Ele contou quando chegavam os pratos à mesa: feijão, arroz, carne de banda engordurada e batatas; começou no assunto se gabando, como quem quer dizer coisa que valha; levantei o olhar da comida quando senti carência de atenção; o assunto passou a interessar. Era policial miúdo, segundo não disse, mas tinha função que julgava importante: torturava. Não. Disse que nos últimos anos, devido a sua habilidade em arrancar confissões, se especializara. Vieram bolinhos de arroz à mesa, ensebados; pensei: desses, passo. Após se vangloriar de sua escolha entre tantos para tão espinhosa tarefa, começou a contar o que de início já queria; falou com cara espremida, como de ruim inevitável; de socos, pontapés, da insistência de uns em resistir, resistir, resistir…. Falou repetindo, muito amargando a resistência de quem resistia. Pedi cerveja, ele cachaça. Estava quente e a comida gordurosa fazia impressão de calor maior. Suávamos na testa e no pescoço. Ele continuou narrando um caso especial, um homem que mais do que resistir o matara de impaciência; impacientou o fulano esse homem especial por uma negativa que esbarrava na evidência; o homem sabia, mas negava e apanhava; se sabia o que ele sabia e mesmo o que ele sabia não era mais importante, mas não… Foi preciso ir mais e mais fundo; fez um gesto de impaciência o homem que me contava sobre o homem que resistia; deu um gole na cachaça, jogou o corpo pra frente e me falou tão de perto que seu bafo me repugnou: ? Todo homem tem um limite, pode me acreditar. Disse como quem diz: Matei de porrada, desanquei o desgraçado, fodi sua existência, acabei com a raça, apaguei o filho da puta; mas assim não disse. Não. Falou que todo homem tem um limite. Acreditei e ele me disse, como quem encerra um assunto, que o homem que o fizera perder a paciência não havia confessado o que todos sabiam. Não perguntei o que todos sabiam, nem o que acontecera ao homem que resistira. O prato feito era maçaroca gordurosa que só engoli ajudado com goles de cerveja em cada garfada. Seguiu falando o homem que constatara que o homem tem um limite; falou de tudo; mudou; pressentiu, creio, minha fraqueza para esses assuntos. Depois pedimos a conta e ele foi embora, como um homem comum.
Morava eu em Paris e tinha um passaporte do Alto Comissariado da ONU para Refugiados, quando, por volta de 1978, viajei com outros exilados para participar de um evento na Costa Rica. Era um seminário sobre a América Latina, patrocinado pela Federação Mundial da Juventude Democrática. Não tenho muita certeza do ano, mas o mês era dezembro, sem dúvida.
Bem, todo mundo sabe que sou um desmemoriado. Então, como posso afiançar assim, tão categoricamente, que foi num mês de dezembro? É simples. Esses encontros nunca excediam uma semana e, quando o seminário terminou, estávamos às vésperas do Natal. Acreditem ou não, isso é sustentado pela própria história que vou contar.
Como não havia voo direto Paris-San Jose, o jeito era fazer uma troca de avião no Panamá. Mas o aeroporto do Panamá tinha um probleminha: era uma espécie de buraco negro no qual sumiam as bagagens durante a transferência de uma aeronave para a outra. Embora o sumiço fosse previsível, não se podia evitá-lo. Parece que a coisa tinha um estatuto de lei da física. Tratava-se, pelo visto, de uma fatalidade irrecorrível. E foi assim que desembarquei em San Jose só com a roupa do corpo e a maleta de mão.
O seminário versava sobre a questão democrática na América Latina, ou qualquer coisa que o valha. E transcorreu burocraticamente, como soia acontecer nesses eventos juvenis internacionais, que reuniam invariavelmente aprendizes de diplomata dos países do “socialismo real” e representantes das juventudes dos partidos socialistas e comunistas ocidentais e dos partidos social-democratas no governo.
A inutilidade dessas reuniões era proverbial. Se por acaso alguém vislumbrar alguma função nelas, este será um gênio ou uma besta. Mas, com certeza, era uma oportunidade para se fazer um turismo semi-oficial. Foi desse modo que conheci a Costa Rica e, de quebra, uma costarriquense cujo interesse teórico pela questão democrática latino-americana se incendiava ao contato das nossas íntimas partes pudendas. A bem da verdade, foi a ela que me dediquei com maior afinco na meia-dúzia de três ou quatro dias de reuniões a que assisti.
Dessa viagem, ficou-me uma viva impressão da brava companheira costarriquense, reformista social-democrata que se acasalou à perfeição com o meu indomável espírito revolucionário proletário . Aprendi muito com ela. Sobre o diálogo silencioso dos corpos, por exemplo. E, inclusive, sobre estalidos de salivas e gemidos e sussuros que fazem a alma desabafar em suspiros. Mas também sobre doces palavras castelhanas que não saberia traduzir, mas cujo sentido não me escapava e eriçava-me as mais recônditas penugens pubianas.
Pois encontrava-me nessas lides, que todos podem imaginar, quando me dei conta de que era hora de voltar à Paris. Voltar pra quê? Ora, para passar o natal em casa com a minha encantadora esposa, que me esperava. Todavia, aguardava-me uma ingrata surpresa: as passagens estavam esgotadas por conta das festas de fim de ano. O leitor (ou será leitora?) poderá imaginar a aflição de um marido apaixonado diante da trágica perspectiva de passar a noite do menino da manjedoura longe de sua adorada esposa. Era tal meu desespero que esqueci da costarriquense. Eu queria porque queria passar o natal com a minha amada em Paris. Então, o vendedor da American Airlines apresentou uma saída: tomar um voo da companhia estadunidense até o aeroporto de Nova Iorque e lá fazer a transferência para um voo da Air France para Paris. Comprei os bilhetes e embarquei para o aeroporto John Kennedy.
