Chumbo.

    Desafios para a defesa da educação pública

    Diante do novo cenário, os encaminhamentos do I Encontro Nacional de Educação (2012) terão de ser ajustados. Será temerário adiar uma nova convocação nacional para 2016, quando a contrarreforma poderá ter avançado de modo profundo sobre a educação pública unitária. Em 2015, acontecerão diversos encontros que poderão servir de emolumento para que a frente em defesa da educação pública possa ser ampliada, como o II Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária – ENERA. De fato, diversos setores sindicais e acadêmicos têm manifestado disposição de retomar o diálogo com prol de uma frente capaz de empreender unidade de ação na defesa dos princípios que orientam a escola pública gratuita, universal, unitária e laica, mas tal processo não se dará de modo espontâneo e, por isso, a convocatória de um novo encontro, ainda mais aberto ao protagonismo de base, não pode ser adiada.

    Estamos em contexto de aviso de incêndio, para utilizar a metáfora benjaminiana, e, por isso, as movimentações em prol da educação pública terão de ser ousadas, rápidas e efetivas, sob o risco de derrotas longas e duradouras. O histórico recente de greves da educação básica e superior e de lutas da juventude atesta que a disposição de luta está pulsando forte e, em 2015, as ruas poderão estar ocupadas por todos os que lutam por uma educação pública unitária.

    Notas:

    (1) Cid defende federalizar universidades estaduais. Diário do Nordeste, 10/08/2010,http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/…/cid-defende-fe…

    (2)http://www.opovo.com.br/…/not…/cid-a-medicina-e-a-uece.shtml

    (3)Palavra de Ordem, jornal dos sindicatos das universidades estaduais do Ceará, Ed. 3, novembro de 2013.

    (4)Número de beneficiados do Fies e Prouni cresce 358% no Ceará. O Povo online, Jornal de Hoje, 21/03/2014, disponível em: http://www.opovo.com.br/…/numero-de-beneficiados-do-fies-e-…

    (5) Tiago Braga, Professores do Ceará decretam greve, O Povo on Line, 28/11/2008, disponível em: http://www.mundosindical.com.br/sindi…/noticias/noticia.asp…

    (6)Daniel Aderaldo, iG Ceará, 29/08/2011.

    http://ultimosegundo.ig.com.br/…/profes…/n1597184673225.html

    (7)Rudolfo Lago, O voo da sogra, Governador do Ceará aluga jato com dinheiro público e leva família à Europa. Isto É, 23.Abr.08,

    (8) http://www.istoe.com.br/reportagens/2826_O+VOO+DA+SOGRA

    http://oglobo.globo.com/…/deputado-vai-pedir-que-mp-investi…

    Roberto Leher é professor titular de Políticas Públicas em Educação da faculdade de Educação da UFRJ e de seu programa de pós-graduação, colaborador da ENFF e pesquisador do CNPQ.

    Fonte:  Correio da Cidadania, Qui, 08 de Janeiro de 2015

  • Nota do PSOL sobre alterações nos direitos trabalhistas e previdenciários

    Nota do PSOL sobre alterações nos direitos trabalhistas e previdenciários

    Charge_criseDois dias antes da posse para seu segundo mandato, a presidenta Dilma Roussef anunciou, através do Ministro-Chefe da Casa Civil, alterações nas regras para a concessão de cinco benefícios previdenciários: seguro desemprego, auxílio defeso, pensão por morte, abono salarial e seguro doença. As mudanças fazem parte do chamado “ajuste fiscal” que o governo tem feito com o objetivo de enxugar os investimentos públicos e, assim, economizar o suficiente para seguir bancando a farra dos especuladores que lucram com as altas taxas de juros praticadas pelo governo brasileiro. A estimativa do governo é que estas medidas “economizem” até R$ 18 bilhões de reais.

    Esse ataque aos direitos dos trabalhadores visa dificultar o acesso a esses benefícios. Um pescador artesanal, por exemplo, agora terá que trabalhar três anos sem qualquer amparo antes de requerer o auxílio defeso, benefício pago pelo governo no período em que a pesca é proibida devido à reprodução dos peixes. A pensão por morte, por sua vez, só será paga ao dependente se quem morrer tiver contribuído por, pelo menos, 24 meses. Assim o governo institui uma espécie de “carência” nos moldes dos planos de saúde privados, impedindo que este benefício seja concedido a milhões de pessoas que dele necessitarão a partir de agora. Quanto ao seguro desemprego, essencial para garantir uma recolocação no mercado de trabalho, só será concedido caso o trabalhador tenha tido ao menos 18 meses de carteira assinada, triplicando o tempo exigido atualmente. Um absurdo num mercado de trabalho com alto índice de rotatividade!

    Tudo isso serve a um propósito: ajustar as contas para agradar o mercado e o grande capital. Em vez de cobrar a conta da crise econômica dos bilionários que seguem lucrando como nunca, o governo opta por dividir a fatura da crise com quem mais precisa: os desempregados, os dependentes que perdem seus companheiros ou companheiras, os pequenos pescadores, os trabalhadores que se afastam do trabalho por doenças que o impeçam de continuar com suas atividades laborais.

    E tudo feito no apagar das luzes de 2014 com o beneplácito de centrais sindicais vendidas ao governo, sem qualquer autonomia para opor-se a este ataque aos direitos trabalhistas e previdenciários! Com isso, Dilma demonstra que seu governo, longe do que foi proclamado por ela no segundo turno das eleições, será marcado por mais arrocho e menos direitos para os mais pobres e para aqueles que vivem do seu trabalho.

    O PSOL repudia as medidas anunciadas pelo governo e reafirma seu compromisso com os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Teremos um 2015 de muitas lutas, enfrentando desde já todos aqueles que atacarem os direitos do povo brasileiro. Para isso, fortaleceremos as iniciativas desatadas pelos movimentos sociais para lutar por mais direitos e barrar qualquer ofensiva contra os trabalhadores. Se o governo e os patrões terminaram 2014 atacando os direitos trabalhistas e previdenciários, começaremos 2015 de pé, lutando contra este e outros retrocessos que as elites tentarão impor.

    Venceremos!

    Executiva Nacional do PSOL
    30 de Dezembro de 2014

  • Os plutocratas contra a democracia

    Os plutocratas contra a democracia

    A direita, mesmo indo às urnas, sempre se sentiu incomodada com a democracia

    Paul_Krugman
    Paul Krugman

    Sempre é bom que os governantes digam a verdade, especialmente se não era essa a intenção. Por isso temos de agradecer que Leung Chun-ying, chefe do executivo de Hong Kong respaldado por Pequim, tenha deixado escapar a verdadeira razão pela qual os manifestantes pró-democracia não podem conseguir o que querem: em eleições abertas, “estaríamos dirigindo-nos a essa metade da população de Hong Kong que ganha menos de 1.800 dólares por mês. E acabaríamos tendo esse tipo de políticos e de medidas políticas” (certas políticas, supomos, que fariam com que os ricos fossem menos ricos e proporcionariam mais ajuda a quem tem menos renda).

    Assim, Leung se preocupa com os 50% da população de Hong Kong que, em sua opinião, votariam a favor de más políticas porque não ganha o suficiente. Pode ser que isso nos lembre dos 47% de norte-americanos que Mitt Romney disse que votariam contra ele porque não pagam imposto de renda e, portanto, não assumem suas responsabilidades, ou aos 60% que o representante Paul Ryan sustentava que representavam um perigo porque eram “acomodados” que recebiam da Administração mais do que entregavam. No fundo, tudo isso é a mesma coisa.

    Porque a direita política sempre se sentiu incomodada com a democracia. Por melhor que esteja a situação dos conservadores nas eleições, por mais generalizado que seja o discurso em favor do livre mercado, sempre há um medo no fundo de que o povo vote e ponha no Governo esquerdistas que cobrem impostos dos ricos, deem dinheiro a rodo para os pobres e destruam a economia.

    Realmente, o próprio êxito do programa conservador não faz mais do que ampliar esse temor. Na direita — e não me refiro apenas às pessoas que ouvem Rush Limbaugh; falo de membros da elite política — muitos vivem, pelo menos durante parte do tempo, em um universo alternativo no qual os Estados Unidos estão há várias décadas avançando a passos rápidos no sentido da servidão. Dá no mesmo que as reduções de impostos e a liberalização tenham aberto espaço para uma nova Era de Ouro; eles leem livros com títulos como A Nation of Takers: America’s Entitlement Epidemic (Um país de acomodados: a epidemia das subvenções nos Estados Unidos), nos quais se afirma que o grande problema que temos é a redistribuição descontrolada da riqueza.

    Isso é uma fantasia. Mesmo assim, há algum motivo para temer que o populismo econômico nos leve a um desastre? A verdade é que não. Os eleitos com menos renda apoiam muito mais do que os ricos as políticas que beneficiam os menos acomodados e, em geral, respaldam a alta de impostos para os mais endinheirados. Mas se nos preocupa que os eleitores de baixa renda enlouqueçam, que a avareza os leve a ficar com tudo e a sobrecarregar os criadores de emprego até destruí-los, a história nos dirá que estamos enganados. Todos os países desenvolvidos tiveram estados de considerável bem-estar desde a década de 1940 (estados de bem-estar que, inevitavelmente, gozam de um maior respaldo entre os cidadãos mais pobres). Mas a realidade é que não se veem países que entrem em espirais mortais de impostos e gastos; e não, isso não é o que acomete a Europa.

    Mesmo assim, ainda que o “tipo de políticos e de medidas políticas” que se preocupa com a metade inferior da distribuição de renda não vá destruir a economia, mas tenda a alterar os benefícios e a riqueza do 1% que ganha mais, pelo menos um pouco; o 0,1% com mais renda está pagando bem mais impostos agora do que os pagaria se Romney tivesse ganhado. E o que um plutocrata pode fazer então?

    Uma das respostas é a propaganda: dizer aos eleitores, com frequência e bem alto, que o fato de sobrecarregar os ricos e ajudar os pobres provocará um desastre econômico, enquanto que reduzir os impostos dos “criadores de emprego” nos trará prosperidade a todos. Há uma razão por que a fé conservadora na magia das reduções de impostos se mantém, por mais que essas profecias não se cumpram (como está acontecendo agora mesmo no Kansas): há um setor, magnificamente financiado, de fundações e organizações de meios de comunicação que se dedica a promover e preservar essa fé.

    Outra resposta, com uma longa tradição nos Estados Unidos, é tirar o maior partido possível das divisões raciais e étnicas (as ajudas do Governo apenas são para Essa Gente, vocês já sabem). E além disso os liberais são elitistas altaneiros que odeiam os Estados Unidos.

    A terceira resposta consiste em garantir que os programas governamentais fracassem, ou nunca cheguem a existir, para que os eleitores nunca descubram que as coisas podem ser feitas de outra maneira.

    Mas essas estratégias para proteger os plutocratas da plebe são indiretas e imperfeitas. A resposta evidente é a de Leung: não deixar que a metade de baixo vote, ou sequer os 90% de baixo.

    E agora vão entender por que há tanta veemência na direita pelo suposto mas na realidade quase inexistente problema de fraude eleitoral, e tanto apoio a essas leis de identificação dos eleitores que dificultam que os pobres e até a classe trabalhadora possa votar. Os políticos norte-americanos não se atrevem a dizer abertamente que só os ricos deveriam ter direitos políticos (pelo menos, ainda não). Mas se seguirem as correntes de pensamento que agora estão tendendo mais à direita até sua conclusão lógica, é aí que chegarão.

    A verdade é que uma grande parte do que acontece na política norte-americana é, no fundo, uma luta entre a democracia e a plutocracia. E não está nada claro que lado vai ganhar.

    Paul Krugman é professor de Economia da Universidade de Princeton e prêmio Nobel de Economia de 2008. © 2014, New York Times Service.

    Fonte: El Pais, 25/out./2014

  • O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos

    O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos

    Gracilianos Ramos livroReavaliada 120 anos depois de seu início, em 27 de outubro de 1892, a extraordinária trajetória pessoal, literária, intelectual e política de Graciliano Ramos contada por seu melhor biógrafo ganha nova edição, ampliada e revisada, pela Boitempo Editorial. O velho Graça, de Dênis de Moraes, nos conduz pelos sessenta anos de história de um dos maiores narradores da literatura brasileira, com todo o rigor da documentação e dos depoimentos pessoais daqueles que o cercavam. O livro chega aos leitores com acréscimos que acentuam o conhecimento pormenorizado da vida e da obra do escritor alagoano. Entre as novidades estão um bem-cuidado caderno iconográfico, com imagens raras e até inéditas, e a mais esclarecedora entrevista concedida pelo escritor, em 1944, nunca antes publicada em livro.

    Publicado pela primeira vez no centenário de Graciliano Ramos, o trabalho de Moraes foi recebido com grande entusiasmo pela crítica, por se tratar da primeira “biografia de conjunto” sobre o romancista, como classificou Carlos Nelson Coutinho no prefácio.

    O estilo jornalístico do biógrafo se perfaz num rigoroso e amplo trabalho de pesquisa – com texto ao mesmo tempo leve e erudito, escrito com sóbria simplicidade, O velho Graça refaz a trajetória luminosa e sofrida de Graciliano. Tendo como objeto de estudo um escritor aferrado ao seu tempo, Moraes desenha o pano de fundo de cinco décadas de grande efervescência política e de transformações aceleradas no processo modernizador do Brasil.

