Autor: Redação Lauro Campos

  • O orçamento sem mistério

    O orçamento sem mistério

    Eliomar Coelho
    Eliomar Coelho

    Já se consegue perceber a importância do orçamento público na vida de qualquer cidadão. Entretanto, muitos o chamam de peça de ficção. Por quê? Na verdade, não querem que a sociedade discuta, controle e avalie os resultados das políticas governamentais. Sendo assim, a resistência à democratização do processo orçamentário é puramente ideológica e baseada em três mitos: o da irracionalidade, o da irrelevância e o da complexidade.

    ““Não preocupar-se em absoluto com a opinião alheia,
    é não só arrogância como também cinismo.”

    Cícero

    Embora para muitas pessoas o orçamento público continue sendo um caramalhaço cheio de números e códigos, é possível perceber que, cada vez mais, há gente discutindo, criticando e interferindo no processo orçamentário. Que bom! Mas, afinal, o que é o orçamento? É a expressão monetária de um planejamento, seja ele público ou não. Traduzindo: é dizer quanto custa em dinheiro o que se quer fazer e, não podemos esquecer, da onde virá esse dinheiro. Ao se colocar em valores o planejamento se evidencia as prioridades de um governo, família etc. Ou seja, a favor ou contra quem se estará agindo. Assim sendo, a questão central passa a ser quem decide sobre as prioridades. Em nosso país, a elaboração do orçamento é feita pelo chefe do Poder Executivo (Presidente, Governador ou Prefeito). A etapa seguinte é a aprovação pelo Poder Legislativo, que pode alterá-lo com algumas restrições. Em nível municipal, somente a Lei Orgânica e o Plano Diretor são legislações mais importantes que o Orçamento – o melhor instrumento de controle sobre o governo. Já se consegue perceber a importância do orçamento público na vida de qualquer cidadão. Entretanto, muitos o chamam de peça de ficção. Por quê? Na verdade, não querem que a sociedade discuta, controle e avalie os resultados das políticas governamentais. Sendo assim, a resistência à democratização do processo orçamentário é puramente ideológica e baseada em três mitos: o da irracionalidade, o da irrelevância e o da complexidade.

    O Mito da Irracionalidade

    “O orçamento é o instrumento de planejamento racional das atividades governamentais. Se o destino dos recursos públicos for determinado pelos políticos ou pela população, grandes distorções na política fiscal ocorrerão, comprometendo o desenvolvimento da economia brasileira.”

    Ora, como o destino dos recursos públicos tem impacto diferenciado sobre os diversos setores da economia, haverá sempre alguns segmentos da sociedade mais favorecidos pela ação governamental. Logo, os arautos da racionalidade tecnocrática não advogam um processo apolítico. Por trás desse falso argumento técnico, está a tentativa de manter o processo orçamentário nas mãos de um pequeno grupo de altos burocratas, muitos sensíveis à influência da pressão direta dos lobistas do poder econômico e/ou dos governantes de plantão. Tal mito “justifica” a política econômica e social implementada e que resultou em: pior distribuição de renda, pífio crescimento econômico e, consequentemente, aprofundamento da desigualdade social.


    O Mito da Irrelevância ou Peça de Ficção

    “Num país de grande instabilidade econômica não é possível fazer a programação financeira das atividades do governo. O orçamento não passa de uma farsa, uma declaração de intenções que não serão cumpridas. Sendo assim, a participação do parlamento ou da população deve ser simbólica, já que o orçamento é irrelevante do ponto de vista prático.”

    Tal argumento baseia-se na imprevisibilidade da economia brasileira, que contém meia verdade. É fato que a instabilidade econômica dificulta qualquer planejamento, porém não o elimina, pelo contrário, um planejamento eficiente e eficaz tem uma capacidade de ajustamento para correção e adaptação. Além do mais, foram desenvolvidos mecanismos orçamentários capazes de compensar as alterações imprevistas ou insuficientemente programadas, tais como: a reserva de contingência e a abertura de créditos suplementares (remanejamento) para a correção de rumo.

    Nesse sentido, o processo orçamentário é a ocasião ideal para reavaliar o planejamento governamental.

    O Mito da Complexidade

    “A confecção do orçamento é extremamente complexa. São centenas de decisões que precisam ser feitas num curto espaço de tempo. Embora a participação da sociedade fosse desejável, elas não são factíveis. A sociedade não tem a capacidade de participar do processo orçamentário.”

    É evidente que as decisões sobre o destino dos recursos públicos são extremamente complexas para qualquer um – prefeito, burocrata, vereador e cidadão. Ninguém é capaz de dominar todas as informações necessárias para tomar as decisões orçamentárias de uma grande cidade, de um estado ou de um país. Na verdade, a chave está no acesso às informações contidas nas peças orçamentárias. Logicamente informações de qualidade, coisa que não acontece no orçamento carioca (e nem no orçamento do estado do Rio de Janeiro, do Brasil tampouco!). Para melhorar a qualidade das informações orçamentárias bastaria o governo explicitar exatamente o que ele quer fazer com o nosso dinheiro. Dizer quantas vagas escolares serão criadas e onde; que ruas serão pavimentadas, quanto vai gastar no carnaval, na urgente reforma dos hospitais etc. Enfim, a verdadeira aplicação do orçamento-programa.

    Um mau exemplo foi dado nos gastos públicos com os Jogos Pan-americanos. Inicialmente afirmaram que custaria cerca de 400 milhões (tudo somado: governos federal, estadual e municipal), hoje se sabe que a conta está perto de 4 bilhões. Onde está o planejamento? Um erro dessa magnitude só pode ser em decorrência de duas coisas: muita incompetência ou má fé. Nesse caso a má fé falou mais alta, pois realizaram uma tremenda transferência de renda dos mais pobres que pagam os impostos para os mais ricos. Um exemplo? O gasto de 400 milhões do contribuinte na construção do Engenhão e depois privatizá-lo. Enquanto isso a “urbanização” do Pavão-Pavãozinho vai custar R$ 37 milhões e a educação deixou de receber 500 milhões.

    Será que o carioca de posse dessas informações concordaria? Não sei, só perguntando. Por isso Eliomar criou a Lei nº 3189, de 23 de março de 2001, que Dispõe sobre a participação da comunidade no processo de elaboração, definição e acompanhamento da execução do Orçamento. É uma tentativa de se implantar o Orçamento Participativo (OP) no Rio de Janeiro. Mas o que vem a ser o OP?

    Nada mais é do que uma outra forma de elaborar o orçamento público que, como vimos, é uma atribuição do chefe do Poder Executivo. No OP a população é convocada a participar e decidir sobre a origem e o destino dos recursos públicos. Não se trata apenas de opinar ou sugerir obras/serviços: no autêntico orçamento participativo a sociedade também decide. Um orçamento participativo efetivo necessita de transparência e acesso às informações orçamentárias; engajamento de toda a administração, a começar pelo chefe (prefeito, governador ou presidente); adoção de um método simples e de fácil entendimento, autônomo em relação à administração; acesso democrático universal e, sobretudo, acatamento ao decidido no processo.

    Esse processo de elaboração orçamentária traz inúmeras e diversas vantagens: inibe o clientelismo e a corrupção; potencializa a eficácia do planejamento governamental; aumenta a fiscalização sobre o gasto público e, enfim, transforma a relação governo/sociedade, estado/cidadão. Porém, o orçamento participativo é um processo inacabado e que precisa sempre ser aperfeiçoado, levando em consideração que é uma arena de disputa por recursos limitados, sem temer ou evitar os conflitos, pois são inerentes ao processo. A frustração, por não ver uma legítima reivindicação realizada, tem um preço elevado e pode inibir o desenvolvimento do processo. Neste momento é necessário a maior transparência possível das informações para que aflore uma das maiores virtudes do orçamento participativo, que é a conscientização dos limites do poder do estado e a solidariedade na compreensão do que é realmente prioritário para a comunidade. Ou seja, o pleno exercício da cidadania.

    Com tais predicados é difícil encontrar adversários ao OP. Pero que los hay, hay.

    Quem é contra o orçamento participativo, em geral, argumenta que há pouca representatividade dos interlocutores comunitários (conselheiros do OP) em comparação com o Poder Legislativo, ou seja, os parlamentares têm maior legitimidade que qualquer outro cidadão para discutir temas orçamentários. Clássica defesa da democracia representativa.

    Há ainda os que dizem da sua pouca utilidade, pois a abrangência dos recursos objeto do debate são limitados pelo fato de que as despesas com juros e amortização da dívida; com pessoal mais benefícios previdenciários e outras de custeio consomem 80, 90 e às vezes 100% das receitas governamentais, logo, o que resta (investimentos) para o OP é sem importância. Tal argumentação parte do pressuposto de que tais despesas são imutáveis e não podem ser discutidas/alteradas. Falácia do pensamento neoliberal! A dívida pode e dever ser renegociada sempre que o interesse público se fizer necessário, e, conseqüentemente, as despesas decorrentes. Da mesma forma, as despesas com pessoal podem ser acordadas com representantes do funcionalismo, embora seja de difícil sustentação a redução do quadro de pessoal e/ou dos diminutos vencimentos da maioria dos servidores, em um país tão carente dos serviços públicos essenciais. Além do mais, o percentual destinado ao investimentos de 10, 15% e às vezes até mais do orçamento total tem um peso significativo. No Rio, fica em torno de 500 milhões/ano.

    Existem também os adversários do OP não declarados. São aqueles beneficiados pelo círculo fechado da decisão orçamentária: clientelistas, corruptos e corruptores; encastelados tanto nos executivos quanto nos parlamentos brasileiros.

    Mas os maiores adversários do OP são os oportunistas, aqueles que, pressentindo ou percebendo a popularidade do mecanismo, optam, por razões de cálculo político (não necessariamente eleitoral), por abraçar a bandeira de sua implementação, ao mesmo tempo que cuidam de esvaziá-lo. No fundo, são hostis à implementação do mecanismo de participação popular que vão além da pseuda-participação, ao restringir o processo participativo a meras consultas e informação (participação opinativa), sem admitir o cunho deliberativo. A opinião pública, confusa a respeito do que seja um orçamento participativo, poderá passar a ver com descrédito um mecanismo que se vulgariza, ao ser utilizado com graus de consistência e eficácia bastante variáveis. É o caso do Rio com a aplicação capenga da lei do Eliomar pelo prefeito.

    Nem todos têm os mesmos objetivos com o OP. Há um grupo que reconhece a insuficiência da democracia representativa pela manipulação de informações, corrupção etc. Desta forma, acreditam que alguma dose de democracia direta corrigirá as distorções e/ou aprimorará o sistema. Normalmente, se identificam com o liberalismo político e com o capitalismo. Eles não buscam uma mudança social mais profunda.

    Outro grupo não se limita a desejar um mero aperfeiçoamento do atual aparato político-institucional; quer, na verdade, a sua destruição (e do modelo capitalista). O projeto é subverter as regras do jogo e ultrapassar a ordem vigente – ainda que se tenha de começar utilizando algumas das instituições estabelecidas. A maior utilidade do orçamento participativo é proporcionar uma educação política das massas.

    Portanto, a implantação do orçamento participativo facilita o controle social, porém não é a única forma. A sociedade pode e deve se organizar para atuar em todo processo orçamentário mesmo em municípios/estados sem o orçamento participativo.

    A experiência mostra que acompanhar o uso do dinheiro público não é tarefa para uma só pessoa. A articulação de um grupo voltado para a questão orçamentária facilita o entendimento e a interferência no processo.

    Enfim, há espaço para a cidadania intervir no destino dos recursos públicos e na definição das prioridades governamentais.

    Vamos à luta!!

    Eliomar Coelho é vereador do PSOL/Rio e Luiz Mario Behnken é economista.

