Categoria: Cidadania e Direitos Sociais

  • “Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab”

    “Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab”

    viaduto-alcantara-machadoA população de rua da cidade de São Paulo está estimada em cerca de 16 mil pessoas, segundo dados da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). A metade vive na região central da cidade, especialmente na Sé. Há inúmeros debates em torno deste tema e nos atentamos ao que acontece especificamente na Avenida Radial Leste, debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado. Buscando novos paradigmas no atendimento e fortalecimento da população em situação de rua, trabalhadores sociais da prefeitura se uniram para formar o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais).

    A ideia não agradou muito ao poder público e mesmo a socialmente elogiada gestão Haddad se zangou. Por três vezes tentou desalojar as tendas e, agora, ameaça conseguir – além de demitir os trabalhadores ligados ao Catso. Marcamos presença no ato de rua que o coletivo chamou no último dia 26 de novembro, quinta-feira, em frente à prefeitura de São Paulo e entrevistamos a trabalhadora social Pamela Maria para um entendimento maior da questão.

    “A única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é gentil, entre aspas, que é como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos, do qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto, mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto”, afirmou.

    O fechamento do espaço estava marcado para o último dia 4 de dezembro. Na tarde do dia 7, entramos em contato novamente com Pamela Maria para atualizar a entrevista. O Catso, juntamente com o Padre Júlio Lancelotti da Pastoral do Povo de Rua, acionou o Ministério Público contra o fechamento da tenda. Nada aconteceu e as tendas foram oficialmente fechadas. Se na Tenda Bresser a prefeitura retirou todos os móveis na última sexta-feira, a Tenda Alcântara segue ocupada pelos trabalhadores sociais e pela população de rua em resistência às políticas da prefeitura.

    “A proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico, o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo: não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes”.

    Confira abaixo a entrevista com Pamela Maria, do Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais.

    Correio da Cidadania: Como começou o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais) e o que tem desenvolvido debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado, na Radial Leste, junto à população de rua?

    Pâmela Maria: Fazemos um trabalho de quase dois anos com a população de rua. Essencialmente, temos duas frentes no coletivo. Uma com os trabalhadores sociais, que são precarizados. Fazemos essa discussão com todas as frentes que trabalham com a população de rua e também com outras esferas do serviço social.

    A outra frente é diretamente com a população de rua, que é na verdade onde mais nos dedicamos. O objetivo é dar voz ao povo de rua, criar um espaço onde seja possível se organizar horizontalmente, buscando a autonomia desta população para que ela tenha suas demandas colocadas em pauta por eles mesmos. A assistência social tem a característica de fazer propostas de cima para baixo e isso nunca é questionado, muito menos pela população rua.

    Por isso, temos a questão de trazer a população de rua para os ambientes onde eles não seriam bem vistos e quistos, que são as reuniões e os outros espaços do poder público, no caso da prefeitura, subprefeitura e assim por diante. Nós os levamos lá para que falem da vida deles, ao invés de serem representados.

    Correio da Cidadania: Qual tem sido o resultado dessa ação prática e como os moradores de rua tem recebido o trabalho?

    Pamela Maria: Temos uma caminhada com várias vitórias. Por mais que sejamos um coletivo de apenas dois anos, já conseguimos libertar homens que foram presos em albergues e revogar três fechamentos das tendas Alcântara Machado e Bresser – essa é a quarta vez que estão tentando.

    Na minha visão pessoal, mesmo estando há pouco tempo no Catso, sinto que a população de rua vê o próprio exemplo de estarmos na rua com eles, que estamos juntos. Que eles podem contar com a gente, que se agora o fechamento vier a acontecer mesmo, vamos estar lá, de peito aberto, se tiver repressão ou se não tiver, independentemente disso. Vendo-nos, eles vão nos conhecendo, nós vamos nos organizando juntos e eles nos veem como amigos.

    Correio da Cidadania: Como é organizado o dia-a-dia nas tendas? Que diferenças há entre o que o Catso propõe em relação ao que acontecia anteriormente?

    Pamela Maria: A Tenda Alcântara desde o princípio tinha pessoas que depois vieram a formar o Catso. Desde o começo tínhamos a proposta da horizontalidade e das assembleias abertas. Todas as decisões que são feitas na Alcântara – onde estou mais presente – referentes a horários de banho, abertura, fechamento, televisão, é tudo decidido em assembleia, todas as regras são decididas em assembleia, e nós buscamos entre os trabalhadores que a horizontalidade seja praticada em todos os níveis. Todo mundo tem voz, todo mundo decide, todos podem falar burocraticamente com o poder público. Tem também uma questão: todo mundo lava banheiro e faz absolutamente todas as coisas que precisam ser feitas no espaço.

    Buscamos terminar com o vínculo assistencialista e colocar a população como um agente. É como se nós não estivéssemos empregados, estamos juntos com eles em todas as decisões. No começo, a polícia não deixava montar nem barracas de lona por lá. A postura dos trabalhadores sempre foi de acompanhar as abordagens, bater de frente – muitas vezes fisicamente – com o rapa, para impedir que eles fizessem esse tipo de ação. Com o tempo, ao sentir-se segura, a população de rua começou a fazer suas malocas de madeira.

    A ocupação Alcântara Machado aconteceu logo após uma ação da polícia na qual levaram todas as coisas embora e derrubaram todos os barracos. Daí o pessoal tocou fogo nos restos dos barracos e logo ocupou uma academia que tinha na frente da tenda, no próprio viaduto. Ali, fizeram uma cozinha comunitária, foram montando e se organizando. No viaduto Bresser, a comunidade surgiu de forma mais orgânica. Eles chegaram, montaram as malocas de lona, foram ficando, melhorando o espaço e aos poucos substituíram a lona pela madeira.

