Categoria: Cidadania e Direitos Sociais

  • O que é o Movimento Policiais Antifascismo?

    O que é o Movimento Policiais Antifascismo?

    O que é o Movimento Policiais Antifascismo?

    Antes de tudo é um movimento que luta pela cidadania do policial.

    Áureo Cisneiros

    É precisa esclarecer à população e principalmente aos próprios policiais que o policial é um TRABALHADOR. E como qualquer outro trabalhador tem direitos e deveres.

    O Movimento dos Policiais Antifascismo usa a informação como arma. Onde o inimigo a ser abatido é o sistema que joga policiais contra população, além de colocar uma trava para que o policial não exerça sua cidadania, não se reconheça enquanto trabalhador e para que a população não enxergue o lado humano do policial.

    Policial não é mamulengo. Policial pensa!

    O Movimento dos Policiais Antifascismo luta para que os policiais tenham sua dignidade humana e seus direitos respeitados e respeitar a dignidade humana de todos.

    O Movimento dos Policiais Antifascismo luta para que a sociedade não enxergue o policial apenas como instrumento de força para manter um sistema de desigualdades. O Movimento luta para que a sociedade participe do debate e da construção de políticas públicas de segurança. O policial não está sozinho no mundo.

    O POLICIAL PRECISA LUTAR CONTRA DESIGUALDADES QUE ELE E OS DEMAIS TRABALHADORES SOFREM

    O POLICIAL NÃO PODE FICAR CALADO E MUITO MENOS ISOLADO

    É preciso entender que o sistema não quer o policial pensando e tendo consciência política. O sistema deseja um policial acrítico, serviçal e sem cidadania.

    O sistema divide as polícias. De um lado uma polícia militarizada para impedir, pela força da hierarquia, a sua consciência cidadã. Mantém o soldado sem direitos e o Coronel com privilegios.

    O sistema engessou a Policial Civil a um ordenamento de 211 anos. Onde não existe condições mínimas de trabalho, não existe formação contínua , carreira única e sequer, em alguns estados, Lei Orgânica.

    Chegou a hora de reestruturar as polícias. De trazer dignidade aos policias. De unir trabalhadores. Policial não é capataz, capitão do mato, de um sistema que só massacra um lado: Do preto e favelado. Policial é trabalhador.

    O Movimento Policiais Antifascismo entende que o estado deva ser ocupado pelos trabalhadores. E que ele se mova para atender aos interesses do povo e não ser um instrumento para garantir privilégios aos mais ricos.

    Diariamente noticiam diversos dispositivos “legais” de benesses , de perdão de dívidas, de facilidades , de privilégios para os mais ricos. Por que o estado não pode ofertar os serviços mínimos ao povo pobre, trabalhador e contribuinte ?

    O policial não pode continuar a ser o chicote da opressão aos mais pobres. O policial precisar ser o servidor que luta pela cidadania, paz e ordem social.

    O Policial é um trabalhador e precisa ter consciência de que é trabalhador. Lutar por um mundo melhor é obrigação de todos, inclusive dos policiais . Essa é a essência do Movimento dos Policias Antifascismo.

    Participe. Vamos juntos lutar por um Brasil com segurança pública e cidadania para todos e todas.

  • Um balão de ensaio para a barbárie

    Um balão de ensaio para a barbárie

    Um balão de ensaio para a barbárie

    Por Francisvaldo Mendes

    A contínua marcha militar brasileira deve ser abolida o quanto antes. A determinação de Michel Temer em decretar a Intervenção Militar no Rio de Janeiro – ainda que possa ser uma densa cortina de fumaça para demonstração de força e busca de apoio dos setores mais reacionários da população – é a possibilidade do consórcio do golpe de 2016 em instalar um nível de excepcionalidade e de violência estruturante do sistema penal e do Estado brasileiro ainda mais intenso no comportamento da vida cotidiana da população. Principalmente e tão somente para os de baixo. Hoje, nas comunidades do Rio de Janeiro. Amanhã e depois, estendendo-se para onde quer que se queira.

    A primeira análise – acertada – logo após o anúncio da intervenção fez crer que esse decreto seria apenas “uma jogada” de Michel Temer para tirar o foco e camuflar as articulações para a aprovação da inescrupulosa Reforma da Previdência. Ventilou-se até que tendo os votos necessários, a intervenção seria interrompida por um dia, voltando a valer logo após a reforma passasse pela Câmara dos Deputados. Não será possível! O cão de guarda de Temer, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, extinguiu a possibilidade de votar a reforma – ao menos nos próximos meses. A matilha do golpe faz seus rearranjos. Tenta achar brechas, mecanismo, ações e enganações junto a mídia para dar resposta ao “mercado”. Não está conseguindo graças a forte reação e rejeição popular, demonstrada nas ruas e, também, no carnaval carioca. Significativo!

    Se em 2018 a reforma não sai, o que se está pretendendo, agora, é intensificar o estado penal e brutal dos próximos anos. Utilizando a intervenção até o dia 31 de dezembro como um grande balão de ensaio da barbárie. Não é que a intervenção militar vai criar um estado de exceção nas comunidades do Rio. Isso já existe há tempos. Temer moderniza tragicamente o que Rodrigues Alves fez – junto com Francisco Pereira Passos – com o povo dos cortiços do centro do Rio de Janeiro no início do século XX, quando se construiu a Av. Rio Branco e enxotou os egressos do fim da escravidão e o todo povo do centro da cidade com a justificativa de trazer a “paz e o progresso” para o Brasil.

    Discurso parecido. Mas, dessa vez, a tentativa não é só varrer o povo para outro lugar. É varrer o povo! O aumento da política de polícia ostensiva – agora, pela polícia do exército – será cada vez mais capilarizada e capitalizada para todos os espaços da sociedade e para a subjetividade do dia a dia dos de baixo. É a fachada. Igual às fachadas dos novos casarões da recém construída Av. Rio Branco – no início, os prédios da avenida só tinham a fachada mesmo, não tinha aposento, nem gente morando atrás. Eles querem matar, ainda mais, em qualidade e quantidade, nós, o povo.

    Não é à toa que circula, pelas redes, recomendações de que jovens, negros e negras, de comunidades do Rio de Janeiro comecem a andar, por exemplo, com a nota fiscal dos seus celulares junto consigo, que não esqueçam de jeito nenhum a identidade ou a carteira de trabalho quando saírem à rua – dentro de casa também -, que não usem bermudas de táctil, cabelos pintados, toucas, agasalhos com capuz. Eles – os ostensivos – é que escolhem quem é criminoso. Eles, que agindo com toda liberdade “sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, é que terão ainda mais liberdade para exaurir de vez qualquer tipo de proteção de direito (à vida). A nossa saída é a unidade na ação política conjunta, organizada, num programa mínimo na defesa dos direitos fundamentais para a dignidade humana e para garantir o direito do nosso povo de viver. Precisamos demonstrar que a nossa força é a força coletiva.

  • Porquê o sistema ainda vencerá

    Porquê o sistema ainda vencerá

    Brexit, vitória de Trump, movimentos populistas na Europa: o Ocidente está protestando, à direita e à esquerda, contra as ortodoxias neoliberais e globalistas dos últimos 40 anos.

    por Perry Anderson*

    O termo “movimentos antissistêmicos” era comumente usado há 25 anos (1) para caracterizar forças de esquerda em revolta contra o capitalismo. Hoje, ainda que não tenha perdido relevância no Ocidente, seu significado mudou. Os movimentos de revolta que se multiplicaram ao longo da última década já não se rebelam contra o capitalismo, mas o neoliberalismo – fluxos financeiros desregulamentados, serviços privatizados e crescente desigualdade social, variante específica do reinado do capital estabelecido na Europa e na América desde os anos 80. A ordem econômica e política resultante foi aceita de maneira quase indistinguível por governos de centro-direita e centro-esquerda, de acordo com o princípio central de la pensée unique, a sentença de Margaret Thatcher de que “não há alternativa”. Dois tipos de movimento estão agora dispostos contra este sistema; a ordem estabelecida estigmatiza-os, à esquerda e à direita, com a ameaça do populismo.

    Não é por acaso que esses movimentos surgiram primeiro na Europa que nos EUA. Sessenta anos depois do Tratado de Roma, a razão é clara. O mercado comum de 1957, resultado da comunidade do carvão e do aço do Plano Schuman – concebido tanto para evitar qualquer reversão de um século nas hostilidades franco-germânicas quanto para consolidar o crescimento econômico pós-guerra na Europa ocidental – foi o produto de um período de pleno emprego e aumento dos rendimentos populares, o enraizamento da democracia representativa e o desenvolvimento dos sistemas de bem-estar social.  Seus arranjos comerciais incidiram pouco na soberania dos Estados-nação que o compunham, os quais foram fortalecidos ao invés de enfraquecidos. Os orçamentos e as taxas de câmbio foram determinados internamente, pelos parlamentos responsáveis perante os eleitores nacionais, nos quais políticas politicamente contrastantes foram vigorosamente debatidas. As tentativas da Comissão em Bruxelas de formar um grupo foram acentuadamente rejeitadas por Paris. Não só a França sob Charles de Gaulle, mas, na sua forma mais silenciosa, a Alemanha Ocidental sob Konrad Adenauer perseguiu políticas externas independentes dos EUA e capazes de desafiá-los.

    O fim dos trinta anos gloriosos trouxe uma grande mudança nessa construção. A partir de meados da década de 1970, o mundo capitalista avançado entrou em uma longa desaceleração, analisada pelo historiador americano Robert Brenner (2): taxas de crescimento menores e aumentos mais lentos da produtividade, década a década, menos emprego e maior desigualdade, pontuadas por recessões acentuadas. A partir da década de 1980, começando no Reino Unido e nos EUA, e gradualmente se espalhando para a Europa, as direções políticas foram revertidas: os sistemas de assistência social foram reduzidos, as indústrias e serviços públicos foram privatizados e os mercados financeiros desregulamentados. O neoliberalismo havia chegado. Na Europa, isso veio ao longo do tempo para assumir uma forma institucional excepcionalmente rígida: o número de Estados membros daquilo que se tornou a União Europeia multiplicou-se por quatro, incorporando uma vasta zona de baixos salários do Leste europeu.

    Austeridade draconiana

    Da união monetária (1990) para o Pacto de Estabilidade (1997), depois o Ato do Mercado Único (1991), os poderes dos parlamentos nacionais são anulados numa estrutura supranacional de autoridade burocrática protegida da vontade popular, tal como o economista ultraliberal Friedrich Hayek profetizou. Com este mecanismo, a austeridade draconiana poderia ser imposta sobre os eleitores desamparados, sob a direção conjunta da Comissão e de uma Alemanha reunificada, agora o estado mais poderoso da União, onde os principais pensadores abertamente anunciam sua vocação para a hegemonia continental. Externamente, durante o mesmo período, a UE e seus membros deixaram de desempenharam qualquer papel significativo no mundo, em desacordo com as diretivas vindas dos EUA, fazendo com que o avanço das políticas da “neo-guerra fria” em relação à Rússia fosse estabelecido pelos EUA e pago pela Europa.

    Assim, não é de surpreender que as castas cada vez mais oligárquicas da UE, desafiando a vontade popular em sucessivos referendos e incorporando diktats nas constituições, deveriam gerar muitos movimentos de protesto contra elas. Qual é o panorama dessas forças? No núcleo pré-ampliação da UE, a Europa ocidental da Guerre Fria (a topografia da Europa ocidental é tão diferente que se pode ser abandonada para propósitos presentes) , os movimentos de direita dominam a oposição ao sistema na França (Front National), na Holanda (Partido para a Liberdade, PVV), na Áustria (Partido Liberdade da Áustria), na Suécia (Democratas Suecos), na Dinamarca (Partido do Povo Dinamarquês), na Finlândia (Os Verdadeiros Finlandeses), na Alemanha (Alternativa para a Alemanha, AfD) e na Grã-Bretanha (UKIP).