    A garimpagem em arquivos públicos e privados de Rio de Janeiro, São Paulo e Alagoas, assim como as dezenas de testemunhos de amigos, parentes, artistas, intelectuais e companheiros de geração enriqueceram sobremaneira o trabalho. Com argúcia de historiador e sensibilidade literária, Moraes traça a interligação entre as várias personas de Graciliano Ramos: o menino traumatizado pelas surras na infância; o jovem autodidata que lia Balzac, Zola e Marx em francês; o mítico comerciante da loja Sincera; o revolucionário prefeito de Palmeira dos Índios; o zeloso diretor da Imprensa Oficial e da Instrução Pública de Alagoas; o preso político no inferno da Ilha Grande; o escritor sufocado por apuros financeiros; o estilista da palavra na redação do Correio da Manhã; o militante comunista aos esbarrões com a burocracia partidária.

    Sem cair na armadilha do biografismo, Moraes recompõe a emergência dessa complexa figura, reconstituindo no percurso dialético de seus diversos momentos alguns dilemas fundamentais de nossa formação histórica. “Temos um Graciliano sem retoques: duro, mas apaixonado; frio e áspero na superfície da fala e do gesto, mas ardente e sempre humano na fonte da vida pessoal”, diz na capa o professor Alfredo Bosi, que também encontrou na biografia o cruzamento de itinerários do homem capaz de refletir, como num jogo de espelhos, a somatória de vivências acumuladas: “a paixão pela palavra nele precedeu e acompanhou a opção política que, por sua vez, transcendeu (mas jamais renegou) a adesão partidária”.

    Para o autor, remontar o quebra-cabeça de Graciliano assemelhou-se ao ofício de artesão, já que os fragmentos do passado precisavam ser pacientemente reunidos e dispostos com a máxima coerência possível, a despeito da pluralidade de suas significações.

    A necessidade de correlacionar peripécias, valores e sentimentos foi inspirada em uma passagem do prólogo de Memórias do Cárcere. O escritor consciente, assinala Graciliano, não deve esquivar-se dos zigue-zagues e tumultos próprios de uma existência. “Esforcei-me para mirar o objeto sem perder de vista suas interfaces e imbricações, tratando de averiguar convicções, dúvidas, anseios, vicissitudes e triunfos a fim de estabelecer conexões com a esfera ficcional engendrada por ele. Nas tensões entre o homem, a atmosfera social e a criação literária recolhi pistas que me levassem às motivações familiares, afetivas, estéticas, ideológicas e políticas presentes em sua intervenção na realidade concreta”, completa Moraes. O resultado é uma história de projeções e influências, de paradoxos e contrastes, mas, sobretudo, de coerência na busca incessante do que é essencial à vida.

    Trecho do livro

    “Fico imaginando o que Graciliano acharia de ter sido biografado. Talvez fingisse desprezo por sua escolha. O que me leva a crer nisso? Uma declaração feita por ele, em novembro de 1937, em uma carta ao tradutor argentino Raúl Navarro, que lhe pedira um currículo sumário para anexar a um conto em vias de publicação em Buenos Aires.

    “Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão. Depois que redigi esses infames relatórios, os jornais e o governo resolveram não me deixar em paz. Houve uma série de desastres: mudanças, intrigas, cargos públicos, hospital, coisas piores e três romances fabricados em situações horríveis – Caetés, publicado em 1933, S. Bernardo, em 1934, e Angústia, em 1936. Evidentemente, isso não dá para uma biografia. Que hei de fazer? Eu devia enfeitar-me com algumas mentiras, mas talvez seja melhor deixá-las para romances.”

    Dênis de Moraes nasceu no Rio de Janeiro em 1954. É doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), sediado em Buenos Aires. Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). É autor e organizador de mais de vinte livros, dos quais oito foram editados no exterior (Argentina, Espanha, Cuba e México). Além de O velho Graça, publicou duas biografias de intelectuais e artistas de esquerda: Vianinha, cúmplice da paixão: uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho (Rio de Janeiro, Record, 2000; São Paulo, Expressão Popular, no prelo) e O rebelde do traço: a vida de Henfil (Rio de Janeiro, José Olympio, 1996). Ainda, com Francisco Viana, Prestes: lutas e autocríticas (Petrópolis, Vozes, 1982; Rio de Janeiro, Mauad, 1998), obra baseada no único depoimento concedido pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes sobre sua trajetória.

    Fonte: Carta Maior, 23/10/2012

     


    120 anos de Graciliano Ramos

    Luiz Ricardo Leitão

    Ler Graciliano é uma experiência imprescindível para quem deseja conhecer os segredos mais profundos deste país de latifundiários que se chama Brasil

    Nascido em Quebrangulo, no interior das Alagoas, em 27 de outubro de 1892, o dileto e genial mestre Graciliano Ramos teria completado na última semana seu 120º aniversário. Infelizmente, em meio às escaramuças do segundo turno eleitoral nesta nossa Bruzundanga e à bulha midiática pelos capítulos finais de mais um folhetim eletrônico global, a data passou quase despercebida entre nós. Houve belas homenagens, sem dúvida, entre elas o relançamento da primorosa biografia escrita por Dênis de Moraes (O Velho Graça) e a edição de Garranchos, compilação de textos a cargo de Thiago Mio Salla. O escritor, contudo, merecia muito mais – e espero que, em breve, tratemos de saldar essa dívida, celebrando com pompa e circunstância as seis décadas de sua dolorosa e precoce partida deste planeta azul em 1953.

    Ler Graciliano é uma experiência imprescindível para quem deseja conhecer, pelos atalhos mágicos da ficção, os segredos mais profundos deste país de latifundiários que se chama Brasil. Desde o tempo das sesmarias dos finados Zacarias, ainda no século 16, durante a primeira onda de globalização do Novo Mundo, ser proprietário de vastas extensões de terra é um símbolo de poder na Terra de Santa Cruz (que o diga FHC, ex-sociólogo dos príncipes, cioso de sua brejeira fazenda em Buritis). Muitos pensadores brasileiros esmiuçaram essa verdade tropical, mas poucos romancistas souberam apreender com sufi ciente lucidez e imaginação o singularíssimo arranjo de classes graças ao qual os velhos coronéis da casa grande ludibriaram a senzala e se perpetuaram no imaginário nacional e também na vida prosaica da República.

    O seco e agreste alagoano, autor de obras-primas como São Bernardo e Vidas Secas, foi decerto o mais agudo crítico dessa fórmula quase prussiana de modernização sem ruptura que dita o processo de evolução capitalista no país. Isso não quer dizer que, antes da criação de personagens como Paulo Honório ou Fabiano & Sinha Vitória, não tenha havido outros intérpretes clarividentes de nossa truncada e excludente história. A começar por Machado de Assis: quando lemos Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e nos espantamos com os caprichos de seu narrador, capaz de montar a cavalo em crianças escravas e prometer ao leitor eventos que nunca relatará, a associação com Fernando Collor ou FHC é imediata. O menino é o pai do homem… No plano retórico, a modernidade é uma lei natural, verdadeira panaceia para os males dos “descamisados”; na vida real, “esqueçam tudo o que escrevi” – e também aquilo que casualmente se disse em campanha.

    Machado, porém, não quis sair da cidade. Segundo ele próprio escreveu, o mundo “começa aqui no Cais da Glória ou na Rua do Ouvidor e acaba no Cemitério de São João Batista. Ouço que há uns mares tenebrosos para os lados da ponta do Caju, mas eu sou um velho incrédulo” (Esaú e Jacó). Foi, de fato, uma pena. Se tivesse seguido o exemplo de Lima Barreto (outro mulato extraordinário, mas quase um marginal na cidade das letras), o criador de Brás Cubas talvez nos tivesse revelado aspectos ainda mais sutis da nossa modernização, em um país onde o progresso é fruto de uma aliança secular do latifúndio com a burguesia urbana – e cujo capital industrial e financeiro, em última instância, também provém desse pacto turbulento, porém eficaz, entre as classes dominantes do campo e da cidade. Cronista das vidas secas e agrestes, o mestre Graça parecia querer nos dizer que, nesta cultura da modernização sem ruptura, o velho ainda sabe usar a roupagem do novo, ditando o curso da transformação capitalista sob o ritmo dos alqueires infinitos. Em suas contínuas versões, esta articula golpes e contragolpes, rastreia as turbulências prestes a explodir e antecipa- se à sua propagação. Seduz alguma gente e, se necessário, reprime outras tantas. Até quando, porém, o fôlego lhe sobrará? Só há curvas onde as retas foram impossíveis. Creio que era nisso que o vaqueiro Graciliano cismava à porta de seu cárcere imemorial… Axé, Velho Graça!

    Fonte: Brasil de Fato, 30/10/2012

  • A ideia de cidadania

    A ideia de cidadania

    Sergio Granja
    Sergio Granja

    Em termos simplificados, podemos definir o cidadão como uma pessoa que é titular de direitos. É claro que cada um desses direitos tem uma longa história, é resultado de lutas de classe que se travaram no decorrer dos processos históricos.

    Segundo o sociólogo britânico T. H. Marshall (1893-1981) em seu célebre ensaio Cidadania e Classe Social (1949), os direitos podem ser classificados em três tipos: políticos, civis e sociais. Políticos são os direitos que dizem respeito à participação dos cidadãos na esfera pública. Civis (ou cívicos) são os relativos às liberdades individuais; têm a ver com a vida privada de cada um. Direitos sociais se configuram na regulação das relações que os homens estabelecem entre si e constituem garantias de solidariedade na comunidade humana.

    A cidadania dos antigos

    A Grécia do período homérico conformou-se nos séculos XII a VIII a.C. como comunidades gentílicas. Seu regime econômico-social era um comunismo primitivo, agrário, de autossubsistência. Sua organização se dava sob a autoridade de um patriarca, o qual exercia o pater poder enfeixando as funções administrativa, judicial e religiosa da comunidade.

    O crescimento demográfico pressionou a produção agropecuária e evidenciou a escassez de terras, provocando a desagregação da comunidade gentílica. Assim produziram-se novas configurações sociais. Na reorganização operada, a comunidade gentílica cindiu-se em classes. Os descendentes diretos do patriarca constituíram a classe dos Eupátridas, “os bem nascidos”. Os Georgoi, “agricultores”, formaram a classe dos pequenos proprietários camponeses. E os Thetas, “marginais”, em grande número, sobraram como classe dos despossuídos.

    Os Eupátridas assumiram as responsabilidades políticas, o gerenciamento das instituições e a organização da produção. Desse modo, tornaram-se uma aristocracia, que concentrava o poder e a posse da terra. Na medida em que as disputas pelo poder e pela posse da terra se acirraram, surgiram as frátrias, que em seguida se aglutinaram em tribos. Estas, sob a égide dos Eupátridas, fundaram as polis gregas como Cidades-Estado. Atenas foi uma dessas polis, cujo povoamento se estabelece em torno da Acrópole (“cidade alta”), o espaço culminante da cidade.

    A cidadania, como conceito e práxis, tem sua gênese em Atenas, no período clássico dos séculos V e IV a.C. Foi gestada através de um longo processo de lutas de classe entre o povo e a aristocracia, resultando inicialmente na distribuição de justiça com base em leis escritas. Antes das leis escritas, o direito era transmitido oralmente entre as gerações e estava sujeito à interpretação da aristocracia, que era a guardiã da tradição.

    Péricles (495/492 a.C. – 429 a.C.), que em grego quer dizer “cercado de glórias”, foi o mais célebre líder democrático da Grécia antiga.  Descendia de uma influente família aristocrata e protagonizou a cena política na Era de Ouro de Atenas, século V a.C., entre as guerras Persas e do Peloponeso.

    A cidadania dos antigos era modelada por traços bem característicos. Em primeiro lugar, só uma minoria era dotada de direitos: cerca de 25% da população adulta, constituída pelos homens livres. A cidadania ateniense excluía as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Em segundo lugar, restringia-se aos direitos políticos, desconhecendo os direitos civis e sociais. Em terceiro lugar, os direitos políticos dos atenienses implicavam deveres com a polis: o cidadão tinha não só o direito mas a obrigação de participar da vida pública da Cidade-Estado. Por isso, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), em sua Política, prescreve que “o bom cidadão deve ter os conhecimentos e a capacidade indispensáveis tanto para ser governado como para governar; e o mérito de um bom cidadão está em conhecer o governo de homens livres sob os dois aspectos”.

    Esse era o substrato ideológico da República ateniense. Todavia, na polis grega constituiu-se uma democracia muito diferente da dos modernos, pois a participação política prescindia de mediação, dava-se sem intermediários: os cidadãos reuniam-se periodicamente na Ágora, uma praça na parte baixa da cidade, onde debatiam as questões públicas e decidiam no voto por maioria dos presentes. Tratava-se, pois, de uma democracia direta, sem traços da moderna democracia representativa.

    Outra característica que distingue a democracia dos antigos é que ela, ao desconhecer os direitos civis, modelava uma ditadura da maioria extremamente intolerante com a diversidade, reprimindo com rigor qualquer tipo de pluralismo. Sócrates (469 a.C. – 399 a.C), por exemplo, foi condenado à morte, por ingestão de cicuta, acusado de corromper a juventude, por professar opiniões heterodoxas em relação à doutrina religiosa oficial.

    Direitos civis

    A cidadania dos modernos surge na Inglaterra do séc. XVII. Porém, diferentemente da dos antigos, não como conquista de direitos políticos, coletivos, que se dão no espaço público, mas de direitos civis, individuais, restritos à esfera privada.

    Eles se inscrevem na tradição jusnaturalista, quer dizer, são concebidos como direitos naturais invioláveis, de que todas as pessoas seriam dotadas desde o nascimento. Contrapondo-se ao Estado absolutista, John Locke (1632-1704) foi o teórico da cidadania como direito natural do indivíduo, em sua vida privada, face ao poder estatal. Foi ele o principal ideólogo da Gloriosa Revolução, a qual instituiu a monarquia constitucional entre os ingleses em 1688.