Eu pensava que o pior já havia passado, mas o pior ainda estava por vir. Antes de prosseguir, uma correção. Eu venho relatando os fatos como se a dificuldade em voltar para a Europa fosse um problema só meu. Na verdade, afetava um grupo mais ou menos numeroso de participantes do evento, entre os quais vários brasileiros. Não citarei nomes, por duas boas razões. A primeira é a minha falta de memória: simplesmente não lembro. A segunda é que as pessoas estão vivas e não quero provocar melindres. (Abro aqui um parêntese para dizer que essa história de poder citar mortos e não poder citar vivos me soa como uma perfeita covardia. Afinal os vivos têm sobre os mortos a vantagem de poder se defender. No caso, porém, não citarei vivos nem mortos. E digamos que é porque me esqueci dos nomes.)
Voava rumo a Nova Iorque com a atenção dividida entre o futuro imediato, que me aguardava em Paris, e o passado recente, que eu deixara ficar definitivamente para trás, mas ainda se insinuava fresco na memória. Passara a última noite com a costarriquense e fora uma despedida inesquecível. Ela me pedira que eu deixasse um pouco de mim para ela. Eu a penetrei, vagarosamente, e emiti golfadas de emoção. Depois, parti sem olhar para trás. Trazia opresso no espírito a certeza de que na Costa Rica ficara uma gota do meu ser. Dessa gota, eu jamais teria notícias.
Havia um pequeno detalhe: eu não tinha visto de entrada para os Estados Unidos. Todavia, o vendedor da American Airlines me certificara de que não era necessário, pois eu estaria em trânsito no aeroporto John Kennedy por apenas algumas horas ou mesmo menos de uma hora.
Quando desembarquei em Nova Iorque, ainda enlevado com as lembranças do pedaço de mim que ficara na Costa Rica, mostrei na aduana o passaporte e a passagem para o vôo da Air France que partiria em seguida para Paris. O funcionário olhou para mim e exclamou: Terrorista! Desentendido, olhei pros lados buscando saber de quem ele estava falando. Logo me dei conta que era de mim.
Agora, vejam vocês. Havia todo um grupo nas mesmas condições que eu. Por que o funcionário da aduana foi invocar logo comigo, e apenas comigo? Achei aquilo uma tremenda injustiça. Entre os brasileiros havia até um banido. Pois o banido passou e eu fui preso. Muito estranho os critérios dos nossos vizinhos do norte. Por que eu? Até hoje não tenho uma explicação plausível. Eu fora um militante apagado, com escassas e secundárias atuações nas lides da clandestinidade. Por que eles queriam a mim e não ao banido? Nunca imaginei que eu pudesse ser matéria de interesse para a CIA ou o FBI. De certa forma, isso era até motivo de lisonja para mim. Ou será que eles se enganaram de pessoa?
Fui algemado e conduzido a um canto sob a mira do revólver de um guarda do aeroporto. Logo se formou uma aglomeração de curiosos. Invariavelmente, perguntavam ao guarda quem era eu. O guarda, muito excitado, dizia que eu era um terrorista perigoso. Tentei argumentar que terrorista, vá lá; mas perigoso, não, pelo amor de deus! O guarda, um sujeito baixinho, gordinho, meio ridículo, de descendência hispânica, pôs-se possesso e, num espanhol de meter medo, mandou, ameaçador, que eu calasse a boca. Olhei para o cano do revólver que ele apontava para o meu nariz e achei melhor ficar quieto. Mas, sabe como é, numa situação dessas, a tendência é a gente ficar com vontade de mijar (isso quando o sujeito tem dignidade e não se caga todo). Disse ao guarda que precisava ir ao mictório. Ele ficou me olhando como se eu estivesse dizendo algo sem sentido. Expliquei que sofria de incontinência urinária, que já não agüentava mais e que iria urinar nas calças ali mesmo. Diante da minha ênfase, ele me conduziu ao banheiro. Acontece que eu estava com as mãos algemadas nas costas. Fiz ele ver que eu precisa de ajuda para abrir a braguilha e direcionar o jato de urina para o recipiente adequado. Ele fez uma cara de nojo. Hesitou por um momento. Finalmente, decidiu liberar as minhas mãos para que eu fizesse por mim mesmo o que de outro modo as mãos dele teriam de fazer por mim. Dei uma longa e prazerosa mijada, o que aliviou a minha tensão.
O local aonde fui levado em seguida era uma cela ampla, nas instalações do próprio aeroporto, que estava lotada com africanos e asiáticos (talvez muito mais asiáticos do que africanos). Não havia camas, de modo que me acomodei num banco, certo de que, em meio àquela balbúrdia, no dia seguinte ninguém mais saberia informar quem era eu e o que estava fazendo ali. Nessas situações, costumo ser acometido de uma sonolência irreprimível. Dormi. Fui acordado no dia seguinte por um sujeito que poderia muito bem ser o Agente 007: alto, forte, loiro, de olhos azuis, impecavelmente bem vestido, de terno e gravata, trato cordial, falava um português gramaticalmente correto e sem sotaque. Seria, talvez, um frio assassino, como soem ser os agentes da CIA; não me pareceu, entretanto, um sádico. Perguntou se eu aceitava partir num voo para Amesterdã que saía daí a 15 minutos. Prontamente, disse que sim. Embarcaria para qualquer lugar que não fosse o Brasil. Devolveu-me o passaporte e conduziu-me ao avião.