    Correio da Cidadania: Passamos pela gestão Gilberto Kassab, um completo desastre sob os aspectos sociais e, de 2012 para cá, houve a mudança para o prefeito Fernando Haddad. Para muita gente, significava uma mudança de postura. Até que ponto tal mudança aconteceu, ou não?

    Pamela Maria: vemos que a única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é “gentil”, entre aspas, como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos (de auxílio a dependentes químicos na chamada Cracolândia, centro de São Paulo), o qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto.

    Mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto. Criou a IOPE, que é uma polícia de elite da GCM – antes desarmada e hoje armada. Portanto, não dá para dizer que só o Kassab é o grande higienista enquanto na gestão Haddad as coisas estão se intensificando. Se você perguntar para qualquer morador de rua, eles estão apanhando da GCM hoje da mesma forma como apanhavam antes e as expulsões continuam iguais.

    Correio da Cidadania: E em relação aos trabalhadores sociais, como está funcionando a perseguição?

    Pamela Maria: Eles nos perseguem e tentam cercear os nossos espaços. Não fomos convidados inclusive para coisas que são técnicas e fazem parte do serviço social. Em reunião, mudaram todas as regras internas do pernoite e de como seria a divisão dos albergues: as Tendas Bresser e Alcântara Machado não foram convidadas para participar da reunião – que é técnica e na qual deveríamos estar – e com isso temos um boicote cada vez maior em relação às vagas de albergue.

    Como diz uma companheira, “temos trabalhado com a arma na boca”. A ONG não faz nada. Já procuramos o sindicato algumas vezes para tentar pressionar e nunca se posicionou. Além disso, a prefeitura está sempre lá ameaçando novos fechamentos, já mandou embora várias pessoas de outros serviços que tentavam colaborar conosco e nós somos ameaçados o tempo todo de demissão, coisa que já houve. Gerentes de outros espaços que souberam de trabalhadores ligados ao Catso os demitiram ou transferiram para outros lugares, a fim de perderem o contato conosco. Isso sem contar as ameaças verbais.

    Trabalhadores ligados ao Catso também já foram fechados em salas com supervisores da assistência para receber “broncas”, porque o que eles querem é nos coagir em relação a essa luta. Tanto que o fechamento das tendas é mais um modo de coação, já tentaram três vezes, não conseguiram e agora vieram com toda a força para acabar com esse tipo de mobilização, onde a população de rua tem voz junto aos trabalhadores.

    Correio da Cidadania: Como você explica a manifestação do dia 26/11 e como está sendo articulada a resposta do coletivo e da população de rua para reverter a repressão e os retrocessos aqui discutidos?

    Pamela Maria: Estamos de aviso prévio e a data de fechamento das tendas era 4 de dezembro. O ato contra o fechamento das tendas e a remoção das malocas foi em 6 de dezembro. É o que soubemos por fontes. Nesse dia, chegariam o “rapa” e a polícia para remover as comunidades Alcântara Machado e Bresser. Logo, o protesto foi para visibilizar o não fechamento das tendas e a não remoção das comunidades dos viadutos.

    Sem querer ser pessimista, mas acho que isso não vai acontecer. O Haddad já deixou bem claro que já conhece o coletivo e não quer nos deixar lá. É uma contradição, pois trabalhamos para a prefeitura, em um serviço que é dela, e a própria prefeitura é contra o nosso trabalho e critica as nossas ações. Portanto, é bem claro para nós que ele não vai voltar atrás. Talvez com uma pressão maior, com muito esforço, talvez seja possível. Mas eu, particularmente, estou bem pessimista.

    Falta diálogo. O pessoal da rua não quer o auxílio aluguel, que é a principal proposta da prefeitura, que prevê o oferecimento de R$1200 a cada três meses, ou seja, com 400 reais por mês. Todos sabemos que é impossível de se viver em São Paulo, não se aluga nada, muito menos quem tem trabalho, creche e escola das crianças mais próximos do centro.

    É isso: a proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo, não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes.

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

  • O preço da água

    O preço da água

    No sudeste do Pará, a concessão do abastecimento para a Odebrecht Ambiental veio acompanhada de tarifas altas; os moradores de rendimentos baixos têm de decidir entre pagar a conta ou garantir a alimentação das suas crianças.

    A água, tão central na cultura amazônica, tem-se transformado num bem caro e até mesmo perigoso em São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara, no sudeste do Pará. O líquido que chega às torneiras das casas está sob a responsabilidade da Odebrecht Ambiental, que detém as concessões do serviço de abastecimento nas três cidades e em outros sete municípios paraenses. Moradores de baixos rendimentos, que precisam do apoio Bolsa Família para sobreviver, têm sentido dificuldade em pagar as contas todos os meses. Também existem reclamações de que a empresa usa cloro em excesso no tratamento, o que traz mal-estar às crianças.

    Alguns pais enfrentam o dilema entre deixar as contas em dia ou manter a família, o que pode resultar em cortes até na alimentação. Há moradores que viram a fatura alcançar metade do orçamento, chegando a valores próximos de 200 reais [cerca de 50€]. Nos três municípios, 4.107 pessoas vivem com até um quarto do salário mínimo por mês (o equivalente a 197 reais), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A saída é gerir a economia doméstica, numa eterna corda bamba, que onera sobretudo as crianças.