    A esse respeito, Leandro Konder (1936-2014), no ensaio Liberalismo e Democracia(1982), sinaliza: “Era uma época tumultuada, na qual nasciam, quase ao mesmo tempo, a instituição do habeas corpus e a especulação imobiliária.  Londres fora bastante destruída por um incêndio, precisava ser reconstruída e os capitais que afluíram para a construção civil forçaram uma valorização desmesurada dos imóveis.  Enquanto isso, as pessoas – sobretudo as que enriqueceram – exigiam garantias contra abusos de poder por parte do Estado”.

    Para Locke, são direitos naturais inalienáveis da pessoa humana o direito à vida, o de ir e vir, o de pensamento e o de propriedade. Entre esses direitos, Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1689), prioriza o direito à propriedade, incluindo aí o direito sobre os bens materiais adquiridos com o trabalho, mas também o direito a dirigir sua vida privada e a dispor da sua liberdade individual. E ele amplia o direito de propriedade para além dos bens materiais adquiridos com o próprio trabalho, assumindo como propriedade do empregador os bens produzidos pelo trabalho assalariado de seus empregados. Essa é a base doutrinária do liberalismo, ideologia da burguesia.

    A Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, se insere na tradição jusnaturalista.  Ela afirma em seu Art. 1º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”

    Hegel (1770-1931) critica o jusnaturalismo ao dizer, em Princípios da Filosofia do Direito (1820), que só há direito efetivo no marco do Estado, no contexto da vida pública, ou seja, como decorrência de um processo que não é natural mas histórico-social.   Marx (1818-1883) vai além e critica a natureza classista, burguesa, do jusnaturalismo. Em Para a Questão Judaica (1844), caracteriza os direitos civis como instrumentos ideológicos de consolidação da sociedade capitalista. Esse questionamento aponta as limitações dos direitos civis com vistas à exigência da “emancipação humana” posta por ele.

    As Constituições modernas, de um modo geral, inscrevem os direitos civis em um capítulo dedicado especificamente às liberdades e garantias individuais.

    A Constituição jacobina, de 1793, em seu art. 2º, inscreve na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como direitos naturais imprescritíveis, “a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade”.

    A Declaração dos Direitos Humanos de 1791 prescrevia: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o outro”.   O que era ecoado pela Constituição de 1793, em seu art. 6º: “A liberdade é o poder que pertence ao homem de fazer tudo o que não prejudique os direitos de outrem”. Que também delineava em seu art. 16: “O direito de propriedade é aquele que pertence a todo cidadão de gozar e de dispor à sua vontade dos seus bens, dos seus rendimentos, do fruto do seu trabalho e da sua indústria”. Definindo em seu art. 8º: “A segurança consiste na proteção concedida pela sociedade a cada um dos seus membros para a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e das suas propriedades”. Marx, irônico, concluiu que, assim sendo, “a segurança é o supremo conceito social, o conceito da polícia”.

    No Manifesto Comunista (1848), Marx e Engels denunciam a hipocrisia da ideologia liberal ao questionar os burgueses na questão chave do direito de propriedade: “Vocês se horrorizam com o fato de que queremos abolir a propriedade privada. No entanto, a propriedade privada foi abolida para nove décimos dos integrantes da sua sociedade; ela existe para vocês exatamente porque para nove décimos ela não existe”.

    Com efeito, algo só é direito quando é universal; caso contrário, se vale para uns mas não para outros, é privilégio. E é esse o limiar que o direito burguês não pode franquear sem negar seu conteúdo de classe. Nesse sentido, Carlos Nelson Coutinho anota com precisão que o direito de propriedade sob o capitalismo é, na verdade, um privilégio de classe. Para transformar-se em direito efetivo, em algo acessível a todos, a propriedade precisaria deixar de ser privada para se tornar social.

    E como ficou a igualdade? “A igualdade consiste em que a lei – quer proteja, quer castigue – é a mesma para todos”, rezava o art. 3º da Constituição de 1795. Essa igualdade jurídica, formal, daria a ocasião para que Anatole France (1844-1924) fustigasse as consciências bem-pensantes ao observar com arguto sarcasmo que a lei, na sua peculiar equanimidade, proíbe tanto ao rico quanto ao pobre roubar um pão, pedir esmolas ou dormir embaixo das pontes.

    Mas, se, por um lado, a propriedade, para se universalizar, precisa transitar da esfera privada para a pública, por outro, para que “o privilégio da fé”, como sublinhou Marx, seja “um direito humano universal” é requerido o trânsito inverso: “O homem emancipa-se politicamente da religião – ao bani-la do Direito público para o Direito privado”. Assim, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791, reza em seu artigo 10: “Ninguém deve ser molestado pelas suas opiniões, mesmo religiosas”. E o Título 7º da Constituição de 1791 reconhece “a liberdade de qualquer homem exercer o culto religioso ao qual está ligado”. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão também garante “o livre exercício dos cultos”. O que é corroborado pelo Título XIV, art. 354 da Constituição de 1795: “Conformando-se às leis, ninguém pode ser impedido de exercer o culto que escolheu. Ninguém pode ser forçado a contribuir para as despesas de nenhum culto. A república não salaria nenhum deles”.   Está aí, claramente, o princípio do Estado laico: a separação entre o Estado e a Igreja.

    Esses mesmos princípios estavam presentes nas Constituições estadunidenses. Na Constituição da Pensilvânia, em seu at. 9º, parágrafo 3º: “Todos os homens receberam da natureza o direito imprescritível de adorar o Todo-Poderoso segundo as inspirações da sua consciência e ninguém pode ser legalmente constrangido a seguir, instituir ou apoiar, contra a sua vontade, qualquer culto ou ministério religioso. Nenhuma autoridade humana pode, em caso algum, intervir nas questões de consciência e controlar os poderes da alma”. E é de idêntico teor o direito à liberdade de consciência na Constituição de New Hampshire.

    No Brasil, após a Questão Religiosa no II Império, a República consagrou a separação entre a Igreja e o Estado, tornando-o laico.

    Atualmente, os direitos civis se ampliaram de modo considerável. Novos direitos surgiram na esteira dos movimentos sociais suscitados pelas questões de gênero e de orientação sexual (movimentos feminista, LGBT) e pelas reivindicações antiproibicionistas (descriminalização do aborto, da maconha etc.).

    Direitos políticos

    Marx registrou em A Ideologia Alemã (1845) que a ideologia não tem história: “A moralidade, a religião, a metafísica, todo o resto da ideologia e suas correspondentes formas de consciência perdem assim sua aparência de autonomia. Elas não têm história, nem desenvolvimento; porém os homens, desenvolvendo sua produção e interação materiais, alteram junto com isso sua existência real, seu pensamento e os produtos dele. A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida”.

    Mais concretamente, Marx razoa alhures (carta a Pavel Annenkov, 18/12/1846): “Coloque um certo estado de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens e você terá uma tal forma de comércio e de consumo.  Coloque certos graus de desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo e você terá tal forma de constituição social, tal organização da família, das ordens ou das classes, em uma palavra, tal sociedade civil.  Coloque tal sociedade civil e você terá tal estado político, que é a expressão oficial da sociedade civil.”

    Engels (1820-1895), em carta a J. Bloch (21-22/09/1890), precisa que, se, por um lado, “a situação econômica é a base”, por outro, “os diversos elementos da superestrutura, as formas políticas da luta de classes e seus resultados – as constituições estabelecidas uma vez a batalha ganha pela classe vitoriosa, etc. -, as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos, exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, as determinam de maneira preponderante na forma”.

    Assim, a democracia dos antigos permanece como uma fantasmagoria que assombra os modernos. “A tradição de todas as gerações mortas pressiona pesadamente o cérebro dos viventes” – anota Marx em O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte (1852). “E mesmo quando eles parecem ocupados em transformar a si mesmos e às coisas, em criar algo totalmente novo, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que eles evocam temerosamente os espíritos do passado, que eles lhes tomam emprestado seus nomes, suas palavras de ordem, seus costumes, para aparecer sobre a nova cena da história sob esse disfarce respeitável e com essa linguagem tomada de empréstimo”.

    De modo que, hodiernamente, os direitos políticos reapareceram, mas transfigurados por novas determinações.

    Sob a égide da ideologia liberal, a primeira Constituição da Revolução Francesa, a de 1791, estabelecia duas classes de cidadãos: os ativos e os passivos. Aos cidadãos ativos eram assegurados os direitos políticos, vale dizer, o de eleger e ser eleito. Aos cidadãos passivos só restavam os direitos civis. A Constituição jacobina, a de 1793, que durou apenas um ano, aboliu essa distinção, que foi, entretanto, restaurada nas constituições posteriores. E essa discriminação perduraria até 1848. O voto censitário, quer dizer, o sufrágio restrito a proprietários e contribuintes (os que pagavam imposto de renda) está em todas as constituições liberais do séc. XIX, inclusive a brasileira, e a discriminação se estendia à diferença de gênero, pois também excluía as mulheres.

    Na Inglaterra, o movimento pelo sufrágio universal adquiriu um marcante caráter de massas. A classe operária inglesa protagonizou, nos anos 40 do séc. XIX, o movimento cartista, que tinha por bandeiras a conquista do sufrágio universal e da jornada de trabalho máxima de 10 horas.

    A inglesa Emily Wilding Davison (1872-1913), que se atirou à frente do cavalo do rei no célebre Derby de 1913, foi a primeira mártir do movimento sufragista, que conquistou, com a aprovação do Representation of the People Act de 1918, o voto feminino no Reino Unido, tornando o sufrágio universal.

    Fruto das lutas do movimento feminista (dito sufragista), o voto feminino no Brasil foi reconhecido plenamente no Código Eleitoral de 1932, embora ainda persistisse uma distinção de gênero: enquanto o voto do homem era obrigatório, o da mulher era facultativo. Mas a conquista do sufrágio universal no Brasil só se completou com a promulgação da Constituição de 1988, que, ao lado do voto obrigatório para os maiores de 18 anos e do voto facultativo para os maiores de 16 anos, estendeu o direito de voto (facultativo) aos analfabetos.

    O sufrágio universal foi arrancado pelas lutas do movimento operário contra os liberais, que eram defensores do voto censitário. Mas, por si só, não resolvia a questão democrática, que é a da participação dos cidadãos no governo da sociedade. Ironizando a democracia dos ingleses, Rousseau (1712-1778), em O Contrato social (1762), comentaria que os ingleses pensam que são livres, mas só o são no dia das eleições. Eleito o Parlamento, a soberania popular é alienada.

    Marx anotaria em Para a questão judaica que “por meio do Estado o homem se liberta politicamente de uma barreira, ao elevar-se acima dessa barreira de um modo abstrato e limitado, de um modo parcial”. E que “é por um desvio, por um medium (ainda que por um medium necessário) que o homem se liberta, ao libertar-se politicamente”, pois aí “o Estado é o mediador entre o homem e a liberdade do homem”. Isso fica claro na questão do sufrágio universal: “O Estado como Estado anula, por exemplo, a propriedade privada, o homem declara como suprimida (de modo político) a propriedade privada assim que suprime o censo para a elegibilidade ativa e passiva, como aconteceu em muitos Estados norte-americanos”.  Marx indaga: “Não é a propriedade privada suprimida idealmente, quando o não possuinte se tornou legislador do possuinte?” E responde: “O censo é a última forma política de reconhecer a propriedade privada. Todavia, com a anulação política da propriedade privada, a propriedade privada não só não é suprimida mas também é mesmo pressuposta”. Esta pressuposição está no seguinte: “O Estado suprime, à sua maneira, a diferença do nascimento, do estado, da cultura, da ocupação, quando declara diferenças não políticas o nascimento, o estado, a cultura, a ocupação, quando (sem atender a estas diferenças) proclama cada membro do povo participante por igual da soberania popular, quando trata todos os elementos da vida popular real do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado deixa atuar a propriedade privada, a cultura, a ocupação, à maneira delas, (isto é, como propriedade privada, cultura, ocupação) e faz valer a sua essência particular. Muito longe de suprimir essas diferenças fáticas, ele só existe antes no pressuposto delas, ele só se sente como Estado político, e só faz valer a sua universalidade em oposição a esses seus elementos”.  Por isso, “o Estado político completo é, pela sua essência, a vida genérica do homem em oposição a sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam a subsistir fora da esfera do Estado na sociedade civil, mas como propriedades da sociedade civil”. Para Marx, “onde o Estado político alcança o seu verdadeiro desabrochamento, o homem leva – não só no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida – uma vida dupla, uma celeste e uma terrena: a vida na comunidade política (em que ele se faz valer como ser comum) e a vida na sociedade civil (em que ele é ativo como homem privado, considera os outros homens como meio, se degrada a si próprio à condição de meio, e se torna o joguete de poderes estranhos).”  Por isso, “o homem na sua realidade mais próxima, na sociedade civil, é um ser profano. Aqui onde ele se faz valer a si próprio e aos outros como indivíduo real – é um fenômeno não verdadeiro. No Estado, ao contrário – em que o homem vale como ser genérico -, ele é o membro imaginário de uma soberania imaginada, é roubado da sua vida individual real e repleto de uma universalidade irreal”. Resulta disso que “o conflito em que o homem […] se encontra com a sua cidadania de Estado, com os outros homens, reduz-se à cisão mundana entre o Estado político e a sociedade civil. Para o homem como bourgeois, a ‘vida no Estado’ é ‘apenas aparência ou uma exceção momentânea face à essência e à regra’”.  Mas “a emancipação política é, sem dúvida, um grande progresso” – avalia Marx. “Ela não é, decerto, a última forma de emancipação humana, em geral, mas é a última forma de emancipação política no interior da ordem mundial até aqui. Entende-se: nós falamos aqui de emancipação real, de prática”.