O calendário marcava o dia 24 de dezembro quando desembarquei à tarde no aeroporto de Amesterdã. O funcionário da aduana holandesa tomou um susto ao inspecionar o meu passaporte. Haviam estampado lá algo assim: Perigoso terrorista expulso dos Estados Unidos. O holandês perguntou o que eu havia feito contra os estadunidenses. Respondi que, simplesmente, não fizera nada. Contei que faria uma baldeação no aeroporto John Kennedy e que fora detido sem mais nem menos. O amesterdamês acreditou na sinceridade de minhas palavras. Apenas comentou: Esses americanos são malucos!
Ainda deu tempo de tomar o trem e chegar a Paris antes da meia-noite. Minha adorada esposa me aguardava aflita. Passamos a ceia de Natal juntinhos. Já nem me lembrava mais da costarriquense.
E quer saber de uma coisa? Sinceramente, acho que essa história de costarriquense só pode ter sido mais uma astúcia da minha imaginação.
Sergio Granja é autor do romanceLouco d’Aldeiaemdoistempos (Record, 1996)
Quando procurei o Iúri[1] para dizer que não via mais sentido em continuar no partidão, ouvi dele que era para eu ter paciência, que algo de diferente estava sendo gestado. Nós éramos do Comitê Secundarista do PCB no Rio de Janeiro. Eu não me conformava com a linha política absentista do partido na luta contra a ditadura. É claro que o papo não foi exatamente nesses termos, mas foi mais ou menos esse o teor da conversa. Aliás, não cobrem precisão das palavras. A ambiguidade delas é imanente No caso das minhas, a imprecisão é ainda maior, por causa da amnésia que me corrói as reminiscências. Guardo lembranças retalhadas, recordações em frangalhos, como um quebra-cabeça em que se perderam muitas das suas peças. Por isso, para recompor o passado, às vezes, minto. Consciente ou inconscientemente, preencho os hiatos da memória com invencionices, criações da imaginação, pura fantasia. Mas, como ia dizendo, quando procurei Iúri, não suspeitava aonde aquela conversa me levaria.
Fruto desse papo germinal, um belo dia, outro companheiro me procurou. Era o Crioulo[2]. A bem dizer, não sei se fazia um belo dia. Tampouco me lembro se isso foi antes ou depois de eu ser apresentado ao Marighella. Deve ter sido depois. Eu já era estudante universitário, embora continuasse no Comitê Secundarista. Mas o Crioulo chegou e me chamou para fazer um levantamento. O Crioulo era da Seção Juvenil do Comitê Central do PCB, e também estava ligado ao Marighella. Fomos até a frente do prédio do IPEG (Instituto de Pensões e Aposentadorias do Estado da Guanabara), na avenida Presidente Vargas, e ficamos observando a saída do carro pagador. Era um carro forte que levava o dinheiro da sede para as agências. Voltamos algumas vezes. Acho que fui sempre com o Crioulo, mas pode ser que alguma vez tenha ido com o Iúri. Sei lá. Em todo caso, foram poucas vezes.
Disseram-me que a informação sobre os pagamentos do IPEG fora colhida nos jornais, o que era verossímil, pois o dia do pagamento, as agências e a lista dos beneficiários saíam publicados nos jornais. Muito tempo depois, fiquei sabendo que a informação viera de dentro, por um contato do Marighella. Tratava-se de uma alta funcionária do IPEG. Para o que vou contar, entretanto, esse é um detalhe sem relevância.
A ação foi planejada e chegaram ao Rio os companheiro do famoso GTA, o Grupo Tático Armado de São Paulo. Do Rio, participaríamos três companheiros: o Barba, o Poeta e eu. Os dois primeiros ficariam no carro de cobertura; eu faria dupla com Marquito[3], o comandante da ação.
Hora e local aprazados, estávamos a postos. Era uma agência. Na porta dela se formara uma fila de pensionistas. Havia um PM guardando a fila e outro dentro da agência. A ação começou com a chegada do carro pagador. Minha tarefa era dar cobertura ao Marquito, que deu uma banda no PM que guardava a fila. O cara era grandalhão, mas caiu de costas na calçada. Com o impacto do tombo, o capacete dele voou prum lado e o revólver pro outro. O PM esticou o braço, tentando alcançar a arma no chão. Reagi com uma coronhada no couro cabeludo dele. A cabeça rachou e o sangue jorrou. Inseguro da eficácia do meu golpe, ia desferir outro em seguida, mas o Marquito me deteve. O cara estava desmaiado. Respirei aliviado. Eu estava muito tenso e ao mesmo tempo orgulhoso da minha coronhada. Era a primeira vez que participava de uma ação armada. Marquito, mais experiente e comedido, comentou que eu não precisava bater com tanta força na cabeça dos outros.