    Muitos recorrem a fontes alternativas de água, como poços artesanais e rios da região, que podem estar contaminados. Isso expõe as crianças ao risco de diarreia e doenças como febre tifóide, hepatite A e parasitas. “A conta da água aperta demasiado o orçamento. Muitas vezes tive que deixar de comprar coisas para as meninas, como comida ou material de escola. Houve meses em que tive que pedir dinheiro à minha sogra para por comida na mesa”, afirma a dona de casa Ana Carolina Dias Palone, de Xinguara, que tem duas filhas, de 5 e 7 anos. “Muitas vezes tenho que deixar uma conta pendente para o próximo mês, para dar tempo de sobrar um dinheirinho e conseguir comprar o que elas precisam de comer.”

    Os valores das contas de água foram definidos pelas prefeituras e pelas empresas nos contratos de concessão. Os moradores, principais afetados pela mudança, tiveram oportunidades restritas de participar da definição dos preços. “Não há no Pará uma agência reguladora que discuta com a prefeitura e com a população os valores. Eu, daqui, tenho que garantir que minha empresa continue funcionando. Somos uma companhia privada e visamos ao lucro. Não adianta ser hipócrita”, diz uma das engenheiras da empresa, que falou sob anonimato.

    Cada município atendido pela Odebrecht Ambiental possui obrigações específicas, descritas no respectivo plano de água e esgoto. “A região amazônica tem minério, terra, água. Tudo isso. As empresas vêm com a intenção de se apropriar da água e do bem público. A lógica da Odebrecht é mercantilizar a água, torná-la mercadoria”, afirma Cristiano Medina, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A empresa ressaltou, via assessoria de imprensa, que, pelo modelo de concessão adotado nos municípios paraenses, assume a operação sob supervisão da prefeitura e deve assegurar investimentos e prestação de serviços. Após 30 anos, os benefícios implantados ficarão para os municípios.

    Empresas públicas e privadas de saneamento têm as mesmas obrigações, previstas nos planos diretores das cidades onde atuam. “A diferença principal é que as empresas privadas veem na água uma forma de obter lucro, enquanto as estatais têm o objetivo de desenvolver a região e prestar um serviço de saúde. Assim, uma empresa estatal pode reduzir as tarifas ou subsidiar regiões pobres sem aumentar os preços para as outras pessoas. Já a empresa privada terá que cobrar mais caro de alguém para garantir seu lucro”, exemplifica o diretor regional do Sindicato dos Urbanitários do Pará, Otávio Barbosa.

    ‘Compro comida ou pago água?’

    A notícia da chegada de duas pessoas de São Paulo correu depressa na zona rural do pequeno município de São João do Araguaia. Famílias inteiras saíam das suas casas de madeira, ultrapassaram o quintal de terra batida e esperaram junto às cercas de madeira ou arame farpado, num modelo de construção quase padronizado no local. Nas mãos, tinham as contas de água dos últimos meses, anexas aos avisos de corte do abastecimento. No rosto, uma clara esperança de resolver o problema que tira o sono – e sustento – de crianças e adultos da cidade: o valor a ser pago pela água.

    “Não… Nós não somos da Odebrecht. Eu sou repórter e ele é fotógrafo.” A apresentação decepcionava aqueles que aguardavam uma resposta para o problema. Nas pequenas residências com casas de banho inacabadas, repletas de crianças e com sustento vindo basicamente do Bolsa Família, os valores das contas de água atingem parte significativa do orçamento familiar. “Minha conta vem por volta de 18 reais [4,50€], porque nunca ultrapassei a primeira faixa de consumo. O valor pode parecer baixo, mas, para mim, que sustento a casa com 200 reais [50€], é muito. A gente acaba a ter que tirar dinheiro do Bolsa Família para pagar a água e esse era um dinheiro que deveria ser para a comida das crianças”, conta a dona de casa Ednalda Moreira Gomes, que vive com o marido e dois filhos, de 10 e 13 anos.

    Desempregado, o trabalhador rural José Reis recebeu em setembro uma conta de água de 48,03 reais [12,40€] para um consumo de 26 metros cúbicos. Mora numa casa de três divisões, sem casa de banho, com a esposa e mais três filhas. “Antes nós não pagávamos nada pela água. Agora, começámos a pagar e nem fomos consultados sobre o preço que pagaríamos. Ficou caro. Muitas vezes tiro dinheiro da merenda das minhas meninas para dar conta desse gasto”, lamenta. Ele aguarda uma vistoria da empresa para verificar a existência de vazamentos. “Está muito pesado para a gente que vive desempregada. Estou sem pagar, porque não tenho condições. O dinheiro que recebemos do Bolsa Família vai todo para comida e material escolar. Eu não posso mexer nisso.”

    “O dinheiro que recebemos do Bolsa Família vai todo para comida. Eu não posso mexer nisso”, lamenta o trabalhador rural desempregado, José Reis. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    “O dinheiro que recebemos do Bolsa Família vai todo para comida. Eu não posso mexer nisso”, lamenta o trabalhador rural desempregado, José Reis. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

     

    A renda da família da dona de casa Marines Cardoso de Oliveira também vem do Bolsa Família, que paga 35 reais [8,60€] por criança, até o teto de 175 reais [43,30€] – 33 reais[8,20€] a menos que o valor da conta de água de junho, de 08,87 reais [51,70€], por 62 metros cúbicos. “Às vezes é preciso escolher: comprar comida para as crianças ou pagar a água”, explica. Ela vive em uma casa de uma divisão com uma casa de banho inacabada, com o marido e nove filhos, três deles com deficiência mental. “O Bolsa Família só dá para comprar comida para os meninos, e de uma vez ou outra algo para eles vestirem”, diz. Com a conta atrasada, o seu maior medo é ter o serviço cortado e precisar de recorrer à água de um pequeno lago próximo a sua casa, usado pelo gado de criadores da região. “Já me deram o aviso que, se eu não pagar, vão cortar a minha água. Como vou fazer?”, questiona.