  • Sala de espera

    Sala de espera

    RelogioNa saleta não há um relógio de parede. Estranho, muito estranho, porque escutarás o seu tique-taque. Não exatamente assim, mas um tique, uma pausa ligeira, um taque, que repetir-se-ão em intervalos regulares, numa mesma altura, num compasso monocórdico, em perpétua seqüência monótona: tique… taque… tique… taque… tique… taque…

    Encostarás o relógio de pulso ao ouvido. As batidas não virão dali. Claro que não! Trouxera-lo durante anos, e nunca emitira um som. Fora sempre um marcador de horas preciso e silencioso.

    Mas, então, de onde viria aquela percussão: tique… taque… tique… taque… Os nervos alterar-se-ão. Que diabos será aquilo? Que significaria?

    – Calma, cara, você está se descontrolando, sussurrará uma voz.

    Olharás para os lados, não verás ninguém. Desconfiado, procurarás embaixo do sofá, atrás, em cada canto, no verso de um quadro bizarro pendurado na parede… mas a saleta estará vazia. Seria a voz das horas?

    Um zumbido próximo ao ouvido esquerdo. Ruídos do inconsciente? Concentrar-te-ás e, atento ao zuummm, baterás as mãos, espalmadas, de súbito, esmigalhando um pernilongo sanguinolento.

    E o quadro? Maneirista? O Reencontro do Corpo de São Marcos, de Tintoretto?

    Tique… taque… tique… taque… o pulsar do relógio de parede que não há. Estarás confuso. O enigma aturdir-te-á.

    E a voz outra vez:

    – Calma, cara, você está imaginando coisas.

    Ora! Imaginar como, se sequer haverás cogitado? Imaginar o que nunca terás suposto? Não, aquilo estará muito esquisito. Sentirás um calafrio. Arrepiarás. O pânico apossar-se-á de ti.

    – Calma, cara, calma, ditará a voz que não terá timbre nem sotaque, que não será de homem nem de mulher, nem adulta nem infantil…

    Esbarrarás a vista num recorte de jornal que se pegara ao calcanhar cambo do teu sapato. Será um anúncio dos classificados.

     


    Procura-se objeto inexistente

    O objeto em questão é uma pequena caixa oblonga. Pode ser de madeira ou papelão reforçado, ao estilo de uma tabaqueira ou caixinha de rapé. É importante que tenha uma tampa removível que a deixe bem cerrada. Nela, deve-se poder guardar as lembranças afetivas, as saudades e os devaneios, para que nunca se desvaneçam. E é preciso ainda que lá caibam as esperanças. Deve ter uma aparência sedutora, como a boceta de Pandora. Mas é imprescindível que não origine males dissimulados.

     

    O tique-taque martelar-te-á o crânio. O espaço estreitar-se-á. O ar escasseará. As paredes fechar-se-ão sobre ti. O chão oscilará bêbedo. O teto desabará em câmara lenta. Sentirás ânsias de vômito. Suarás. O calor tornar-se-á insuportável.

    … lembranças afetivas…

    Não há ali onde lavar as mãos. Nem um lenço de papel para limpá-las. Esfregá-las-ás, então, para esfarelar os restos de pernilongo grudados nas palmas das tuas mãos.

    Um desconforto crescerá dentro de ti, deixando-te ofegante, as pernas bambas, a memória embaralhada, o raciocínio entorpecido, os olhos embaçados, submetendo-te o físico e a vontade, dominando-te por inteiro.

    Desejarás sair dali. Os movimentos não responder-te-ão. Quererás gritar. O grito entalará na garganta.

    De repente, o ranger da porta. Sobressalto. Pavor. Virar-te-ás, ansioso, acuado: esquelética, uma mulher de branco, tez pálida, olheiras roxeadas, fitar-te-á.

    Retesarás, gélido.

    Rosto encavado, mãos ossudas, a voz impessoal dirigir-se-á a ti:

    – É a sua vez.

    – Ahn!?

    Haverá chegado tua hora.

     

    Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996).

  • Ele e ela

    Ele e ela

    Ele e elaOs nomes, não sei. Nunca soube ou me esqueci. A desmemória é perversa. Mas, como o cego que desenvolve habilidades auditivas e táteis compensatórias, desenvolvi a capacidade de imaginar. Esse é o aspecto positivo da amnésia. Se não sei, invento. E de tão imaginativo, de tão acostumado a me equilibrar no limiar entre o que é e o que poderia ser, fui aos poucos perdendo a percepção da diferença entre tudo o que vivi ativamente na invenção e aquilo a que assisti passivamente fora dela. Enfim, como diria o outro, palavras, palavras…

    Mas, retomando o fio da meada, os nomes, não os sei. Sei que ela era espigada como uma exclamação e ele encurvado feito uma interrogação. Ela toda enfática, ao passo que ele reflexivo. Enquanto ela afirmava que sem dúvida era o que era, ele, enigmático, indagava se seria mesmo. E, sendo do jeito que eram, se apaixonaram.

    A história dessa paixão, não vou contá-la em seus detalhes íntimos. Não seria ético. Ponha-se na pele das personagens e diga se você gostaria de ver-se exposto assim. Não, todo casal tem direito à privacidade. Não se deve espiar a vida conjugal de ninguém. Que tenham lá suas preferências… ninguém tem nada com isso. Problema deles, e só deles e de quem mais partilhe as experiências com eles. Há muito tempo a nossa sociedade rasgou o manto do puritanismo – que, diga-se de passagem, nunca cobriu os nossos autóctones. A bem dizer, esse manto foi feito retalhos desde que os cristãos aqui aportaram e ficaram hipnotizados pelos paganismos com que se defrontaram. Tanto é que os seus escribas enviaram epístolas a El-Rei nas quais esqueciam de relatar a paisagem em favor da descrição pormenorizada das vergonhas das bugras – muito asseadas, diziam. Não lhes tiro a razão nem os censuro. Seriam hipócritas se agissem diferente. Eu, todavia, prefiro o recato, e não direi palavra que possa suscitar o escândalo dos moralistas.

    Algumas coisas são óbvias. É claro que, sendo ela impulsiva e ele introspectivo, coubesse a ela toda a iniciativa da relação. E, efetivamente, assim foi. Ele não se atrevia a fazer-lhe a corte. Então, foi ela que se aproximou dele. Ela foi direta; ele, evazivo. E o ímpeto dela acabou vencendo a tibieza dele. Foi ela que segurou a mão dele, acaricou-o no rosto e deu-lhe o primeiro beijo no canto dos lábios. Sobre o beijo posso contar. Afinal, diante dos que se vêem em nossas telenovelas, esse beijo foi pudico. Nada de chupões, bocas escancaradas, línguas entremeadas e escambo de salivas como nos closes televisivos. Não. Ela bem que entreabriu de leve os lábios, muito discretamente, e apenas tocou o canto da boca dele com a ponta da língua. Uma coisa sutil. Tanto que ele ficou na dúvida e foi para casa pensando naquele beijo de despedida. Sentira ou não sentira o roçar da ponta da língua dela no canto da sua boca? E o encostar do corpo dela no seu, teria sido imotivado ou denotaria alguma intenção por parte dela? Ele se indagava, se indagava… E depois de muito perscrutar chegou à conclusão de que poderia ser que sim, mas que também poderia ser que não. Até que ela fez, de supetão, o pedido formal de namoro. Ele, pego de surpresa, solicitou um tempo para pensar. Aquilo não era coisa para se decidir de uma hora para a outra. Era uma decisão muito séria. A entrega amorosa vinha carregada de conseqüências talvez indeléveis. Ele se guardara para o amor de sua vida. Precisava saber se era realmente ela a pessoa certa. Ela, moça esperta nessas lides, mal pode esperar um dia. No dia seguinte, mudou-se de mala e cuia para a casa dele. Esse episódio vale a pena contar.

    O porteiro do prédio dele já a conhecia de outras visitas e deixou que ela subisse com bagagens e acompanhada de um ilustre desconhecido pelo elevador social. Só que o ilustre era um chaveiro que abriu as portas do apartamento e fez chaves para ela. Ela entrou e se instalou como pôde, apossando-se de metade do armário dele. Depois das arrumações, tomou um banho e deitou-se na cama, agora deles, para repousar. Quando ele chegou em casa, o fato estava consumado. Ademais era um cavalheiro e jamais expulsaria uma dama do seu leito. E o concubinato se consumou como nas noites de núpcias após os casamentos de véu e grinalda na Igreja.

     

    Ele queixou-se ao síndico do prédio. Relatou-lhe a temeridade do corrido. Este, preocupado com a segurança do condomínio, mandou o porteiro embora, por justa causa, alegando inépcia laboral. E a assembléia de condôminos, alarmada, deu todo o apoio ao ato expulsório, apesar de deixar escapar à socapa uns risinhos logo abafados.

    Ela, irrequieta e instável, às vezes sumia por uns dias. Ele, pacato e metódico, não se acostumava com os sumiços dela, ainda que soubesse que ao cabo de dois ou três dias a teria de volta ao lar. Numa dessas escapadas dela, ele, não conseguindo se reconciliar com o sono, saiu a passear pela madrugada. Caminhava distraído com os pensamentos absortos nela quando tropeçou numa trouxa sobre a calçada. Atônito, viu a trouxa se mexer e de seu interior assomar a cabeça de uma criança que o fitou espantada com os olhos arregalados. Estava paralisado, sem saber o que pensar quando a criança começou a chorar. Outra trouxa maior também se mexeu e dela surgiram os rostos de um homem e de uma mulher, provavelmente os pais da criança. Ia desculpar-se, mas recuou diante dos impropérios lançados contra ele pelos dois. Ainda deu uma olhadela, de soslaio, e pareceu-lhe reconhecer o porteiro que fora posto no olho da rua. Afastou-se apressado. E, de volta a casa, deitado em seu leito sem ela, não conseguia discernir se as trouxas eram ou não o porteiro e sua família.

    Desde esse dia, nunca mais saiu a caminhar pelas calçadas nas madrugadas sem ela. É que se acostumou a dormir sozinho, pois nunca mais soube dela e temia tropeçar em uma trouxa da qual ela ressurgisse em sua vida.

    Sergio Granja
    é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996).

  • Poder local e educação: os candentes caminhos de uma ação transformadora

    Poder local e educação: os candentes caminhos de uma ação transformadora

    Magda Furtado
    Magda Furtado

    Quando se fala em democratização das instâncias decisórias no âmbito educacional, muitos críticos temem a perda da qualidade da educação clássica, o enfraquecimento da autoridade docente e a desintegração da unidade de um sistema de ensino. Afirmamos, entretanto, que esses atributos já se encontram esgarçados, e que se trata na verdade de resgatá-los num processo de ressignificação, impregnando-os de valores como liberdade, responsabilidade e construção de sujeitos participantes.

    “Eu queria, portanto, deixar aqui uma alma cheia de esperança.
    Para mim, sem esperança não há como sequer começar
    a pensar em educação.”

    Paulo Freire, em
    Mudar é difícil, mas é possível (1)

    1- As possibilidades do poder local

    Nem sempre os eleitores têm conhecimento das atribuições de cada esfera do poder; mesmo entre aqueles de maior grau de instrução e informação, há uma grande cobrança por resultados em áreas que não estão inteiramente ao alcance do poder local. Assim, entre as reivindicações mais comuns a propósito da eficiência dos serviços públicos, aparecem segurança (que é atribuição dos estados), saúde (encargos compartilhados entre as três esferas), transporte (parte no âmbito estadual, parte municipal) e educação (apenas o ensino fundamental e o infantil são atribuições do município).