Com a respiração ainda ofegante, vi que na calçada oposta caminhava, displicente, outro PM. Atravessei a rua, correndo em direção a ele. Ele vinha distraído porque estava paquerando uma mulher. A mulher devia ser jovem, talvez atraente, e com certeza desfilava coxas, bunda e peitos que eu não notei. Minha atenção estava toda concentrada no PM. Surpreendi-o com um soco frontal do cano do revólver no seu tórax. Acho que a força do golpe foi excessiva de novo. Eu ia sempre com demasiada sede ao pote. Ele foi jogado contra a parede e caiu sentado, com um olhar apavorado, pedindo pelo amor de deus para que eu não o matasse. Talvez tivesse se machucado com o choque do cano do revólver contra o seu diafragma. Vi que estava desarmado e vulnerável. Dava pena. Parecia muito fragilizado. Procurei pela mulher. Nem deu pra sacar se valia a pena. Havia desaparecido. Voltei para junto do Marquito.
Estava tudo dominado. Então, entramos no carro pagador. Mas, para minha surpresa, havia lá dentro um senhor agarrado feito um carrapato à sacola do dinheiro. Eu disse para ele entregar a sacola e sair do carro. Não me obedeceu, Gritei com ele e nada. Dei-lhe um tapa na cara. Continuou imóvel. Comecei a esmurrá-lo. Ele não se mexia. Eu já não sabia como proceder quando o Marquito disse para eu deixar o sujeito em paz. Marquito tirou a sacola das mãos dele e o conduziu pelo braço, calmamente, para fora do carro. Foi aí que percebi que o sujeito estava paralisado de pavor. O que eu interpretara como resistência era apenas pânico.
A essa altura, a situação se complicara com a chegada de um carro da polícia civil que começou uma troca de tiros conosco. O PM que estava dentro da agência também abriu fogo contra nós. Ficamos sem poder usar a metralhadora porque o companheiro que a portava foi ferido no braço direito. Mas conseguimos arrancar com o carro pagador, deixando a polícia para trás.
Numa esquina erma, eu e o Jonas[4] descemos do carro forte. Caminhamos um pouco e tomamos um táxi para a Praça XV. Jonas carregava uma sacola com a metralhadora que tomáramos de um PM que estava no carro pagador e fora rendido logo de cara. O rádio do táxi anunciou o assalto ao carro do IPEG. E mais: informou que os assaltantes fugiam com o dinheiro em direção à Praça XV. No banco traseiro, Jonas e eu nos entreolhamos. Chegando à Praça XV, pagamos a corrida e descemos do táxi. Eu o aconselhei a não pegar a barca para Niterói. Mas ele não fez caso. Disse para eu ficar observando, porque ele estava determinado a atravessar a baía com a metralhadora. Fiquei de olheiro. Ele tomou a barca, que zarpou baía adentro. Logo em seguida a polícia chegou, fazendo estardalhaço. Retirei-me.
Devo ter passado uns dois dias dormindo, tamanha era a minha exaustão. Quando acordei, liguei para o Aldo[5], que era companheiro e vizinho, e combinamos de nos encontrar na casa dele.
Aldo era sobrinho do Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, Arcebispo do Rio de Janeiro, e morava com a avó. Estávamos no quarto dele, conversando, quando fomos chamados à mesa, que estava posta. Não me lembro se era almoço ou jantar. Acho que era o almoço. Fomos. Quando sentei à mesa, a avó do Aldo me apresentou a um amigo dela que estava de visita e comeria conosco. Tratava-se de um senhor de cabelos brancos ou grisalhos, não sei muito bem, mas que, para os meus padrões da época, era um velho. Cumprimentei-o e me acomodei na cadeira sem prestar atenção nele. Foi aí que a avó do Aldo introduziu um assunto espinhoso. O amigo dela passara por uma experiência terrível. Ele era tesoureiro do IPEG. Estava dentro do carro pagador quando aconteceu o assalto. Surpreso, fiquei abestalhado. Ela passou a palavra para ele. Espantado, escutei o relato do tesoureiro do IPEG, cara a cara com ele.
O velho senhor disse que havia um assaltante muito mau, um sujeito grande e forte, com uma expressão de ódio, certamente um sádico, que o espancara sem nenhum motivo. Ele só não fora morto por esse bandido, porque um comparsa do bando de assaltantes, talvez chefe da quadrilha, ficara penalizado e intercedera, livrando-o do brutamontes.
Aldo olhou para o amigo da avó e depois para mim. Adivinhou o que estava se passando. Troquei uma olhada de cumplicidade com ele. Que fazer? Temia ser reconhecido. Interpelei o visitante. “Puxa vida, o senhor passou um sufoco, hem?” Era a forma de eu tentar saber se ele havia me reconhecido. “Ah! Foi, meu filho. Você nem imagina”, respondeu. “Esse bandido era mau mesmo, né?”, falei. Ele concordou comigo. Falou horrores do bandido e me deixou tranquilo. Pelo jeito como falava comigo, não me havia reconhecido. Na verdade, nem ele a mim, nem eu a ele.
A avó do Aldo virou-se para mim e perguntou se eu não havia gostado da comida. Aí me dei conta de que não havia tocado no prato. Fiquei embaraçado. Meti o garfo no prato, levei a comida à boca e mastiguei pela primeira vez. “A comida está muito gostosa”, respondi, sem conseguir sentir-lhe o sabor. “É que foi tão impressionante essa história, que eu nem me lembrei de comer”, acrescentei, soltando a respiração e relaxando finalmente.
Relendo, agora, o que acabei de escrever, fico na dúvida se isso de fato aconteceu.
Notas:
[1] Iúri Xavier Pereira morreu na luta contra a ditadura.
[2] Luiz José da Cunha morreu na luta contra a ditadura.
[3] Marco Antonio Brás de Carvalho morreu na luta contra a ditadura.