    A história repete-se de casa em casa, entre pelo menos 100 pessoas que vivem no bairro Vila José Martins Ferreira, na zona rural de São João do Araguaia. Quem não consegue bancar o preço da água recorre a fontes alternativas, e pouco seguras, como os rios da bacia amazônica e poços artesanais – onde muitas vezes a água, mal armazenada e sem tratamento, oferece riscos pela presença de micro-organismos nocivos à saúde. As crianças acabam sendo as mais contaminadas por doenças bacterianas e vermes, como confirmam funcionários da saúde pública da região. Apesar da percepção dos trabalhadores do setor, a Secretaria Estadual de Saúde do Pará não contabiliza o número de crianças que apresentam os principais sintomas – diarreia e vômito – pois os problemas não são de notificação compulsória ao Ministério da Saúde.

    A auxiliar de escola Raimunda Carvalho dos Santos vive em três divisões com o marido e três filhos, com apenas um salário mínimo. “Tenho que tirar dos meninos, não tem outra forma”, diz. Na conta de julho, o valor era de 168 euros [41,50€] por 55 metros cúbicos. “A renda é pouca. Então, para pagar a água, nós temos que tirar da alimentação das crianças e do material da escola. Como vou eu pagar se não fizer assim?”, lamenta olhando para o chão, quase envergonhada. “Se cortarem, vou ter que ir buscar a água no poço do vizinho para dar às crianças. Mas ela não é boa. Fico entre a espada e a parede.”

    “A lógica da Odebrecht é mercantilizar a água”, diz Cristiano Medina, do MAB. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    “A lógica da Odebrecht é mercantilizar a água”, diz Cristiano Medina, do MAB. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

    O valor da tarifa média por metro cúbico em São João do Araguaia é de 2,22 reais [0,55€]. Todo o lucro da Odebrecht Ambiental vem da tarifa cobrada aos utilizadores. A Agência Pública solicitou o valor médio recebido pela empresa por mês, porém a informação não foi fornecida. Em São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara, os contratos não preveem a tarifa social. Ela é aplicada por decisão da empresa. Podem ter acesso ao benefício clientes da categoria residencial, com casas enquadradas no padrão baixo de construção (área construída de até 100 metros quadrados, sem forro, apenas com uma casa de banho ou instalações precárias) e que tenham renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio. Apesar de muitos dos entrevistados se enquadrarem nesse perfil, nenhum deles era contemplado com o benefício.

    “Percebemos que muitas das contas vêm com um consumo muito alto de água. A empresa faz a verificação de fugas quando os moradores reclamam, mas não há um controle mais rigoroso sobre possíveis desperdícios. Mesmo nos casos de fugas e das famílias de baixa renda, não conseguimos negociar um valor menor para a conta”, afirma o vereador Benisvaldo Bento da Silva (PMDB), que tem organizado os moradores e conduzido reuniões com a Odebrecht Ambiental.

    Na mira da Lava Jato

    A empreiteira Odebrecht, membro do grupo da Odebrecht Ambiental, é uma das empresas investigadas na Operação Lava Jato. Em julho, comprovantes de depósitos bancários encaminhados pela Procuradoria da Suíça a integrantes da Força Tarefa da Polícia Federal comprovaram transferências entre contas pertencentes à Odebrecht e ex-diretores da Petrobras. No mesmo mês, o juiz Sérgio Moro, responsável pelos inquéritos, aceitou a denúncia do Ministério Público Federal contra o presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, e mais quatro executivos. Ele tornou-se réu, sob acusação de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa e continua preso em Curitiba, desde 19 de junho.

    A 20 de outubro, a defesa do empresário entrou com novo pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), pelo qual ele pedia “socorro”, em tom inflamado. O ministro Teori Zavascki, relator dos processos da Operação Lava Jato no STF, negou o pedido de liberdade por entender que a prisão preventiva é necessária, uma vez que o executivo teria orientado supostas atividades criminosas de outros réus e que supostamente atuou para evitar o levantamento de provas. No dia 26 de outubro, advogados da empresa entraram com recurso no Tribunal Penal da Suíça para tentar evitar que extratos bancários em contas no país europeu sejam remetidos oficialmente ao Ministério Público do Brasil.

    Água para quem?

    A empresa tocantinense Hidro Forte Administração e Operação Ltda venceu a concorrência, seguindo o critério principal de oferecer o menor valor de tarifa. Três meses depois de assumir a concessão, a empresa foi comprada pela Odebrecht Ambiental, em setembro do ano passado. A possibilidade de mudar a empresa prestadora do serviço não estava prevista no edital, como manda a Lei de Licitações (8.666/93). “Neste caso, para ser legal, a possibilidade deve estar descrita no contrato de prestação de serviço”, explica Flávio Guberman, advogado especialista em direito administrativo e societário. Não foi possível obter o contrato, pois o secretário de Administração de São João do Araguaia, Emiliano Soares, não respondeu à reportagem.