    Na Espanha, Grécia e Irlanda, movimentos de esquerda têm predominado: Podemos, Syriza e Sinn Fein. A exclusividade é a Itália que tem tanto um forte movimento antissistêmico de direita na Lega e um movimento ainda maior na divisão direita/esquerda do Movimento 5 Estrelas (M5S); sua retórica extra-parlamentar sobre impostos e imigração o coloca à direita, em contraste com sua atuação parlamentar à esquerda, de oposição consistente às medidas neoliberais do governo de Matteo Renzi (particularmente sobre educação e desregulamentação do mercado laboral), e seu papel central na derrota da tentativa de Renzi de enfraquecer a constituição democrática da Itália (3). A isso pode ser adicionado o Momentum, que emergiu na Grão-Bretanha por trás do inesperada eleição de Jeremy Corbyn para a direção do Labour Party. Todos os movimentos de direita, à exceção do AfD, precedem o crash de 2008; alguns têm histórias que remontam a década de 1970 ou datas mais antigas. A decolagem do Syriza e o nascimento do M5S, Podemos e Momentum são resultados diretos da crise financeira global.

    O fato central é o maior peso global dos movimentos de direita em relação aos de esquerda, tanto em número de países onde eles chegaram ao governo quanto em força eleitoral. Ambos são reações à estrutura do sistema neoliberal, que encontra sua expressão mais marcante e mais concentrada na atual UE, com sua ordem fundada na redução e privatização dos serviços públicos; a revogação do controle democático e da representação; e desregulamentação dos fatores de produção. Todos os três elementos estão presente em nível nacional na Europa, como em qualquer outro lugar, mas são de um grau maior de intensidade no nível da UE, tal como atestam a tortura da Grécia, o atropelamento dos referendos e a escalada do tráfico humano.  Na arena política, eles são as questões primordiais de interesse popular, dirigindo protestos contra o sistema em relação à austeridade, soberania e imigração. Os movimentos antissistêmicos são diferenciados pelo peso atribuído a cada um – a qual cor na paleta neoliberal eles direcionam a maior hostilidade.

    Movimentos de direita predominam sobre os de esquerda porque desde cedo fizeram a questão imigratória um assunto de sua propriedade, apostando nas reações xenófobas e racistas para ganhar mais apoio entre os setores mais vulnerável da população. Com a exceção dos movimentos na Holanda e na Alemanha, que acreditam no liberalismo econômico, eles são tipicamente ligados (na França, Dinamarca, Suécia e Finlândia) não à denúncia, mas à defesa do estado de bem-estar social, ao mesmo tempo que reclamam que a chegada de imigrantes minam este estado. Mas seria errado atribuir toda sua vantagem a essa carta; em exemplos importantes – a Front National (FN) na França é o mais significativo –  eles também têm uma vantagem sobre outras frentes.

    A união monetária é o exemplo mais óbvia. A moeda única e o banco central, concebido em Maastricht, fizeram a imposição da austeridade e da negação da soberania popular num único sistem. Movimentos de esquerda deveriam atacar isso tão veementemente quanto qualquer movimento de direita, se não mais. Mas as soluções que eles propõem são menos radicais. À direita, a FN e a Lega possuem remédios claros para as tensões da moeda única e para a imigração: sair do euro e parar os fluxos migratórios. À esquerda, com exceções isoladas, nunca se fizeram exigências tão inequívocas. No máximo, os substitutos são ajustes técnicos na moeda única, complicados para ter maior apelo popular e vagas alusões embaraçosas às cotas; nem chega perto de ser tão inteligível para os eleitores como as proposições diretas da direita.

    O desafio da crescente imigração

    A imigração e a união monetária criaram dificuldades especiais para a esquerda por razões históricas. O tratado de Roma foi fundado sobre a promessa de livre movimentação de capitais, commodities e mão-de-obra dentro de um mercado comum europeu. Enquanto a Comunidade Europeia estava confinada aos países da Europa ocidental, os fatores de produção onde a mobilidade mais importava foram o capital e as commodities: a imigração pelas fronteiras dentro da comunidade era geralmente bastante modesta. Mas, no final da década de 1960, o trabalho imigrante de ex-colônias africanas, asiáticas e caribenhas, e de regiões semi-coloniais do ex-Império Otomano, já foi significativo em números. A extensão da UE para a Europa oriental aumentou então consideravelmente a imigração dentro do bloco. Finalmente, as aventuras neo-imperais nas ex-colônias mediterrâneas – a blitz militar na Líbia e a propaganda na guerra civil na Síria – levaram grandes ondas de refugiados para a Europa, juntamente com o terror de retaliação por parte de militantes da região onde o Ocidente permanece acampado como senhor supremo, som suas bases, bombardeiros e forças especiais.

    Tudo isso acendeu a xenofobia: os movimentos anti-sistêmicos da direita se alimentaram dela, e os movimentos da esquerda a combateram, leais à causa de um internacionalismo humano. Os mesmos apegos subjacentes levaram a maioria da esquerda a resistir a qualquer pensamento de acabar com a união monetária, como uma regressão a um nacionalismo responsável pelas catástrofes passadas da Europa. O ideal da unidade europeia permanece para eles um valor cardinal. Mas a atual Europa de integração neoliberal é mais coerente do que qualquer uma das alternativas hesitantes que até agora propuseram. Austeridade, oligarquia e mobilidade dos fatores de produção formam um sistema interligado. A mobilidade dos fatores não pode ser separada da oligarquia: historicamente, nenhum eleitorado europeu foi consultado sobre a chegada ou a escalada do trabalho estrangeiro; isso sempre ocorreu por detrás de suas costas. A negação da democracia, que se tornou a estrutura da UE, excluiu desde o início qualquer posição na composição da sua população. A rejeição desta Europa por movimentos da direita é politicamente mais consistente do que a rejeição pela esquerda, outra razão para a vantagem da direita.

    Níveis recordes de descontentamento dos eleitores

    A chegada do M5S, Syriza, Podemos e AfD marcou um salto no descontentamento popular na Europa. As pesquisas agora registram níveis recordes de insatisfação com a UE. Mas, à direita ou à esquerda, o peso eleitoral dos movimentos anti-sistêmicos permanece limitado. Nas últimas eleições europeias, os três resultados mais bem sucedidos para a direita – UKIP, FN e Partido Popular Dinamarquês – foram cerca de 25% dos votos. Nas eleições nacionais, o valor médio na Europa Ocidental para todas as forças de direita e esquerda combinadas é de cerca de 15%. Essa percentagem do eleitorado representa pouca ameaça ao sistema; 25% pode representar uma dor de cabeça, mas o ‘perigo populista’ do alarme midiático permanece até hoje muito modesto. Os únicos casos em que um movimento anti-sistêmico chegou ao poder, ou parecia que poderia fazê-lo, são aqueles em que um deliberado super-ganho de assentos, através de um prêmio eleitoral destinado a favorecer o establishment, teve um efeito reverso; ou como na Grécia ou na Itália, esses movimentos arriscaram-se a participar desse jogo.

    Na realidade, há uma grande diferença entre o grau de desilusão popular com a UE neoliberal do presente – no último verão, maiorias na França e na Espanha expressaram sua aversão a ela, e mesmo na Alemanha, apenas a metade dos questionados apresentam uma visão positiva sobre o bloco – e a extensão do apoio às forças que se posicionam contra ela. A indignação e o desgosto com o que se transformou a UE é comum, mas há algum tempo o determinante fundamental dos padrões eleitorais na Europa tem sido e continua a ser o medo. O status quo sócio-econômico é amplamente detestado. Mas é regularmente ratificado nos pleitos com a reeleição dos partidos responsáveis por essa situação, por temores de que perturbar o status e alarmar os mercados traria ainda mais miséria. A moeda comum não acelerou o crescimento na Europa e ingligiu graves dificuldades aos países do sul. Mas a perspectiva de uma saída aterroriza mesmo aqueles que sabem até agora o quanto eles sofreram com isso. O medo supera a raiva. Daí a aquiescência do eleitorado grego na capitulação do Syriza em Bruxelas, os reves do Podemos na Espanha, as dificuldades do Parti de Gauche na França. O sentido subjacente é o mesmo em todo lugar. O sistema está mal. Afrontá-lo é arriscar-se a uma represália.

    O que, então, explica o Brexit? Imigração massiva é outro temor em toda a UE, e foi explorado no Reino Unido na campanha pelo Leave, no qual Nigel Farage foi um porta-voz e organizador hábil, juntamente com os proeminentes Conservadores. Mas a xenofobia por si só não é suficiente para compensar o medo de crise econômico. Na Inglaterra, como em toda a parte, a aversão aos imigrantes tem crescido à medida que governos sucessivos mentiram sobre as escalas da imigração. Mas se o referendo sobre a UE tivesse apenas sido uma disputa entre esses medos, como o establishment político pretendia que fosse, o Remain teria vencido indubitavelmente por uma margem considerável, como ocorreu em 2014 com o referendo sobre a independência escocesa.

    Havia outros fatores. Depois de Maastricht, a classe política britânica recusou a camisa de força do euro, apenas para perseguir um neoliberalismo nativo mais drástico do que qualquer outro do continente: primeiramente, a arrogância financeirizada do New Labour, mergulhando a Inglaterra numa crise bancária antes de qualquer outro país europeu e, depois, um governo Liberal-Conservador com uma austeridade mais drástica do que qualquer outra gerada sem constrangimento externo da Europa. Economicamente, os resultados dessa combinação são peculiares. Nenhum outro país europeu ficou tão polarizado por regiões, entre uma metrópole cheia de bolhas e bolsões de alta renda em Londres e no sudeste, e um norte e nordeste desindustrializado e empobrecido onde os eleitores sentiram que tinham pouco a perder se optassem pelo Leave (crucialmente, uma perspectiva mais abstrata que abandonar o euro), seja lá o que acontesse com a City e os investimentos estrangeiros. O medo contou menos que o desespero.

    Politicamente, também, nenhum outro país europeu tem tão flagrantemente manipulado um sistema eleitoral: UKIP foi o maior partido britânico individual em Estrasburgo sob representação proporcional em 2014, mas um ano depois, com 13% dos votos, ganhou apenas uma cadeira simples no Westminster, enquanto o Partido Nacional Escocês (SNP), com menos de 5% dos votos, ficou com 55 assentos. Sob os regimes intercambiáveis dos Trabalhistas e dos Conservadores, produzidos por esse sistema, os eleitores da base da pirâmide desertaram das urnas. Mas de repente concedida, uma vez, uma real escolha num referendo nacional, eles retornaramo com força para proferir seu veredito sobre as desolações de Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron.

    Finalmente, e de forma decisiva, veio a diferenção histórica separando o Reino Unido do continente. Por séculos, o país não foi somente um império que abteu qualquer rival europeu culturalmente, mas ao contrário da França, Alemanha, Itália ou a maioria do restante do continente, não sofreu derrota, invasão ou ocupação em qualquer guerra mundial. Logo, a expropriação dos poderes locais por uma burocracia na Bélgica causou mais atritos que em qualquer outro lugar: por que deveria uma estado que por duas vezes rejeitou o poder de Berlim se submeter a uma intromissão de Bruxelas ou Luxemburgo? Questões de identidade poderiam superar as questões de interesse mais facilmente que no resto da UE. Assim, a fórmula normal – medo de uma represália econômica supera o medo de uma imigração massiva – falhou, deformada por uma combinação de desespero econômico e amor-próprio nacional.

    O pulo dos EUA no escuro

    Essas eram também as condições nas quais um candidato presidencial dos Republicanos dos EUA de antecedentes e temperamento inéditos – abominável para opinião bipartidária mainstream, sem qualquer disposição de se conformar com códigos aceitos de conduta civil e política, odiados por muitos de seu atual eleitorado – poderia apelar para os suficientemente desconsiderados trabalhadores brancos do cinturão da ferrugem a fim de vencer a eleição. Como na Grã-Bretanha, o desespero superou a apreensão em regiões proletárias desindustrializadas. Aí também, muito mais crua e abertamente, num país com uma história mais profunda de racismo nativo, imigrantes foram denunciados e barreiras, físicas e processuais, foram demandadas. Sobretudo, o império não era uma memória distante do passado mas um atributo vívido do presente e uma reclamação natural ao futuro, mas tinha sido descartado por aqueles no poder em nome de uma globalização que significou ruína e humilhação para seu país. O slogan de Donald Trump foi “Fazer a América Grande Novamente” – próspero ao descartar os fetiches do livre movimento de mercadorias e de trabalho, e vitorioso em ignorar os obstáculos e as crenças do multiletarismo: ele não estava errado ao proclamar que seu triunfo foi um grande Brexit. Foi muito mais que uma revolta espetacular, uma vez que não ficou confinado a uma questão única (para a maioria do povo, simbólica), e esteva desprovida de qualquer respeitabilidade do establishment ou bênção editorial.