    O movimento operário nunca se conformou com a restrição dos direitos políticos ao sufrágio universal. Em vez disso, lutou por outros direitos como o de livre organização, principalmente o de se organizar em sindicatos, e o de greve.  Durante muito tempo esses direitos foram negados aos trabalhadores.

    Na França, é de 1791 a Lei Le Chapelier. Promulgada, portanto, em plena Revolução Francesa, pretextando a proibição das corporações de ofício, feudais, ela proibia qualquer tipo de organização sindical ou greve de trabalhadores.

    Marx cita em um paratexto de O Capital (1867) que “o artigo I dessa lei diz: ‘Sendo uma das bases fundamentais da constituição francesa a supressão de todos os tipos de corporações do mesmo estamento (état) e profissão, é proibido restabelecê-las de fato, sob qualquer pretexto ou em qualquer forma’.  O artigo IV reza que, no caso de cidadãos pertencentes às mesmas profissões, artes ou ofícios tomarem deliberações ou realizarem convenções com o objetivo de recusar um acordo ou de não consentirem no socorro de sua indústria ou de seus trabalhos a não ser por um preço determinado, tais consultas e acordos […] serão declarados inconstitucionais e como atentados à liberdade e à declaração dos direitos do homem etc., ou seja, como crimes de Estado. exatamente como nos velhos estatutos dos trabalhadores”.

    Só nos anos 80 do séc. XIX, os trabalhadores franceses conseguiram, finalmente, a revogação dessa lei, conquistando assim, na luta, o direito de greve e a liberdade de organização sindical.

    Direitos sociais

    A política de panem et circus dos antigos romanos já antecipava a moderna ideia de direitos sociais. Através dessa política, o Estado garantia aos pobres o provimento do alimento necessário à sua subsistência.

    Fruto do movimento cartistas, a Inglaterra – berço da 1ª Revolução Industrial – aprovou, em 1847, a primeira lei que fixava em 10 horas a jornada máxima de trabalho.

    No manifesto inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx saudou, em 1864, a conquista da limitação da jornada máxima de trabalho na Inglaterra como uma vitória da economia política da classe operária sobre a economia política burguesa: “a Lei das Dez Horas não foi apenas um grande sucesso prático; foi a vitória de um princípio; foi a primeira vez que à plena luz do dia a economia política da burguesia sucumbiu à economia política da classe operária”.

    Na França, em 1848, a jornada máxima de trabalho foi estabelecida em 10 horas em Paris e em 11 horas nas demais províncias.

    Em 1866, o Congresso Geral dos Trabalhadores Norte-Americanos, celebrado em Baltimore, aprovou uma resolução no sentido de que “a primeira e grande exigência para libertar o trabalhador da escravidão capitalista, nos Estados Unidos” seria a promulgação de uma lei que instituísse a jornada normal de trabalho de 8 horas.

    Ainda em 1866, o Congresso Operário Internacional de Genebra reivindicou a jornada de trabalho de 8 horas como pré-requisito à emancipação dos trabalhadores.

    No 1° de maio de 1886, ocorreram diversas manifestações nos Estados Unidos, em que eram pleiteadas a redução da jornada de trabalho para 8 horas. Mas essas mobilizações terminaram com seis trabalhadores mortos, oito presos e cinco condenados à forca. Nascia aí o Dia Mundial do Trabalho, sendo comemorado em todos os países, menos nos Estados Unidos.

    Em julho de 1889, o I Congresso da II Internacional acordou celebrar o 1o de Maio, como jornada de luta do proletariado de todo o mundo, e adotou a seguinte resolução histórica: “Deve organizar-se uma grande manifestação internacional, numa mesma data, de tal maneira que os trabalhadores de cada um dos países e de cada uma das cidades exijam simultaneamente das autoridades públicas limitar a jornada laboral a oito horas e cumprir as demais resoluções deste Congresso Internacional de Paris”.

    Finalmente, em 1890, o Congresso Norte-Americano votou a Lei que fixou a jornada de trabalho em 8 horas.

    O estabelecimento legal de um piso salarial foi outro direito social muito importante para os trabalhadores, mas durante muito tempo “o Estado impõe um salário máximo, mas de modo algum um mínimo”.

    Marx registra em O Capital que “a legislação sobre o trabalho assalariado, desde sua origem cunhada para a exploração do trabalhador e, à medida de seu desenvolvimento, sempre hostil a ele, foi iniciada na Inglaterra, em 1349, pelo Statute of Labourers [Estatuto dos Trabalhadores] de Eduardo III.  A ele corresponde, na França, a ordenança de 1350, promulgada em nome do rei João.  As legislações inglesa e francesa seguem um curso paralelo e são idênticas quanto ao conteúdo”.   Quanto à remuneração do trabalho, “uma tarifa legal de salários foi estabelecida para a cidade e para o campo, para o trabalho por peça e por dia.  Os trabalhadores rurais deviam ser contratados por ano, e os da cidade, ‘no mercado aberto’.  Proibia-se, sob pena de prisão, pagar salários mais altos do que o determinado por lei, mas quem recebia um salário mais alto era punido mais severamente do que quem o pagava.  Assim, as seções 18 e 19 do Estatuto dos Aprendizes da Rainha Elizabeth impunham 10 dias de prisão para quem pagasse um salário mais alto, e 21 dias para quem o recebesse.  Um estatuto de 1360 tornava mais rigorosas as penas e, inclusive, autorizava o patrão a empregar a coação física para extorquir trabalho pela tarifa legal de salário.  Todas as combinações, convênios, juramentos etc. pelos quais pedreiros e carpinteiros se vinculavam entre si, eram declarados nulos e sem valor.  Desde o século XIV até 1825, ano da revogação das leis anticoalizão, considerava-se crime grave toda coalizão de trabalhadores.  O espírito do estatuto trabalhista de 1349 e de seus descendentes se revela muito claramente no fato de que o Estado impõe um salário máximo, mas de modo algum um mínimo.”  E Marx prossegue: “A lei 8 Jorge II ainda proibia que os oficiais de alfaiataria recebessem, em Londres e arredores, salários acima de 2 xelins e 7,5 pence por dia, salvo em casos de luto público; a lei 13 Jorge III c. 68 transferiu aos juízes de paz a regulamentação dos salários dos tecelões de seda; em 1796, foram necessárias duas sentenças dos tribunais superiores para decidir se os mandatos dos juízes de paz sobre salários também valiam para os trabalhadores não agrícolas; em 1799, uma lei do Parlamento confirmou que o salário dos mineiros da Escócia devia ser regulado por uma lei da época da rainha Elizabeth e por suas leis escocesas de 1661 e 1671.  O quanto as condições se haviam alterado nesse ínterim o demonstra um fato inaudito, ocorrido na Câmara Baixa inglesa.  Aqui, onde há mais de 400 anos se havia fabricado leis fixando o máximo que o salário não deveria, em nenhum caso, ultrapassar, Whitbread propôs que se fixasse um salário mínimo legal para os jornaleiros agrícolas.  Pit opôs-se, porém admitiu  que ‘a situação dos pobres era cruel’.  Por fim, em 1813, as leis de regulação dos  salários  foram revogadas.”

    No Brasil, a Lei nº 185 de janeiro de 1936 e o Decreto-Lei nº 399 de abril de 1938 instituíram o salário mínimo, e o Decreto-Lei nº 2162 de 1º de maio de 1940 fixou seus valores, que entrou em vigor no mesmo ano. O país foi dividido em 22 regiões (os 20 estados existentes na época, mais o território do Acre e o Distrito Federal) e todas as regiões que correspondiam a estados foram divididas ainda em sub-regiões, num total de 50. Para cada sub-região fixou-se um valor para o salário mínimo, num total de 14 valores distintos para todo o Brasil. A relação entre o maior e o menor valor em 1940 era de 2,67 vezes.  Trabalhadores rurais e empregados domésticos, no entanto, continuavam sem a garantia de um salário mínimo legal.

    Em todos os tempos, os direitos sociais são objeto de uma encarniçada disputa. Em torno deles se armou o cenário das lutas de classe nos países capitalistas centrais. Entre esses direitos, a escola pública gratuita, laica e universal foi uma das primeiras conquistas, nascida da Revolução Francesa. Seguiram-na como direitos sociais conquistados pelas forças populares: a previdência social, a saúde pública, a assistência social, etc.   Esse conjunto de direitos sociais deu origem, após a II Grande Guerra (1939-1945), ao welfare State [Estado de bem-estar], contra o qual o capital lançou a ofensiva neoliberal.

    Assim, ao longo das lutas de classes no mundo capitalista, foi se afirmando a ideia de que o Estado é responsável pela proteção dos setores sociais mais vulneráveis economicamente.  Mas foi só com o welfare State que se consolidou o conceito de Seguridade Social.

    A Seguridade Social abarca o tripé saúde, previdência e assistência social.   No Brasil, esse conceito foi plasmado pelo art. 194 da Constituição de 1988, baseado na noção de “pacto entre gerações” e no “princípio da solidariedade”, segundo os quais os benefícios presentes e futuros dos trabalhadores são custeados pelas contribuições passadas, presentes e futuras de toda a sociedade.

    A Constituição de 1988 consagrou direitos sociais que são contestados pela direita desde a sua promulgação.  Muitos desses direitos foram sistematicamente ignorados e, em alguns casos, revogados posteriormente.  Na linha de fogo dos ataques da direita encontra-se o próprio conceito de Seguridade Social nos termos em que está inscrito na Constituição de 1988.

    Collor, Fernando Henrique e Lula intentaram contrarreformas da Previdência Social, sempre na mesma linha de revogação de direitos sociais.  Alguns desses intentos contrarreformistas obtiveram êxitos e resultaram seja na perda de arrecadação de recursos da Seguridade Social (através de isenções fiscais e contrarreformas tributárias) seja na perda de direitos previdenciários de categorias específicas, seja na depreciação de aposentadorias, pensões e benefícios de uma forma geral, seja na dilatação do tempo de contribuição ou da idade para a aposentadoria.

    A Constituição de 1988 garantiu os recursos para o financiamento da Seguridade Social e o provimento dos direitos sociais decorrentes.  Na atual quadra da vida política nacional, defender o marco legal da Constituição de 1988 é barrar a ofensiva neoliberal contra os direitos sociais por ela consagrados.  Por isso, é inadiável o comprometimento com a luta em defesa dos direitos sociais consagrados no dispositivo constitucional de 1988, particularmente no que se refere à Seguridade Social e à Previdência.  Aliás, o PSol nasce da resistência dos trabalhadores e de uma fração dos parlamentares petistas à contrarreforma previdenciária levada a cabo pelo governo Lula.

    À política de desmanche do Estado – como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social -, de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego deu-se o nome de neoliberalismo.   Todavia o Estado neoliberal continua operando na esfera econômica como grande consumidor de mercadorias e serviços, mas também através de mecanismos tributários, fiscais e financeiros de transferência de renda para o setor privado e da contenção das lutas sindicais e populares.

    Trata-se da velha ideologia liberal, que correspondia à época do capitalismo de livre concorrência, só que ressurgida em condições históricas de crescente monopolização da economia, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, apontando não para o pluralismo, mas para a homogeneização, a massificação, a uniformização do consumo de descartáveis, a tendência ao pensamento único.  O discurso liberal é o mesmo, mas o acontecimento discursivo é outro.

    Antes de se generalizar como diretriz de política econômica dos países capitalistas – em reação contrarreformista à estagflação gerada pela crise de 1973-1979, que colocou em xeque o welfare State –, o neoliberalismo foi implantado, primeiro, no Chile de Pinochet (1973-1990) e, em seguida, na Inglaterra de Thatcher (1979-1990) e nos Estados Unidos de Reagan (1980-1988).

    Perry Anderson, em Balanço do neoliberalismo (1994),  considera que a Inglaterra de Margaret Thatcher encarnou a forma canônica do neoliberalismo:  “O modelo inglês – diz Perry Anderson – foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.”

    No Brasil, o neoliberalismo surge como política de governo sob a presidência de Collor (1990-1992); atinge o seu clímax no PROER e no auge das privatizações durante os governos FHC (1995-2002); e tem seguimento, atenuado por políticas compensatórias, nos governos de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2014).

    No ensaio A época neoliberal: revolução passiva ou contrarreforma? (2007), Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) conceitua a época neoliberal como um período de contrarreformas.

    As consequências sociais do neoliberalismo são graves: a combinação de desemprego, exclusão social e apelo ao consumo – numa sociedade atomizada pelo individualismo e pela competitividade, na qual o marketing dita a moda e as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são – delineia um quadro de degradação da convivência social que fomenta a desesperança, a violência e a barbárie.

    Em resposta ao discurso neoliberal da ideologia dominante de que “não há alternativa” (TINA – There Is No Alternative) ao regime do capital,  István Mészáros postula, emPara além do Capital (1995) e Atualidade histórica da ofensiva socialista(2010), que, “embora passe a ser uma dolorosa obviedade o fato de as alternativas do capital hoje se limitarem cada vez mais a flutuações manipuladoras entre variedades de keynesianismo e monetarismo, com movimentos oscilatórios cada vez menos eficazes, que tendem de maneira perigosa ao ‘repouso absoluto’ de uma contínua depressão, a recusa socialista à falta de alternativa deve ser articulada positivamente com objetivos intermediários, cuja realização possa promover avanços estratégicos no sistema a ser substituído, mesmo que apenas parciais num primeiro momento”.

    O que István Mészáros está a nos dizer tem uma apreciável complexidade dialética. Estamos diante do projeto de uma ofensiva propositiva que se configura, no plano estratégico, como um reformismo revolucionário. E isso porque, a seu juízo, “o que decide o destino das várias forças socialistas na sua confrontação com o capital é o grau de sua capacidade de fazer mudanças tangíveis na vida cotidiana, hoje dominada por manifestações ubíquas das contradições subjacentes”.