    O prefeito afirmou que a administração municipal “possui toda a documentação”. “Nós optamos por ter uma água de qualidade, porque as águas estão muito poluídas. A Odebrecht tem conhecimento, tem mais recurso e uma trajetória em saneamento básico. Preferimos migrar”, disse. A empresa informou, pela assessoria de imprensa, que, desde que assumiu o serviço, reformou a Estação de Tratamento de Água e regularizou as redes de distribuição e as ligações domiciliares, além de eliminar ligações clandestinas e fazer a clorificação da água. O teor de cloro atinge o máximo permitido pela Portaria 2.914/11 do Ministério da Saúde, de 2 miligramas por litro.

    “De repente fomos surpreendidos pelos contratos com a Odebrecht. Não pudemos fazer audiência pública nem consultar a população sobre essa mudança. Quando o serviço era público, a prefeitura não cobrava e a água do rio era distribuída para a população por um sistema municipal. A Odebrecht não faz ainda o tratamento completo da água, mas já cobra caro”, reclama o vereador Benisvaldo.

    “Passaram-se três meses e a conta que chega nas casas das famílias fica entre 150 reais e 300 reais [37 e 74€]. Há pessoas que não têm renda nenhuma e têm que pagar isso”.

    A tarifa mínima cobrada em São João do Araguaia é de 18,28 reais [4,50€] para um consumo de 0 a 12 metros cúbicos, o equivalente a 1,52 reais [0,40€] por metro cúbico. O valor aumenta de acordo com o consumo, chegando a 5,73 reais [1,40€] por metro cúbico para as residências que usam mais de 50 metros cúbicos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o preço é de 20,62 reais [5,10€] para um consumo de 0 a 10 metros cúbicos, sendo que, pela opção da tarifa social, voltada para as famílias de baixa renda, o valor cai para 7 reais [1,70€] nessa faixa de consumo. No município paraense, é de 12 reais [3€]. Apesar disso, 30,41% das famílias de São João do Araguaia vivem com até um quarto do salário mínimo por mês, contra apenas 2,88% em São Paulo.

    O Pará – onde muitos municípios ainda mantêm sistemas públicos de distribuição de água – tem a segunda tarifa média mais barata do país: 1,64 reais [0.41€] por metro cúbico, atrás apenas do Maranhão (1,62 reais [0.40€]), segundo o Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto de 2013, do Ministério das Cidades. O estado com a tarifa mais alta é o Rio Grande do Sul (4,18 reais [1€]), seguido por Amazonas (3,75 reais [0,93€]) e pelo Distrito Federal (3,73 reais [0.92€]).

    Cidade alagada

    O projeto terá duas eclusas e um lago de 3.055 quilômetros quadrados. Serão inundados 1.115 quilômetros quadrados de terras de seis municípios do Pará (Marabá, São João do Araguaia, Bom Jesus do Tocantins, Brejo Grande do Araguaia, Nova Ipixuna, Palestina do Pará), três do Tocantins (Ananás, Esperantina e Araguatins) e dois no Maranhão (São Pedro da Água Branca e Santa Helena). A obra tem custo previsto de 12 bilhões de reais [2,97 mil milhões de euros] e terá capacidade de produção de 2.160 megawatts.

    A Odebrecht não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre por que investir no saneamento em uma cidade que será alagada, por considerar uma informação estratégica para a empresa. “Por questões estratégicas a Odebrecht Ambiental não fornece esses dados”, disse a assessoria de imprensa.

    “Isso passa por controle do território, mercantilização dos recursos naturais e controle dos rios”, acredita Cristiano Medina, do MAB. “São as mesmas empresas que disputam e administram tudo aqui. A Amazônia tem uma reserva vantajosa mineral, energética e de água e as empresas chegam aqui para controlar esses recursos.”

    Água mineral

    Apesar de Xinguara ser a cidade mais desenvolvida entre as visitadas – a única com um Índice de Desenvolvimento Humano médio (0,659) –, o distrito de Rio Vermelho, popularmente conhecido como Gogó da Onça, é composto por algumas poucas casas de madeira, que se espalham na beira da estrada. “Mãe, mãe, o retratista pode tirar retrato de eu mais o papagaio?”, pergunta, muito alegre, a pequena Rafaela Dias Palone, de 7 anos, enquanto corre para dentro de casa. A mãe da menina, Ana Carolina Dias Palone estava atarefada, a cuidar da filha mais nova, de 5 anos, que há uma semana que sofria de fortes dores no estômago e nos rins. O motivo, segundo o diagnóstico médico, era o cloro na água. “O médico perguntou se eu dou água da rua para ela e, quando confirmei, ele disse que tinha certeza que era isso, porque já tinha outros casos. Desde então estamos comprando água mineral, mas é muito caro”, conta a dona de casa.

    Criança de 5 anos sofre com fortes dores no estômago e nos rins pelo cloro na água, segundo diagnóstico médico. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    Criança de 5 anos sofre com fortes dores no estômago e nos rins pelo cloro na água, segundo diagnóstico médico. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

    Uma dosagem excessiva de cloro para consumo humano pode levar, por exemplo, à degradação da flora intestinal e a problemas estomacais, segundo o especialista em química ambiental e tratamento de água, Jorge Antonio Barros de Macedo. “Além disso, se a água não for filtrada antes de receber o cloro, o contato de alguns tipos da substância com matéria orgânica pode resultar na formação de substâncias cancerígenas, chamados trialometanos”, diz.