    A vitória de Trump colocou a elite política europeia, centro-direita e centro-esquerda unidos, em uma consternação ultrajada. Quebrar as convenções estabelecidas sobre imigração é ruim o suficiente. A UE pode ter tido poucos escrúpulos na transferência de refugiados para a Turquia de Recep Tayep Erdogan, com suas dezenas de milhares de prisioneiros, tortura policial e suspensão do que se passa dentro do Estado Democrático de Direito; ou na colocação de arames farpados na fronteira norte da Grécia para manter os imigrantes trancados nas ilhas do Egeu. Mas a UE, respeitando seu decoro democraico, nunca glorificou suas exclusões. A falta de inibição de Trump nesses assuntos não afeta diretamente a UE. A sua rejeição à ideologia do livre trânsito de fatores de produção, seu aparentemente desrespeito desaberto pela OTAN e seus comentários sobre uma atitude menos beligerante com a Rússia são o que causa uma preocupação muito mais séria. Se qualquer um daqueles elementos é mais do que um gesto que logo será esquecido, como muitas das suas promessas domésticas, permanece algo a ser comprovado. Mas sua eleição cristalizou uma diferença significativa entre um número de movimentos antissistêmicos de direita ou de centro ambíguo e partidos da esquerda do establishment, rosa ou verde. Na França e Itália, movimentos de direita têm consistentemente se oposto às políticas de uma “nova guerra fria” e às aventuras militares aplaudidas pelos partidos de esquerda, incluindo a blitz na Líbia e as sanções à Rússia.

    O referendo britânico e a eleição dos EUA foram convulsões antissistêmicos da direita, embora flanqueadas por surtos antissistêmicss de esquerda (o movimento de Bernie Sanders nos EUA e o fenômeno Corbyn no Reino Unido), menores em escala, quando não menos esperados. Quais serão as consequências de Trump ou do Brexit é algo que permanece indeterminado, embora sem dúvida mais limitado que predições correntes. A ordem estabelecida está longe de ser batida em qualquer país e, como a Grécia mostrou, é capaz de absolver e neutralizar revoltas de qualquer direção com velocidade impressionante. Entre os anticorpos já gerados estão os simulacros yuppie dos avanços populistas (Albert Rivera, Emmanuel Macron na França), atacando os bloqueios e corrupções do presente, e prometendo uma política mais limpa e mais dinâmica do futuro, para além dos partidos decadentes.

    Para as movimentos antissistêmicos do esquerda em Europa, a lição dos anos recentes é clara. Se eles não quiserem ser ultrapassados pelos movimentos de direita, não podem ser menos radicais no ataque ao sistema e devem ser mais coerentes em sua oposição. Isso significa enfrentar a probabilidade da UE estar agora tão firmemente no caminho da dependência, enquanto uma construção neoliberal, que reformá-la não é algo mais seriamente concebível.  Teria de ser desfeita antes que qualquer coisa melhor fosse construída, seja rompendo com a atual UE, seja reconstruindo a Europa em outros marcos, lançando Maastricht às chamas. A menos que haja uma crise econômica muito mais profunda, é pouco provável qualquer uma das alternativas.

    * Perry Anderson leciona história na UCLA e publicou recentemente The H-Word: Peripetia of Hegemony, ed.Verso, Londres, 2017.

     

     

    NOTAS

    (1) Por Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e outros.

    (2) Robert Brenner, The Economics of Global Turbulence: the Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long Downturn 1945-2005, Verso, New York, 2006.

    (3) Raffaele Laudani, ‘Renzi’s fall and Di Battista’s rise’, Le Monde diplomatique, Edição Inglesa, January 2017.

    Fonte: Le Monde Diplomatique Inglesa (https://mondediplo.com/2017/03/02brexit)

    Tradução do original (em inglês) para o português: Charles Rosa – Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos

  • Previdência Social ou Juros?

    Previdência Social ou Juros?

    por Paulo Kliass*

     

    Ao contrário do que o financismo nos faz crer, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União.

    A entrada em 2017 também pode ser encarada pela ótica de uma busca desesperada por afirmação de alguma rota de coerência e credibilidade do governo Temer. Afinal, o passar do tempo veio desconstruindo, pouco a pouco, toda aquela falsa expectativa criada em torno das vantagens do “golpeachment”. O canto de sereia dos “putschistas” assegurava que, uma vez consumada a retirada de Dilma do Palácio do Planalto, tudo seria resolvido e o Brasil entraria em um verdadeiro céu de brigadeiro.

    A realidade, porém, insistiu em desmentir os vendedores de tais falsas ilusões. Os equívocos do diagnóstico a respeito da situação econômica e social não foram abandonados em relação à leitura equipe anterior, quando o chefe da turma da economia era Joaquim Levy. Muito pelo contrário! A entrada em campo da dupla Meirelles e Goldfajn recoloca o financismo no centro de decisões, ainda com mais poder de fogo. Assim, a manutenção da estratégia do austericídio se vê reforçada, com elevação sensível dos níveis das maldades a serem praticadas contra a maioria da população brasileira.

    Já virou jargão a afirmação de que governar é fazer escolhas e definir prioridades. Pois a imagem cabe como uma luva para a compreensão dos rumos adotados por Temer, desde que ele encabeçou o movimento pela deposição ilegítima da presidenta eleita. Além de optar pela via da inconstitucionalidade do golpe travestido de ares institucionais, Temer escolheu o campo do conservadorismo ortodoxo no domínio da economia. É bem verdade que tal preferência não revelou nada de muito surpreendente, mas ele resolveu aprofundar a aliança com o núcleo duro do sistema financeiro e incorporou para si, de forma definitiva, a narrativa da inevitabilidade do ajuste recessivo.

    Austericídio: cortes no orçamento e juros nas alturas.

    A leitura da turma do neoliberalismo tupiniquim a respeito da dinâmica econômica permanecia monocórdica. A recomendação para superar as dificuldades se resumia, como ainda se reduz, ao binômio do corte das despesas orçamentárias e da manutenção de uma política monetária arrochada. Às favas com as críticas que apontavam para os graves problemas sociais derivados de tal estratégia, além do desprezo pelos economistas que alertávamos para a própria ineficiência de tais medidas para resolver o que se pretendia. A trágica combinação de política fiscal restritiva com taxas de juros estratosféricas provocaria uma mistura explosiva para o conjunto da sociedade.

    Alçado ilegitimamente à condição de chefe de governo, Temer fez as suas escolhas. A radicalização da trilha austericida veio acompanhada de contingenciamentos mais duros de verbas públicas, de taxas de juros reais e nominais inimagináveis, de desmonte de estruturas essenciais da administração pública, entre tantas outras manifestações dos representantes da “nova equipe técnica e competente” que chegava à Esplanada dos Ministérios. Enfim, nem tão eficiente nem tão nova assim, uma vez que os oportunistas de todos os matizes rapidamente se converteram ao novo credo e se acomodaram aos comandos da nova direção.

    O vice-presidente eleito em 2014 estabeleceu suas prioridades. E assim foram considerados essenciais seus objetivos de: i) promover o congelamento das rubricas orçamentárias pelo horizonte de 20 anos da vida nacional; e ii) empurrar goela abaixo da sociedade uma reforma previdenciária redutora de direitos de trabalhadores na ativa e de aposentados. Levando-se em consideração a insanidade da avaliação subjacente a tal aventura criminosa, nada mais coerente com um diagnóstico que tem seus olhos focados única e exclusivamente na necessidade de promover superávit primário a qualquer custo.

    Ocorre que o discurso é mentiroso e o argumento é falacioso.

    Não é verdade que a estrutura da previdência social seja estruturalmente desequilibrada e que sua manutenção levará à quebradeira generalizada do Estado brasileiro. A situação das contas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) passa por um momento de maior dificuldade em função de problemas das receitas do INSS e não por um descontrole insuperável. Os últimos governos promoveram um festival de desonerações das receitas previdenciárias a serem recolhidas pelas empresas. Por outro lado, a redução do ritmo de atividade econômica e a recessão promoveram também uma drástica redução das receitas do RGPS. O aumento do desemprego tem provocado a retirada de milhões de trabalhadores do mercado de trabalho, com evidentes impactos também sobre a previdência.

    Previdência não é estruturalmente desequilibrada.

    Frente a esse quadro é compreensível que haja um descompasso entre entradas e saídas de recursos do sistema. As despesas se mantêm, uma vez que as pessoas continuam aposentadas e outras passam a se aposentar. As receitas diminuem por conta da estagnação provocada pelo austericídio. E daí os jornalões escancaram as manchetes do suposto “rombo enorme” da previdência. Trata-se do mais puro e conhecido alarmismo irresponsável. Desde 2015 as contas apresentam problemas, mas nada comparável a um descompasso estrutural. Se a economia voltar a crescer, as receitas devem retornar a patamares compatíveis às despesas.

    E tudo isso sem mencionar os problemas associados ao contingente da previdência rural e ao abandono deliberado do conceito de seguridade social, tal como definido na própria Constituição. A parte mais relevante do chamado “déficit previdenciário” tem origem nos benefícios concedidos aos trabalhadores do campo, que só foram incorporados ao sistema em 1988 e não apresentam histórico de contribuição. Ao contrário do que afirmam os especialistas em planilha contábil, a decisão dos constituintes foi o reconhecimento de uma profunda dívida da sociedade brasileira para com que esse setor, que até então sempre fora marginalizado e impedido de participar do sistema previdenciário. Já o tripé “saúde-previdência-assistência” que a Constituição define como seguridade social tem suas fontes de receita asseguradas e apresenta um orçamento formalmente equilibrado.

    Não é verdade que a única maneira de evitar o descontrole da inflação seja pela manutenção da SELIC em níveis tão elevados que fazem do Brasil o campeão mundial da taxa de juros há anos, sem interrupção. Exatamente pelo fato de a economia não ser uma ciência exata, existem várias interpretações para o mesmo fenômeno e mais de uma recomendação de política econômica. Tanto isso é verdade que até um dos principais economistas do campo da ortodoxia, André Lara Rezende, acaba de tornar pública uma espécie de “mea culpa” a esse respeito. De acordo com ele, a política que mantém a taxa de juros alta não apenas é ineficaz para reduzir preços, como em alguns casos pode até provocar inflação. Ainda que meio capenga, em sua auto crítica pública, o banqueiro afirma que esse tem sido o caso brasileiro (nem tão) recente. Em suas palavras: “Ou seja, o juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação alta.” Em poucas palavras, ele reconhece o equívoco cometido ao longo dos últimos vinte anos. Resta saber quem vai pagar a conta de tanta irresponsabilidade cometida contra a grande maioria da sociedade.

    Por que não uma Reforma da Política Monetária?

    Ora, se o governo estabeleceu mesmo como objetivo o controle de gastos públicos, sua opção em alcançá-lo pela previdência social revela uma prioridade bastante questionável. Senão, vejamos. Os números oferecidos pelas próprias instituições oficiais encarregadas pela política econômica são cristalinos.

    Ao contrário do que nos faz crer o discurso do financismo, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União. O item do Orçamento federal que oferece o maior rombo é a conta de pagamento de juros. Sim, de acordo com informações do próprio BC, ao longo de 2016 as despesas com esse quesito foram de R$ 407 bilhões, algo que representa em torno de 7% do PIB. Houve momentos, ao longo do ano passado, em que o total acumulado de 12 meses dessa conta chegou a atingir igualmente vergonhosos R$ 540 bilhões. Ainda que sejam gastos da órbita federal, o governo faz cara de paisagem e ignora o assunto quando alguém ousa colocar o tema na mesa. Como não existe nenhuma receita de tributo correspondente a tal atividade, o impacto das despesas é 100% comprometedor do equilíbrio fiscal. No entanto, como outra “prioridade do governo” é a manutenção do superávit primário, não há nenhuma medida para contingenciar ou reduzir os gastos com a política monetária. Afinal, como o povo da finança enche a boca para dizer, os contratos do mercado são sagrados e imexíveis.

    Assim, como a intenção é encontrar contas passíveis de redução na estrutura orçamentária, os especialistas dos cortes não hesitam em apontar o dedo para a previdência social. Afinal, a conta é mesmo expressiva: foram R$ 516 bi em 2016. No entanto, o sistema prevê receitas específicas para sua manutenção. Assim, ainda que fiquemos submissos aos cálculos polêmicos e questionáveis do Ministério da Fazenda, o déficit apresentado pelo sistema no ano passado teria sido de R$ 108 bi. A disparidade entre ambas as contas é evidente! Mas o governo esqueceu juros e optou pela previdência.