    Em educação, há muita solicitação, especialmente nas comunidades carentes, por escolas técnicas. Embora nada impeça que o município instale uma rede suplementar de cursos profissionalizantes de nível médio, caso o faça não só não receberá qualquer estímulo financeiro dos governos estadual e federal, como também não poderá contabilizar o montante empregado nos 25% das receitas totais que deverá destinar à rubrica “gasto com educação” no orçamento. Isso porque o ensino médio, seja técnico ou de formação geral, é atribuição constitucional dos estados. Mesmo assim, dentre as competências da prefeitura, a educação é área que está mais a seu alcance transformar. Na segurança pública, em termos de ação direta o prefeito fica de mãos atadas; na saúde os hospitais municipais recebem o reflexo da insuficiência da ação estadual e federal. Na educação fundamental e infantil, cada município se responsabiliza unicamente pelos alunos residentes em seu território, ao contrário da área da saúde, que, no caso das grandes cidades, recebe pacientes vindos de toda a região metropolitana em busca da melhor estrutura de seus hospitais. Quanto mais uma rede de saúde municipal melhora, tanto mais atrai pacientes do estado inteiro; assim, o aumento da demanda anula parcialmente os investimentos feitos. Já o planejamento na área de educação não está sujeito a esses fatores incontornáveis.

    Entretanto, o investimento em educação demora a apresentar resultados visíveis e, devido a seu custo, costuma ser preterido por governantes em busca de ações de impacto imediato. De fato, intervenções pontuais, como um aumento emergencial de salários dos professores e a construção de prédios escolares, são importantes, mas ainda não bastam para um salto qualitativo na área da educação de base. Para uma verdadeira ação transformadora, o poder local precisa apostar no comprometimento dos principais interessados na qualidade da educação, ou seja, a comunidade escolar. A atuação radicalmente democrática fortalece medidas como a construção coletiva do projeto político-pedagógico e o estabelecimento de conselhos escolares comunitários com poder decisório. Em termos acadêmicos, a educação de tempo integral é o ideal, mas, como isso envolve a duplicação de toda a rede e a contratação do dobro dos profissionais atuais, só pode ser pensada a médio prazo e gradativamente. A primeira etapa certamente poderia ser implementada em comunidades carentes, onde as crianças têm menos acesso a bens culturais em casa e freqüentemente enfrentam a ausência dos familiares. Nesses locais a escola poderia funcionar também como um centro cultural e esportivo, aberta a toda a comunidade também nos fins de semana.

    É bom deixar claro que nada disso é possível sem a melhoria geral das condições materiais de trabalho e a valorização do corpo docente e técnico em termos salariais e de formação. Nesse sentido, o prefeito será responsável por um plano que articule numa equipe capacidade técnica, experiência prática e sensibilidade política para apresentar prioridades orçamentárias e etapas de execução.

    Evidentemente temos clareza de que a educação isoladamente não é capaz de transformar a realidade. Os tentáculos ideológicos do capitalismo, como a mídia, envolvem consciências e as seduzem pela atração de um consumismo que não está ao alcance de todos. Além disso, as limitações do sistema sempre atuarão no sentido de restringir verbas e reclamar pagamentos de juros das dívidas locais, sem mencionar a competição do sistema privado de ensino, para o qual não interessa a melhoria dos serviços públicos a ponto de lhe roubar a clientela. Seus defensores certamente farão oposição inclemente a todas as iniciativas que visem a ampliar a capacidade do município de fazer frente às despesas com o serviço público de qualidade. Mas, mesmo com todas essas dificuldades, está nas mãos do poder local a possibilidade de fazer com que diminuam um pouco as desigualdades de oportunidades entre os cidadãos – nesse sentido, a educação é um importante instrumento de justiça social. São candentes os caminhos, porém suas brasas podem iluminar também outras trilhas que temos a seguir para construir um novo socialismo.


    2- Os ares democráticos fertilizam a aprendizagem

    Quando se fala em democratização das instâncias decisórias no âmbito educacional, muitos críticos temem a perda da qualidade da educação clássica, o enfraquecimento da autoridade docente e a desintegração da unidade de um sistema de ensino. Afirmamos, entretanto, que esses atributos já se encontram esgarçados, e que se trata na verdade de resgatá-los num processo de ressignificação, impregnando-os de valores como liberdade, responsabilidade e construção de sujeitos participantes. A unidade do sistema de ensino deve ser considerada numa relação dialética com a diversidade social existente mesmo numa pequena cidade. Isso acarreta a necessidade de adequações de métodos de aprendizagem e avaliação, que precisam ser discutidas com a comunidade envolvida. Quanto à autoridade docente, ela se fortalece quando está apoiada não em meros esquemas punitivos, mas sim na experiência, no esclarecimento dos limites e na atribuição de compromissos a cada um dos segmentos. Já a educação clássica felizmente se transformou muito, e ter o conhecimento dessa revolução a cada dia, através da tecnologia interativa e de cursos de atualização, é um direito de todos os professores.

    A sugestão da criação de conselhos escolares comunitários se fundamenta na evidência de que o poder central não tem como acompanhar todos os detalhes que envolvem a execução do projeto político-pedagógico em cada uma das unidades da rede municipal. Nesse caso, o rolo compressor da uniformização muitas vezes mata no nascedouro uma boa idéia de um membro da comunidade que poderia fazer toda a diferença na superação de alguma dificuldade local. O conselho escolar seria presidido pelo diretor da unidade e composto por representantes dos professores, servidores técnico-administrativos, alunos, pais e associação de moradores ou outras entidades do movimento social, todos eleitos por seus pares. Teria a função de deliberar sobre questões locais e de levar ao conselho municipal aspectos que envolvam alterações no projeto político-pedagógico. Seriam também apresentadas ao conselho municipal as sugestões que tiverem alcançado êxito na vivência daquela escola, para que sejam objeto de análise e possível adaptação para o conjunto da rede.

    O conselho escolar, com algumas variações e outra nomenclatura, já é realidade em alguns sistemas educacionais. Entre os benefícios dessa democratização destaca-se a maior adesão da comunidade ao processo educativo como um todo. Ao participar das instâncias decisórias, os diversos segmentos se comprometem com a busca de resultados, que passam a representar vitórias coletivas. Mas é preciso frisar que esse conselho precisa ter poderes deliberativos nos aspectos referentes às especificidades locais, como recomenda Paulo Freire no texto “Educação e participação comunitária”(2). Caso contrário, fica esvaziado na prática e corre o risco de se tornar uma instância meramente legitimadora das propostas do poder central, fornecendo-lhe um verniz progressista.

    3- A valorização dos profissionais da educação precede qualquer outra ação

    Nada é possível fazer em educação enquanto os profissionais se sentirem acuados, desestimulados e descrentes no potencial de sua atuação. Portanto, sua experiência será sempre o vetor de qualquer ação transformadora. A valorização salarial é apenas o começo do processo e virá no bojo de um plano de carreira que estimule financeiramente a capacitação. Evidentemente não se pode falar em mudança verdadeira sem que os profissionais tenham condições de se atualizar, enriquecer sua vida cultural, fazer cursos de pós-graduação e compartilhar a evolução do conhecimento em nossa era. Só assim a carreira do magistério se tornará atrativa para as novas gerações. Outra meta de crucial importância e que requer cuidadoso planejamento é tentar fixar o maior número possível de professores em uma escola, em regime de dedicação exclusiva.

    4- Financiamento e municipalização: entraves e perspectivas

    Até agora enfatizamos os benefícios da descentralização da educação, ao falar das possibilidades da ação transformadora do poder local. Entretanto, conhecemos os percalços pelos quais passa a municipalização do ensino fundamental em um país de enormes desigualdades regionais e sociais como o Brasil(3). Esse processo teve início a partir da década de 50 e seu grande incentivador foi Anísio Teixeira, que defendeu a descentralização como estímulo à contextualização das políticas educacionais e reforço da autonomia municipal (4). Acelerou-se a partir da Constituição de 1988 – que estabeleceu o nível fundamental como obrigação dos municípios, atribuindo aos estados o ensino médio e à União o nível superior – mas ainda resta inconcluso. Assim, enquanto em alguns municípios com boa arrecadação ele ocorreu sem grandes traumas, vários outros simplesmente não têm como custear uma rede completa de educação infantil e fundamental, apesar da complementação do Fundeb (fundo de manutenção e desenvolvimento da educação básica e valorização dos profissionais da educação)(5). Mesmo em algumas grandes cidades ainda há uma rede estadual complementando a oferta, principalmente no segundo segmento do ensino fundamental (do 6º ao 9º ano, de acordo com a nova nomenclatura) e na chamada pré-escola, que é considerada praticamente um luxo pela administração pública e tem disponibilidade bastante reduzida. Já a rede federal de ensino, por seu ínfimo tamanho (menos de 1% na cidade onde tem maior presença, o Rio de Janeiro), por seu caráter de suplementação (já que a atribuição federal é o nível superior), e por receber maiores recursos governamentais, não pode ser tomada como parâmetro nesse quadro nacional em que predominam as discrepâncias regionais e sociais.

    Atualmente o governo federal proclama que a universalização do ensino básico (nomenclatura que engloba o ensino fundamental e o médio), que se iniciou na década de 50, está completa, e que o desafio agora é a alcançar níveis razoáveis de qualidade. Diversos educadores atribuem esse crescimento sem qualidade à aceleração do processo de municipalização, reforçada por prazos exíguos estabelecidos por legislação complementar nos estados. As expectativas de aumento de verbas com a criação do antigo Fundef (hoje Fundeb) geraram uma corrida desordenada para a criação de redes municipais através de transferências de responsabilidade do governo estadual sem que houvesse planejamento e suporte financeiro adequado. Só receberiam os repasses do Fundeb os sistemas de ensino que estivessem adequados à nova legislação que determina as competências de cada esfera. Muitos municípios viram nessa obrigação uma questão apenas “imobiliária”, que se resolveria principalmente com a construção de prédios escolares, sem critérios adequados para a contratação de pessoal qualificado. Houve um notório aumento de matrículas de ensino fundamental nas redes municipais, sem que houvesse condições de oferecer um ensino com padrões mínimos de qualidade. Outros municípios continuam sem ter como assumir essa atribuição, dada a evidente insuficiência desses aportes financeiros. Os estados, ainda ocupados com esse processo de transferência do ensino fundamental, não puderam investir o suficiente na expansão do ensino médio, sobre o qual têm responsabilidade constitucional. Os críticos do processo vêem nessa corrida pela municipalização uma mera desoneração de responsabilidades financeiras por parte da União, em primeiro lugar, e secundariamente por parte dos estados. O custo calculado por aluno precisa subir, bem como as transferências por parte da União. O resultado desse açodamento na municipalização está patente hoje nos índices catastróficos das avaliações da educação básica no Brasil – mesmo considerando os pertinentes questionamentos que têm sido feitos a esses exames quantitativos.

    Conhecer as limitações nos faz manter os pés no chão, mas a fertilidade do terreno nos resgata do risco do imobilismo. É candente a conclusão de que, tendo nas mãos do poder municipal o sistema de ensino fundamental e infantil, não se pode desperdiçar a oportunidade de intervenção direta de um governo comprometido com a construção da justiça social. Essa ação transformadora deixará marcas e unirá mais braços para a elaboração coletiva de um sonho maior, de socialismo e liberdade.

     

    (1) FREIRE, Paulo. Mudar é difícil, mas é possível. In.: — Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Ed. UNESP, 2001, p. 171.

    (2) FREIRE, Paulo. Educação e participação comunitária. In: — Política e educação. Indaiatuba, SP: Villa das Letras, 2007, 7ª ed, p. 76.

    (3) Para uma visão aprofundada desse processo, especialmente no estado de São Paulo, ver BUENO, M. S. S; MARTINS, A.M.; OLIVEIRA, C. Descentralização do Estado e municipalização do ensino – problemas e perspectivas. Rio de Janeiro, DP&A, 2004.