    Uma das enfermeiras que trabalham diariamente no posto de saúde do distrito – e que não se quis identificar – confirmou que muitas crianças adoecem devido ao cloro usado na água. Ela reconhece, contudo, que houve uma diminuição do problema desde o começo do ano. “As pessoas adoeciam mais, porque os níveis de cloro eram muito altos. Para ter uma ideia, a empregada nem estava a usar lixívia para lavar os lençóis do posto”, conta. “Depois de muita reclamação melhorou, mas as pessoas mais sensíveis, sobretudo as crianças, ainda sentem dores de estômago, diarreia e vómito. Algumas também chegam com irritações na pele, porque tomaram banho com água com cloro forte.”

    Nem a Secretaria de Saúde Estadual do Pará nem a de Xinguara contabilizam os casos de adoecimento em função da água ou do cloro, segundo a secretária adjunta de Saúde de Xinguara, Maria da Glória Barbosa. O levantamento fica por conta da observação dos funcionários da saúde. “Aqui temos pelo menos três casos de diarreia em crianças por semana. A maior parte é devido à contaminação por giárdia, que é um protozoário transmitido pela água que não é tratada adequadamente. Nós sabemos que muitos municípios do estado são carentes na questão do tratamento de água e enfrentamos esse desafio no nosso dia a dia”, conta a enfermeira-chefe de um dos postos de saúde do município, Ecilene Fera.

    De acordo com a secretária adjunta de Saúde de Xinguara, Maria da Glória Barbosa, o município não contabiliza os casos de adoecimento em função da água ou do cloro. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    De acordo com a secretária adjunta de Saúde de Xinguara, Maria da Glória Barbosa, o município não contabiliza os casos de adoecimento em função da água ou do cloro. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

    A Odebrecht Ambiental disse que “obedece a todos os padrões de tratamento de água atendendo ao preconizado pelo Ministério da Saúde” e que realiza monitorizações constantes de qualidade da água por meio de exames laboratoriais. “O teor de cloro estabelecido pela legislação deve ficar entre 0,2 e 2 miligramas por litro, sendo que utilizamos o valor de 0,9 miligramas por litro”, informou.

    A prefeitura, no entanto, não tem realizado a sua análise da água para confirmar os dados recolhidos pela empresa. Esse acompanhamento deveria ser feito mensalmente, por meio de amostras colhidas em diferentes locais da cidade, enviadas depois para um laboratório central, no município de Conceição do Araguaia. “A última recolha foi realizada em maio e ainda não tivemos acesso aos resultados. Está parada por causa de uma licitação para compra de materiais”, explica o coordenador do sistema de monitoramento na prefeitura, Marconi Ribeiro.

    Devido ao cloro e ao valor elevado da conta (mínimo de 27,80 reais [6,88€] para quem consome de 0 a 10 metros cúbicos e uma média de 3,32 reais [0,82€] por metro cúbico, considerando todas as faixas tarifárias), algumas famílias voltaram a recorrer à água de poços. “A água que recolhemos tem coliformes fecais, sobretudo a dos poços, que em geral ficam perto das fossas. O saneamento básico e o esgoto são maus. Por isso, mesmo nas famílias de baixos rendimentos, as pessoas acabam por ter que consumir galões de água mineral”, diz Ribeiro.

    Em Xinguara, a água que chega às casas pelo sistema de distribuição operado pela Odebrecht Ambiental vem de uma barragem feita num pequeno riacho. Apenas 30% da população do município tem acesso à água tratada. A empresa está a investir na ampliação da barragem, que deve duplicar de tamanho e permitir uma captação de água três vezes maior que a atual, além de aumentar a rede de distribuição para a cidade. “Não temos mais atendimento porque o riacho é pequeno. No período de verão, a qualidade dessa água fica muito má, com matéria orgânica, escura e temos que usar muitos produtos químicos. Com um lago maior, de profundidade maior, a qualidade melhora”, disse uma engenheira da Odebrecht. “Trabalhamos com uma meta desafiadora, porque atendemos a um percentual muito pequeno. Até 2017 temos que atingir 70% de atendimento.”

    A água de qualidade também é um problema a 200 quilómetros dali, no município de São Geraldo do Araguaia, que, junto com Xinguara, capta água de superfície dos rios. Muitos moradores dizem que precisam de comprar água mineral para beber. Segundo eles, a água da rua tem má qualidade e também chega às casas com cheiro forte de cloro ou suja, ainda com resíduos de matéria orgânica. De acordo com a empresa, o teor de cloro utilizado na água do município também é de 0,9 miligramas por litro. A prefeitura de São Geraldo não realizou nenhuma avaliação da qualidade da água neste ano, por falta de equipamentos como o reagente ou o coletor, segundo a Secretaria de Saúde do município. De acordo com o órgão, o teor de cloro no município variou entre 0,2 e 2 miligramas por litro, mas já chegou a 5 miligramas por litro.

    Os moradores do município pagam uma das contas de água mais caras da região: 31,10 reais [7,70€] para quem consome entre 0 e 10 metros cúbicos e uma tarifa média de 3,73 reais [0,92€]. Segundo a Odebrecht Ambiental, as diferenças de valores nas tarifas dos municípios “devem-se às especificidades presentes no equilíbrio financeiro de cada uma destas concessões e obedecem a parâmetros presentes nos contratos de concessão com cada município”. Antes de a Odebrecht assumir a sistema de água no município, a responsável era uma empresa de capital misto chamada Companhia de Saneamento de São Geraldo do Araguaia (Cosanga). O primeiro contrato foi feito com uma empresa chamada Saneatins, que posteriormente foi adquirida pela Odebrecht Ambiental.
    Com o valor alto da conta da água em São Geraldo do Araguaia, a população continua a utilizar o rio para lavar louças e roupas. Foto de Danilo Ramos.