    Assim como a chamada “PEC do Fim do Mundo” silenciou sobre congelar os gastos financeiros ao longo dos próximos 20 anos, aqui também o financismo passa incólume – graças ao compadrio generoso dos responsáveis pela equipe econômica. Pouco importa o caráter redistribuidor de renda dos benefícios do INSS. Pouco importa que mais de 40% desse volume de aposentadorias e pensões retorne aos cofres públicos sob a forma de tributos e impostos. Pouco importa que sejam mais de 30 milhões de indivíduos beneficiados por esse tipo de remuneração. A prioridade é a Reforma da Previdência, com o intuito de retirar direitos para reduzir as despesas previdenciárias. E ponto final.

    Juros: R$ 4 trilhões em 2 décadas.

    Por outro lado, a exemplo do que vem sendo praticado há décadas, a prioridade é não mexer com o superávit primário. Assim, não interessa promover nenhuma “Reforma da Política Monetária” – esta sim poderia oferecer algum alívio significativo nos gastos federais. Nesse caso, os dados da Secretaria do Tesouro Nacional são realmente impressionantes. Ao longo de 2 décadas entre 1997 e 2016, por exemplo, o Estado brasileiro registrou um déficit acumulado de R$ 4,1 trilhões em sua conta de juros. Isso significa que foi esse o valor transferido do orçamento público para o sistema financeiro, a título de pagamento dos juros da dívida pública. Todos sabemos que são recursos dirigidos a uma pequena parcela da população e sobre os quais incide uma porcentagem muito reduzida de impostos, em razão da conhecida regressividade de nossa estrutura tributária.

    Previdência social ou juros? Temer fez sua escolha e definiu sua prioridade.

    Cabe à sociedade organizada demonstrar sua discordância e pressionar o Congresso Nacional para evitar a aprovação de tal desastre anunciado.

    * Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

     

    Publicado originalmente na Carta Maior. 08/08/2017. http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEconomia%2FPrevidencia-Social-ou-Juros-%2F7%2F37670 

  • Carandiru, Pedrinhas e Manaus: as prisões como projeto de dominação de classe

    Carandiru, Pedrinhas e Manaus: as prisões como projeto de dominação de classe

    por Marcelo Biar*

    Eis aí, em Manaus, uma nova velha rebelião. Nova em Manaus, e velha no Brasil. Repetitiva, arriscaria dizer. Uma rebelião de classe, ainda que sem consciência. Há algo que unifica a história do Carandiru (SP), Pedrinhas (MA) e COMPAJ (AM). São presídios brasileiros e cumprem, ou cumpriram, a mesma função. A de aglutinar excluídos. Na verdade, os presídios são locais que recebem os indesejados a ordem dominante, quando em excesso. Quando extrapolam o quantitativo conveniente e controlável. É assim hoje em dia e também desde o século XIX quando recebia em sua absoluta maioria, escravos indisciplinados. Pois é, pena de privação de liberdade para quem não a tinha. Reclusão e castigo a quem ameaçava a ordem. No Rio de Janeiro, entre 1810 e 1821, tivemos o total de 4776 presos. Destes, 3182 eram escravos, 944 libertos (negros ex escravos) e 20 homens livres**. Neste período, seja pela questão étnica ou pela condição jurídica (escravo ou homem livre) ficava muito fácil identificar quem devia ser reprimido no Brasil. Hoje, reconfigurada a questão étnica e, transformada a questão jurídica em questão de classe, seguimos com a mesma prática. A mesma lógica. O encarceramento do excluído.

    Mas não se trata apenas de encarcerar. Na verdade é necessário demarcar este grupo como sendo aquele que erra, para que o projeto de dominação e exploração brasileiro tenha êxito. É preciso, portanto, ter uma prática penal que demarque o indivíduo que delinquiu como impróprio para o convívio social, não apenas no período previsto pela pena, mas por todo o sempre. E, considerando que como preso não temos um sujeito social aleatório que cometeu um delito, mas sim um perfil social muito claramente definido, pode-se, assim, atestar a todos, a incivilidade da classe subalterna. Pronto, a classe social que se apodera do aparato jurídico e repressivo legitimador da ordem classista, criminaliza a existência do grupo social por ela explorado. Transforma o estar à margem em ser criminoso. Ou seja, criminaliza toda identidade do subalterno, justificando e absolvendo a relação de produção que o subalternizou. Absolvendo a si própria da expropriação e naturalizando a diferença de classe.

    Completa este quadro o uso que a classe dominante faz do oprimido que, à margem da sociedade, do emprego formal, da condição cidadã e tudo mais, acaba por se ocupar de atividades criminosas que acumulam capital para seu opressor. O tráfico de drogas é um exemplo. A etapa conhecida, temida e criminalizada desta atividade econômica tão contemporânea quanto concentradora de renda é, justamente, a fase varejista que é executada por este subalterno. Este que morre, é preso e não acumula capital. Este que vive e sofre uma peculiar expropriação do grande capital.
    O presídio é um setor importante desta lógica expropriadora. É o local, inclusive, de onde o Estado organiza, fomenta e regula o crime a partir da concentração daqueles que o cometeram, e da “faccionalização” deste. Não por acaso as facções criminosas conhecidas e desenvolvidas nas últimas décadas foram criadas dentro dos presídios com clara intervenção e/ou mediação de agentes do estado.

    O Estado centauro, aquele que possui parte do corpo voltado para a ausência do Estado (em questões sociais) e outra parte para a grande presença (em questões repressivas), assim chamado pelo sociólogo francês, Loicq Wacquant***, tem seu coração no presídio. Nesta lógica neoliberal, em que quanto maior a ausência do estado no campo social, maior, por consequência, no campo repressivo, o aparato vem se sofisticando. Criaram as SEAPs (secretarias de estado de administração penitenciária), o FUNPEN (Fundo Penitenciário) e uma parafernalha tecnológica como detectores de metal etc. Isto que parece investimento de Estado na questão da segurança é especialização e financiamento de um processo de dominação. As SEAPs são a afirmação do encarceramento como fim, já que de todo amplo espectro da execução penal concentra como seu único foco, a privação de liberdade. Não entende esta como um aspecto de todo um contexto que deve ser abrangido que envolve, dentre outras coisas, a reconfiguração de identidade daquele que delinquiu e a mediação com a sociedade e suas relações para que este sujeito se integre de forma construtiva na mesma. É a afirmação da clausura. Por sua vez, o FUNPEN é o órgão que financia tal prática. Criado em 1994, tem se esmerado em financiar ampliações e construções de cadeias. Ampliação deste sistema.

    Neste Brasil que já é o quarto país em população carcerária, Carandiru, Pedrinhas e o recente episódio em Manaus (COMPAJ), são tão somente acidentes de percurso. O problema não são as rebeliões, mas sim o próprio sistema. Mas as rebeliões, contraditoriamente, ao invés de denunciar a falência deste sistema, reforçam no imaginário coletivo a indesejabilidade do preso, e consequentemente do seu grupo social, ratificam a repressão e, pasmem, afirmam a eficiência do Estado que, como se não lhe coubesse responsabilidade no processo de rebelião, aparece com soluções repressivas que nada diferem de suas ações anteriores, mas que parecem redentoras ante grande parte da população amedrontada pelos “perigosos”.

    A foto, amplamente divulgada, dos rebelados de Manaus com armamento pesado no interior do presídio, assusta tanto e a tantos que impede que se pense na falência da instituição que, antes mesmo de ser queimada por estes, já se apresenta secularmente apodrecida. A mesma foto dá vida a notícia de que o governo Temer liberará R$1,2 bilhões para o FUNPEN. Divulgada dias antes da rebelião sem maiores repercussões, esta notícia reciclada pela rebelião dá pungência a ação repressora. Reafirma a necessidade de tal prática. Revigora um governo ilegítimo e gestor das relações que implodiram.

    Não se trata, por ora, de discutir se a gestão dos presídios é pública, terceirizada ou privada. Trata-se de negar a ação gestora opressora. O laboratório de negação de direitos e estigmatização que é o presídio contemporâneo. Esta instituição que, não por acaso, surge na afirmação da sociedade burguesa, é um importante mecanismo da dominação de classe. Atua no consenso e na coerção. Na repressão e na construção de subjetividades que legitimam a desigualdade. Tanto quanto podemos dizer que a prisão é um elemento de opressão de classe, podemos afirmar que qualquer um que anseie o fim da desigualdade social, da opressão classista, que não repense a instituição de privação de liberdade estará operando de forma inócua. Assim, seja em Manaus ou na Lava Jato, na prisão de um ladrão de celular ou do Eduardo Cunha, temos que ter cuidado para não alimentar o monstro que quer nos engolir. A prática de violações aos direitos do cidadão é um projeto de poder, seja na sociedade livre, no trato do judiciário, ou na prisão. Quando comemoramos tal prática com aqueles que não simpatizamos reforçamos uma lógica de opressões com a qual, salvo engano, também não simpatizamos. (Espero que não!). O sistema não pode receber o respaldo de quem deseja sua derrocada. Milhares de presos, no Rio de Janeiro, tem o acesso a água limitado a 3 vezes ao dia com duração de 20 minutos e defecam em buracos no chão. Os chamados “buraco do boi”. Quando alguém comemora a chegada de Sérgio Cabral a uma destas prisões, percebendo ou não, aceita tal situação. E pior, a cada ex governador a ter seu direito violado, a despeito de sua indigna conduta na vida pública, milhares de oprimidos seguirão sendo desrespeitados em sua dignidade. Quando se comemora uma ação arbitrária do juiz Sérgio Moro com um réu da Lava Jato, repito, a despeito de sua indigna conduta, milhares de populares sofrerão, ou continuarão a sofrer, tais arbitrariedades. Enfim, não se vence um sistema comemorando suas ações. Não se rompe a exploração de classes fortalecendo seus mecanismos.

    Termino recordando uma cena do filme 400 contra 1, baseado no livro homônimo de William de Souza (o Professor, fundador do Comando Vermelho), em que presos comuns ao verem sendo retirados do presídio da Ilha Grande os presos políticos, gritam que estava havendo um engano. Dizem que proletários ali, são eles. Sem entrar no mérito de quem representa o proletariado naquela circunstância, é preciso que se deixe claro que o sistema penitenciário brasileiro e o judiciário com sua prática autoritária, são um projeto classista de dominação e opressão. Em Manaus ou em qualquer lugar, o preso, a despeito do delito cometido, é sim um preso político. Um preso de classe. O desrespeito aos direitos humanos, na cadeia, assim como a arbitrariedade da justiça que fere, por muitas vezes, o próprio direito de defesa e a presunção de inocência, também é um projeto de dominação classista. Não perceber ou não denunciar isto é, portanto, consciente ou não, uma prática reacionária que sustenta esta sociedade desigual.

    Manaus, Pedrinhas ou Carandiru, são panelas de pressão. Todas apitam ou explodem. Mas o que devemos discutir não é isto, mas sim a panela em si!

    *Marcelo Biar é professor de História com mestrado em Serviço Social e doutorado em História, pela UERJ. De 2007 a 2011 trabalhou como diretor de escola e professor no Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu_ RJ) e é autor dp livro ARQUITETURA DA DOMINAÇÃO: O RIO DE JANEIRO, SUAS PRISÕES E SEUS PRESOS, Editora Revan.
    ** Este estudo pode ser encontrado no artigo ENTRE DOIS CATIVEIROS: ESCRAVIDÃO URBANA E SISTEMA PRISIONAL NO RIO DE JANEIRO 1790-1821, de Carlos Eduardo M. de Araújo, do livro HISTÓRIA DAS PRISÕES NO BRASIL, Editora Rocco.
    *** Loiq Wacquant é um sociólogo francês, autor de AS DUAS FACES DO GUETO e AS PRISÕES DA MISÉRIA.

  • “Direitos sociais em tempos de ajuste”: síntese do Coletivo de Conjuntura

    “Direitos sociais em tempos de ajuste”: síntese do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

     

         A segunda mesa da reunião do Coletivo de Conjuntura, que ocorreu na tarde do dia 20 de junho, foi dedicada ao tema “Direitos sociais em tempos de ajuste” e contou com a participação de Paulo Schier (Unibrasil/PR), Denise Lobato Gentil (IE-UFRJ), Bernadete Menezes (Intersindical), Eduardo Fagnani (IE-Unicamp) e a mediação de Gilberto Maringoni, coordenador da atividade.