[4] Virgílio Gomes da Silva morreu na luta contra a ditadura.
[5] Aldo Sá Brito morreu na luta contra a ditadura.
Sergio Granjaé autor do romanceLouco d’Aldeiaemdoistempos (Record, 1996)
Do artigo de Leandro Konder, tratando da importância da teoria na elaboração política de um partido voltado para o objetivo estratégico do socialismo, aos quadrinhos de Maringoni, retratando o comportamento de Marinho Mesquita, o cidadão senso-comum, dominado e alienado pelo que lhe impõe a visão conservadora da grande mídia, nosso leitor tem múltiplas oportunidades de se inteirar, direta e indiretamente, de alguns dos grandes clássicos do pensamento revolucionário.
Pois é, camaradas. Passo a passo, vamos consolidando a publicação oficial da Fundação Lauro Campos, a revista ‘Socialismo e Liberdade’, com o lançamento deste segundo número (terceiro, de fato, se consideramos o experimental, editado por ocasião do Fórum Social Mundial). E vamos consolidando-a em um momento especial – mês de realização do nosso II Congresso Nacional -, nosso encontro maior, evento destinado à reflexão e deliberação sobre balanço e passos futuros de nosso partido.
Pelos autores e pelos temas abordados, todos poderão sentir que nossa preocupação maior foi exatamente apresentar uma publicação correspondente ao clima que toda a militância estará vivendo: uma publicação que servisse de instrumento realmente eficaz para a consolidação teórica de propostas que venham resultar dos debates certamente muito intensos que o Congresso abrigará.
Nossas tarefas não serão fáceis. A conjuntura opera contra nós, na medida em que a combate parlamentar da direita reacionária – voltado apenas para a conquista do aparelho do Estado, mas mantendo as linhas-mestras da administração lulista – dão ao PT espaços para se afirmar como esquerda viável, até para amplos setores interessados numa transformação qualitativa da realidade político-social brasileira. A falsidade ideológica se consolida em função do apoio irrestrito que os segmentos hegemônicos do grande capital – sistema financeiro, agronegócio e exportadores de matérias-primas – não negam a Lula, na contrapartida de todos os privilégios tributários que lhes são concedidos. Por cima disso, há o efeito devastador do assistencialismo bolsista, a bica de favela dos tempos atuais. Assistencialismo que não torna menos miseráveis as camadas mais desassistidas da população, mas que lhes sacia a necessidade imediata de sobrevivência. O que torna mais fácil, para as burocracias da CUT e da UNE, mergulharem na “corajosa” omissão de mobilizações do mundo do trabalho contra a ordem estabelecida.
É neste contexto que nos tornamos necessários, mesmo que a grande mídia tudo faça para nos ocultar. É neste contexto que a produção de pensamento alternativo se torna obrigatória para a prática política da esquerda que não foi cooptada nem se corrompeu.
Do artigo de Leandro Konder, tratando da importância da teoria na elaboração política de um partido voltado para o objetivo estratégico do socialismo , aos quadrinhos de Maringoni, retratando o comportamento de Marinho Mesquita, o cidadão senso-comum, dominado e alienado pelo que lhe impõe a visão conservadora da grande mídia, nosso leitor tem múltiplas oportunidades de se inteirar, direta e indiretamente, de alguns dos grandes clássicos do pensamento revolucionário.
Marx, Lênin, Trotsky, Rosa de Luxemburgo, Gramsci, Mariátegui circulam pelas páginas, tanto por textos próprios quanto pelas análises abalizadas e consistentes de José Paulo Neto, Atílio Boron, Ricardo Antunes, Silvia Santos, Jefferson Moura e Leila Escorsim.
Mas não ficamos nos clássicos, embora clássico seja tudo que Plínio Arruda Sampaio produza sobre política agrária e revolução. Há ainda aportes essenciais de nosso senador José Nery, tratando da grilagem e privatização das terras públicas da Amazônia; de Robério Paulino, sobre a forma privilegiada como o governo Obama premiou o grande capital após todas as ilegalidades em que sua ação predatória se manifestou na busca do lucro pantagruélico; e de Luiz Araujo, sempre inovador na discussão sobre politica educacional.
Fica para o fim o agradecimento especial a dois, sempre presentes, combatentes do nosso partido, sem os quais não seria possível produzir este número de ‘Socialismo e Liberdade’ – Sérgio Granja, o eficiente editor do portal da Fundação Lauro Campos, que cuidou da organização dos textos, e Jackson Anastácio, fotógrafo e artista plástico, responsável não só pela criativa capa como também por toda a diagramação da revista, numa exemplar ação militante.
Que o Congresso do PSOL resulte em passos profícuos no nosso futuro de lutas.
Milton Temer
Presidente da Fundação Lauro Campos
SOCIALISMO E LIBERDADE Ano I | N° 02 | Agosto de 2009 | ISSN 1984 4700
Uma publicação da Fundação Lauro Campos
Av. Rio Branco, 185/1525 – Centro – Rio de Janeiro – RJ – CEP: 20040-007 – Tel.: (21) 2215-2491
Retrato de Mário de Andrade, por Lasar Segall (1891-1957)
O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.
Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:
– Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.
– Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…
– Meu filho, não fale assim…
– Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.
Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.
Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:
– É louco mesmo!…
Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.
– Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!
Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus… Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.
– Eu que sirvo!
“É louco, mesmo” pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:
– Se lembre de seus manos, Juca!
Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.
– Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!
Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos… Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.
Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.
– Só falta seu pai…
Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
– É mesmo… Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.
E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.
Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!
A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor… Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.
Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!…
Mário de Andrade (1893-1945) nasceu emSão Paulo, mostrando desdecedoinclinaçãopelamúsica e pela literatura. Seuinteresse pelas artes levou-o a realizaremSão Paulo, em parceriacom Oswald de Andrade, a Semana de ArteModerna, querasgou novasperspectivaspara a culturabrasileira. Suaobra, essencialmentebrasileira, reflete umnacionalismohumanista, quenada tem de místico e abstrato. “Macunaíma”, baseadaemtemasfolclóricos é, geralmente, considerada a suaobra-prima.
[O texto acima foi extraído do livro “Nós e o Natal”, Artes Gráficas Gomes de Souza, Rio de Janeiro, 1964, pág. 23.]
Camaradas, aí está o primeiro número oficial da revista Socialismo e Liberdade, na sequência de um número experimental levado à luz por ocasião do Fórum Social Mundial. E na sequência, também, do exitoso trabalho realizado pelo portal da Fundação Lauro Campos – www.socialismo.org.br -, semanal e brilhantemente editado pelo companheiro Sérgio Granja.
Socialismo e Liberdade não vem obrigatoriamente submetida às novas normas ortográficas, impostas de forma bizarra aos povos de língua portuguesa. Mas vem, sem dúvida, submetida à obrigação de ser um instrumento eficaz na formação, e na formulação, política dos socialistas libertários, abrigados ou não na legenda do PSOL. Ferramenta entre as prioritárias, portanto, para o importante trabalho que os militantes vão realizar a partir da instalação até o encerramento, em agosto, do Congresso partidário onde se estabelecerão as linhas de ação para o importante período histórico que teremos pela frente, logo a seguir.
Não é tarefa simples. Vivemos um tempo em que a grande mídia, com raríssimas exceções, é submetida a uma hegemonia avassaladora do grande capital. Por conta do que não se limita mais a apenas noticiar, mesmo distorcendo de forma truculenta, a realidade do dia a dia. Vai mais longe; já se dando ao poder de projetar cenários futuros e de criar personagens e roteiros que mais lhe convenham para manter o controle sobre as grandes massas. Um labor sem princípios de mínima conexão com a honestidade e a isenção objetiva. E que, lastimavelmente, se funda principalmente no transformismo em que mergulharam segmentos dos próprios assalariados – editores, colunistas e repórteres -, alguns até com passado vinculado à resistência contra a ditadura que nos assolou por duas décadas do passado recente, inclusive militantes de partidos clandestinos, e contra quem o patronato não tem mais – ao contrário daquele tempo – preocupação com o que produzirão em seus computadores. Será seguramente tão, ou mais, reacionário quanto o texto do próprio dono da empresa.
Tal inversão de valores, no entanto, não terá vida eterna. Existem, aqui e no exterior, pensadores e militantes de uma esquerda combativa, de uma esquerda resistente, produzindo muito e com muita qualidade. Que se mantém ativa e atenta, refletindo sobre o concreto para propor passos futuros. E são alguns dos nomes dessa esquerda que trazemos neste primeiro número oficial de Socialismo e Liberdade.
Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Ricardo Antunes, Reinaldo Gonçalves, Gilberto Maringoni, Valério Arcary, Denise Lobato, Mauro Iasi, Paulo Henrique Costa Mattos, com suas histórias e currículos, nos honrando ao lado dos deputados Ivan Valente. Luciana Genro e Chico Alencar, e da madura juventude de quadros dirigentes do PSOL, como Roberto Robaina e Edu Alves, são os nomes dessa primeira edição de combate. Da atualidade do marxismo na conjuntura atual aos desdobramentos políticos e econômicos desejáveis, a partir do mundo do trabalho, para a crise atual do capitalismo, todos nos premiam com objetivas reflexões.
Vale a pena acompanhá-los.
Milton Temer
Presidente da Fundação Lauro Campos
SOCIALISMO E LIBERDADE Ano I | Nº 1 | Maio de 2009 | ISSN 1984-4700
Uma publicação da Fundação Lauro Campos
Av. Rio Branco 185/1525 Centro Rio de Janeiro RJ CEP 20040-007 Tel. [21] 2215 2491
Lá, bem adiante, naquele Reino tão… tão distante, entre vales e montes, riachos, lagos e fontes, vivia um Rei. O Grande Logro. Ao contrário de outros monarcas de seu tempo, ele não alcançou seu trono por descendência, por hereditariedade. Foi por incidência. Por conseqüência de sua “astuciosidade”.
Apesar de muito jovem, o “híbrido” Rei – alcunha que lhe fora dada pelas hostes oposicionistas, pelo fato de ele passear por ideologias e patronos tão díspares – já havia percorrido diversos territórios, cruzado continentes. Mancomunava-se com sultões, imperadores, mulás e aiatolás. Aliás, foi com esse legado, por essa bagagem, que ele habilmente galgou todos os degraus a caminho da glória, fez estória. Rumo ao trono, não poupou riquezas e, feito um cruel legionário, pisou em tudo, em todos. Esmagou seus adversários. Diga-se de passagem: os poucos que restaram. Pois, quando mercenários vislumbraram um novo cenário, debandaram feito lobos, buscando refúgio no Erário.