    Com o valor alto da conta de água em São Geraldo do Araguaia, população continua utilizando o rio para lavar louças e roupas. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    Com o valor alto da conta de água em São Geraldo do Araguaia, população continua utilizando o rio para lavar louças e roupas. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

    Devido às recorrentes queixas sobre a qualidade e o preço da água no município, o promotor de Justiça de São Geraldo do Araguaia, Agenor de Andrade, organiza, desde agosto, quatro procedimentos jurídicos contra a Odebrecht Ambiental, de quatro diferentes regiões da cidade. Três deles vieram de abaixo-assinados que reuniram 160, 110 e 70 assinaturas de moradores, reclamando do cheiro a esgoto da água, da cor barrenta ou da interrupção constante da distribuição, sem aviso. “Várias pessoas estão a passar mal com diarreia, infecções por bactérias, vómitos e crises estomacais”, diz o enunciado de um dos abaixo-assinados.

    “Os moradores encaminharam-me uma garrafa com uma amostra da água que chega à casa deles e ela veio realmente muito suja e barrenta. Por isso, vou convocar, junto à Câmara Municipal, uma audiência pública, para ouvir os munícipes e cobrar respostas à empresa”, diz Andrade. “Colheremos informações e instauraremos procedimentos administrativos para subsidiar uma eventual ação civil pública contra a Odebrecht.”

    Uma das alternativas que a população encontra para contornar a tarifa e os problemas na qualidade da água é o rio, sem tratamento. Na pequena São Geraldo, com as suas casas de madeira e ruas de terra, onde além das pessoas circulam também galinhas e porcos, tudo acontece nas margens do Araguaia, entre a lavagem de roupa e a pesca. “A água da rua vem suja ou cheia de cloro. Para tudo o que preciso uso o rio”, reclama a pescadora Silva Moreira, que mora numa casa onde só há uma torneira e um vaso sanitário, sem autoclismo.

    “Uma vizinha contou que colocou a roupa de molho e no dia seguinte apareceu manchada, porque é muito cloro”, conta a dona de casa Rosa Maria, que tem uma filha de 10 anos e outra de 9 meses. “Às vezes a água vem muito suja, outras vezes com bastante cloro. Chega a arder para beber. Acabamos tendo que comprar água mineral para dar para a bebé, porque a da rua é muito forte para ela. Mas infelizmente não temos dinheiro para as duas. O que vamos fazer?”

    “Às vezes a água vem muito suja, outras com bastante cloro. Chega a arder para beber”, conta a dona de casa Rosa Maria. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Instituto Alana
    “Às vezes a água vem muito suja, outras com bastante cloro. Chega a arder para beber”, conta a dona de casa Rosa Maria. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Instituto Alana

    Este artigo é o resultado do concurso de microbolsas para reportagens de investigação sobre Crianças e Água promovido pela Agência Pública em parceria com o projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana.

    Fonte: Pública, 13/11/2015

    Veja a nota da Odebrecht Ambiental sobre o fornecimento de água no Pará

    Empresa enviou posicionamento depois da publicação da reportagem ‘O preço da água’, sobre a sua atuação em São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara, no Pará

    A Odebrecht Ambiental enviou à Agência Pública a nota a seguir, a respeito da reportagem O preço da água, publicada na sexta-feira (13):

    “Os municípios de São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara, no sudeste do Pará, citados na matéria da Agência Pública, sofrem há anos com a falta de infraestrutura que causa gravíssimos problemas para a saúde e qualidade de vida da população. No Pará, apenas 42% da população tem acesso a serviços de água tratada e menos de 3% do esgoto gerado no Estado é tratado. Em busca de uma alternativa, as cidades recorreram ao modelo que já mostra sucesso em diversas cidades brasileiras, no qual a iniciativa privada complementa os investimentos públicos para a universalização do saneamento. O Poder Público, portanto, tomou a decisão de concessionar – e não privatizar – os serviços de água e esgoto desses municípios. Por meio da concessão nestas e em outras sete cidades do Pará, a Odebrecht Ambiental irá investir nesta área que é fundamental para garantir a saúde da população.

    A concessionária aplica a tarifa social nos 10 municípios paraenses que atua, beneficiando cerca de 5 mil famílias, que pagam, em média, R$ 13,70 por mês. Se enquadram na tarifa social clientes cadastrados na categoria residencial, com residência classificada como de padrão baixo de construção (área construída de até 100m², sem forro, com apenas um banheiro ou instalações precárias) e que tenham renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio vigente. Aposentados, pensionistas e portadores de doenças crônicas são beneficiados se apresentarem renda familiar de até dois salários mínimos e meio. A tarifa social representa um desconto de 69% aplicado na tarifa básica da categoria residencial (faixa de consumo de 0 – 10m³). Todos os consumidores que se encontram dentro desses parâmetros podem requerer o serviço junto à concessionária.

    Quanto à questão do cloro abordada na matéria, a Odebrecht Ambiental mais uma vez esclarece que a adição deste elemento garante que a água esteja livre de agentes causadores de doenças e que obedece a todos os padrões de tratamento de água em atendimento ao preconizado pelo Ministério da Saúde. A concessionária informa ainda que realiza monitoramento constante de qualidade da água em seus diversos parâmetros com constantes exames laboratoriais.”