         Iniciando o debate, Paulo Schier alertou que a leitura que faria seria diferente daquela realizada na mesa da manhã (veja a síntese do debate aqui) em relação às perspectivas jurídicas da nossa Constituição e do próprio Direito, uma vez que não se pode perder de vista que o Direito “é um espaço de luta, tanto no que diz respeito ao reconhecimento de direitos quanto à sua efetivação”. Sobre a Constituição de 1988, o professor ressaltou seu caráter “esquizofrênico”, uma vez que ela protege um grande número de direitos sociais ao mesmo tempo que também garante fundamentos orientados pelos valores da livre iniciativa. “Ela não é uma Constituição liberal, mas ao reconhecer a propriedade privada e ao atribuir à propriedade privada uma função social, ela está de certa forma assumindo um certo modelo de Estado Social quando ela se projeta para um modelo de capitalismo, que não é qualquer modelo de capitalismo”.

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         Nós temos duas Constituições, afirmou Paulo Schier, sendo aquela que declara os seus objetivos sociais mas, por outro lado, a que instaura “a organização institucional que parte da questão da organização fiscal, orçamentária e até mesmo a organização política do Estado, e que desmente esse comprometimento social”. E esse conflito acaba por ser um empecilho à efetivação dos direitos sociais existentes nela mesma, levando à “judicialização dos direitos sociais”, já que o Judiciário é instado a posicionar-se sobre a não-efetivação de determinados direitos que deveriam ser garantidos. Esse processo acaba por “elitizar” os direitos sociais porque, uma vez judicializados, acabam se efetivando individualmente para aquele que consegue determinada liminar, por exemplo, retirando verba que deveria auxiliar à universalização destes direitos. Citando pesquisas realizadas, Paulo Schier afirmou que na maior parte das demandas judiciais por direitos sociais há um corte sócio-econômico claro: elas se concentram em fatias da população mais abastadas e nos grandes centros urbanos.

         A proposta de emenda constitucional 241/2016, que traz o chamado “novo regime fiscal brasileiro”, e que praticamente congela o orçamento por 20 anos, tende a dificultar o processo de efetivação dos direitos sociais previstos na Constituição, na visão do professor, causando um “retrocesso em termos de direitos sociais no campo de políticas públicas”. O combate à não aprovação dessa PEC deve ser prioritário na luta da esquerda, porque “nós não podemos retroceder em termos de políticas públicas”, concluiu Paulo Schier.

         A atividade teve sequência com a participação de Denise Gentil, que informou que, a partir e 2011, houve um recuo planejado da intervenção estatal na economia, dando um maior espaço para o capital privado e havendo uma contenção do investimento público. Nos cinco anos do governo Dilma, em três houve uma taxa de crescimento negativo do investimento público, o que “representou um recuo enorme do Estado, o que puxa o investimento agregado (a soma dos investimentos públicos e privados) para baixo”. A professora lembrou ainda que no governo Dilma “o processo de privatização de infraestrutura foi brutal”, incluindo portos, aeroportos rodovias e o campo de Libra do pré-sal.
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         Na área de saúde a privatização também foi intensa, concretizada por meio das deduções e isenções oferecidas pelo Estado tanto para pessoas físicas quanto jurídicas. “Esses recursos que o governo abre mão do setor de saúde poderiam ser canalizados para o SUS”, e continuou, “a gente tira recursos que poderiam estar no setor de saúde pública e injeta no privado. Nós sustemos os planos de saúde”. O montante de desoneração somente no setor de saúde se intensificou a partir de 2011, quando foram na casa de R$ 13 bilhões, passando para R$19 bi em 2012, R$ 20 bi em 2013, R$ 23 bi em 2014 e alcançando a casa dos R$ 25 bilhões em 2015. “Mas o fato é o seguinte: quando você sucateia o setor de saúde, quando você nega à saúde pública num só ano R$ 25 bilhões, e deixa a população à míngua, você está dizendo o quê àquela população? Vá se socorrer no setor privado de saúde…”. E, para Denise Gentil, o mesmo processo acontece no setor da previdência pública: “a reforma da previdência não é um caso isolado, ela faz parte de um contexto de privatização e financeirização que vem sendo construído há um certo tempo e que se intensificou a partir de 2011”.

         O governo alardeia que há um déficit de R$ 85 bilhões de reais (2015), e “o tempo todo falando isso, as pessoas acreditam, não há quem ignore: as pessoas do governo acreditam, meus colegas da universidade, economistas, acreditam, o ser humano comum, que não entende nada de previdência, acredita nisso, porque é dito de uma forma tão massacrante que vira uma verdade insofismável”. E esse discurso acaba por estimular as pessoas a procurarem uma previdência complementar em algum banco, privado ou público. “Você compra um plano privado de saúde, você compra um plano privado de previdência… Assim, a renda das pessoas vai diminuindo cada vez mais. E ao invés do Estado ser o provedor de bens e de serviços públicos, que complementam a renda do trabalhador, o Estado desloca a renda dos cidadãos para os bancos”.

         Denise Gentil informou que essa dinâmica está sendo estudada atualmente por um coletivo de pesquisadores da UFRJ, que defendem a tese de que mesmo as políticas sociais – como a bolsa família – estão servindo de “colateral” (garantia) para a tomada de empréstimos nos bancos. “As pessoas hoje estão completamente endividadas, principalmente os funcionários públicos e os aposentados, que recebem crédito consignado, para sua própria sobrevivência”, uma vez que os serviços públicos estão completamente sucateados e há a necessidade de se recorrer à iniciativa privada para ter aquilo que deveria ser garantido pelo Estado.

         Encerrando, a pesquisadora revelou o tamanho das desonerações tributárias promovidas pelo governo, que somavam R$ 201 bilhões em 2011, R$ 227 bi em 2012 e R$ 282 bi em 2015 em valores atuais, e desses R$ 282 bilhões, R$ 157 bi foram em renúncias de receitas que iriam para a Seguridade Social, e sem a exigência de nenhuma contrapartida. E provocou: “vocês acham que é minimamente razoável um governo que abre mão deste patamar estratosférico de receitas pedir para ajustar do lado dos custos com reformas da Seguridade Social que vão punir a renda dos trabalhadores?”. E prosseguiu, lembrando do gasto do governo com os juros dos títulos da dívida, que em 2015 foi na casa de R$ 501 bilhões, beneficiando somente 70 mil pessoas, enquanto que todos os gastos com a Seguridade Social foram de R$ 380 bilhões, e beneficiou 28 milhões de famílias: “e o governo quer que a gente entenda que a reforma da hora é a da previdência, e não a da política monetária? Tá me tirando, né?”. Parafraseando o profeta Gentileza, que dizia que “gentileza gera gentileza”, Denise Gentil atestou que, no “no campo político, gentileza não gera gentileza. Toda essa gentileza do governo gerou o impeachment”.
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         A mesa teve sequência com a intervenção de Bernadete Menezes, da Intersindical, para quem “os direitos trabalhistas estão vinculados diretamente com a correlação de força das classes”, lembrando o contexto de ascensão da luta de classes no início do século XX e suas consequências na criação de leis trabalhistas, no Brasil e o mundo. “A CLT não é só um produto de Vargas”, disse, afirmando que não se pode esquecer das fortes mobilizações das camadas trabalhadoras no país nas décadas que antecederam sua promulgação. Mesmo as garantias previstas na Constituição de 1988 também são conquistas oriundas das lutas travadas durante a década de 1980 no país que, a despeito do contexto internacional de avanço do neoliberalismo, com figuras como Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Reino Unido), representou ao Brasil o momento de reorganização da classe trabalhadora e o fortalecimento das entidades sindicais, havendo, inclusive, a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT).

         Entretanto, Bernadete Menezes alerta que vivemos um período de perda de direitos trabalhistas, relacionado à fragmentação e desarticulação das organizações que outrora foram fundamentais para conquistá-los. “Esse processo é global. Quem fica atrás com a sua mão de obra ‘cara’ está perdendo a disputa internacional. Há uma verdadeira corrida dos governos para atacar os direitos da classe trabalhadora, para diminuir o chamado ‘custo’ de cada país (‘custo Brasil’, ‘custo França’, ‘custo Espanha’ etc.) E em geral todos entram com a reforma da previdência, o aumento da jornada de trabalho, a diminuição do valor da hora-extra e do seguro-desemprego”.

         Sobre os desafios colocados pela atual conjuntura, Bernadete conclui que “nós estamos construindo um novo espaço, um novo momento de consolidação de frentes, porque o que construímos no passado está fragmentado. E nós estamos tentando à duras custas costurar novos espaços de luta que unifiquem a classe”, inclusive sendo necessário esquecer as fórmulas que cumpriram sua função histórica mas que se mostram insuficientes na atual conjuntura.

         A última intervenção da mesa coube a Eduardo Fagnani, já iniciando com o diagnóstico de que o que está em jogo atualmente no Brasil é um processo de radicalização do projeto liberal, tanto no plano social quanto econômico: “o golpe é uma oportunidade que os detentores da riqueza estão criando para implementar no país um projeto que eles tentam há mais de 40 anos. E por que uma oportunidade? Porque é algo que você dificilmente faria com o voto popular”, e complementou dizendo que com apenas uma canetada foram destruídos 20 anos de políticas voltadas aos direitos humanos, além daquelas voltadas à Cultura, à Ciência e Tecnologia e ao Desenvolvimento Agrário.

         No tocante ao âmbito econômico, Fagnani reafirmou que o objetivo do atual governo interino é o de restabelecer o tripé macroeconômico “meta de inflação”, “câmbio flutuante” e “superávit primário”. Entretanto, este modelo está sendo questionado até mesmo pelo Fundo Monetário Internacional, que em recentes publicações apontou a deficiência deste modelo para economias emergentes. “Desde a crise de 2008, nenhum país no mundo adota este tripé macroeconômico, e, se adota, o flexibiliza”, afirmou o pesquisador.
    Fagnani apontou como preocupantes as intenções de autonomia do Banco Central, como também as que estabelecem autoridades fiscais independentes. “Se o câmbio é flutuante, se a política monetária é definida por meia dúzia de burocratas e a política fiscal é definida por outra meia dúzia de burocratas, como nós vamos conseguir fazer política econômica?”, questionou. Outra iniciativa prejudicial na visão do pesquisador é a PEC que cria o chamado “orçamento de base zero” que, na prática, desobriga qualquer tipo de vinculação orçamentária como as que estão presentes atualmente na Constituição e que abarcam as áreas sociais como saúde, seguridade e educação. “Por que você vincula constitucionalmente recursos para as áreas sociais? Porque se você não vincular, vai tudo para custear a dívida financeira. É simples assim”, afirmou, e prosseguiu dizendo que “o que está acontecendo agora é a destruição de todas as pontes, todos os mecanismos monetários, fiscais, tributários, enfim, tudo que se pode imaginar para que se tenha uma sociedade civilizada no futuro”.

         Sobre as tarefas colocadas no presente, Eduardo Fagnani também reafirmou a necessidade de união de todos os campos políticos que tenham uma visão diferente de projeto de país desta que agora está sendo explicitada, e concluiu dizendo que “é uma luta muito difícil, muito angustiante, porque a correlação de força é muito desfavorável”.

         Seguindo a dinâmica das reuniões do Coletivo de Conjuntura, a palavra foi aberta aos participantes. Lembramos que as sessões do Coletivo ocorrem a cada 45 dias e são abertas a todos os interessados. Em breve, a Fundação Lauro Campos disponibilizará os registros completos das atividades e, para as próximas, fará a transmissão ao vivo pela internet.

  • “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

     

         No dia 20/06 ocorreu mais uma reunião do Coletivo de Conjuntura da Fundação Lauro Campos, com mesas pela manhã e à tarde. Coordenado por Gilberto Maringoni, foi a primeira atividade realizada na nova sede da fundação após a inauguração, ocorrida na sexta-feira (17/06).

         Pela manhã, o tema foi “A politização do Judiciário”. Compuseram a mesa Eloísa Machado de Almeida (FGV-SP), Silvio Almeida (Mackenzie) e Alysson Mascaro (USP).

       A professora de direito da Fundação Getúlio Vargas, Eloísa Machado de Almeida, centrou sua fala na caracterização e atuações do Supremo Tribunal Federal para avançar no debate sobre o tema proposto, buscando uma “análise mais pragmática da politização do judiciário, que vem se acentuado nesses últimos oito meses”.