    István Mészáros fala em “combinar, num todo coerente, com implicações socialistas em última análise inevitáveis, uma grande variedade de demandas e estratégias parciais que, em si e por si, não precisam ter em absoluto nada de especificamente socialista”. Ele pondera que essas demandas não atendidas, apesar de não serem demandas propriamente socialistas, consideradas em conjunto são “partes do complexo global que as reproduz de modo constante como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis”. Por isso, considera que “o que decide a questão é sua condição de realização”. E adverte que “o que está em jogo não é a enganosa ‘politização’ dessas questões isoladas, […] mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas ‘não socialistas’ largamente automotivadoras no front mais amplo possível”.

    Vale dizer: consideradas isoladamente, cada demanda vale pouco; vistas em conjunto, são incompatíveis com o capitalismo. Tornam-se  anticapitalistas porque contrariam a lógica do capital ao colocar em primeiro plano o valor de uso em detrimento do valor de troca.  E é só do ponto de vista da totalidade que podemos apreender o potencial revolucionário delas.   Daí o pluralismo das formas de luta, consciência e organização engajadas na ação comum de forças diversas que se articulam na prática (ação comum que não implica unificação, mas apreço à diversidade).

    István Mézzáros lembra a crítica de Engels a Wilhelm Liebknecht, principal redator do Programa de Gotha: “Da democracia burguesa ele trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação”. Marx alertou para o alto custo dessa “mania de unificação”. Em seu lugar, recomendou a fidelidade aos princípios socialistas e a negociação de programas de ação concretos, viáveis e flexíveis em torno dos objetivos comuns. No entanto, paradoxalmente, essa “mania de unificação” grassou por longo tempo nas esquerdas, resultando nas manipulações das bases pelas burocracias partidárias e sindicais, e nas concessões de princípio ao capital.

    A cidadania dos modernos

    Marx observa que “os droits de l’homme […] são diferentes dos droits du citoyen”.  E isso porque “l’homme”, no caso, é sinônimo de “bourgeois”, assim como “société civile” equivale a “société bourgeoise”.  Constata que “nenhum dos chamados direitos do homem vai […] além do homem egoísta, além do homem tal como ele é membro da sociedade civil, a saber: indivíduo remetido a si mesmo, ao seu interesse privado e ao seu arbítrio privado, e isolado da comunidade. Neles, muito longe de o homem ser apreendido como ser genérico, antes a própria vida genérica, a sociedade aparecem como um quadro exterior aos indivíduos, como limitação da sua autonomia original. O único vínculo que os mantém juntos é a necessidade da natureza, a precisão e o interesse privado, a conservação da sua propriedade e da sua pessoa egoísta”.

    Isso é corroborado pelo art. 2º da Constituição de 1791, a primeira da revolução francesa: “O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”. Como também pelo art. 1º da Constituição jacobina, a de 1793: “O governo é instituído para garantir ao homem o gozo dos seus direitos naturais e imprescritíveis”.   Daí Marx afirmar que “a revolução política é a revolução da sociedade civil”, ou seja, da sociedade burguesa, distinguindo emancipação política de emancipação humana, a qual não pode prescindir da revolução social.

    Sobre a questão democrática, não obstante, no ensaio Democracia e Socialismo: questões de princípio (1989), Carlos Nelson Coutinho sublinha: “É um erro teórico e histórico considerar que as liberdades políticas e a chamada democracia formal são próprias do capitalismo.”  Concede: “Decerto, muitas das liberdades democráticas em sua forma moderna (o reconhecimento dos direitos civis, o princípio da soberania popular etc.) tiveram nas revoluções burguesas – ou, mais concretamente, nos amplos movimentos populares do Terceiro Estado contra o despotismo absolutista – as condições históricas de sua gênese; e outras tantas (como o direito de associação, o sufrágio universal e igual etc.), embora conquistadas pelas lutas populares em oposição à burguesia, puderam se desenvolver e consolidar no quadro da ordem capitalista.”  E conclui: “Para o materialismo histórico, contudo, não existe identidade mecânica entre gênese e validade. Foi o próprio Marx quem observou que a arte de Homero não perdeu seu valor universal – e conservou até mesmo sua função de modelo – apesar do desaparecimento da sociedade grega primitiva na qual essa arte teve sua gênese. Embora deva ser concretizada em cada esfera do ser social, essa observação histórica de Marx tem alcance metodológico geral. Se isso é verdade, não está em contradição com o método marxiano afirmar que nem objetivamente, com o desaparecimento da sociedade burguesa onde tiveram sua gênese, nem subjetivamente, para os atores empenhados nesse desaparecimento, perdem seu valor universal muitas das objetivações ou formas de relacionamento social que compõem o arcabouço institucional da chamada ‘democracia burguesa’.”

    Carlos Nelson tem em mente a categoria de valor conceituada por Agnes Heller em O cotidiano e a história (1970): “Que entendemos por valor? Tudo o que faz parte do ser genérico do homem e contribui, direta ou indiretamente, para a explicitação desse ser genérico […] Os componentes da essência genérica do homem são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a socialização, a universalidade, a consciência e a liberdade […] Pode-se considerar ‘valor’ tudo o que, em qualquer das esferas [do ser social] e em relação à situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais. […] O valor, portanto, é uma categoria ontológico-social e, como tal, é algo objetivo […], independente das avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante de relações e situações sociais.”

    Então, considerando o valor como resultado da atividade humana no contexto das relações sociais em situações históricas dadas, Carlos Nelson ressalva: “o que tem valor universal não são as formas concretas que a democracia adquire em determinados contextos históricos — formas essas sempre modificáveis, sempre renováveis, sempre passíveis de aprofundamento —, mas o que tem valor universal é esse processo de democratização, que se expressa essencialmente numa crescente socialização da participação política”.

    Por isso mesmo, não está demais falar em democracia burguesa no marco de uma formação social capitalista. A esse propósito, é bom lembrar o enunciado de Marx, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, referindo-se aos políticos da socialdemocracia francesa: “O que os transforma em representantes do pequeno-burguês é o fato de não conseguirem transpor em suas cabeças os limites que este não consegue ultrapassar na vida real e, em consequência, serem impelidos teoricamente para as mesma tarefas e soluções para as quais ele é impelido na prática pelo interesse material e pela condição social.”   E conclui: “Essa é, em termos gerais, a relação entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam”.

    De modo análogo, o que faz da democracia uma democracia burguesa é o fato dela não ultrapassar os limites impostos pela lógica da reprodução ampliada do capital, exatamente por estar subsumida ao modo de produção capitalista.  O que não torna, em absoluto, a democracia política uma questão menor.

    “Jamais fomos idólatras da democracia formal – explica Rosa Luxemburg em seu ensaio A Revolução Russa (1918) –, mas isso quer dizer apenas o seguinte: sempre distinguimos entre ela e o núcleo duro de desigualdade e servidão  recoberto pelo suave invólucro da igualdade e liberdade formais, mas não para rejeitar essas últimas  e, sim, para incitar a classe operária a não se contentar com elas e a tomar o poder político a fim de preencher esse invólucro com um conteúdo social novo.”

    Engels, em seu célebre Prefácio de 1895 a As lutas de classes na França de 1848 a 1850, deposita grandes esperanças no sufrágio universal introduzido na Alemanha em 1866. “Em 1871: 102 mil; em 1874: 352mil; em 1877: 493 mil votos socialdemocratas.” Em seguida, com a promulgação da Lei de Exceção contra os Socialista, que colocou o movimento operário na ilegalidade, a votação caiu nas eleições de 1881 para 312 mil. “Porém – anota Engels -, isso foi rapidamente superado, e agora, sob a pressão da lei de exceção, sem imprensa, sem organização exterior, sem direito de associação nem de reunião, foi que começou para valer a rápida expansão – em 1884: 550 mil; em 1887: 763 mil; em 1890: 1,437 milhão de votos. Diante disso, a mão do Estado ficou paralisada. A Lei contra os Socialistas sumiu, o número de votos socialistas subiu para 1,787 milhão, mais de um quarto de todos os votos depositados.”

    Isso constituiu uma novidade. Como Engels assinala, “o direito de voto universal já existia há muito tempo na França, mas havia adquirido má fama em virtude dos abusos que o governo bonapartista praticara com ele. Depois da Comuna não restou mais nenhum partido de trabalhadores para tirar proveito dele. Também na Espanha, ele existia desde a instauração da república, mas naquele país a regra sempre fora que todos os partidos sérios de oposição deveriam abster-se das eleições. As experiências que os suíços fizeram com o direito de voto universal também foram tudo menos encorajadoras para um partido de trabalhadores.   Os trabalhadores românicos haviam se acostumado a ver o direito de voto como uma armadilha, como um instrumento do governo para fraudá-los.” Nas mãos dos trabalhadores alemães foi diferente. “Nas palavras do programa marxista francês, o direito de voto foi por eles transformado de meio de fraude, como foi até agora, em instrumento de emancipação.”

    A experiência da Unidade Popular chilena, que, na primeira metade dos anos 70 do séc. passado, elegeu Salvador Allende como presidente do Chile, constitui um processo histórico exitoso de utilização do sufrágio universal pelas classes subalternas. Ao levar a luta de classes ao limite da institucionalidade burguesa, ele foi, no entanto, abortado pelo sangrento golpe de Estado comandado pelo general Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973.

    Mais recentemente, o filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, em Democracia ou bonapartismo (2004), denuncia o processo de apropriação do sufrágio universal pela burguesia, o qual, dessa forma, deixa de ser um instrumento de emancipação para se constituir em instrumento de manipulação da vontade geral. Losurdo caracteriza aí uma tendência à des-emancipação num Estado burguês cada vez mais bonapartista.

    István Mészáros põe o dedo na ferida ao dizer com todas as letras que, “na medida em que o capitalista não é apenas a ‘personificação do capital’, mas simultaneamente ‘a personificação do caráter social do trabalho’, da ‘totalidade do trabalho enquanto tal’ [Marx: Manuscritos econômico-filosóficos], o sistema pode alegar que representa o poder de produção vitalmente necessário para a sociedade vis-à-vis aos indivíduos, incorporando os interesses de todos”. O que implica dizer que “o capital é a força extraparlamentar par execellence, cujo poder de controle sociometabólico não pode ser politicamente constrangido pelo Parlamento”. Ele destaca que “a questão vital, da qual tudo depende, é que ‘as condições objetivas do trabalho não aparecem subsumidas ao trabalhador’, mas, ao contrário, ‘ele aparece subsumido àquelas’ [Marx: Manuscritos econômico-filosóficos], por isso mesmo nenhuma mudança significativa é viável sem que se volte a essa questão, tanto por meio de políticas capazes de desafiar o poder e os modos de ação extraparlamentares do capital como na esfera da reprodução material”. E sublinha: “a razão pela qual as instituições políticas hoje estabelecidas resistem com sucesso a mudanças significativas para melhor é serem elas próprias parte do problema, e não da solução, pois em sua natureza imanente elas são a personificação das determinações e contradições estruturais subjacentes pelas quais o Estado capitalista moderno – com sua rede ubíqua de componentes burocráticos – foi articulado e estabilizado no curso dos últimos quatrocentos anos”.

    O Parlamento é “dominado pelo poder extraparlamentar do capital”. Exatamente por isso não pode controlá-lo, ainda que minimamente. Coloca-se então como tarefa prioritária a construção de um movimento revolucionário que dissemine uma “consciência comunista de massa”, a ser forjada em torno de um programa anticapitalista animado por um amplo movimento extraparlamentar de massas, como foram as jornadas de junho no Brasil, não permitindo a dissolução do “setor de classe ativo e consciente do proletariado na massa amorfa de um ‘eleitorado’”, como Rosa Luxemburgo denunciou.

    Concluindo: “O poder extraparlamentar do capital só pode ser enfrentado pela força e pelo modo de ação extraparlamentares do trabalho”. O que, obviamente, não nega o espaço da disputa eleitoral e da luta no Parlamento, mas propõe uma nova articulação entre ação no interior das instituições (Executivo, Legislativo, Judiciário) e ação direta extrainstitucional de massas, na qual esta não se subordina àquela, mas preserva sua autonomia e impõe sua primazia através da iniciativa política.

    Só a luta garante a cidadania.  O caminho é a defesa dos direitos adquiridos e a luta por mais direitos.  Inclusive pelo direito à preservação das condições ambientais necessárias à reprodução da vida humana.

    Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos

  • O exercício da comunicação

    O exercício da comunicação

    jornalismoJornalismo hoje é uma atividade ainda mais árdua que em outros tempos. Com o enxugamento das estruturas trabalhistas, o bom profissional agora precisa ser cinco especialistas em um só.

    Primeiramente deve se ser um repórter atento. Conseguir levantar dados, números, estatísticas, depoimentos, informações de toda a sorte, material para o tema de seu artigo, consultar fontes, saber entrevistar pessoas e checar a veracidade de fatos que podem ter muitas versões.

    Isto costumava ser feito por um profissional, que vivia pesadamente atarefado cheio de visitas a fazer, anotações, documentos para analisar e produção de relatórios. Então se passava para uma etapa mais elaborada: a redação, que hoje, é feita em sequência de trabalho.

    O redator deve pegar todos os ingredientes e construir um bom texto. Tem que ter capacidade de coesão e coerência. Deve ser uma pessoa que pratique a leitura e que busque desenvolver um estilo próprio. Deve ter cultura e talento não só para contemplar o assunto ou refletir sobre ele, mas conceituar diante da novidade e do fluxo temporal. Ah, e ter uma qualidade de escrita que nos encante.