    (4) TEIXEIRA, Anísio. A municipalização do ensino primário. In: Revista brasileira de estudos pedagógicos. Rio de janeiro, v. 27, n.66, abril/junho de 1957. pp. 22-43. À Disposição em texto integral na Biblioteca Virtual Anísio Teixeira: www.prossiga.br/anisioteixeira

    (5) Para mais informações sobre o Fundeb, ver neste link: http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=799&Itemid=839

     

    Magda Medeiros Furtado é professora do Colégio Pedro II (RJ), Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ e militante do Núcleo Zona Sul do PSOL/RJ.

  • Pensando uma Reforma Urbana Ecossocialista

    Pensando uma Reforma Urbana Ecossocialista

    Paulo Piramba
    Paulo Piramba

    As questões ambientais vêm ocupando tal espaço, que poucos de nós percebemos que palavras e expressões como “ecossistema” e “impacto ambiental”, até pouco tempo atrás, eram de uso exclusivo de pesquisadores, técnicos e militantes da área. Além da inserção na mídia, é cada vez mais comum sua presença nas agendas dos partidos, organizações e movimentos. Em muito contribuiu a divulgação dos relatórios do IPCC (sigla em inglês de Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), que colocou a atividade humana como principal responsável pelas mudanças climáticas.

    Introdução

    As questões ambientais vêm ocupando tal espaço, que poucos de nós percebemos que palavras e expressões como “ecossistema” e “impacto ambiental”, até pouco tempo atrás, eram de uso exclusivo de pesquisadores, técnicos e militantes da área. Além da inserção na mídia, é cada vez mais comum sua presença nas agendas dos partidos, organizações e movimentos. Em muito contribuiu a divulgação dos relatórios do IPCC (sigla em inglês de Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), que colocou a atividade humana como principal responsável pelas mudanças climáticas.

    Desde as décadas de 1930-40 a população brasileira vem se tornando mais urbana, chegando a 153 milhões de pessoas (81% da população) vivendo em áreas urbanas em 2006, segundo o IBGE. Estas cidades – algumas delas, megalópoles – recebem um fluxo populacional, que cria uma demanda por serviços e equipamentos sociais em uma proporção muito maior do que elas têm condições de atender.

    Este quadro tende a piorar com as mudanças climáticas anunciadas pelo IPCC. Falta d’água, doenças silvestres ou provocadas pela poluição do ar, sonora, da água e do solo já são comuns hoje. Nas cidades que substituíram a cobertura vegetal pelo concreto, ondas de calor as transformarão em fornalhas. Temporais de curta duração, mas com grande intensidade, provocarão enchentes nas cidades impermeabilizadas pelo asfalto.

    Pensar em uma solução para este modelo inviável de cidade significa pensar, também, em outro modelo econômico, que seja construído em torno do atendimento das reais necessidades da maioria de suas populações. O socialismo continua sendo vital como o ar e a água. E mostrará mais vitalidade, se puder se reconstruir como idéia libertária, generosa e transformadora, que leva em conta a continuidade da vida no planeta.

    A cidade e a ordem neoliberal

    Não há como pensar em políticas públicas ambientais para as cidades, sem levar em conta como elas estão organizadas. No neoliberalismo, a cidade, assim como a economia, é pensada para poucos. A maneira como ela se organiza, de que maneira ela se expande, os equipamentos sociais acrescentados, a sua relação com a natureza e entre seus habitantes, tudo isso é feito para uma minoria, os seus cidadãos e cidadãs “de primeira categoria”. Como na antiga Atenas, onde para cada cidadão chegou-se a ter 18 escravos, para cada “incluído” na cidade neoliberal, existem dezenas de cidadãos de “segunda categoria”, organizados social e geograficamente para atender às necessidades dos primeiros.

    A especulação imobiliária cria condomínios com segurança e conforto, e segrega seus empregados em “bantustões”, com precárias condições ambientais, sem saneamento, próximos de indústrias poluentes ou de cursos d’água envenenados. Na maioria das vezes, estes guetos ficam longe dos locais de trabalho, servidos por transportes lentos, insuficientes e poluentes. Enquanto isso, mais e mais carros são produzidos, contribuindo para a emissão de CO2 e gerando engarrafamentos.

    O neoliberalismo incentiva o consumismo e submete grande parte da população ao desemprego estrutural e à pauperização dos salários. Para estes só resta construir moradias em áreas degradadas ou em locais de preservação ambiental, onde são acusados de agressão ambiental e ameaçados de remoção. Esta necessidade de consumir é alimentada por outdoors colocados em locais que obstruem a visão do que resta de natureza, ou por carros e sistemas de som estridentes, que contribuem para a poluição visual ou sonora, assim como os equipamentos urbanos de mau gosto, ou os ruídos do trânsito.

    Quase todas as cidades têm, ou terão em breve, problemas de fornecimento e tratamento de água. O neoliberalismo tem se apropriado destes serviços. A perda do controle do Estado sobre a água pode levar a que enormes contingentes populacionais não tenham acesso a ela. 83 milhões de pessoas não são atendidas por sistemas de esgotos e 45 milhões carecem de água potável. 65% das internações hospitalares de crianças de zero a cinco anos são em con­seqüência dessa precariedade.

    São produzidas cerca de 150 mil toneladas diárias de lixo, sendo que, em grande parte das grandes cidades, ele é despejado em lixões, contaminando fontes de água, o solo e o ar. A privatização do setor de limpeza pública não reduziu os índices de resíduos sólidos urbanos dispostos de maneira inadequada.

    Tecnologias envelhecidas e poluentes, com consumo elevado de energia e água, sem tratamento adequado dos efluentes; inexistência de sistemas adequados de eliminação dos resíduos perigosos; fábricas perto de áreas urbanas ou de zonas de proteção ambiental; descargas de efluentes em águas de superfície ou subterrâneas; e armazenamento inadequado de resíduos, são causas da poluição industrial, que destrói o ambiente e ameaça a saúde dos trabalhadores – já submetidos a um regime de trabalho repetitivo e estressante – e dos habitantes que mo­ram em torno das fábricas.

    Os governos locais não têm dinheiro, nem vontade política para resolver estes problemas. O governo federal concentra cada vez mais os recursos, com grande parte destinada ao superávit primário. Obras de saneamento, de oferecimento de água potável e de tratamento de resíduos são vistas como “obras que não dão voto”, o que faz com que os recursos municipais sejam usados em obras de importância duvidosa, mas com visibilidade.

    O resultado é a violência. Os governos apostam no uso das forças de repressão para confinar, controlar e exterminar o que Michael Löwy chamou de pobretariado. A repressão também têm se ocupado em combater a chamada “desordem urbana” neoliberal, ou seja, aquilo que se contrapõe e conflita com a “cidade para poucos”, reprimindo os trabalhadores informais, removendo populações de áreas anteriormente sem valor, mas agora com alguma importância especulativa ou econômica, ou ainda proibindo as oferendas e demais manifestações das religiões afro-brasileiras.

    Pensando uma Reforma Urbana Ecossocialista

    A expansão descontrolada das cidades, a privatização dos serviços públicos e a especulação imobiliária, levaram à privatização da cidade, além da degradação do solo urbano e a eliminação das áreas verdes. A utilização das “áreas nobres” em empreendimentos comerciais afastou as pessoas do centro da cidade, aumentando o tempo gasto no transporte. A opção pelo transporte individual, em detrimento do transporte coletivo, aumentou a dispersão dos gases do efeito estufa, além do stress provocado pelos engarrafamentos.

    De acordo com cálculos da ONU, as cidades estão crescendo nos países dependentes três vezes mais rápido que nos países capitalistas ricos, e os problemas ambientais são bem mais extensos naquelas cidades. A poluição do ar, provocada pelos automóveis e indústrias, combinada com a inversão térmica causada pelo efeito estufa, chegam a paralisar megalópoles. Na maioria destas cidades o lixo é acumulado em vazadouros ou queimado em lixões.

    É necessária uma Reforma Urbana Ecológica tão radical quanto a Reforma Agrária Ecológica defendida pelos movimentos sociais. Uma Reforma Urbana que inverta prioridades e garanta a participação popular na decisão e no controle dos projetos, mas que também incorpore uma perspectiva ecológica nos Planos Diretores. Devolver a cidade a seus cidadãos, garantindo total acesso aos espaços e serviços públicos, à cultura, à moradia, à educação, à saúde, ao trabalho, ao transporte e ao lazer, em uma relação sustentável com a natureza.

    A seguir, alguns tópicos e propostas que devem estar presentes na construção de um programa ecossocialista para as cidades:

    1) Aquecimento Global

    ? Metas de redução de emissão dos gases do efeito estufa;

    ? Substituição do diesel pelo álcool e o gás nos ônibus e na frota oficial.

    2) Acesso à água

    ? Universalizar o acesso à água, que deve ser oferecida pelo Estado, com gestão pública e controle social;

    ? Prioridade do abastecimento doméstico sobre o uso industrial;

    ? Uso social da água, aumentando a tarifa das grandes indústrias, usando o arrecadado na recuperação da bacia de origem.

    3) Tratamento de Resíduos Sólidos e Saneamento

    ? Saneamento e água potável para populações de baixa renda;

    ? Utilização do biogás nos aterros sanitários;

    ? Organizar os catadores em associações e cooperativas, oferecendo programas de inclusão;

    ? Reciclar o entulho da construção civil, utilizando-o em programas de habitação popular;

    ? Implantar usinas de compostagem dos resíduos orgânicos em alternativa aos lixões;

    3) Poluentes Industriais e Saúde

    ? Criar mecanismos tributários de incentivo a indústrias limpas e tributação de práticas poluidoras;

    ? Integrar o trabalho da vigilância sanitária com os órgãos de defesa da saúde do trabalhador, visando diminuir os impactos de manuseio ou contato com substâncias, irradiações, ruídos e temperaturas que afetem a saúde do trabalhador;

    ? Alterar a organização, regime e condições de trabalho, em busca de ambientes de trabalho menos estressantes e atividades menos repetitivas.

    4) Reforma Urbana Ecológica

    ? Garantir o direito à moradia digna, com água potável e tratamento de esgotos, em locais seguros que não ameacem as reservas ambientais;

    ? Regularizar a posse da terra nas ocupações, preservando mananciais e áreas de preservação;

    ? Recuperar áreas degradadas das grandes cidades, destinando-as a projetos de habitação popular social e ambientalmente sustentadas;

    ? Planos Diretores ecológicos, que levem em conta o uso social do solo urbano e o conceito de pegada ecológica (1).

    5) Transporte

    ? Transporte coletivo rápido e não-poluente, com combustíveis renováveis;

    ? Recuperar as malhas ferroviárias urbanas, retomando os ramais abandonados pelas empresas privadas.

    6) Segurança Alimentar e Reforma Agrária Ecológica

    ? Criar pólos agroflorestais em torno das grandes regiões metropolitanas, com prioridade para reassentamento de ex-agricultores habitantes das suas periferias;

    ? Estimular a compra, nas instituições públicas, de produtos da agricultura ecológica familiar.

    7) Transgênicos e Biodiversidade

    ? Aplicar a lei que identifica produtos que utilizam transgênicos;

    ? Proibir a compra, pelas instituições públicas, destes alimentos;

    ? Combater o tráfico de animais silvestres.

    (1) Pegada ecológica é a tradução de ecological footprint e refere-se à quantidade de terra e água necessária para sustentar as gerações atuais, tendo em conta todos os recursos materiais e energéticos gastos por uma determinada população. (fonte: Wikipedia)


    Paulo Piramba é filiado ao PSOL no Rio de Janeiro (RJ).