          O Supremo Tribunal Federal, como instância máxima do Poder Judiciário, tem a prerrogativa de decidir sobre o que é ou não é constitucional, inclusive negando qualquer alteração na Constituição que, por sua leitura, possa ferir seus princípios. Se isto, nos últimos anos, representou o avanço de algumas pautas, como a permissão para o aborto do feto anencéfalo, o casamento e a união estável homoafetivas, entre outras pautas (em ações denominadas como contra-majoritária – já que não passariam pelo sistema político conservador como o nosso) por outro lado, ressaltou a pesquisadora, há a necessidade de se refletir sobre essa forma de atuação do STF.

     

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    (Parcela dos participantes da reunião do Coletivo de Conjuntura)

           “Se isto pode ser visto com uma função positiva para o país, por outro lado o tribunal vem sendo usado, desde 1988, como um grande tutor do sistema político”, atestou Eloísa. Os partidos perdedores do debate político acabam levando suas questões para o Judiciário, se valendo deste para mudar a lógica das votações, mesmo em questões que pertencem exclusivamente à esfera política. “Todas as reformas políticas, por exemplo, foram corroboradas pelo Judiciário. E aqui eu posso falar de ‘verticalização’, da proibição da doação empresarial para campanhas e também a ação que permitiu a existência do PSOL, que é a ação sobre a ‘cláusula de barreira’”, e continuou “o que é relevante nesse espaço de debate da Fundação, de formação, é refletir o quanto que isso é favorável a um partido fazer, ou seja, não fazer de uma forma ingênua, porque quando você desloca o tema que originariamente deveria se dar nas arenas do sistema político para as arenas do Judiciário você está certamente alterando a lógica de se tratar determinada decisão”, o que pode acarretar num processo de deslegitimação de seu próprio espaço de atuação, que é o espaço político, como se dissesse que “eu prefiro que onze juízes decidam do que eu comprar essa briga na arena política”.

         A grande participação do Judiciário no sistema político não é uma característica brasileira, sendo comum a provocação de Cortes Constitucionais por partidos em países que possuem uma “Constituição tão audaciosa”, informou, o que muitas vezes contribui para que o sistema político, sobretudo o Poder Legislativo, caia em descrença frente ao conjunto da população: “quando analisamos os índices de confiança do Judiciário, é impressionante que a população acaba confiando mais no Judiciário do que no sistema político; o que não faz nenhum sentido, porque temos um judiciário que atua de maneira seletiva, que serve a pessoas e a grupos muito específicos, sobretudo aos interesses financeiros. E isso é um grande problema do ponto de vista democrático, porque a população confia em um Poder que é pouco transparente, seletivo e não representativo”, alertou a professora.

         Do ponto de vista da seletividade, por exemplo, Eloísa foi tachativa ao afirmar que no Brasil as violações aos Direitos Humanos só se perpetuam porque o Judiciário participa para perpetuá-las. “Nós temos ainda um país misógino, racista, que mata as pessoas, que tortura os presos porque o Judiciário é o grande poder que renova e permite que essas violações continuem. Por isso é importante pensar para que serve o Judiciário no Brasil ao invés de dotar nossas esperanças em um Poder tão seletivo e pouco transparente”.

     

    coletivo 2

    (Renato Roseno, deputado estadual pelo PSOL-CE, faz seu questionamento à mesa)

       O debate teve sequência com a intervenção de Sílvio Almeida, professor do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama, que logo de início questionou: “quando é que o Judiciário não foi politizado?”. Só é possível começar a falar em Poder Judiciário a partir das revoluções liberais que começam a fazer a separação entre Estado e Sociedade Civil. Assim, o Judiciário “sempre foi o fiador da ordem liberal”, e para entendê-lo é fundamental compreender três aspectos: como o liberalismo e o judiciário estão conectados de uma maneira que não permite compreender um sem compreender o outro; como a atuação do Poder Judiciário e as suas mudanças devem ser compreendidas por meio das transformações das atividades econômicas historicamente; e ver que os juízes são o produto mais bem acabado daquilo que eles mesmos dizem conter: da ideologia, e da ideologia liberal, da ideologia do capital – comprometendo seu discurso de imparcialidade.

       “Não existe golpe de Estado sem a participação do Judiciário, historicamente não existe isso”, lembrou o professor: “o Poder Judiciário sempre chancelou todos os golpes de Estado que ocorreram, inclusive aqui no Brasil”.

       Citando três exemplos históricos ocorridos no Judiciário dos Estados Unidos, Sílvio de Almeida lembrou de como essas transformações foram fundamentais para garantir a estabilidade política, lembrando que por estabilidade política deve ser entendido o bom funcionamento da ordem liberal. No caso brasileiro, voltando a Era Vargas, o professor lembrou da sua medida de aposentar compulsoriamente 100 juízes, além de reduzir o poder do Supremo Tribunal Federal.

       Sobre a chamada “independência do Judiciário”, Sílvio de Almeida afirma que essa bandeira esconde a orientação de que este Poder deve ser “independente em relação ao povo, e não às outras forças que atuam fortemente sobre ele”. E, por fim, atestou que “é uma ilusão liberal acreditar no Judiciário” e, assim, é necessário avançar “num debate político que estabeleça uma conexão com as questões do povo e com os anseios populares.”

     

    coletivo 3

     (Armando Boito, professor da Unicamp, também participou do debate)

          Encerrando a mesa da manhã, Alysson Mascaro, professor de Direito da USP, foi claro ao dizer que não é a força que garante a propriedade, mas o Direito: “o mundo do Direito é exatamente o mundo que garante o capital e a propriedade privada, e ele só serve para isto. E como só serve para isto, e isto é chocante, não pode nem sequer ser contado assim, também não pode ficar nisto que é o fundamental: ele tem que ser salpicado de coisas que pareçam ser o contrário”.

         O professor apontou o que, na visão dele, seria uma contradição da esquerda em “defender mais direitos e nenhum retrocesso”, citando as bandeiras da preservação da CLT, criada na Era Vargas, e do FGTS, instituído durante o Regime Militar. A contradição residiria no fator de que “se nós defendermos os direitos, nós somos obrigados a defender a ordem”. E continuou, referindo-se ao PSOL, pedindo para que “um partido que tem socialismo no seu nome, precisa desta reflexão de que o Direito é um horror, e não que a atual fase do Direito é um horror”; e por isso que vivemos num momento no qual devemos “dobrar a aposta em uma luta política de esquerda: nossa luta é contra o capital e contra a ordem”, e de que “não devemos sacralizar o Estado de Direito”, já que o Estado é a forma do capital.

         Encerrando, Alysson afirmou que vivemos numa sociedade na qual o direito é hiperlouvado e a política hipercombatida, porque o direito deixa de permitir a existência de uma luta aberta e passa a permitir a existência de uma luta modulada. “E isto resultou numa geração de juristas, que é a geração que temos hoje, de pessoas absurdamente mal formadas, lixos intelectuais, mas que sabem muito bem procedimentos jurídicos mas são burríssimas em termos de horizontes políticos”. E, concluindo, afirmou que nós não devemos opor ao “direito” outro “direito”, ou “ao fim de tais direito, mais direitos. Nós devemos opor o contraste: o direito é o que é por causa do capital, então a nossa luta é contra o capital”. E assim, portanto, “a nossa luta tática do presente é desmontar este horror liberal que fala que é imparcial, mas imparcial nunca foi, nunca é e nunca será. Esta é a fórmula pela qual nós temos a pedra na mão no dia de hoje”.

         Seguindo a dinâmica das reuniões do Coletivo de Conjuntura, a palavra foi aberta aos participantes. Lembramos que as sessões do Coletivo ocorrem a cada 45 dias e são abertas a todos os interessados. Em breve, a Fundação Lauro Campos disponibilizará os registros completos das atividades e, para as próximas, fará a transmissão ao vivo pela internet.

     

     

  • “Todos os argumentos em favor da reforma da previdência visam sua privatização e financeirização”

    “Todos os argumentos em favor da reforma da previdência visam sua privatização e financeirização”

    Denise Gentil, doutora em economia pela UFRJ
    Denise Gentil, doutora em economia pela UFRJ

    A pauta política do ano começa a esquentar e um dos principais tópicos em discussão é a Reforma da Previdência, sempre bombardeada pelos setores corporativos como deficitária – sob benção do próprio governo. Para discutir mais esse tema repleto de informações dadas pela metade, entrevistamos Denise Gentil, economista e pesquisadora, que acabou de concluir sua tese de doutorado sobre o que considera o falso déficit da Previdência.

    “A reforma é uma completa insensatez. O gasto com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas”, afirmou, em tom introdutório.

    A seguir, Denise mostra em números como a seguridade social brasileira tem contas sustentáveis, mas, como em qualquer setor da economia, está colocada a serviço da manutenção das margens de lucro do empresariado, o que obviamente se oculta dos debates midiáticos.

    “São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público. Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita que não são computadas nesse cálculo, como a COFINS, a CSLL e a receita de loterias. Quando todas as receitas são computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015”, expôs.

    Além de desconstruir a argumentação “liberal-privatizante”, como denomina a proposta, Denise Gentil propõe outros pontos de vista em questões como idade mínima de aposentadora e a própria noção de solidariedade da seguridade social, além de defender fórmulas variadas para a aposentadoria dos trabalhadores de diversas regiões e características do país.

    A entrevista completa com Denise Gentil pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Como enxerga a volta da proposta de Reforma da Previdência neste início de ano, em meio a uma grave crise econômica?

    Denise Gentil: É uma completa insensatez. O gasto com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas.

    O governo Dilma, no entanto, mudou completamente o rumo da política macroeconômica e tem enfrentado muito mal a crise externa. A economia brasileira tem sido desativada de seus mecanismos de crescimento de forma programada. Houve redução do crédito, queda brutal do investimento público, elevação da taxa de juros, menor aporte de recurso para as estatais (principalmente Petrobrás), redução inclusive do gasto social, enfim, um pacote recessivo que reforça as consequências nefastas da crise mundial.

    Para culminar, o governo, na angústia de ser solícito e atender às pressões do sistema financeiro, achando que, com isso, vai se equilibrar minimamente no jogo de poder onde tem perdido sistematicamente, lança como estratégia política a Reforma da Previdência. Considero um suicídio político. O governo atira contra sua base eleitoral correndo o risco de perder apoio onde ainda lhe resta algum.

    Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos dominantes em favor dessa reforma previdenciária?

    Denise Gentil: São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público. O orçamento público se transformou num instrumento a serviço dos interesses do sistema financeiro. Temos a mais elevada taxa de juros do mundo e a dívida pública é o mecanismo mais brutal de apropriação privada dos recursos públicos. Em lugar nenhum há uma transferência tão violentamente explícita de renda aos bancos, fundos de investimento e fundos de pensão como no Brasil.

    É um escândalo que nosso país tenha gasto R$501 bilhões com juros no ano de 2015, justamente num ano em que o orçamento público deveria estar a serviço da recuperação da economia. São 8,5% do PIB destinados a uma classe de rentistas que apenas acumula riqueza sem nada devolver à sociedade. Não investe, consome pouco e remete renda ao exterior.

    Mas os bancos não querem apenas os juros da dívida. Na área da saúde, o sucateamento do SUS empurra as pessoas para os planos de saúde privados ofertados também pelos bancos. Na área de educação, o patrocínio do governo às empresas privadas é de enorme generosidade. Agora, como se ainda não fosse o suficiente, a base da proposta de Reforma da Previdência visa dificultar o acesso a direitos sociais e comprimir o valor dos benefícios. O governo alardeia que a previdência pública não tem sustentação financeira. Usa a mídia para divulgar amplamente essa idéia como se fosse uma verdade inabalável. O resultado é que está empurrando as pessoas para os planos de previdência privada complementar o que os bancos oferecem. É mais do mesmo.

    É um amplo processo orquestrado de privatização, que o governo Dilma está levando adiante de forma muito mais radical. É preciso entender a reforma da previdência não como uma necessidade conjuntural de ajuste fiscal ou de enfrentamento de uma trajetória demográfica, mas antes como um projeto do mundo das finanças. O ajuste fiscal é apenas um pretexto para justificar os interesses ocultos por trás desse grande acordo entre Estado e o poder financeiro.

    Correio da Cidadania: O que você comenta a respeito da ideia do “déficit da previdência”, tão propalada pelos veículos de comunicação?