Contudo, todavia, ao poder ele foi levado dentro das regras da capengo democracia. Tanto a plebe, persuadida com as migalhas que lhes eram atiradas no dia a dia, quanto a aristocracia, ávida por um substituto ao velho Soberano que os traíra, avistaram no Rei moço, algo que pudesse lavar a alma do povo, que assistia tudo do fosso. Fantasia? E, ao mesmo tempo, fortalecer ia, as já corpulentas regalias. Quem diria!?
Rei Logro, em suas andanças – tal qual um caixeiro viajante –, vendia sua lábia, comercializava seu discurso, mas nunca pregou abertamente a tirania. Pelo contrário! No imaginário, parecia um ser gregário. Vaticinavam os periódicos em seu comentário: aquele que, mesmo não negando sua origem de lorde, privilegiará também o pobre, o proletário.
Postado ao Trono, Cetro em riste e, nem um pouquinho triste, convocou o Conselho Turro. Até aí, nada de anormal! Esse é um Reino de todos. Afinal, foi pra isso que eleito ele foi. Neca de re-enriquecer criando soja ou plantando sêmen de boi.
Logro e o Conselho Turro reunidos baixa-se um Decreto Real: danem-se o gentio, eleitores serviçais. Tendo o apoio dos poderosos, dos pensadores, e, até mesmo dos cardeais, jogue-se a Guarda Pretoriana sobre o povo e humilhe seus ideais.
O choque era a ordem: expulsem os vendilhões do tempo. Os não estabelecidos que se mudem. Afastem dos olhos da Nobreza esse cálice tinto que nos envergonha. Antes que algum aventureiro corsário, desses que nos presenteiam com ouro, prata e iguarias, seja abordado por um esmolado, e não mais retorne ao Reino da mais-valia.
E segue: nosso Reino, esse Torrão, é dos Nobres. Nossos bancos e praças, marquises com vidraças, não são feitos para abrigar os pobres. Que voltem para suas origens, suas vilas de mazelas, suas grimpas e favelas, seus locais de moradia e desfrutem seus pantanosos piscinões. Não invadam nossa praia, mal vindos aldeões. Habitem nas periferias das cidades, mesmo sem dignidade e preservem a ecologia. Encostas ocupadas, lagoas e florestas habitadas, só por castelos suntuosos e o poder da fidalguia.
E, que nos sirvam, por conveniência, com muito esmero e decência. De preferência, que nem nos falem de suas chagas, sua saga. Em troca lhes daremos uma boa paga. Algumas moedas, de comer, de beber. Afinal, quem não vive para servir, não serve para viver. Era o que o Rei e seu Conselho tinham a dizer…
Porém, iludem-se o Grande Logro, os Turros e os Nobres… quão pobres… Cegos, não enxergam sob a névoa elitista e prestigiosa, um palmo adiante de seu quintal, et cetera e tal.
Todo santo dia a plebe desce, e não é para os festejos pagãos do carnaval – onde Rei, Turros e Nobres, se confundem com os “donos do cobre”, do cortejo colossal. Descem, sem tempo para um ensaio geral, desfilam no comercio, são destaques nos serviços e balançam nas construções do Reino. Requebram e batucam na condução e não fazem feio. Desde a concentração, trazem a necessária harmonia que auxilia na evolução. Da reconstrução, do novo. Quem dera poder reunir a sapiência dos Nobres, a obediência cega dos Turros e a liderança de um Rei Logro à bela saga do nosso povo.
A Fundação Lauro Campos – FLC foi instituída pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, nos termos da legislação partidária. Desde então, tem procurado desenvolver atividades nas esferas da teoria e da cultura, ensejando um pensamento crítico comprometido com os valores do socialismo e da liberdade, e promovendo o debate de propostas programáticas para a transformação social do
Aqui está o número zero, experimental, da revista Socialismo e Liberdade. Este número inaugural sai às vésperas da instalação do Fórum Social Mundial em Belém. Não é mero acaso. Com esta nova publicação, a Fundação Lauro Campos marca presença neste importante fórum mundial dos lutadores sociais com uma linha editorial de difusão de idéias que vão a contrapelo do pensamento único veiculado pelos meios de comunicação de massa. Desse modo, trava-se a luta ideológica em vez de adular a doxa (a opinião consensual). Esse é o primeiro passo para a organização de um novo consenso permeado por um feixe axiológico anticapitalista.
A revista apresenta uma seleção de artigos publicados no portal que a Fundação disponibiliza na Internet: www.socialismo.org.br . São 21 artigos agrupados em 13 seções, abrangendo uma vasta gama de assuntos. Mas todos são expressão do compromisso com a luta incessante contra o regime capitalista e toda sua essência predatória e anti-humana. Por isso, trata-se de uma publicação revolucionária, seminal do pensamento crítico, anticapitalista e humanista, que orienta em direção ao objetivo estratégico da conquista do socialismo libertário, eixo ideológico referencial do PSOL.
O objetivo é informar a militância para que ela possa enfrentar os debates na sociedade e esclarecer as massas. É também o de fornecer elementos teóricos que enriqueçam a capacidade de reflexão critica sobre a realidade e a proposição de alternativas. E, como não poderia deixar de ser, é o de estimular a formulação teórica dos quadros partidários, funcionando como uma espécie de usina de idéias. Mas quer ser mais: um fórum amplo dos que na sociedade brasileira se identificam com os valores do socialismo e da liberdade.