    Tudo isto utilizando a ferramenta mais difícil que já foi inventada na História da humanidade: a linguagem! Foi-se o tempo dos gabaritados revisores de texto. Hoje o profissional tem que, ele mesmo, estar com a ortografia, a gramática e todo o sistema linguístico com seus recursos tinindo. O procedimento é custoso em alto grau. Além de estar sempre em transformação com reformas e com o próprio uso criativo.

    E é chegada a hora do fotógrafo, qual o quê? Saudades da dobradinha repórter-fotógrafo. Hoje o jornalista faz ele mesmo a documentação fotográfica e ai dele se não entender de enquadramentos, composição, closes, e da parafernália das máquinas fotográficas com seus flashes, zoons e detalhamentos técnicos.

    Parou por aí? Não, aí vem o grande desafio. O jornalista hoje deve ser também seu próprio editor. Ou seja, ele tem que ter um feeling para pautas, saber abordar o assunto com respeito ao público e fazer valer a máxima da atividade que é a liberdade de expressão. E, ai meu Deus! Tem que ser também um bom advogado e ter amplo respaldo institucional para se defender.

    Ora, mas será que estes profissionais encontram reconhecimento? Urge que sim. A massa sequer consegue dar uma contribuição para o processo de esclarecimento individual (e por conseguinte social).  Vide as redes sociais e o quanto elas revelam uma população mal formada, com opiniões obscuras, confusas e tendenciosas.

    Ser cinco profissionais em um só de forma alguma favoreceu estes formadores de mundo, estes produtores do que é mais valioso num mundo dominado pela máquina, que de modo algum cria conteúdo.  No entanto, sabendo-se que vivemos a Era do Conhecimento, o jornalista, e sua propriedade intelectual, deve ser reconhecido por seu patrimônio material e imaterial. Cabe à sociedade defendê-lo, não só com apoios, mas efetivamente com os altos valores que merecem os que se dedicam a esta atividade.

  • Centenário do nascimento de Julio Cortázar, o mestre do “fantástico”

    Centenário do nascimento de Julio Cortázar, o mestre do “fantástico”

    Escritor argentino Julio Cortázar, que faria 100 anos este ano, foi um dos mais importantes protagonistas do boom da literatura latino-americana nos anos de 1960 – Romina Santarelli/Ministerio de Cultura de la Nación
    Escritor argentino Julio Cortázar, que faria 100 anos este ano, foi um dos mais importantes protagonistas do boom da literatura latino-americana nos anos de 1960 – Romina Santarelli/Ministerio de Cultura de la Nación

    “Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças dos nossos bisavôs, do avô paterno, dos nossos pais e de toda a nossa infância.” Assim arranca o conto Casa Tomada, o primeiro que o então desconhecido Julio Cortázar publicou, em 1946, na revista literária Anales de Buenos Aires, dirigida por Jorge Luís Borges.

    “Tenho orgulho de ter sido o primeiro a publicar um trabalho dele”, recordou Borges, que na época tinha 47 anos e já dera à estampa uma das suas obras maiores, Ficciones. “Lembro de um jovem alto que se apresentou no escritório e me entregou um manuscrito. Prometi que o iria ler, e ele regressou uma semana depois. O conto chamava-se Casa Tomada. Disse-lhe que era excelente; a minha irmã Nora fez a ilustração”. Cortázar tinha 32 anos, escrevia desde criança, mas decidira só tornar público o seu trabalho quando achasse que o estilo já tinha atingido um nível aceitável.

    “Devo ter pecado por vaidade, porque determinei uma espécie de teto, de nível muito alto, para começar a publicar, e tinha suficiente sentido autocrítico para ler o que ia escrevendo e dar-me conta de que estava abaixo”, explicaria Cortázar mais tarde.

    Até àquela data, publicara apenas Los Reyes, um livro de poesia “meio clandestino”, mas escrevera um romance de 600 páginas, duas novelas, muitos contos e inúmeras poesias que nunca quis levar às editoras (na realidade, levou o romance, que foi recusado). “Sentia, sem saber muito bem porquê, que os meus primeiros contos não funcionavam e em vez de ficar a lamentar-me parecia-me mais lógico metê-los numa caixa ou jogá-los fora”, disse Cortázar na mesma entrevista.

    “Até que um dia apareceu um conto que na minha opinião funcionava, esse trouxe outros – alguns que funcionavam, outros não – e outros que na sua maioria começaram a dar certo. Foi quando os dei à publicação.”

    O gênero “fantástico”

    Mesmo assim, foi um processo lento. Um ano depois, a mesma revista de Borges publicava Bestiário, e foi preciso esperar mais um ano para que saísse o terceiro, Lejana, na revista de artes e letras Cabalgata. Só em 1951, data da sua mudança para França, juntou os três contos, acrescentou mais cinco e publicou o primeiro livro, que recebeu o título Bestiário.

    Era a primeira de muitas coletâneas de contos que Cortázar definia como pertencentes “ao gênero chamado fantástico, à falta de uma melhor designação”.

    Casa Tomada passa-se num enorme casarão de família, onde vive um casal de irmãos que veem a sua residência ser paulatinamente tomada por entes nunca definidos, por vozes, por ruídos que forçam os irmãos a recuar, a ceder-lhes partes da casa, que fecham, para tentar deter a invasão.

    Bestiário é a história de uma menina que vai de férias, como habitualmente, para a casa de uma família amiga que vive com um tigre. O cotidiano da casa é marcado pela necessidade de constantemente vigiar a fera, que passeia livremente pelas salas da casa ou pelos jardins, de forma a que não haja encontros desagradáveis entre os humanos e o potencialmente agressivo felino.

    Nos dois casos, como na maioria dos restantes contos, o fantástico de Cortázar (como, aliás, o de Borges) tem pouco a ver com o gênero que recebera o nome no século anterior, histórias góticas de terror, do horrível, centradas no “lado noturno” do homem. O fantástico (ou neofantástico, como lhe chamou o crítico literário Harold Bloom) de Cortázar mergulha o leitor num mundo em que o irreal invade e contamina o real. Uma espécie de deslocamento, como observa o escritor e jornalista uruguaio Omar Prego Gadea, numa longa entrevista a Cortázar.

    Na opinião de Gadea, em Bestiário, por exemplo, o elemento fantástico não é o tigre, mas sim a aceitação natural da sua presença e a adaptação de toda a rotina da família ao estranho convívio. Já em Casa Tomada, o clima fantástico instala-se devido à atitude dos irmãos, que em nenhum momento pensam em investigar a origem daqueles ruídos que vão assinalando a invasão da casa.

    Hoje, Bestiário é sem dúvida um marco na literatura hispano-americana; mas na altura não foi assim visto. O livro de Cortázar ficava um pouco ofuscado por Ficciones e por El Aleph, de Jorge Luís Borges. Mas o jovem escritor tinha fé de que estava a fazer algo de original: “Tinha total certeza de que quase todas as coisas que mantinha inéditas eram boas, e algumas delas eram mesmo muito boas”, recordou, referindo-se a “um ou dois dos contos de Bestiário”. E prosseguiu: “Havia outros, os admiráveis contos de Borges. Mas eu fazia outra coisa”.

    Demoraria mais cinco anos a publicar um novo livro de contos, Final del Juego.

    A vida na França

    Esses foram os anos em que se estabeleceu na França, país onde viveria pelo resto da vida, recebendo mesmo a nacionalidade francesa em 1981, outorgada pelo próprio François Mitterrand, sem porém renunciar à cidadania argentina. Foi na verdade um regresso à Europa. De fato, Julio Cortázar nascera, “por total acaso” – como gostava de dizer – em Bruxelas, no ano que marcou o início da Primeira Guerra Mundial. O pai, Julio José Cortázar, era funcionário da embaixada, mas as vicissitudes da guerra forçaram a família a mudar-se para Genebra e depois para Zurique, onde aguardou o final do conflito. Em 1918, os Cortázar regressaram à Argentina, indo viver em Banfield, subúrbio de Buenos Aires.

    Logo o pai se separou e abandonou a família, e o pequeno Julio seria criado pela mãe, a tia e a avó. Formou-se em 1932 como professor primário e três anos depois como professor de Letras. Deu aulas em pequenas cidades do interior, Bolívar e Chivilcoy, e ensinou literatura na Universidade de Cuyo, mesmo sem ter qualquer título universitário. Em 1945, ano da eleição de Perón à Presidência da Argentina, desistiu da carreira docente e voltou para Buenos Aires, onde foi trabalhar na Câmara Argentina do Livro.

    A oportunidade para a viagem a França surgiu com uma bolsa do governo francês e Julio chegou a Paris decidido a ficar. Levava apenas uma mala de roupa e um disco de jazz: Stack O’Lee blues.

    Na época, conta, tinha “uma vida quase mínima, convencido a ser solteirão irredutível, amigo de muito pouca gente, melômano leitor de jornada completa, apaixonado pelo cinema, burguesito cego a quase tudo o que acontecia mais além da esfera estética”. Conseguiu então um emprego como tradutor da ONU que, além de um salário regular, lhe permitiu viajar para muitos lugares e deu-lhe a oportunidade de realmente se estabelecer no país, como pretendia. E em 1953 abandonou as convicções celibatárias e casou-se com Aurora Bernárdez, como ele tradutora e argentina.

    Pouco depois de Final del Juego, publicou uma tradução castelhana das obras completas de Edgard Allan Poe, até hoje considerada a melhor, naquela língua, do autor de Histórias Extraordinárias. Em 1959, saiu Las armas secretas, que inclui o famoso conto (ou novela) El Perseguidor, inspirado no saxofonista Charlie Parker.

    E no ano seguinte viajou à Argentina e publicou o primeiro romance, escrito durante a viagem de barco: Los Premios. Essa seria também a sua primeira obra traduzida para o francês e publicada em 1961 pela editora Fayard.

    O boom literário sul-americano

    Os anos de 1960 foram também marcados pelo boom da literatura latino-americana, um fenômeno editorial e literário sem precedentes que marcou a década e pôs em destaque uma geração de escritores sul-americanos que até então tinha grandes dificuldades para fazer circular as suas obras.

    Pela primeira vez, publicavam em editoras europeias e encontravam boa aceitação. O público, por outro lado, sentia-se atraído por autores que desafiavam convencionalismos estabelecidos e lançavam obras experimentais, algumas de caráter político que refletiam o clima do continente e o impacto da revolução cubana.

    Entre os expoentes deste boom estavam Cortázar, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes. Destes, Cortázar era o mais velho e o que vivia em Paris, e por isso a sua casa passou a ser um polo para os escritores latino-americanos que viajavam à Europa.

    García Márquez, por exemplo, dizia que desde a leitura de Bestiário compreendera que Cortázar era o escritor “que ele queria ser quando fosse grande”. Entre os dois havia 13 anos de diferença. O colombiano, que seria mais tarde Prêmio Nobel, reconheceu que sentia verdadeira devoção pelo argentino. Antes de se tornarem amigos, García Márquez procurara Cortázar pelos cafés de Paris, na esperança de assistir ao seu processo criativo. “Alguém me disse que ele escrevia no café Old Navy, do boulevard Saint Germain, e lá o esperei várias semanas, até que o vi entrar como uma aparição”, recordou. “Vi-o escrever durante mais de uma hora, sem uma pausa para pensar, sem tomar nada além de meio copo de água mineral, até que começou a escurecer na rua e guardou a caneta no bolso e saiu com o caderno debaixo do braço, como o estudante mais alto e magro do mundo.”

    Todos recordam a aparência jovem do autor de Bestiário, aparência essa que se devia à sua jovialidade, mas também à acromegalia, uma doença semelhante ao gigantismo, que se manifesta na idade adulta e que fazia com que nunca tivesse parado de crescer. Aos 60 anos, Julio tinha pés e mãos disformes e, ao morrer, com 70 anos, media 2,14m. Carlos Fuentes, outro que foi visitá-lo em Paris, conta que viu a porta ser aberta por um rapaz que aparentava ter 20 e poucos e a quem pediu que fosse chamar o pai. Mas era o próprio Cortázar, já com 50 anos de idade, que estava diante dele.

    Outro futuro Prêmio Nobel, Mario Vargas Llosa, conheceu Julio em 1958, durante um jantar de amigos num restaurante de Paris, quando ficou sentado ao lado de “um rapaz alto e magro, de cabelos curtíssimos e grandes mãos que agitava ao falar. Tinha já publicado um livrinho de contos e estava por publicar uma segunda compilação, numa pequena coleção dirigida por Juan José Arreola, no México. Eu estava prestes a publicar, também, um livro de contos e trocamos experiências e projetos, como dois jovenzinhos que fazem a sua velada de armas literária”, recordou o escritor peruano.

    “Só quando nos despedimos é que soube – pasmado – que era o autor de Bestiário e de tantos textos lidos na revista de Borges e Victoria Ocampo, Sur, e o admirável tradutor das obras completas de Poe… Parecia meu contemporâneo, e, na realidade, era 22 anos mais velho que eu. Durante os anos de 1970, e em especial os sete que vivi em Paris, foi um dos meus melhores amigos e, também, algo assim como o meu modelo e o meu mentor. Eu admirava a sua vida, os seus ritos, as suas manias e os seus costumes tanto como a facilidade e a limpeza da sua prosa e essa aparência cotidiana, doméstica e risonha, que nos seus contos e novelas adotavam os temas fantásticos.”

    O perseguidor

    El Perseguidor, o conto longo de 1959, vem marcar uma nova fase da literatura do escritor argentino. Até então, explicaria o próprio numa entrevista, os personagens dos seus contos podiam estar vivos, podiam comunicar alguma coisa ao leitor, mas não passavam de “marionetas ao serviço de uma ação fantástica”. Desta vez, a abordagem era diferente: o que fez neste conto foi o diálogo com um semelhante, “com alguém que não é um duplo meu, mas sim outro ser humano que não está posto ao serviço de uma história fantástica”. Neste caso, a história está determinada pelo personagem.