    Denise Gentil: Tenho defendido a ideia de que o cálculo do déficit previdenciário não é correto, porque não está de acordo com os preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de seguridade social. O cálculo do resultado previdenciário que tem sido oficialmente divulgado pelo governo leva em consideração apenas a receita de contribuição previdenciária ao INSS dos empregados, empregadores e contribuintes individuais, diminuindo dessa única fonte de receita o valor dos gastos com benefícios previdenciários. O resultado dá em déficit.

    Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos de prognósticos (loterias). O artigo 195 da Constituição Federal assegura que essas receitas financiam a Previdência, a Saúde e a Assistência Social, mas não são levadas em consideração. Quando todas as receitas de contribuições sociais são computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015.

    A pesquisa que realizei leva em conta todos os gastos com benefícios, com pessoal e custeio dos ministérios (Saúde, Assistência Social e Previdência). Essa informação favorável não é repassada para a população, que fica com a noção de que o sistema previdenciário brasileiro enfrenta uma crise de grandes proporções e necessita de reforma urgentemente. O cálculo é propositalmente feito para difundir um suposto déficit e gerar o descrédito do sistema público de Previdência para se conseguir a aprovação de reformas que reduzem benefícios.

    Essas ideias foram tão reiteradamente repetidas que o cidadão comum, as pessoas do meio acadêmico, os homens de negócios e a burocracia do governo passaram a incorporá-las como se fossem verdades definitivas. A ANFIP faz estudos anuais, com elevado grau de detalhamento, divulgando o resultado superavitário da Seguridade Social há mais de vinte anos. Nunca vi uma matéria na televisão que propagasse os estudos da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) que, aliás, são de alto nível.

    Há um outro ponto que gostaria de destacar. O governo Dilma privilegiou desonerações tributárias em larga escala como um dos eixos principais de estímulo ao crescimento e, em menor escala, à recuperação da indústria, a despeito da conhecida limitação desse instrumento para tal fim. A renúncia de receitas em 2014 alcançou a cifra de R$253 bilhões ou 5% do PIB, dos quais R$136 bilhões (2,6% do PIB) pertenciam à Seguridade Social.

    Em 2015, a desoneração total chegou a R$282 bilhões e representou um valor maior do que a soma de tudo o que foi gasto, em 2014, em Saúde (R$93 bilhões), Educação (R$93,9 bilhões), Assistência Social (R$71 bilhões), Transporte (R$13,8 bilhões) e Ciência e Tecnologia (R$6,1 bilhões) pelo governo federal. Em 2015, do total do valor das renúncias de receitas tributárias, 55% pertenciam à Seguridade Social, isto é, R$157,6 bilhões.

    Não é aceitável que o governo conceda esse patamar estratosférico de desonerações e agora proponha cortar gastos. Não é minimamente razoável que o governo force o entendimento de que faltam recursos para manter o sistema de proteção social quando abre mão de montantes gigantescos de receita a favor da margem de lucro das empresas.

    Correio da Cidadania: O que pensa da proposta de idade mínima pra aposentadoria? Qual fórmula te parece mais justa nesse sentido?

    Denise Gentil: Não sou favorável ao estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição. Quem se aposenta nessas condições normalmente começou a trabalhar muito cedo e, no caso dos que têm menor renda, sacrifica seus estudos e sua escolaridade fica prejudicada. Por isso tais pessoas ganham salários menores, têm saúde mais precária e vivem menos. Estabelecer uma idade mais elevada para a aposentadoria seria punitivo para os que começaram a trabalhar muito cedo.

    Normalmente, as pessoas que se aposentam por tempo de contribuição formam dois tipos de grupo. Alguns acabam voltando a trabalhar depois de aposentados e, portanto, voltam a contribuir para o INSS; estes, não são um peso para o orçamento da União, pelo contrário, gerarão mais arrecadação do que será gasto com suas aposentadorias. Outros que se aposentam mais cedo, por tempo de contribuição, o fazem compulsoriamente, porque não conseguem manter seus empregos, na maioria das vezes por defasagem entre os avanços tecnológicos e sua formação ultrapassada, ou por problemas de saúde devido ao aparecimento de doenças crônicas que certos ofícios normalmente ocasionam, ou ainda por desemprego causado por períodos recessivos. Estes aposentados já são punidos (com redução do valor da aposentadoria) pelo fator previdenciário.

    As perdas de renda são grandes principalmente para as mulheres. Tratar a todos com se fossem iguais, como se o mercado de trabalho fosse homogêneo e como se tudo ocorresse da mesma forma na região Norte e Sudeste, é injusto. Mas o fundamental em tudo isso é que forçar a aposentadoria para uma idade mais alta não implica necessariamente em manter o trabalhador contribuindo para a previdência, porque poucos vão conseguir ter um posto de trabalho com o avanço da idade. Pode, ao contrário, significar que eles perderão a condição de segurados, principalmente em recessões prolongadas.

    Correio da Cidadania: Você acredita na necessidade de alguma reforma da Previdência? De que tipo?

    Denise Gentil: A reforma realmente necessária teria que permitir a aposentadoria de trabalhadores urbanos mais pobres e informais com regras semelhantes às dos rurais. Aqueles que não conseguiram um emprego formal no meio urbano durante sua vida ativa deveriam se aposentar com um salário mínimo, comprovando o tempo de trabalho. A reforma deveria ser inclusiva, criando mecanismos de proteção mais amplos e não afastando as pessoas da previdência pública com regras duras e renda baixa para os aposentados.

    Deveríamos caminhar no rumo de um sistema previdenciário para todos, inclusive para os que não contribuíram, mas trabalharam a vida toda. Estes necessitam da aposentadoria na velhice e poderiam receber o piso básico simplesmente porque são cidadãos brasileiros e não podem ser desamparados. Se não contribuíram diretamente para a previdência, pagaram impostos indiretamente, principalmente aqueles embutidos nos preços.

    Nós precisamos de uma reforma edificante, que traga mecanismos compensatórios para a exclusão do mercado de trabalho, que discuta uma agenda positiva com a sociedade, que proponha laços de solidariedades entre as gerações e entre as classes e que fortaleça a cidadania.

    Correio da Cidadania: Quais seriam as principais consequências na vida da população, caso se aprove a reforma agora discussão?

    Denise Gentil: Ainda não se sabe exatamente a amplitude que essa reforma terá. Quando o debate começa no fórum da previdência e as propostas vão surgindo, as coisas vão ficando perigosas porque as disputas se acirram e a atuação dos lobbies fica muito mais forte. Haverá também a enorme pressão política dos meios de comunicação. As forças conservadoras da burocracia do governo emergem, trazendo propostas de reforma draconianas. O desfecho é pouco previsível. Para a classe trabalhadora isso é um pesadelo, um tormento que se repete incessantemente.

    O resultado que se quer alcançar com reformas de corte liberal-privatizante é a redução da renda das aposentadorias, do piso e do teto, e ao mesmo tempo elevar o grau de dificuldade para as pessoas conseguirem se aposentar para que elas passem o menor tempo possível recebendo uma renda do governo. Quanto menor o período de aposentadoria, isto é, quanto mais próximo do fim da vida, melhor. Essa é a estratégia. Com benefícios menores, as pessoas que tiverem condições de pagar serão empurradas para os planos de previdência complementar num banco privado, porque a renda que receberão do sistema público não garantirá a sobrevivência em condições semelhantes às da fase ativa.

    A previdência pública tende a se responsabilizar apenas por um piso básico de valor mínimo para atender precariamente os mais pobres. Assim, a tendência é de transferir a responsabilidade da renda futura para os indivíduos e famílias, retirando cada vez mais o amparo do Estado. O sistema previdenciário vai ampliar as assimetrias e exclusões existentes no mercado de trabalho e a pobreza entre os idosos voltará a crescer. O governo Dilma não consegue sustentar os avanços sociais conquistados na primeira década deste século. A impressão que se tem é que tudo não para de desmoronar.

    Correio da Cidadania: Em sua visão, quais seriam os resultados macroeconômicos da reforma previdenciária, tal como proposta?

    Denise Gentil: O resultado político é desastroso, mas já que a pergunta é sobre o efeito macroeconômico, talvez seja melhor começar por aí. O resultado econômico de se fazer redução de gasto público, aliás, de qualquer tipo de gasto, sempre será um menor crescimento. E crescimento mais baixo significa queda da taxa de emprego, dos lucros e salários e, por tudo isso, menor será a arrecadação de tributos. Fazer ajuste fiscal agrava o resultado fiscal. Reduzir gasto social é condenar a economia à recessão, particularmente em momentos de crise externa.

    O governo diz que a redução do gasto previdenciário vai abrir espaço para o investimento público. Isso é uma grande bobagem. Redução de gasto em governos muito conservadores, como é o caso do governo Dilma, sempre significará elevação de superávit primário e não maior investimento. Além disso, um governo que realmente deseje realizar investimentos de grande porte não usa a arrecadação dos tributos para esse fim, porque nunca seriam suficientes. Para se fazer investimentos expressivos o governo tem de tomar empréstimos, lançar títulos públicos no mercado, emitir moeda e, sobretudo, fazer grandes acordos para coordenar um bloco de interesses, nacionais e internacionais, numa determinada direção.

    Essa fórmula é mais velha que a roda no mundo das finanças públicas. Só tem dinheiro para fazer investimentos de grande impacto quem tem um projeto de inserção internacional. País nenhum na história do capitalismo mundial cresceu economizando migalhas de seus recursos internos, mas realizando grandes projetos estratégicos que implicam em elevar a dívida pública. Portanto, não será “economizando” com gastos sociais que o governo arranjará uma fonte de recursos para ampliar os investimentos.

    Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader é economista e editora do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

  • Luta contra aumento das passagens em SP mostra o que virá em 2016

    Luta contra aumento das passagens em SP mostra o que virá em 2016

    choqueNão importa por onde comecemos a falar sobre as manifestações contra os aumentos da tarifa do transporte público de São Paulo; elas trazem características que provavelmente estarão presentes em todas as lutas sociais travadas nas ruas neste ano de 2016. E por isso é essencial entender o que está acontecendo, despindo-se de ideias pré-concebidas sobre os atores em questão. Podemos começar falando sobre a cobertura da imprensa, ou sobre a violência policial. Sobre a forma como se organiza o movimento, ou sobre a tática black bloc. Ou até mesmo sobre a ausência de espaços de diálogo entre o poder público e a sociedade. Todos são ingredientes já conhecidos, no senso comum, há pelo menos três anos.

    O que temos de novo é o aprimoramento da repressão. O chacoalho que 2013 causou nas autoridades levou a uma escalada repressiva jamais vista. Um 2014 de Copa do Mundo e um 2015 de crise e ajuste fiscal também serviram para as aulas práticas dos agentes da “ordem”. E por falar em ajuste fiscal e crise econômica, o Movimento Passe Livre – responsável por convocar os atos – fez um levantamento de gastos em suas páginas da internet, no qual chegou à conclusão de que a crise existe em diversos setores, menos nos recursos da repressão.

    Recentemente, foram comprados 6 blindados israelenses Plasan Sasa pela PM paulista. Segundo informações deste levantamento – feito a partir de dados divulgados por Metrô, SPtrans e imprensa – os veículos custaram 30 milhões de reais. Com essa verba seria possível comprar 100 ônibus, 272 ambulâncias, ou até mesmo financiar a tarifa zero por cerca de três dias para os 4,6 milhões de passageiros diários do metrô de São Paulo.

    O aumento entraria em vigor no sábado, dia 9 de janeiro. Vamos aos fatos.

    Primeiro ato: o caos

    Na sexta-feira, 8 de janeiro, o primeiro ato se concentrou no Theatro Municipal, a partir das 17h. Cerca de 6 mil pessoas saíram de lá às seis e meia e marcharam em círculos, contornando o próprio Theatro Municipal e o Largo do Payssandu antes de ganharem o Vale do Anhangabaú. Enquanto passavam pelo Vale, a Tropa de Choque se posicionava na lateral do Terminal Bandeira, onde se encontram as avenidas 9 de Julho e 23 de Maio.

    A multidão cruzou o Viaduto do Chá por baixo e buscou o acesso à avenida 23 de Maio. A tática do Movimento Passe Livre é exatamente essa. Trancar as ruas para chamar atenção à pauta. Concorde-se ou não, é desonesto afirmar que a ação policial foi decorrente da depredação de qualquer forma de patrimônio. O que se viu foi uma tropa de choque da polícia militar instruída a impedir a qualquer custo que a multidão trancasse a avenida 23 de Maio. E começou a chuva de bombas e balas de borracha, às 19h em ponto.