SOCIALISMO E LIBERDADE Ano I | Nº 0 [edição experimental] | Janeiro de 2009
Uma publicação da Fundação Lauro Campos
Av. Rio Branco 185/1525 Centro Rio de Janeiro RJ CEP 20040-007 Tel. [21] 2215 2491
Edição Milton Temer | Sergio Granja Design Fernando Braga Produção Silvia Mundstock Impressão Gráfica Enfoc Tiragem 2000
Dormindo de bruços só se escutam ruídos. Por isso, vira-se de barriga para cima. A sombra salta do escuro, pula por cima da cama, projeta-se pela janela e some no negrume da noite. K. esfrega os olhos antes de levantar. Tem o costume de dormir nu. Sai assim mesmo porta afora. A rua está deserta. K. caminha ao acaso um sem tempo como se pisasse o espaço do sem fim. Caminha, caminha e continua a caminhada sem esforço. Então, prossegue caminhando por caminhar. A noturna negrura está ofuscada por um luar inverossímel. K. exclama “Valha-me Deus, Nossa Senhora!” numa voz sem sonoridade. Estala os dedos, de curiosidade, e o estalar não se faz escutar. Olha para ver a sombra. A sombra o acompanha. O luar a tudo ilumina e abafa tudo. Vislumbra à distância um adolescente nu no limiar de um portal. Vai até lá. O adolescente ultrapassa o limiar e detém-se defronte a um bebê nu que, sorridente, gesticula e pateia o vento, de dorso sobre a lápide onde jaz sua mãe. O bebê abandonado está feliz. Faz pipi pro céu como se fosse um chafariz num carro alegórico. E proclama com sua graça pueril: “Nasceu, morreu. Antes ela do que eu!”. O adolescente inspira-se no bebê e mija no canteiro de flores que enfeita a lápide. Tem um estremecimento e reconhece-se no bebê. K. sente uma irrefreável vontade de urinar. Urina na coluna do portal. Tem um calafrio e reconhece-se no adolescente. “Tríplice e não obstante uno: o mistério da trindade. Cruz, credo!”, benze-se K. A sombra assusta-se e foge. O luar escafede-se também. K. fica perdido no breu total. Estala os dedos, de curiosidade. Escuta-se o estalar. Nada se vê. No descampado da noite ressoa tudo e tudo se oculta. K. de olhos fechados caminha ao léu. Não sabe, mas está de volta à casa, deitado na cama. Continua de olhos fechados como se caminhando estivesse. E dorme. O ronco de K. propaga-se em noturnas ondas sonoras. E nelas surfa o sonho de W.
Sente sórdidos calores, como se suas carnes ardessem no Inferno: “Vade-retro, Satanás!” E excitantes odores, irresistíveis pendores… W. revira-se no colchão, amarfanha os lençóis, despoja-se da camisola e aconchega em sua nudez a coisa escura que o negrume da noite brota na janela e despeja sobre o seu leito. A coisa se esgueira. Ela a puxa sobre si, a quer em si… A coisa escorrega, escapa pela porta Ela se levanta e sai para a rua. Caminha sonâmbula atrás da coisa que quer para si. “Onde está a coisa? Aonde foi?” Faz escuro e ela nada enxerga. A coisa a enlouquece. W. contempla pela fresta da loucura o noturno da rua deserta na loucura da fresta: “Fresta. Quero festa!” Vislumbra ao longe uma mansão iluminada. Ruma para lá. No umbral da mansão é recepcionada por uma falange angelical. W. está extasiada. “Volte para casa e sossegue. Somos assexuados.” W. verte lágrimas que comovem o arcanjo, mas os anjos são impotentes. Aos prantos, W. implora aos céus: “Pelo amor de Deus, ao menos por compaixão!” Os anjos choram compadecidos: “Nada do que você precisa está ao nosso alcance. Quem sabe outros possam ajudá-la. Tente exús, pombajiras…” W. ruma para o cemitério. Sente cheiro de mijo na coluna do portal. Segue farejando. O seu olfato de fêmea não a engana. Encontra uma tumba recém visitada. Agacha-se sobre ela e faz xixi. Mas já não há vivalma. Um manto de escuridão enseja uma tempestade de relâmpagos no campo dos mortos. É assustador. W. afasta-se do cemitério. Fora, faz uma cálida noite de lua plena. W. aguça o olfato. É toda instinto. Segue sonâmbula de volta à casa. Acosta-se com a coisa que está em seu leito. Deleita-se. O deleite a faz arfar. A sua arfada ganha a imensidão noturna e agita o sono de Y.
O sonho agita-se em sono terminal. Y. sente a alma querendo fugir pela boca. Tranca os lábios, mas logo percebe que a alma busca escapar também pelas narinas, apenas que com muito maior dificuldade, haja vista a exigüidade dos orifícios nasais. Consciente de que é chegada a hora, Y. liga para K.: “Meu filho, ouça-me: estou ligando para avisar que não vou acordar.” Mas K. não o escuta. Está muito entretido, sonhando com W. Mesmo sem escutar, trata de se livrar do velho: “Legal, pai. Melhor assim. A gente tem mesmo que partir um dia, né?” E volta a sonhar o seu idílio com W. Extasia-se. O êxtase o faz urrar: “Ip ip hurra!”. O hurra o desperta. É tarde da noite. Escuta um ruído soturno no corredor. Pé ante pé, espia. É Y. Está pálido e pelado. Seu ser exausto já renunciara à vitalidade. “Pô, pai. Tá a fim de me assombrar?” Y. fita K. e retruca na lata: “Qual é? O ateu aqui é você. Eu sempre disse que era espírita”.
Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996).