  • Conflitos socioambientais urbanos e o enfretamento socialista aos modelos neoliberais de ecoeficiência na luta pela moradia digna

    Conflitos socioambientais urbanos e o enfretamento socialista aos modelos neoliberais de ecoeficiência na luta pela moradia digna

    Jadir Brito
    Jadir Brito

    A produção capitalista desconsiderou as desigualdades socioambientais, bem como reduziu conflitos ambientais às limitações tecnológicas. Contemporaneamente está em curso um neoliberalismo ambiental que passa a considerar cada vez mais os conflitos e a degradação do meio ambiente, por esses interferirem nos resultados da produção econômica.

    Os padrões de racionalidade do capitalismo se expressam na razão instrumental, interpretando os conflitos ambientais e degradação do meio ambiente reduzidos ao desperdício de energia, à poluição dos resíduos industriais, sem a consideração das injustiças decorrentes do etnocentrismo, do racismo e da exploração econômica do capitalismo. O modo de produção capitalista desconsiderou as desigualdades socioambientais, assim como reduziu conflitos ambientais às limitações tecnológicas. Contemporaneamente está em curso um neoliberalismo ambiental que passa a considerar cada vez mais os conflitos e a degradação do meio ambiente, por esses interferirem nos resultados da produção econômica. Contudo, o capital tem utilizado, como estratégias, frente à crise ambiental, mecanismos da mercantilização do meio ambiente como, por exemplo: o mercado de créditos de carbono; as tecnologias “limpas”; os “mercados do ar”; as biotecnologias aplicadas às sementes transgênicas ; as monoculturas do eucalipto e da soja; a legitimação monista do poder político; a recusa da discussão democrática dos projetos ambientais; as propostas de flexibilização das políticas e legislações socioambientais; as propostas de celeridade do licenciamento ambiental e de dispensa de estudo de impactos ambientais.

    Nas áreas urbanas, o racionalismo instrumental formula respostas à degradação ambiental, através de ações políticas amparadas nos conceitos indeterminados de cidades sustentáveis e de sociedade de risco. Todos esses conceitos e práticas são representantes de uma racionalidade objetiva da crise ambiental que desconsidera elementos subjetivos da vida social. Assim, a degradação é reduzida a um colapso objetivo, como conseqüência da entropia do meio ambiente que leva ao esgotamento do modelo de produção capitalista e à abstração das injustiças sociais decorrentes desses modelos.

    Os conflitos socioambientais nas áreas urbanas e rurais podem ser analisados sob duas dimensões: uma objetiva, referente aos litígios entre projetos de desenvolvimento e sustentabilidade e outra subjetiva, referente à representação social e identidades culturais distintas. Os conflitos estão também situados no campo simbólico da dominação entre o modelo sociocultural das elites européias e a resistência expressa na lutas políticas insurgentes das comunidades pobres, indígenas e africanas na América Latina que pautam mudanças dos limites e das fronteiras-territoriais ou institucionais dos direitos de propriedade privada, a propugnar o uso comunitário da terra.

    No Brasil, o direito e as políticas públicas urbanas, ambientais e fundiárias consideram o conceito do desenvolvimento sustentável de norma indeterminada e abstrata. O desenvolvimento sustentável é um dos princípios constitucionais do direito ambiental prescrito no Princípio nº 4 da Declaração do Rio de 1992 e no Artigo 225 da Constituição Federal. O conceito de sustentabilidade ambiental ou desenvolvimento sustentável é uma semântica aberta e indeterminada que permite uma interpretação polissêmica nas formulações acadêmicas e nas decisões judiciais. Devido a essa indeterminação semântica, a livre interpretação de juízes, promotores, membros do poder executivo e legisladores é suscetível aos argumentos do neoliberalismo ambiental, justificada nas “verdades” e “soluções” da ecoeficiência e na ditadura do pareceres técnicos em detrimento de argumentos redistributivos e de reconhecimento da justiça ambiental. Desse modo, essas interpretações constituem uma representação social do desenvolvimento e da sustentabilidade e práticas que não só ampliam as possibilidades de conflitos ambientais, como fomentam o recrudescimento da violência e das desigualdades socioambientais sobre comunidades urbanas e rurais submetidas às injustiças ambientais. Como expõe Roberto José Moreira, o conceito de desenvolvimento sustentável possui dimensões fundamentais para que o discurso do desenvolvimento do capitalismo não continue a promover danos ao meio ambiente, inibindo as condições das necessidades básicas da segurança social e a participação da sociedade nos destinos de suas vidas (MOREIRA, 1999).

    O enfrentamento dos conflitos socioambientais urbanos, por uma perspectiva socialista e popular de esquerda, demanda a defesa de mecanismos compensatórios. As compensações urbano-ambientais e fundiárias são, por princípio, mecanismos socioeconômicos para a reapropriação das mais-valias urbanas, fundiárias e ambientais decorrentes de investimentos públicos ou mesmo de valorização artificial das terras por mecanismos legais em favor do capital nas cidades. Deve ser pauta de um governo de esquerda popular a implementação de mecanismos compensatórios de recuperação das mais-valias, a exemplo dos já formalmente presentes no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), ou mesmo na Lei 9985/00. Desse modo, a regulamentação do IPTU progressivo, da contribuição de melhoria, a promoção de incentivos e benefícios fiscais e financeiros, em favor de áreas mais pobres, a concessão de uso especial para fins de moradia, a instituição de zonas especiais de interesse socioambiental, desapropriações e amplo programa de moradia digna são compromissos inarredáveis para um governo orientado por princípios socialistas populares.

    A defesa das compensações urbano-ambientais por um governo popular de esquerda deve possuir como meta a recuperação dos injustos benefícios econômicos e sociais concedidos pelos governos ao capital em detrimento do desenvolvimento socioeconômico das populações empobrecidas. A formulação de políticas públicas urbanas, ambientais e fundiárias municipais compensatórias deve indicar mecanismos de efetivação do combate à concentração de terras urbanas sob a posse do capital com redistribuição dos ativos financeiros e sociais dos investimentos públicos em favor de comunidades pobres. As compensações visam o estabelecimento das condições da justa distribuição dos benefícios socioambientais, contrabalançando o ônus e os benefícios dos processos da urbanização para o cumprimento da função social da propriedade e da cidade para a moradia digna com sustentabilidade.

    A construção de um governo de esquerda popular deve enfrentar os conflitos socioambientais promovidos pelo capital e pelas omissões das administrações públicas, cujas vítimas são populações pobres das cidades, particularmente, as comunidades de favelas. Os conflitos urbanos também possuem uma dimensão simbólica (ACSERALD, 2004), pois constituem uma representação social discriminatória sobre os pobres nas cidades. Um exemplo desta dimensão dos conflitos é a retórica da “desordem urbana” no Rio de Janeiro, que quer imputar, aos moradores das áreas pobres da cidade, o encargo da responsabilidade da desestruturação urbana.

    No Rio de Janeiro do século passado e, contemporaneamente, o discurso da “desordem urbana”, do “perigo” e da “higiene social” (FUKS, 1999) compõem estratégias de enfrentamento de conflitos urbanos e ambientais. A “proteção ambiental” e o “desenvolvimento sustentável” são associados e condicionados aos despejos de moradores pobres, a exemplo das ações judiciais movidas pelo Ministério Público Estadual, Prefeitura e Governo do Estado do Rio de Janeiro contra as comunidades do Alto da Boa Vista, Chácara do Céu, Canal do Anil, dentre outras.

    Desse modo, a retórica contemporânea de “proteção ao meio ambiente”, por meio de remoção de favelas, é mais “sofisticada” do que os processos ocorridos nas décadas de oitenta e noventa, pois incorporam a representação social do “desenvolvimento sustentável”. Essas condições tornam mais graves os conflitos ambientais entre as comunidades faveladas e o capital imobiliário, pois os litígios judiciais e administrativos são agregados a uma dimensão simbólica e prática da eficiência. Esta estabelece uma desvantagem na origem no enfrentamento judicial e administrativo desses conflitos: a representação social da favela como um “não-lugar” social e a concepção de um preservacionismo que se põe acima de qualquer possibilidade de projeto socioambiental para a moradia. As ações institucionais em “defesa do meio ambiente” no Rio de janeiro utilizam uma ótica da ecoeficiência objetivada (ACSELRAD, 2004), sem consideração da representação e subjetividades sociais do moradores pois, na maioria dos casos, sequer são ouvidos pelos órgãos institucionais.

    O morador da favela além de ser visto como ‘contaminado’ pela sujeira à sua volta, é também visto como “agente causador de poluição para o meio ambiente urbano.” (FUKS, 1999). Assim, “a perspectiva ambiental assume, então, a tarefa de articular uma nova chave de interpretação para os ‘problemas urbanos’ a partir do quadro de problemas que a precede.” (FUKS, 1999). O quadro da retórica de proteção ambiental como meio de interpretação dos conflitos urbanos e de controle social, no cenário das relações políticas e sociais do final dos anos oitenta e década de noventa, foi agravado pela ausência de representantes populares nas discussões dos conflitos ambientais (FUKS, 1999).

    A percepção da emergência de outras construções simbólicas que re-significam a “questão ambiental” é um das condições sine qua non para a construção de um olhar de esquerda popular sobre os conflitos socioambientais. Tal condição permite a construção de discursos e práticas contra-hegemônicas à retórica do capital imobiliário, cada vez mais inserida na mídia e no discurso e na prática de órgãos públicos, que transforma o meio ambiente em mercadoria e, injustamente, atribui os danos ambientais aos mais pobres. Há experiências rurais de assentamentos de reforma agrária, de comunidades indígenas e quilombolas e urbanas de comunidades de favelas inseridas em áreas ambientais que indicam outros olhares para apropriação sustentável do meio ambiente. A incorporação da re-significação popular do uso do meio ambiente no enfretamento dos conflitos socioambientais é muito relevante na formulação de políticas públicas para a garantia da moradia digna.

    O enfretamento dos conflitos socioambientais deve ir além do campo simbólico da representação social que faz a defesa da propriedade privada sob a retórica ambiental. No campo material concreto, exige a intervenção das autoridades do Estado o que denominamos de “cerca viva”: juízes, desembargadores e executantes das decisões judiciais, a quem cabe garantir o cercamento (COSTA, 2005) de territórios privados e do meio ambiente. O cercamento jurídico capitalista é também legitimado pelo discurso da técnica ambiental, típico da ecoeficiência, presente nos órgãos ambientais, na academia e nas orientações da gestão pública. O que Acselrad chama de “reestruturação ecourbana” (ACSELRAD, 2004), estaria levando à despolitização das lutas sociais que envolvem questões socioambientais, transformando as discussões dos conflitos ambientais em temáticas exclusivamente técnicas em detrimento da justiça ambiental (Environmental Justice).

    O tecnicismo ambiental, afasta, por exemplo o exame das injustiças urbanas socioambientais a exemplo do racismo ambiental. O racismo institucional se materializa na incapacidade, ou na recusa dos organismos em garantir a promoção da redistribuição e o reconhecimento de determinados grupos, tais como os afro-brasileiros e os povos indígenas. Tal compreensão considera o racismo na esfera das relações políticas e sociais, sem descartar os seus efeitos na auto-estima dos indivíduos. O racismo ambiental lega maiores encargos da degradação ambiental aos grupos étnico-raciais, historicamente atingidos por desvantagens e discriminações. No Brasil a posse da terra historicamente foi marcada pelo racismo ambiental, pois comunidades indígenas, quilombolas , faveladas e demais áreas pobres que são ocupadas, em sua maioria, por populações descendentes de povos indígenas e africanos que estão em permanentes conflitos pela posse e uso da terra, sobretudo quando são as ambientalmente melhores (BULLARD, 2004).