    Uma parte da multidão subiu em direção à rua Augusta, outra parte voltou na direção do Theatro, e assim toda a manifestação foi se dissipando pelo centro de São Paulo. Estava aberta a temporada de caça. Policiais rondavam ostensivamente as ruas em busca de manifestantes. Nesse momento, e não antes como insistem os grandes meios, alguns manifestantes – e nem todos mascarados – quebraram vidraças de bancos e tentaram fazer barricadas  no trajeto entre a entrada do Terminal Bandeira e a rua Martins Fontes.

    Podemos entender a atitude de diversas formas. O que esta reportagem viu foi uma reação – ainda que impensada – à repressão. Os jovens veem nos bancos um símbolo de opressão. Talvez a ação tomada no calor do momento seja questionável, mas a análise não. Basta uma breve pesquisada a respeito dos inigualáveis lucros de Itaú, Bradesco e Santander em plena crise econômica e ano de ajuste fiscal. E o recente veto da presidenta Dilma em incluir a Auditoria da Dívida Pública nos próximos planos de governo só joga água no mesmo moinho.

    O que a dívida pública tem a ver?  Tem muito a ver com isso, e que nos perdoe a presidenta, mas que pênalti perdido foi esse? Já funcionou no Equador, por exemplo, nosso vizinho.

    Relatos de agressões, abusos de autoridade e práticas questionáveis por parte da repressão começaram a pipocar nas redes sociais. Um deles, esta reportagem teve o desprazer de presenciar. A prisão dos quatro garotos, filmada também pelos Jornalistas Livres, na qual uma série de flagrantes foi forjada para justificar a ação. Os garotos foram conduzidos à base policial localizada na praça Roosevelt sob aplausos de um casal que frequentava a praça. Skatistas solidários aos garotos fizeram coro contrário, em repúdio aos aplausos.

    Na segunda-feira seguinte, o MPL fez o chamado “trancamento de ruas”. Trancou a Faria Lima, na altura do Largo Batata como uma prévia da manifestação do dia seguinte. Também recebemos informações de trancamentos na Lapa. Na segunda-feira, 18 de janeiro, véspera do quarto ato, destacou-se o trancamento do terminal Parque Dom Pedro, o maior terminal de ônibus urbano da América Latina.

    Segundo ato: a barbárie

    O segundo ato contra o aumento das tarifas não começou às 17h, na Praça do Ciclista, como previa sua concentração. Diversas questões anteciparam as tensões. Um vídeo “viralizado” na internet que mostrava um policial infiltrado agredindo uma manifestante e logo sendo agredido por outros manifestantes; um enorme conflito entre poder público e movimento social a respeito do trajeto; e, para variar, a irresponsabilidade dos grandes meios de comunicação na cobertura dos fatos.

    O vídeo citado gerou revolta em setores mais conservadores da sociedade, uma vez que foi lançado em página característica. Foram feitas prisões na casa dos manifestantes que foram filmados, em ações que fugiram do padrão exigido pelos códigos de justiça brasileiros. A não presença de oficiais de justiça com mandado de prisão ou algo do gênero pode vir a caracterizar uma ação ilegal por parte dos policiais envolvidos. Por outro lado, a grande imprensa não ficou atrás. Manchetes de jornais impressos chamando os manifestantes de “mimados”, “vândalos”, entre outros jargões, fez lembrar a mesma mídia de antes do grande massacre de 13 de junho de 2013, no qual muitos profissionais da imprensa foram atacados em nome de uma suposta “retomada” da Paulista, bradada no editorial de um desses famosos jornais.

    Outra questão levantada pela imprensa corporativa foi a de questionar a pauta de modo superficial. “Mas como se revoltam por uma aumento de 30 centavos e não dizem nada sobre os bilhões roubados?” Sejamos francos e menos canalhas. É tão óbvio quanto coerente que quem se revolta com o aumento do transporte público também está revoltado com a situação de crise e corrupção como um todo. Além disso, o MPL já deixou bem claro que não tem a proposta de dirigir um movimento mais amplo, mas, sim, pautar a questão do transporte público dentro das movimentações sociais e populares, por ser uma pauta com a qual eles já possuem acúmulo de mais de dez anos de estudos e atuação.

    Mais uma questão que abalou as relações entre a multidão e o Estado foi a respeito do trajeto a ser percorrido pelo ato. Os manifestantes haviam definido em reunião prévia que iriam para o Largo da Batata, em Pinheiros. A polícia militar fazia questão de que descessem para o centro da cidade e terminassem na praça da República. A distância para ambos lugares é praticamente a mesma a partir da Praça do Ciclista; acontece que além da decisão prévia sobre o destino do ato, a polícia havia preparado uma recepção, digna de autocracia, para os manifestantes ao longo da descida da Consolação e na chegada ao centro da cidade. O clima esquentava.

    A multidão se recusou, em jogral, a seguir o trajeto determinado pela PM, que por sua vez decidiu que por isso a manifestação não poderia acontecer. Por volta das 18h30, a multidão se dirigia para a Avenida Rebouças e era barrada pela PM. Havia bloqueios feitos pelas tropas de Choque e do Braço na Consolação, no acesso da Paulista à Rebouças e na própria Paulista pouco antes da esquina com a Haddock Lobo. Em outras palavras, os pouco mais de 4 mil manifestantes estavam encurralados.

    Na esquina da Paulista com a Consolação, próximo do acesso à Doutor Arnaldo, diversos jornalistas estiveram isolados da multidão pelo cordão policial e eram impedidos de trabalhar do outro lado. Isso antes e também logo depois das 19h, quando novamente começaram as bombas. Assim como na sexta-feira anterior, a repressão foi brava, mas nesse dia podemos dizer que foi um massacre. “Foi pior do que 2013”, afirmou o fotógrafo Sérgio Silva no calor do momento, ele que sentiu na pele (e no olho) a repressão de três anos atrás.

    O saldo final foi incalculável. Esta reportagem acabou envelopada na rua Sergipe junto com grupos de manifestantes que tentavam dispersar. “Todo mundo aqui cala a boca e senta em cima da mão que eu estou mandando”, afirmou o policial do Choque, sem identificação. Muitos jovens secundaristas estavam ali, e nitidamente desesperados. Em um breve espaço de tempo, consegui sacar o cartucho de memória da câmera, substituí-lo por um vazio, e esconder o que continha as fotos do dia – não são raros os relatos de material jornalístico apagado ou apreendido em situações como essa.

    Dois estudantes secundaristas tentaram argumentar e pediram calma aos policiais, que responderam com uma prisão por desacato e um espancamento em cada um. Um colega deles afirmou que eram estudantes do Fernão Dias, segunda escola a ser ocupada no ano passado. O nível de violência na ação e na postura dos policiais chamou a atenção de um professor da FAU que também acabou envelopado: “vou escrever um pós-doutorado sobre essa linguagem violenta com um relato disto que acabou de acontecer”, declarou. Vale lembrar que o envelopamento, ou “caldeirão de Hamburgo”, é uma tática proibida e já gerou polêmicas a seu respeito em fevereiro de 2014, durante manifestação crítica à realização da Copa do Mundo da FIFA que aconteceria dali a poucos meses.

    Após o envelopamento, o jovem Peterson Marques procurou a reportagem do Correio da Cidadania. Ele havia perdido os dentes da frente por causa da agressão policial. “Eu fui ajudar as meninas que estavam apanhando e comecei a apanhar também, na cara. Só percebi que tinha perdido os dentes quando fui cuspir”, contou. Ele foi para a Santa Casa, onde recebeu atendimento. No fechamento desta matéria, a última informação que temos é de que conseguiu um dentista que se ofereceu para fazer tratamento de canal e recolocar os dentes perdidos.

    Além de Peterson, o pintor Douglas Ferreira, de 24 anos, foi atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha e correu risco de perder a visão. Apuramos que já não corre esse risco. Além dele, houve centenas de relatos de feridos dos quais o jornalista Alceu Castilho tomou nota e cujo link está disponível ao final desta reportagem.

    A libertação dos três presos, o repúdio à ação da PM e o direito à livre manifestação se juntaram ao aumento da tarifa e deram o tom do ato que se realizou dois dias depois. Em contrapartida, governo do estado e prefeitura tentaram uma anticonstitucional liminar que impedisse manifestações – especialmente as do MPL, visto que em outras manifestações o tratamento é “diferenciado” – de serem realizadas sem uma aprovação prévia do comando da polícia militar em relação ao trajeto que percorrerá. É o poder público dando cada dia mais mostras da sua incrível capacidade de diálogo.

    Terceiro ato: paz com armas, vozes cansadas

    “Por favor, não jogue bomba”, dizia a camiseta de um manifestante, ainda na concentração no Theatro Municipal, e de certa forma expressava o clima de tensão que manifestantes, imprensa e transeuntes sentiam em relação à ação policial. Desde as 14h, três antes do início da concentração, a polícia já tomava toda a região do Vale do Anhangabaú e arredores da Praça Ramos – onde fica o Theatro Municipal, local de uma das concentrações do ato deste dia. Acompanhamos esta manifestação, que foi até o vão do MASP, passando pela avenida Brigadeiro Luis Antônio. A outra concentração foi no Largo da Batata, às 17h em Pinheiros.

    Ainda no Theatro, o jogral de início do ato comemorou a soltura de três manifestantes presos nos atos anteriores, mas lembrou que ainda restavam dois. Havia uma presença mais intensa da mídia. O ato partiu no sentido da Secretária Estadual de Segurança Pública, poucas quadras de distância dali. Chegando lá, encontramos uma secretaria altamente guardada pela PM. Foi feito um jogral criticando a política de segurança e pedindo a desmilitarização da polícia e o respeito aos direitos de se manifestar. O ato seguiu sentido Brigadeiro Luis Antônio, por onde subiria até virar à direita na Paulista e encerrar em frente ao MASP, onde foi feito outro jogral.

    Não houve muitos incidentes durante o trajeto, a não ser uma bomba que estourou fora do espaço da manifestação ainda no início da subida da Brigadeiro. Segundo manifestantes que estavam próximos, policiais as atiraram na direção de moradores de rua que ali estavam. “Houve um princípio de desespero e revolta, mas o povo se segurou e estamos seguindo. Hoje está bonito”, afirmou Luis Berti, livreiro. Também foi possível presenciar um policial da Tropa do Braço dando uma cacetada em um jovem que participava do cordão de isolamento dos manifestantes. Aparentemente sem motivo.

    De qualquer maneira, é importante ressaltar mais uma vez que a presença ostensiva e explicitamente intimidadora da polícia ditou o passo tímido deste terceiro ato. Mas nem tudo foi só intimidação e provocação. Também houve vias de fato. Uma breve confusão de aproximadamente 15 minutos entre manifestantes que tentavam pular a catraca da estação Consolação, na linha verde do metrô, gerou bombas e tiros dentro da estação por parte dos agentes do Estado e alguns vidros quebrados por parte de manifestantes mais exaltados. Este fato foi tomado como um todo pela “rigorosa” cobertura dos grandes meios de comunicação.

    Enquanto isso, na dispersão do outro ato, um fato ainda mais estarrecedor, que prossegue ignorado pelos mesmos rigores. Um grupo de manifestantes foi encurralado pela polícia na ponte Eusébio Matoso. Relatos dão conta de agressões físicas a manifestantes, incluindo até mesmo agressões sexuais. “Não havendo nenhum tipo de registro cinematográfico, espancaram todos com socos, chutes, spray de pimenta e cacetadas. Com as meninas a abordagem foi ainda pior: além de bater, as abusaram, colocando a mão em suas vaginas e tacando-as no chão, aos risos. Que tipo de instituição faz isso? Que tipo de instituição tem como parte do trabalho, além de espancar e desorientar pessoas por elas se manifestarem, também violentá-las sexualmente e, quem sabe, assassiná-las?”, desabafou a manifestante D.M. nas redes sociais. Nenhuma nota na grande imprensa.

    E na semana em que publicamos essa primeira reportagem sobre os atos contra a tarifa, a dura vida paulistana continuará sacudida pelas manifestações contra o reajuste nos ônibus, trens e metrôs. Se a cidade vai parar ou a nova tarifa se imporá, os próximos dias dirão. De toda forma, continuaremos registrando os novos e candentes capítulos das disputas sociais e econômicas que marcam esse incerto período da história brasileira.

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 20 janeiro de 2016