    El Perseguidor baseia-se na vida do saxofonista Charlie Parker para criar o músico de jazz Johnny Carter, “um indivíduo que ao mesmo tempo tem uma capacidade intuitiva enorme, mas que é muito ignorante, primário. É muito difícil criar um personagem que não pensa, um homem que não pensa, que sente. Que sente e reage na sua música, nos seus amores, nos seus vícios, na sua desgraça, em tudo”.

    O outro personagem é Bruno, jornalista e crítico de jazz numa revista especializada, autor de uma biografia do músico. Ele acompanha-o, protege-o, dá-lhe eventualmente dinheiro, mas por outro lado vive dele, parasita-o para aceder à sua própria glória como biógrafo do gênio.

    As intuições de Carter levam o músico a vislumbrar como que uma outra dimensão, algo que ele só verdadeiramente apreende através da música, uma realidade que às vezes define como “buracos”. “Na mão, no jornal, no tempo, no ar: tudo cheio de buracos, tudo esponjoso”, explica Carter. Um mundo ao qual ele tenta aceder sem sucesso e que não consegue explicar.

    Johnny Carter tem também uma percepção muito particular do tempo, um tema que sempre aparece nas suas conversas com Bruno. Para ele, o tempo é algo indefinido, maleável, variável. Diz: “Como se pode pensar um quarto de hora num minuto e meio?” E, numa das passagens marcantes do conto, interrompe uma gravação com Miles Davis e começa a gritar: “Já toquei isto amanhã, Miles, é horrível, já toquei isto amanhã”.

    Bruno, o crítico, é o contraponto de Carter: racional, preciso, sabe bem o que quer, escreve uma boa biografia, mas não consegue explicar por palavras a genialidade musical do biografado. Insiste que Carter lhe dê uma opinião sobre o livro e, depois de muito insistir, ouve o que não queria. “O teu livro é muito bom… Estás muito mais bem informado que eu, mas parece-me que falta alguma coisa… O que te esqueceste foi de mim.”

    No final, Carter morre, e o crítico ainda vai a tempo de incluir uma nota necrológica na segunda edição da biografia, que considera, assim, completa. “Talvez não seja certo eu dizer isto, mas como é natural situo-me num plano meramente estético”, conclui Bruno, satisfeito por já se falar de novas traduções da sua obra para sueco e norueguês.

    Quando acabou de ler El Perseguidor, Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio amigo de Cortázar, esmurrou o vidro da casa de banho até parti-lo. Depois, escreveu-lhe uma carta (coisa que ele só fazia muito raramente) a manifestar o seu entusiasmo pelo conto.

    O jogo da macaca

    O editor português do mais famoso romance de Cortázar, Rayuela, decidiu dar-lhe o título de O Jogo do Mundo. Publicado em Portugal com mais de 50 anos de atraso, a escolha é muito discutível, já que a tradução ao pé da letra deveria ser “o jogo da macaca” (no Brasil foi publicado como O Jogo da Amarelinha, título correto, já que o jogo infantil chamado “macaca” em Portugal tem o nome de “jogo da amarelinha” no Brasil). Cortázar pensara chamar o romance de Mandala, mas como lhe soava pretensioso optou pelo nome do jogo infantil cujo objetivo é chegar ao nono quadrado, o céu, através de saltos ao pé coxinho. O céu, neste caso, representaria a quimera do protagonista Horacio Oliveira que procura obsessivamente alguma coisa que não sabe definir.

    Rayuela foi publicado em 1963 e transformou-se com rapidez num clássico e até num livro de culto, uma das obras-chave do boom latino-americano. Escrita como um diálogo interior do protagonista Oliveira, a obra chamou desde logo a atenção pela forma. Com 155 capítulos, pode ser lida de maneiras diferentes, e o próprio leitor terá de escolher como o vai fazer: leitura normal, sequencial, do capítulo 1 ao 56, e prescindindo “sem remorsos” do resto; ou pela sequência sugerida pelo autor no início, seguindo uma tabela proposta pelo autor, que começa no capítulo 73 e segue para o 1, o 2, o 116… No fundo, também pode ser lido pela ordem que o leitor desejar, até porque aconteceu a muitos perderem-se e só se darem conta, ao fim de muita leitura, que afinal tinham seguido uma ordem diferente da proposta.

    O livro teve uma recepção entusiástica na América Latina. Pela primeira vez, o próprio leitor ganhava um protagonismo que não tivera antes, onde o seu papel era unicamente deixar-se conduzir passivamente pelo autor. Agora era diferente, e por isso alguns críticos chegaram a dizer que Rayuela era uma antinovela. Cortázar preferia o termo “contranovela”, porque o seu objetivo não era destruir a novela (romance) como gênero, mas “ver de outra forma o contato entre a novela e o leitor”. Qualquer que seja o termo que se escolha, o certo é que veio responder ao que os ventos de mudança pediam.

    A recepção da crítica na França, porém, foi bastante fria, com Roger Caillois – um promotor da literatura latino-americana e o primeiro a divulgar Borges no país – a recusar-se a publicá-lo na Gallimard. Em contrapartida, Rayuela, traduzido como Hopscotch, teve um acolhimento entusiástico nos Estados Unidos, recebendo em 1967 um dos recém-criados National Book Awards para livros traduzidos. James Irby, na revista Novel, publicou um estudo longo em que vinculava Cortázar a Cervantes e dizia que o romance é “uma meritória renovação do louco empreendimento proposto há séculos na Espanha pelo maior dos antinovelistas”. Um crítico do The New Republic disse de Rayuela que era a “mais poderosa enciclopédia de emoções e visões que emergiu da geração de escritores internacionais do pós-guerra”. O mexicano Carlos Fuentes, numa recensão publicada na revista norte-americana Commentary, recordou que o Times Literary Supplement de Londres considerara Rayuela como “a primeira grande novela da Hispano-américa”.

    Militância política

    Em 1961, Cortázar visitou Cuba e passou por uma nova mudança. “A Revolução Cubana, por analogia, mostrou-me então e de uma maneira muito cruel, e que doeu muito, o grande vazio político que havia em mim, a minha inutilidade política. Desde esse dia dediquei-me a documentar-me, a compreender, a ler: o processo foi-se fazendo paulatinamente e às vezes de uma maneira quase inconsciente, os temas onde havia implicações de tipo político, ou ideológico mais que político, foram entrando na minha literatura”, lembraria Julio na já citada conversa com Omar Prego Gadea.

    Para marcar essa nova fase, o escritor cita o conto Reunión, publicado em Todos los Fuegos el Fuego (1966) cujo personagem é o Che Guevara. “Esse é um conto que jamais teria escrito se tivesse ficado em Buenos Aires, nem nos meus primeiros anos de Paris.”

    Na mesma conversa, Cortázar afirma que em muito pouco tempo surgiu nele aquilo “que atualmente se chama o compromisso… O que não quer dizer que vá ser um escritor de obediência, um escritor que se limita unicamente a defender a sua causa e a atacar a contrária, mas sim que vou continuar a viver em plena liberdade, no meu terreno fantástico”.

    Um conto bastante representativo deste caráter é Satarsa, incluído no livro Deshoras, publicado em 1982, uma parábola sobre a ditadura argentina sem uma única vez serem citadas as palavras “ditadura” ou “Argentina”. Este é um regresso à linha de Bestiário, 30 anos depois.

    Um grupo de fugitivos, perseguidos por causas políticas, refugia-se na fictícia Calagasta, onde partilha a miséria da população local e, tal como ela, dedica-se à principal ocupação local: caçar ratazanas que são vendidas a uma empresa e embarcadas para a Dinamarca. O líder do grupo, Lozano, é um fanático dos jogos de palavras, especificamente dos palíndromos. Diante do boato de que os seus perseguidores estão prestes a chegar a Calagasta, decidem fazer uma grande caçada para obter dinheiro suficiente para fugir.

    Em 1976, Cortázar viajou à Costa Rica, onde se encontrou com Sergio Ramírez e Ernesto Cardenal e com eles realizou uma viagem clandestina, cheia de peripécias, à localidade de Solentiname, na Nicarágua. Logo após a vitória da Revolução Sandinista, fez várias visitas ao país e escreveu diversos textos, reunidos no livro Nicarágua, tan violentamente dulce.

    Anos finais

    Em 1981, Julio teve uma hemorragia gástrica que quase o matou. Mas, no ano seguinte, receberia um golpe maior, com a morte da sua terceira mulher, Carol Dunlop, mergulhando-o numa profunda depressão. Pouco depois, foi-lhe diagnosticada uma leucemia, que o mataria em 12 de fevereiro de 1984. Nos últimos meses, Aurora Bernárdez, a primeira mulher, acompanhou-o até ao fim. Foi sepultado no cemitério de Monptarnasse, no mesmo túmulo de Carol. Os visitantes costumam deixar sobre a lápide pequenas recordações, notas, flores secas, cartas, moedas, bilhetes de metrô com os quadrados do jogo da macaca desenhados, um livro aberto ou pacotes de cerejas.

    Numa entrevista que deu poucos anos antes, respondeu assim à questão de se considerava que o essencial da sua obra estava feito: “Nenhum escritor acredita que o essencial da sua obra está escrito porque não seria um escritor se pensasse assim. Quando termino um livro, tenho imediatamente a impressão de que poderia tê-lo escrito muito melhor, que uma enorme quantidade de coisas ficaram de fora, e que então, dentro de um certo tempo, poderia escrever outro que complete um pouco as lacunas do anterior, sendo completamente diferente. A noção de essencialidade não existe para mim”.

    Julio Cortázar nunca parou de escrever.

    Fonte: Brasil de Fato, 03/09/2014

  • Resenha: O Alfaiate de Ulm, de Lucio Magri

    Resenha: O Alfaiate de Ulm, de Lucio Magri

    AlfaiateA história do movimento operário internacional e do pensamento marxista no século XX, a partir da Revolução Russa de 1917, foi talvez a maior epopeia da História humana. Por quase 80 anos, milhares de homens, de diversas nacionalidades e de todas as partes do mundo, deram o melhor de suas forças (e, em muitos casos, suas vidas) em prol da causa de transformação da sociedade.

    Organizados em partidos com um programa, funcionamento interno e ligações internacionais, os comunistas estiveram presentes nos principais eventos do século, organizando a resistência dos de baixo contra as forças destrutivas do capital. Pegando em armas, ajudando a consolidar conquistas democráticas nos marcos do capitalismo, empreendendo um trabalho pedagógico de conscientização e organização popular que alcançava milhões de seres humanos, mas também errando, e pagando caro por esses erros, a epopeia comunista moldou toda a história do século passado.

    Hoje, essa história rica, contraditória e repleta de lições, mas derrotada, é vitima do esquecimento intencional por parte da História oficial. O comunismo é descartado como uma utopia irracional, reduzido à caricatura grotesca do totalitarismo stalinista, e seus fundamentos teóricos, baseados na compreensão concreta da dinâmica do sistema capitalista e no antagonismo de classe, são vistos como uma velharia que nada têm a dizer sobre a moderna sociedade. Bertolt Brecht, grande poeta, militante e observador social alemão, certa vez escreveu um poema que serve de resposta a esse tipo de pensamento: O alfaiate de Ulm, a história de um artesão da Idade Média que tenta construir um aparelho que permita ao homem voar. O aparelho falha, e o bispo da cidade anuncia triunfante que esse fracasso é a prova conclusiva que o homem jamais voará. Como todos sabem, apesar de todos os percalços, o homem finalmente conseguiu voar.

    Lucio Magri, dirigente comunista da Itália, escolhe justamente tal título para seu livro, que trata de uma pequena parte da grande epopéia comunista: a história do Partido Comunista Italiano (PCI), por várias décadas o maior partido comunista do Ocidente. Ler esse livro é ter diante dos olhos um quadro vivo, rico e complexo da história e das opções políticas de uma grande organização, que mantinha em sua perspectiva teórica a revolução social, mas operava em um contexto social e geopolítico que limitava sua ação e restringia seu potencial.

    É importante dizer que Magri não conta toda a história do PCI. Como ele mesmo coloca na introdução, a sua proposta é contar a história a partir do momento em que se torna militante e entra no partido, em meados dos anos 1950. A história pregressa do partido, seus anos de formação e as duras condições de funcionamento durante o período fascista, são tratados muito rapidamente. O capítulo primeiro, chamado “A Herança”, é dividido em duas partes: “O fardo do homem comunista” discute, a partir das lutas operárias e das controvérsias entre os revolucionários do século 19, a formação de uma identidade comunista, plasmada tanto por convicções teóricas quanto pelas contradições vividas no seio do movimento real, chegando até o período do terror stalinista. Ai está uma primeira limitação da obra de Magri: ele trata a repressão da burocracia soviética como “erros” da direção do partido bolchevique, erros graves, por certo, que produziram consequências desastrosas, mas poderiam ser evitados, mas não as vê como resultado da luta de uma camada social, a burocracia, para manter seus privilégios nascidos do estrangulamento da revolução de Outubro. A incapacidade de reconhecer o caráter de classe da degeneração da União Soviética estaria na origem dos principais erros teóricos e práticos do movimento comunista.