    Assim, há uma perspectiva pluralista e multicultural a ser considerada na construção de uma ótica socialista e popular sobre a cidade. Não há, evidentemente, resposta única. Contudo, há princípios e condições inarredáveis tais como: a não submissão ao capital na formulação das políticas urbanas, fundiárias e ambientais, o respeito ao protagonismo da sociedade civil, por meio das organizações populares nas decisões das políticas públicas, o que implica transparência pública e a superação da gestão pública ancorada no hermetismo burocrático que açambarca a participação social nas decisões públicas. Além disso, para a formulação de uma agenda socialista e popular para a cidade devemos assumir as lutas:

    – pela re-significação das questões urbano-ambientais à luz da insurgente resistência de comunidades urbanas e rurais nas práticas sociais pela efetividade de princípios da justiça ambiental e a moradia digna na Cidade;
    – contra a retórica da “ordem urbano-ambiental” na qual a defesa do meio ambiente é um elemento de valorização das terras de interesses do capital e instrumento de opressão, criminalização e promoção de desigualdades e discriminações contra comunidades urbanas e rurais localizadas em sítios ambientais;
    – direito à paisagem integrado pelos territórios urbanos submetidos à desigualdades como a exemplo das favelas;
    – pela efetividade do direito à mobilidade urbana nos transportes coletivos por meio de controle e gestão estatal, licitações públicas, passe livre estudantil e acompanhamento popular;
    – pela efetividade de Políticas públicas de reapropriação efetiva das mais-valias urbanas, ambientais e fundiárias, concedidas por ativos públicos, em favor do capital imobiliário;
    – pela regulamentação e aplicabilidade dos instrumentos urbanísticos ( a exemplo do IPTU PROGRESSIVO) para o combate à concentração de terras e a especulação imobiliária urbana;
    – pela efetividade de Políticas públicas de reapropriação de terras urbanas sob posse do capital para a redistribuição com populações de sem-teto e aplicação nas políticas de moradia digna;
    – contra a desregulamentação da legislação ambiental, urbanística e fundiária em favor do capital imobiliário;
    – pela implementação da regulamentação de território tradicionais urbanos a exemplo dos quilombos;
    – pela garantia da participação popular com poder decisórios na implementação de políticas urbano-ambientais nos territórios
    – pela inserção das lutas de reconhecimento de gênero, etnia e raça nas políticas urbanas, fundiárias e socioambientais.

    Jadir Brito é doutor em Direito (PUC-SP), professor de Direito Ambiental , Direito da Cidade e Direitos Humanos na Universidade Candido Mendes (UCAM) e assessor jurídico do mandato do Vereador Eliomar Coelho (PSOL/Rio-RJ).

    Rerências bibliográficas

    ACSELRAD, H. As Práticas Espaciais e o Campo dos Conflitos Ambientais. In: ACSELRAD, H. (org.) Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

    BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental. IN Henri; HERCULANO, Selene; Pádua José Augusto. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

    COSTA, Maria de Fátima Tardin. A cerca jurídica da terra na produção capitalista da cidade. Mestrado (Dissertação em Direito da Cidade). Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

    FUKS, Mário. Arenas de Ação e Debate Públicos: os Conflitos Ambientais e a emergência do meio ambiente enquanto problema social no Rio de Janeiro (1985-1992). Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Setembro de 1999.

    MOREIRA, Roberto José (org.) In: Mundo Rural e Tempo Presente. Rio de Janeiro: PRONEX, CPDA, UFRRJ, Tempo Presente, 1999.

    ____________. Renda da natureza e territorialização do capital: reinterpretando a renda da terra na competição intercapitalista. In: Estudos Sociedade e Agricultura, n. 4, 89-111; jun., 1995.

  • A Estrela

    A Estrela

    Arthur Charles
    Arthur Charles

    Estamos a 3.000 anos-luz do Vaticano. Um dia, acreditei que o espaço não tinha poderes sobre a fé, assim como acreditava que os céus proclamariam a glória da obra de Deus. Agora, já vi essa obra e minha fé se encontra seriamente abalada. Olho para o crucifixo, suspenso na parede da cabine, acima do computador Mark VI, e pela primeira vez em minha vida me pergunto se não será um símbolo vazio.

    Ainda não contei a ninguém, mas a verdade não pode ser escondida. Os fatos estão lá para todos lerem, registrados em quilômetros sem conta de fita magnética e nos milhares de fotografias que transportamos de volta à Terra. Outros cientistas poderão interpretá-las tão facilmente quanto eu, e não serei eu quem vai compactuar em ocultar a verdade, fato quase sempre responsável pela má fama da nossa ordem nos velhos dias.

    A tripulação já se encontra suficientemente deprimida e não sei como eles aceitarão esta ironia final. Poucos dentre eles possuem qualquer tipo de fé religiosa e, no entanto, não encontrarão prazer em usar essa arma final em sua campanha contra mim. Aquela guerrinha particular, bem-humorada, mas de fundamental importância, que transcorreu durante todo o caminho desde a Terra. Eles achavam divertido ter um jesuíta como astrofísico-chefe: o Dr. Chandler, por exemplo, nunca se acostumou com isso (por que será que os médicos são tão ateus?). Algumas vezes ele me encontrava no convés de observação, onde as luzes eram sempre reduzidas, de modo a que as estrelas pudessem brilhar em toda a sua glória. Ficava ao meu lado na penumbra, olhando através da grande janela oval para os céus que se moviam lentamente à nossa volta, enquanto a nave girava, com a rotação residual, que nunca nos incomodaríamos em corrigir.

    – Bem, padre – dizia ele, afinal -, parece prolongar-se para sempre, não? Talvez alguma coisa o tenha criado. Mas como pode acreditar que essa alguma coisa tenha um interesse especial por nós e nosso mundinho miserável, nunca poderei entender.

    E a discussão começava enquanto, lá fora, estrelas e nebulosas giravam em seus arcos eternos e silenciosos, além do plástico claro e sem falhas da vigia de observação.

    Acredito que, em grande parte, era a aparente incongruência de minha posição que fazia a tripulação achar a coisa tão divertida. Seria inútíl eu chamar a atenção para os meus três artigos publicados no jornal de Astrofísica ou os cinco no Noticias Mensais da Real Sociedade Astronômica. Lembrava-lhes que a minha ordem era famosa há muito tempo por seus trabalhos científicos. Nós podemos ser poucos agora, mas desde o século XVIII temos feito contribuições à astronomia e à geografia que parecem fora de proporção com o número de nossos quadros. Será que meu relatório sobre a nebulosa Fênix vai pôr fim a nossos mil anos de história? Porá fim, receio, a muito mais que isso.

    Não sei quem deu esse nome à nebulosa, que me parece muito inadequado. Se contém alguma profecia, é coisa que não será verificada durante vários bilhões de anos. Mesmo a palavra nebulosa é um engano: trata-se de um objeto muito menor do que aquelas estupendas nuvens de poeira – a matéria-prima das estrelas ainda por nascer – que se espalham ao longo da Via-Láctea. Na escala cósmica, de fato, a nebulosa Fênix é algo pequeno – uma tênue concha de gás envolvendo uma única estrela…

    Ou o que sobrou de uma estrela …

    O retrato de Loyola feito por Rubens parece zombar de mim, suspenso ali, acima dos registros do espectrofotômetro. O que tu terias feito, padre, com este conhecimento que veio às minhas mãos, tão longe do pequeno mundo que foi todo o universo que conheceste? Teria tua fé se erguido ante o desafio onde a minha falhou?

    Teu olhar se perde na distância, padre, mas eu viajei por uma distância além de qualquer uma que pudeste ter imaginado ao fundar a nossa ordem, há mil anos. Nenhuma outra nave de pesquisa esteve tão longe da Terra. Encontramo-nos nas fronteiras do universo explorado. Partimos para encontrar a nebulosa Fênix, tivemos sucesso e agora voltamos com o peso de nossos conhecimentos. Quisera eu poder erguer esse peso dos meus ombros, mas é em vão que te chamo através dos séculos e anos-luz que nos separam.

    No livro que seguras, as palavras são nítidas:

    AD MAIOREM DEI GLORIAM, diz a mensagem, mas é uma mensagem em que não mais posso crer. Poderias ainda acreditar nela se pudesses ver o que encontramos?

    Nós sabíamos, é claro, o que era a nebulosa Fênix. Apenas em nossa galáxia, a cada ano, mais de 100 estrelas explodem, queimando durante algumas horas ou dias com milhares de vezes o seu brilho normal antes de mergulharem na morte e na obscuridade. Essas são as novas normais, desastres comuns no universo. Já gravei espectrogramas e curvas de luminosidade de dúzias delas, desde que comecei a trabalhar no observatório lunar.

    Mas três ou quatro vezes a cada mil anos ocorre alguma coisa, ao lado da qual até mesmo uma nova empalidece na total insignificância.

    Quando uma estrela se torna supernova, ela pode brilhar brevemente mais que todos os sóis reunidos na galáxia. Os astrônomos chineses observaram isso acontecer no ano 1054 d.C. sem conhecerem a razão do que viam. Cinco séculos depois, em 1572, uma super-nova explodiu na constelação de Cassiopéia, tão brilhante que podia ser vista à luz do dia. E houve mais três durante os mil anos que se passaram desde.então.

    Nossa missão era visitar o remanescente de semelhante catástrofe, tentando reconstruir os eventos que haviam conduzido a ela para, se possível, aprender sua causa. Entramos lentamente através das conchas concêntricas de gás que haviam sido lançadas para fora há seis mil anos e ainda se expandiam. Ainda estavam imensamente quentes, irradiando mesmo agora numa violenta luz violeta, mas eram demasiado tênues para nos causar qualquer dano. Quando uma estrela explode, suas camadas externas são impulsionadas para fora com tamanha velocidade que escapam completamente ao seu campo gravitacional.

    Agora formavam essa concha oca, grande o suficiente para envolver mil sistemas solares. Em seu centro queimava o objeto pequeno e fantástico em que a estrela se tornara. Uma anã branca, menor do que a Terra e no entanto pesando um milhão de vezes mais.

    As conchas de gás luminoso nos envolviam banindo a noite normal do espaço ínterestelar. Voávamos para o centro de uma bomba cósmica que detonara há milênios, e cujos fragmentos incandescentes ainda se expandiam. A imensa escala da explosão e o fato de que os resíduos já cobriam um volume de espaço com muitos bilhões de quilômetros de diâmetro roubavam à cena qualquer movimento visível. Levaria décadas para que a visão pudesse discernir qualquer movimento nesses tortuosos filamentos e redemoinhos de gás. E, no entanto, o sentimento de uma expansão turbulenta era irresistível.

    Havíamos verificado nossa direção básica horas atrás e agora flutuávamos lentamente rumo à pequenina e fogosa estrela à nossa frente. Ela já fora um sol como o nosso, mas consumira em algumas horas toda a energia que a teria mantido brilhando por um milhão de anos. Agora se tornara avarenta e encolhida, reunindo seus recursos como se tentasse compensar os excessos de uma juventude perdulária.

    Ninguém esperava seriamente que pudéssemos encontrar planetas. Se houvesse existido algum antes da explosão, teria sido cozido em sopros de vapor e sua substância dissolvida em meio aos resíduos da estrela. Ainda assim fizemos a busca automática, como sempre fazemos ao nos aproximarmos de um sol desconhecido. Dentro em pouco localizamos um mundo pequeno, circundando a estrela a imensa distância. Ele devia ter sido o Plutão desse desaparecido sistema solar, orbitando nas fronteiras da noite. Demasiado afastado do sol central para jamais ter conhecido a vida, sua distância salvara-o do destino que consumira todos os seus companheiros.

    A passagem do fogo queimara suas rochas, dissolvendo o manto de gás congelado que devia cobri-lo nos dias anteriores ao desastre. Nós pousamos e descobrimos a Cripta.

    Seus construtores se haviam assegurado de que isso ocorreria. O marco monolítico erguido acima da entrada não passava agora de um toco fundido, mas mesmo nossas fotos de longa distância já nos revelavam existir ali o trabalho de uma inteligência. Pouco depois detectamos o padrão de radioatividade, amplo como um continente, que fora embutido na rocha. Mesmo que o pilar acima da Cripta tivesse sido destruído, essa energia teria permanecido, um eterno e irremovível farol acenando para as estrelas. Nossa nave mergulhou como uma flecha em direção a esse gigantesco alvo.

    O pilar devia ter uma altura de I,5 km quando foi construído. Agora parecia uma vela que se derretera até formar um monte de cera. Levamos uma semana para perfurar a rocha fundida, já que não tínhamos ferramentas adequadas para essa tarefa. Éramos astrônomos, não arqueólogos, mas podíamos improvisar. Nosso propósito original fora esquecido: esse monumento solitário, erguido com tamanho esforço à maior distância possível do sol condenado, só poderia ter um significado. Uma civilização que tinha consciência de seu fim próximo fizera ali seu último apelo à imortalidade.

    Examinar todos os tesouros depositados na Cripta será trabalho para gerações. Eles tiveram muito tempo para se preparar, já que seu sol deve ter dado os primeiros avisos muitos anos antes da detonação final. Tudo o que desejavam preservar, todos os frutos de seu gênio, eles depositaram ali, naquele mundo distante, dias antes do fim, na esperança de que alguma outra raça os encontrasse, para que não fossem inteiramente esquecidos. Teríamos nos portado desse modo? Ou teríamos nos perdido em nossa própria autocomiseração, incapazes de pensar num futuro que nunca poderíamos ver ou compartilhar?

    Se ao menos eles tivessem tido um pouco mais de tempo … Podiam viajar livremente entre os planetas de seu próprio sol, mas ainda não haviam aprendido a cruzar os golfos interestelares, e o sistema solar mais próximo encontrava-se a 100 anos-luz de distância. Mas mesmo que possuíssem o segredo do impulso transfinito, não mais que uns poucos milhões poderiam ter sido salvos. Talvez tenha sido melhor assim.

    Mesmo que eles não fossem tão perturbadoramente humanos, como revelam suas esculturas, não poderíamos deixar de admirá-los e lamentar seu destino. Eles deixaram milhares de registros visuais, juntamente com minuciosas máquinas para projetá-los. Havia instruções ‘pictóricas, de modo que não fosse difícil aprender a sua linguagem escrita. Temos examinado muitas dessas gravações, trazendo de volta à vida, pela primeira vez em seis mil anos, todo o calor e a beleza de uma civilização que, em muitos aspectos, deve ter sido bem superior à nossa. Talvez eles tenham deixado apenas seu lado melhor, mas ninguém poderá condená-los por isso. Seus mundos, contudo, eram adoráveis e suas cidades, erguidas com uma graça que iguala qualquer coisa já feita pelo homem. Nós os observamos no trabalho e nas diversões, ouvimos sua linguagem musical soando através dos séculos. E uma cena permanece ante meus olhos. Um grupo de crianças numa praia de estranha areia azul, brincando nas ondas como as crianças brincam na Terra. Há uma fileira de árvores exóticas, que lembram chicotes, ao longo da praia, e algum animal muito grande aparece, atravessando os baixios, sem atrair atenção.

    Mergulhando no mar, ainda cálido e generoso, vemos o sol que logo se tornaria traidor, apagando toda essa felicidade inocente.

    Talvez se não estivéssemos tão longe de casa, e portanto tão vulneráveis à solidão, não ficássemos tão profundamente comovidos. Muitos de nós já observaram as ruínas de antigas civilizações em outros mundos, mas elas nunca nos afetaram tão profundamente. Essa tragédia era única. Uma coisa é uma raça falhar e morrer, como nações e culturas já o fizeram na Terra. Mas ser destruída tão completamente, em pleno ápice de seu desenvolvimento, sem deixar qualquer sobrevivente – como tal coisa poderia conciliar-se com a misericórdia divina?

    Meus colegas já perguntaram isso e eu dei as respostas que pude. Talvez tivesses feito melhor, padre Loyola, mas nada encontrei no Exercitia Spiritualia que me ajudasse nessa tarefa. Eles não eram gente má: não sei que deuses adoravam, se é que adoravam algum. Mas tenho olhado para eles através do abismo dos séculos e vi a beleza que preservaram em seu último esforço sendo de novo trazida à luz de seu sol encolhido. Eles poderiam ter-nos ensinado tanto. Por que foram destruídos?

    Conheço as respostas que meus colegas darão quando estiverem de volta à Terra. Dirão que o universo não possui propósito ou plano, e que de vez que 100 sóis explodem, a cada ano, em nossa galáxia, neste exato momento alguma raça está morrendo nas profundezas do espaço. Se essa raça fez o bem ou o mal durante sua existência, não faz qualquer diferença no final. Não há justiça divina porque não existe Deus.

    É claro que o que vimos não prova nada disso. Qualquer um que assim afirme está sendo influenciado pela emoção, não pela lógica. Deus não necessita justificar suas ações perante o Homem. Ele, que construiu o universo, pode destruí-lo quando quiser. Constitui arrogância – perigosamente próxima da blasfêmia – pensar que podemos dizer o que Ele pode ou não fazer.

    Isso eu teria aceito, não importando quão dolorosa fosse a perspectiva de mundos inteiros, juntamente com seus povos, sendo lançados em fornalhas. Mas chega um ponto em que até mesmo a mais profunda fé pode vacilar, e agora, quando olho para os cálculos colocados diante de mim, percebo que afinal cheguei a esse ponto.

    Não podíamos dizer, antes de alcançar a nebulosa, há quanto tempo ocorrera a explosão. Agora, partindo da evidência astronômica e dos registros nas rochas daquele único planeta sobrevivente, fui capaz de datá-la com precisão. E sei em que ano a luz desse incêndio colossal chegou à Terra. Sei o quanto essa supernova, cujo cadáver agora se apaga atrás de nossa nave em aceleração, deve ter brilhado nos céus da Terra. Sei como deve ter fulgurado, baixa sobre o horizonte do leste, antes do nascer do Sol, como um farol na alvorada oriental.

    Não pode haver mais dúvida. O mistério ancestral foi finalmente solucionado. E no entanto, ó Deus!, havia tantas estrelas que poderias ter usado. Qual a necessidade de lançar essas pessoas ao fogo para que o símbolo de sua morte pudesse brilhar acima de Belém?

    Arthur Charles Clarke, famoso escritor inglês, um dos expoentes da chamada “Hard Ficção Científica”, autor do clássico 2001: uma odisséia no espaço, morreu na terça-feira (18/03/2008) desta semana santa.

  • Socializando a cidade: algumas bases para a atuação do PSOL na luta pela Reforma Urbana

    Socializando a cidade: algumas bases para a atuação do PSOL na luta pela Reforma Urbana

    Jorge Borges
    Jorge Borges

    A busca pela reconstrução das utopias da esquerda, por uma transformação da Sociedade em direção ao Socialismo, passa necessariamente pela fundação de um outro modelo de Cidade. A reprodução ampliada do Capital, atualmente, converge a passos largos para a mercantilização e/ou privatização da água, do Patrimônio Histórico e Cultural, do Saneamento, da Mobilidade, do direito inalienável à moradia digna, enfim, tudo o que dá sentido à vida na Cidade, tudo o que conforma as identidades comunitárias e de bairro – para além do próprio Capital.

    A busca pela reconstrução das utopias da esquerda, por uma transformação da Sociedade em direção ao Socialismo, passa necessariamente pela fundação de um outro modelo de Cidade. Um modelo de Cidade cujos princípios fundamentais incorporem:

    1) A garantia do acesso universal a bens e serviços públicos que supram necessidades gerais e imediatas da população, tais como: Educação, Saúde, Saneamento, Transporte, Energia, Água, Informação, Cultura e Desporto;

    2) Um questionamento frontal aos poderes dos grandes proprietários de imóveis urbanos, o que significa garantir instrumentos concretos de apropriação da renda da terra, eliminando ou, no mínimo, reduzindo o caráter de ativo econômico dos bens imóveis; e

    3) A liberdade do ir e vir.

    Trata-se de uma luta difícil, sem dúvida. E como toda luta, a construção dessa Cidade Livre e Socialista requer estratégias de curto, médio e longo prazos. E como toda luta psolista, esta deve contemplar, igualmente, uma perspectiva libertária e socializante das avaliações e caminhos a serem seguidos. A diversidade deve aparecer muito mais como riqueza sócio-cultural, ou seja, como oportunidade de mudança, do que como obstáculo à realização de um projeto definido a priori, por um grupo reduzido de entendidos.

    A reprodução ampliada do Capital, atualmente, converge a passos largos para a mercantilização e/ou privatização da água, do Patrimônio Histórico e Cultural, do Saneamento, da Mobilidade, do direito inalienável à moradia digna, enfim, tudo o que dá sentido à vida na Cidade, tudo o que conforma as identidades comunitárias e de bairro – para além do próprio Capital.

    É preciso que fique claro, logo de início, que não se trata de uma luta fratricida entre os diferentes segmentos sociais que habitam a Cidade. Por outro lado, o convívio entre as diferenças não pode significar uma capitulação disfarçada de conciliação de classes, de “amenização” dos efeitos perversos da modernização capitalista sobre a classe trabalhadora. O questionamento do regime de propriedade privada da terra significa, antes de tudo, a presença, a moradia e os espaços de trabalho e de lazer dignos para todas as classes sociais em todas as áreas da Cidade. Terras, imóveis, equipamentos e infra-estruturas passam a ser vistos como meio de realização plena da vida humana e não como objeto de especulação e de exploração de uns pelos outros.

    Mudanças nos marcos jurídico-institucionais

    Após décadas de luta dos Movimentos Sociais Urbanos, com fortes vínculos junto às vanguardas de esquerda, o Século XXI começa com a entrada em vigor do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/01) e com a criação do Ministério, das Conferências e do Conselho das Cidades (em 2003), por iniciativa do Governo Federal.

    Essa trajetória, apesar de recente, permite-nos reconhecer grandes avanços na capacidade do Estado brasileiro absorver certas demandas da Sociedade Civil e de criar condições para que as lutas sociais na Cidade tenham uma possibilidade de encaminhamento. Entretanto, é igualmente verdadeira a avaliação de que a grande maioria das políticas públicas elaboradas no âmbito do Ministério das Cidades tem sido conduzida por uma visão hesitante acerca do enfrentamento dos velhos monopólios da incorporação imobiliária e dos transportes públicos, além de estagnar políticas públicas de saneamento ambiental em várias regiões brasileiras. Outro fator complicador aparece na cerca jurídica conformada pela elitização histórica dos órgãos de Estado ligados ao conflito urbano (tais como o Ministério Público e o Judiciário) que raras vezes representam um benefício real para o Povo – menos ainda para as classes mais empobrecidas.

    Mais além, o potencial de mobilização social representado pelas Conferências e pela estrutura dos Conselhos das Cidades vem perdendo o fôlego exatamente pela falta de cultura política do debate sobre o urbano e pela ausência de referenciais de método que permita o encontro respeitoso das diferenças, a garantia da pluralidade de visões e projetos, e sua materialização. De um lado, uma visão ainda dominada pela ditadura da técnica e da ciência, embaladas hermeticamente nos laboratórios e nos discursos universitários, de ONGs e de escritórios de consultoria, faz com que a questão seja vista como “um assunto para especialistas” e a luta seja considerada apenas no plano jurídico-institucional. De outro lado, organizações comunitárias e movimentos sociais dispersos, apoiados por heróicas resistências entre os mais doutos, mas sem capacidade para mobilizações amplas, com pouco acesso aos principais dados e informações que lhes permitiriam uma luta mais consistente e com maior capacidade de integração com outras pautas de outras lutas específicas.