    A segunda parte trata do que o autor chama de “Genoma de Gramsci”, ou seja, a importância que a obra teórica do revolucionário Antonio Gramsci, descoberta depois da II Guerra Mundial, teria para a construção da identidade do PCI. Vale lembrar que Gramsci foi o primeiro pensador marxista a refletir sobre e a elaborar uma teoria da ruptura revolucionária nos países do Ocidente. A esse respeito, ele discutiu a relativa autonomia da “superestrutura” política em relação à base econômica, e a importância de construção de uma hegemonia do interior da “sociedade civil”. De importância capital também é sua concepção do partido revolucionário como “intelectual coletivo”, ou seja, uma organização capaz de educar e formar as massas no exercício da própria autonomia e promotor de uma reforma cultural e moral. Sobre esse último aspecto do pensamento gramsciniano é significativo que Magri reconheça que o PCI tal como surgiu da II Guerra (o “partido novo” de Togliatti) foi incapaz de se transformar. Ele cita o próprio Togliatti, que pouco antes de sua morte admitiu que “nós, comunistas italianos, temos uma dívida com Antonio Gramsci: nós construímos largamente sobre ele nossa identidade e nossa estratégia, mas, para isso, o reduzimos a nossa medida, à necessidade de nossa política, sacrificando o que ele pensava, que estava ‘muito além’”.

    Para Magri, o momento fundador da identidade particular do PCI foi a chamada “Viragem de Salerno”. Quase ao fim da guerra mundial, Mussolini havia sido deposto, mas o poder ainda estava nas mãos do rei e de apoiadores do fascismo. Desenvolvia-se uma resistência armada, impulsionada por católicos, socialistas e comunistas, mas não havia uma unidade entre eles a respeito de uma futura forma de governo, nem um programa comum. Os alemães invadiram o norte da Itália e criaram uma república fantoche com Mussolini à frente. Preparava-se o desembarque das tropas aliadas para ocupar o país. Togliatti chega à Itália, após um exílio de décadas, e propõe ao partido e às outras forças de resistência adiar a questão da monarquia para um referendo depois da guerra, e união de todas as forças antifascistas para derrotar os invasores e libertar o país.

    Para além das questões imediatas, essa orientação do PCI serviu para consolidar, nas décadas seguintes, sua perspectiva estratégica. Seria importante reconhecer também as determinações advindas da correlação de forças mundial e as orientações vindas da União Soviética, que mantinha uma influência decisiva sobre a linha política dos diferentes PCs (fato que Magri dá pouca importância). Os acordos de Stalin com as potências ocidentais dividiam o mundo em zonas de influência, reservando os países da Europa Ocidental para o capitalismo. Nessa zona, a radicalização da resistência ao nazi-fascismo (muitas vezes, liderada por comunistas) era desencorajado, e seus objetivos políticos eram limitados à “conquista da democracia”. É indubitável que Togliatti, que se formou no aparelho da Internacional Comunista stalinizada, tenha absorvido completamente essa concepção, que relegava a revolução social a um futuro distante. Fiel a essa orientação, o PCI após a derrota do fascismo se compromete com a criação de uma democracia burguesa, desarmando a resistência partisana e empenhando-se em alianças com as forças capitalistas.

    O PCI que emergiu após a guerra é resultado dessas opções estratégicas e limitações impostas pela geopolítica mundial: um partido que ganhou enorme prestígio por seu papel na resistência, consolidando-se como um partido de massas, comprometido com as causas populares e com os interesses materiais da classe operária. No entanto, limitou-se a si mesmo ao fixar seu objetivo com a conquista da democracia dentro dos marcos do capitalismo. A isso, acrescente-se que a configuração política da guerra fria, com a OTAN, também impunha uma ameaça permanente de intervenção militar contra qualquer país onde estourasse uma revolução social. Estabelecido um limite além do qual não queria ultrapassar (ou, depois de um certo período, não podia), o PCI no entanto esforçou-se para também ser coerente com sua herança comunista e se constituir como um partido das massas populares. O trabalho pedagógico e organizativo desenvolvido por ele nos anos 1950 foi de uma importância enorme para a politização de milhares de trabalhadores. Ele estava ramificado em centenas de milhares de pequenas organizações locais, que realizavam desde obras de alfabetização e educação política, até criação de cooperativas, sindicatos rurais, a luta contra as práticas mais primitivas de exploração do trabalho herdadas do período fascista (ainda profundamente arraigadas, em particular no sul mais pobre e menos desenvolvido), até a gestão de municipalidades e a aprovação de uma constituição social, uma das mais avançadas da Europa.

    Magri analisa com muita lucidez toda a política do partido durante o período que vai dos anos 1950 até o seu fim em 1991, vendo os acertos e os erros que praticou dentro dessa perspectiva estratégica. Interessante é ver como o PCI, embora mantendo uma retórica internacionalista e de simpatia com os movimentos de libertação do 3o Mundo, aos poucos foi se afastando de um internacionalismo ativo, abstendo-se de intervir nos eventos da União Soviética e dos partidos comunistas de outros países. Sua abordagem cada vez mais centrada na realidade nacional estará na raiz dos muitos erros que desembocarão no seu fim, apesar de que, como o próprio Magri reconhece, a partir dos eventos de 1968 se tornava cada vez mais necessária, e possível, uma articulação da esquerda europeia, que dialogasse com os novos movimentos, e estabelecesse um programa comum contra o avanço do capital.

    A análise do autor não se centra apenas na ação subjetiva dos atores de sua história, mas se preocupa em acompanhar as mudanças econômicas e sociais, inclusive culturais, pelas quais passava o capitalismo europeu e mundial, como pano de fundo para as escolhas feitas pelo partido e suas limitações. As transformações do sistema capitalista a partir dos anos 1970, e suas consequências no mundo do trabalho (reorganização no espaço de produção, a difusão do consumismo, a desindustrialização da Europa e o crescimento do setor de serviços, a decadência do campo soviético etc.) são dados objetivos que precisavam ser levados em conta na avaliação das possibilidades e limites da ação de um partido revolucionário. Magri reconhece que o principal erro do PCI foi não ter reconhecido e avaliado essas transformações na elaboração de sua prática.

    A difusão de novos movimentos (ambientalistas, da juventude, mulheres etc.) que não tinham mais uma referência identitária direta no mundo do trabalho tornava necessário um diálogo com eles e uma rediscussão das perspectivas estratégicas do partido. O PCI, infelizmente, como boa parte da esquerda tradicional, possuía uma profunda desconfiança par com esses movimentos, e manteve um distanciamento hostil. Tal descolamento, no final dos anos 1970, também começou a ocorrer na base tradicional do partido. As grandes lutas operárias dessa década, iniciadas no que ficou conhecido como “outono quente”, foram apoiadas pelo PCI, mas ele não buscou incentivá-las, nem generalizar seu exemplo para outros setores. Aliás, há muito tempo que já havia se estabelecido uma “divisão de tarefas” entre o PCI e a central sindical CGIL, onde o primeiro se concentrava na “política” (eleições parlamentares e de municípios) e a segunda em questões sindicais, e um não se metia no “domínio” do outro. O partido, então, não quis dar um sentido político a esse movimento grevista na Itália, que estava em sintonia, embora com atraso, ao movimento geral da classe trabalhadora européia, que a partir de 1968, protagonizou lutas heróicas na França, Inglaterra, Portugal, Grécia etc.

    A reestruturação capitalista, iniciada no início dos anos 1980 (mas, como o autor aponta corretamente, suas principais características já apareciam de forma embrionária uma década antes), foi tanto uma reação contra o poder crescente dos trabalhadores quanto uma resposta dos capitalistas à queda da produtividade e da taxa de lucro a nível mundial. O seu receituário, que ficou conhecido como neoliberalismo, inaugurava uma nova etapa do sistema capitalista, com ataques sistemáticos às conquistas operárias das últimas décadas, e exigia uma reelaboração da estratégia socialista. No bojo dessas mudanças, talvez fosse inevitável um enfraquecimento dos partidos de esquerda, traduzido na diminuição do número de militantes e de sua influência, reflexo dos ataques às condições de vida e organização dos trabalhadores. Mas tal dano seria minimizado se o partido soubesse reconhecer a nova etapa, estudá-la, aprender as lições do passado e preparar as bases para uma retomada posterior, baseada na centralidade da classe trabalhadora, mas levando em consideração os novos sujeitos da luta social. O PCI, infelizmente, foi incapaz de realizar esse processo de conservação do patrimônio passado, e fechou os olhos para a realidade em transformação.

    A estratégia do PCI centrava-se na possibilidade de, em conjunto com os socialistas, chegar ao governo (o chamado “compromisso histórico”) e aplicar os pontos mais avançados da constituição, aprovados mas nunca implementados. Por várias décadas, os governos da Democracia Cristã se obstinaram em impor um veto aos comunistas em qualquer coalizão. Na década de 1970, o crescimento eleitoral do PCI, por um lado, e a perda de apoio dos demais partidos, por outro, levou a uma situação onde era impossível se formar um governo estável sem os comunistas. Mas todos os partidos, inclusive os socialistas relutavam em aceitar uma coalizão. O PCI, então, passa a uma lenta aproximação com o empresariado italiano e com as forças de centro, chegando até mesmo a realizar esforços para uma coalizão com a Democracia Cristã, apresentando-se como uma força “responsável”.

    No final da década de 1980, com a ofensiva mundial do capital e a crise do stalinismo, a direção do PCI, liderada por Achille Ochetto, rapidamente chega à conclusão de que se deveria abandonar a identidade comunista. No que Magri corretamente critica como “culto do novo”, para essa direção o método marxista e a história do movimento comunista não mais eram relevantes para se acompanhar as mudanças trazidas pela reestruturação capitalista, e o PCI deveria se esforçar por ser um partido “moderno”, afinado com as “novidades” trazidas pelas mudanças de comportamento e identidade.

    Chama atenção a quase unanimidade que a proposta de Ochetto encontrou dentro do partido. A princípio, houve muita revolta entre os militantes mais velhos, em especial os que participaram na resistência ao nazifascismo, mas só Magri votou contra na direção nacional. Apesar de, para o congresso que decidiria a questão da mudança do nome, haver se formado uma plataforma de oposição, também não houve uma grande resistência entre as fileiras do partido. Isso não se explica apenas por uma suposta “disciplina de ferro” existente em partidos stalinistas. A partir dos anos 1960, o PCI possuía uma relativa abertura e tolerância dentro de suas fileiras, e a leitura de autores marxistas “heterodoxos” era incentivada. Essa aceitação encontra sua explicação no fato que, há décadas, a militância do PCI era educada e formada na visão de que a “República Social” italiana era a conquista máxima a que poderiam almejar, e que deveriam trabalhar dentro dela, preservá-las das forças da reação e não ir além. O descolamento gradual do PCI em relação às lutas da nova geração é mostrado pela composição etária do partido em sua fase final: De um universo de 1,4 milhão de filiados, apenas 1,9% possuíam menos de 25 anos, inferior aos que tinham mais de 80 anos. O número dos que tinham menos de 30 anos era inferior aos que tinham mais de 70 anos. Magri chega à conclusão que “a relação com as lutas e focos de conflitos reais parece desgastada ou delegada ao sindicato e aos movimentos (pacifista ou ambientalista), a cuja vida cotidiana o partido é relativamente alheio” (pg. 406).

    Nesse quadro, e não podendo e não sabendo interpretar a crise do bloco soviético em um sentido marxista, a proposta de Ochetto de fundar um novo partido reformista, para o qual confluiriam outras forças políticas, fazia todo o sentido para essa militância que perdia sintonia com as lutas reais da classe trabalhadora e não tinha uma perspectiva clara para lhe dar. Em 1991, o PCI muda seu nome para Partido Democrático da Esquerda. Uma pequena parte, não aceitando a decisão, formou o Partido da Refundação Comunista.

    Uma das partes mais interessantes do livro é o apêndice ao seu final, um documento escrito por Magri para a discussão no congresso de mudança do nome. Sabendo que a discussão não poderia se centrar apenas na herança do passado, ele buscou nesse documento apresentar vários elementos em torno dos quais se poderia articular uma nova identidade que justificasse a manutenção da perspectiva de ruptura revolucionária. Estudando as características do que ele chama de “sociedade pós-industrial”, o autor aponta corretamente a questão ambiental, os problemas sociais oriundos do consumismo e do hedonismo desenfreados, o aumento da pobreza não mais como um efeito, mas como uma tendência do atual modelo de desenvolvimento, as novas formas de trabalho, o esvaziamento e a crescente irrelevância das instituições “democráticas” (já que os centros de decisão se deslocam para grandes organismos financeiros internacionais), e, por fim, a degeneração e burocratização dos partidos, todos evidências de “um capitalismo que procura sobreviver às razões históricas que lhe deram origem e guiar com seus valores e suas regras uma época futura” (pg 373).

    Numa crítica premonitória ao que desde aquela época era chamado de “movimentismo” (ou seja, a ideia que pequenas ações locais e descentralizadas com objetivos pontuais poderiam criar uma mudança de mentalidade que levaria a uma nova sociedade), Magri irá reivindicar o valor de um projeto coletivo de mudanças e o internacionalismo ativos. Ao mesmo tempo que reivindica o socialismo como premissa para a verdadeira democracia, ele também defende a construção de uma hegemonia política entre os subalternos para fazer frente ao poder cada vez mais centralizado do capitalismo internacional: “A democracia não vive sem um soberano coletivo, e esse soberano coletivo não pode existir na forma de uma multidão atomizada, de uma soma confusa de impulsos e culturas heterogêneas. A fragmentação não é pluralismo, é uniformidade camuflada” (pg. 399, itálico nosso).

    Para concluir, para todos aqueles militantes e ativistas comprometidos seriamente com as lutas dos de baixo, esse livro é uma fonte rica em interrogações, sugestões e quem sabe algumas respostas, mas que só serão válidas se estiverem ligadas à práxis pela mudança da sociedade. E, como a metáfora do título do livro sugere, não é porque um projeto grandioso fracassou uma vez, que ele não poderá triunfar no futuro, se seus defensores souberem incorporar as lições desse fracasso.