    Quebra de dicotomias

    No plano da integração entre as diferentes lutas, vale lembrar que as últimas décadas foram marcadas, também, pela ascensão de algumas agendas cujos conteúdos congregam questões como a proteção ambiental (que nos remete ao modelo de desenvolvimento brasileiro), os movimentos das minorias sociais e políticas (de gênero, sexuais, étnicas), o fortalecimento da luta pela Reforma Agrária entre outros. Verifica-se, muito recentemente, uma oportunidade para a superação de tais abordagens, através da consolidação de temas transversais que permitam ações conjuntas, integradas, entre os diferentes movimentos sociais.

    Assim, como exemplo, a luta pela preservação dos ecossistemas brasileiros poderia estar inserida nos debates dos Planos Diretores participativos, garantindo o direito à moradia e o desenvolvimento de atividades sócio-econômicas verdadeiramente sustentáveis para comunidades cujos modos de vida encontram-se intimamente ligados aos ritmos da natureza (pescadores, pequenos agricultores em áreas periurbanas, comunidades em áreas de risco ambiental etc.). Na mesma direção, a luta pelo reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos perpassaria os limites da questão agrária e da questão urbana e estaria contemplada, também, no fortalecimento destas comunidades que resistem à modernização capitalista mesmo em áreas metropolitanas. Também no plano das lutas dos trabalhadores sindicalizados, o modo de produção capitalista abre um outro flanco para ser questionado, quando a carestia da moradia e a imposição de padrões de consumo e relações de trabalho insustentáveis são impostos às classes sociais médias e baixas, levando a um aumento da desagregação social, da intolerância, da violência e da segregação.

    Revisão de paradigmas de planejamento

    Um processo marcante na atual conjuntura é o desmanche de quase todas as certezas, sejam elas teóricas ou metodológicas, e a perspectiva de ascensão de outras formas de interpretação e compreensão dos processos sociais e dos jogos políticos sobre a Cidade. Existe uma necessidade urgente de desenvolvimento de metodologias e processos de planejamento que incorporem a diversidade e a pluralidade dos vários segmentos sociais envolvidos nos embates políticos sobre a Cidade, em detrimento de abordagens marcadas por uma racionalidade maquínica e totalmente condicionada por interesses descolados das necessidades sociais.

    Mais uma vez, a proposta de uma outra forma de planejar a Cidade, com ampla participação pública, garantindo o encontro das informações gerais sobre o desenvolvimento das cidades com a vivência dos diversos segmentos e interesses das classes médias e baixas, coloca-se como uma questão central a ser apropriada e fortalecida. Pensar em mudar a Cidade deve deixar de ser um atributo de urbanistas encastelados nos seus escritórios com ar condicionado e seus computadores cheios de estatísticas distantes da vida cotidiana do Povo! É preciso que cada bairro, cada comunidade tenha acesso às informações sobre os indicativos de crescimento da Cidade, sobre as necessidades de mais e melhores equipamentos urbanos, sobre as oportunidades de novas atividades econômicas que garantam a ocupação digna das trabalhadoras e dos trabalhadores e sua capacidade de sustento das suas famílias.

    Para além do processo de planejamento urbano, é preciso criar uma cultura de acompanhamento das ações estatais, um sistema que permita às associações de moradores e movimentos sociais monitorarem os processos gerais de valorização da terra urbana, de investimentos públicos e de implementação dos grandes projetos da modernização capitalista. Capacitando-os com dados, informações e avaliações críticas sobre tais processos, estaremos equipando-os com instrumentos de democratização da Cidade, de socialização dos bens e políticas públicas, demonstrando a faceta mais cruel do desenvolvimento capitalista: a concentração histórica de investimentos públicos nas áreas mais abastadas, em detrimento dos bairros populares.


    Reaproximação entre atores de diferentes segmentos sociais

    Verifica-se, principalmente a partir de fins da década de 1990, uma retomada na mobilização e na organização da Sociedade, na questão urbana, sob novas perspectivas. Por um lado, há um fortalecimento das organizações e movimentos de bairro, bem como suas federações e entidades de representação mais ampla, nos grandes centros urbanos. Por outro lado, com os novos marcos jurídico-institucionais, tem-se uma avaliação de que a mobilização e a organização da Sociedade Civil devem estar direcionadas para uma intervenção mais qualificada em termos técnico-jurídicos e políticos – daí a propagação e constituição de fóruns populares, redes de assistência técnico-jurídica e para a requalificação de quadros técnicos em diversas estruturas governamentais em nível municipal. Tudo isso colabora para, a curto e médio prazo, uma aproximação cada vez maior entre os diferentes movimentos populares e as entidades profissionais ou os meios acadêmicos mais preocupados com uma mudança estrutural na Sociedade.

    Eis uma oportunidade ímpar para o Partido Socialismo e Liberdade: a participação nos espaços já criados e a constituição de instâncias internas específicas para o encontro dessas lutas e movimentos, orientando a formação de quadros, a atuação de mandatos e a elaboração dos programas de governo!!

    Estratégias e táticas

    Antes de tudo, um compromisso visceral com a transparência e a universalização na disseminação de informações, interna e externamente, deve ser assumido por todos. Daí teremos um diferencial importante quando estivermos em contato ou atuando junto aos diversos segmentos sociais. Nada mais justo. Começar a luta pela justiça social na Cidade privilegiando a criação ou o fortalecimento de uma colaboração técnica e política entre os Movimentos Sociais Urbanos, definindo critérios claros de participação da militância em espaços como fóruns e conselhos populares.

    Para alcançar esse novo modelo de Sociedade, em termos concretos, o PSOL precisa reconhecer nas questões da Cidade uma frente estratégica na luta contemporânea. Os primeiros objetivos poderiam ser:

    ? o esclarecimento do que está em jogo: o direito à presença na Cidade, principalmente, dos mais pobres; o direito de ir e vir, o acesso a bens públicos fundamentais, o aumento da discriminação sob a ideologia da “ordem urbana”;

    ? o desmascaramento das estratégias novas e velhas do Capital imobiliário: o obscurantismo das gestões neoliberais, a valorização da terra por decreto, o esfacelamento do licenciamento ambiental;

    ? a compreensão ampla das necessidades e expectativas do Povo e dos Movimentos Sociais Urbanos frente às institucionalidades (estatais ou não).

    Cuidado nas alianças, ainda que transitórias

    Dentro da estrutura do Partido, é preciso um esforço para a criação de um setorial de política urbana, além de incorporar tal questão à agenda das demais instâncias do partido, como tema transversal e urgente, tornando-os instrumentos para o repensar da Cidade e da inserção do Partido na Sociedade.

    A luta anti-capitalista só pode ser materializada alumiando-se a realidade numa busca incessante pela transparência no espaço público e pelo reconhecimento do caráter e da natureza dos nossos adversários e dos nossos aliados. Não é possível, por exemplo, sequer cogitar alianças pontuais com qualquer um que tenha colaborado para cunhar a noção de “ordem urbana” estreitamente vinculada ao processo de criminalização da pobreza. Não é possível sentar na mesma mesa de quem institucionalmente assinou medidas de liberalização da Cidade para o grande Capital imobiliário. Não é possível apoiar ou ser apoiado por quem concorda que o “Caveirão” é um instrumento adequado e eficiente de segurança pública.

    Com muita calma, nesta hora, teremos uma boa medida da distância entre um projeto revolucionário de esquerda para as disputas municipais e uma mera marcação de posição perante a mercantilização da vida e o obscurantismo na política que temos assistido nos últimos anos.

    Jorge Borges é militante do Núcleo de Lutas e Reforma Urbana, membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, graduado em Geografia pela UFRJ, especialista em planejamento e uso do solo urbano pelo IPPUR/UFRJ e mestrando em Geografia pela UFF.

  • Topografia sentimental

    Topografia sentimental

    Topografia SentimentalCerta noite tive uma idéia, daquelas que chegam sem nenhuma explicação aparente, de escrever uma topografia sentimental de Copacabana. O método seria simples: cada rua me levaria a lembranças, evocações, alegrias, tristezas quiçá, saudades sem dúvida. Exercícios mnemônicos. Vamos a eles.

    Avenida Princesa Isabel, há quarenta anos. Belorizontino, primeira vez no Rio enturmado, já que um amigo trabalhava para a TCA (companhia de teatro Tônia – Celi – Autran). Íamos beber e ouvir música na boate Hi – Fi que ficava no térreo do Hotel Plaza. Dudu Barreto Leite, irreverente e bem-humorada, brincava então com os versos de uma canção da moda: “Mulher que em casa é fria / fode lá fora” (A noite está tão fria / Chove lá fora).

    Ali perto a Prado Júnior, local obrigatório de boemia da época. Cervantes e Beco da Fome. No primeiro, dois tipos de incursão: uma mais ou menos careta, quando as festinhas terminavam e a gente ia comer sanduíche e tomar os chopes finais com pessoas comportadas; a outra temerosa, no final da madrugada, já que o Cervantes era um dos poucos bares abertos, quando topávamos com o Peréio já meio alto, correndo o risco de uma discussão evidentemente gratuita (ele namorava Jura, uma amiga de Belo Horizonte). No Beco da Fome, a paz com o caldo verde ou os quibes maravilhosos que até hoje são uma referência qualitativa para qualquer quibe: tão gostoso como o do Beco da Fome.

    Do outro beco, o das Garrafas, não me esqueço nunca de ter ouvido no Litlle Club o Cauby Peixoto, com seu vozeirão, cantar, se não me engano, “Litlle Darling” (também não tenho certeza se o nome da música é este).

    Saindo da Duvivier, caminhando para o Lido, a Belfort Roxo me faz lembrar da Mara Mijona. Com ela fui a um bar chamado Chaplin, onde passava comédias de Carlitos, e as pessoas ficavam sentadas em tamboretes no balcão; fui para casa com a morena gaúcha Mara e descobri na cama molhada a razão do seu apelido.

    Ronald de Carvalho! Lá estava o primeiro apartamento que aluguei no Rio, a um preço de banana, conseguido por um grande amigo. Desperdicei a chance irresponsavelmente. E até com certo perigo: uma bela noite, pleno verão, fui dormir com o cigarro aceso para a última tragada: apago aparentemente com um copo d’água um foguinho no colchão; acordo com a porta sendo arrombada pelos bombeiros, a fumaçada que saía pela janela (era no térreo) alertou a vizinhança que amedrontada chamou a corporação. É claro que a dona do apartamento, que ficou em péssimo estado, perdeu a confiança no locatário.

    Sem sair deste início de Copacabana, ainda tem nesta pequena topografia sentimental a Viveiros de Castro. A evocação é singela. Fiz uma operação no pé direito e fiquei engessado até a coxa por 90 dias. Aluguei um apartamento na Viveiros por temporada, não podia sair de casa, convidei uma amiga pra ficar comigo, bebia uísque o dia todo (meu médico não desaprovou). Foi no início de 64. Jango ainda no poder, nada de milico. Minha amiga era assídua do Paissandu e adorava a nouvelle vague. Eu também. Batíamos grandes papos, diálogos brilhantes. A diferença fundamental é que nos filmes franceses, além de conversa havia especialmente a transa. Nós, porém, ficávamos a ver estrelas.

     

     

    Flávio Pinto Vieira é jornalista e escritor; autor do livro de contos Nove histórias e dez mulheres, Ed. Sete Letras.