    16 de novembro de 2015

  • Contradições do neodesenvolvimentismo são devastadoras para os trabalhadores

    Contradições do neodesenvolvimentismo são devastadoras para os trabalhadores

    Ricardo Antunes
    Ricardo Antunes

    Em entrevista do início do ano, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes já afirmava que “a falência do PT gera instabilidade política”, dentro de um governo praticamente “natimorto”. Em nova conversa com o Correio da Cidadania, além de reafirmar tais análises, Antunes descreveu todo o quadro de “crises econômica, política e social profundas”, o que torna tudo imprevisível até 2018, inclusive uma possível “reaparição heroica” de Lula. “Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência”.

    No entanto, como se trata de uma crise generalizada, que nega credibilidade a toda a classe política, a paralisia se estende a todos os atores em cena. “Como existe relativa autonomização do judiciário e da Polícia Federal, torna-se tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado. Não é apenas coleira (no sentido de oposição e partidos fisiológicos interditarem o governo). Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte, por outro, uma paralisia da economia é assustadora. É inaceitável também para os assalariados”, sintetizou.

    De toda forma, Antunes faz uma ampla análise do atual momento de Lula e do próprio processo histórico já denominado de lulismo, com seus traços “nefastos” e “centralizadores”, a impedir qualquer movimento de mudança dentro do PT. “É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT”, explicou.

    Diante do quadro, Ricardo Antunes lamentou que ainda não se tenha criado uma alternativa viável e prática no campo da esquerda, o que será ainda mais sofrível, em sua visão, nos próximos pleitos. Ainda assim, também destaca que no atual momento essa mesma esquerda alijada do jogo de poder não deve gastar demasiada energia em eleições, o que dá a ideia de urgência da reorganização através “das bases”, afirmação compartilhada por algumas outras lideranças.

    “Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso”, criticou.

    Por fim, além de prever uma nova era de rebeliões (ou “contrarrebeliões”), Antunes reitera o que ele e muitos outros chamaram de mitos desenvolvimentistas e seu voo de galinha, que agora volta a terra nada firme. “O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem”.

    A entrevista completa com Ricardo Antunes pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: No início do ano, você nos concedeu entrevista na qual afirmou estarmos diante de “governo natimorto”, fruto da “falência do PT”. Como enxerga essas assertivas diante da crise política, ética e econômica que já marcou todo o quinto ano de Dilma Rousseff na presidência da República?

    Ricardo Antunes: O quadro atual confirma minha formulação provocativa de meses atrás. A eleição que Dilma ganhou sinalizava uma vitória eleitoral difícil e uma acentuação ainda mais profunda de um governo antipopular, completamente favorável aos grandes e dominantes interesses, em particular do capital financeiro. E seguidor dos constrangimentos e imposições indicados pelo FMI e o receituário da ordem, qual seja, o governo deveria implementar, o mais rápido possível, um ajuste fiscal profundamente destrutivo em relação ao mundo do trabalho, cortar conquistas, reduzir outras dos assalariados em geral, aumentar juros e garantir superávit primário. De tal modo que, ao encontrar respaldo dos interesses dominantes, do mundo financeiro e produtivo (ainda que num contexto de crise), acreditou que poderia iniciar seu segundo mandato.

    De lá pra cá, além do agravamento da crise econômica, veio simultaneamente o agravamento exponencial da crise política. A Operação Lava Jato chegou aos núcleos dominantes do PT e aos laços de setores dominantes que controlavam as finanças do partido, inclusive com o empresariado mais destrutivo e corruptor, a exemplo da “burguesia empreiteira”. Tal crise foi ampliada pelo fato de o ajuste fiscal penalizar os setores assalariados (que garantiram a vitória de Dilma), empobrecidos e dependentes de Bolsa Família. Vale lembrar que Dilma perdeu apoio de parcelas dos assalariados e Aécio ganhou no ABC Paulista, mostrando como o derretimento petista se dá até no cinturão industrial de seu núcleo originário.

    As duras medidas do ajuste corroeram parte do que resta da base de apoio de Dilma entre os assalariados. Tanto que vemos com frequência manifestações de movimentos como MST e MTST contra o ajuste fiscal e a política econômica de Dilma, ainda que contra o impeachment. Só em poucos casos é claramente a favor do governo também.

    Porém, é visível que 10 meses depois da posse de Dilma o quadro é de completa imprevisibilidade. Em 13 de outubro, por uma liminar concedida pelo STF, Dilma conseguiu se livrar de um processo de impeachment, mas lembremos que é só uma liminar, a ser julgada mais adiante, além de outras iniciativas ainda em curso.

    Assim, respondendo a pergunta, o governo Dilma é um governo que não governa. Um governo que levita. Não no ar, pois não tem mais condições de voo; ele derrapa no chão molhado. Cada medida que toma é uma “desmedida”, pois não se efetiva. É claro que assim começa a perder uma base de sustentação importante, junto a amplos setores do empresariado, especialmente o industrial, que em função da alta de juros e da falta de perspectiva para a economia nos próximos meses começa a retirar o apoio que era forte até recentemente. Esse empresariado não se bandeia completamente para o lado do impeachment porque sabe que abriria uma crise social no país. Muitos fazem oposição ao governo Dilma, mas não aceitam uma medida tomada por um parlamento cujo nível de comprometimento está visceralmente degradado. Basta dizer que o presidente da Câmara está completamente envolvido nas corrupções que vêm impregnando a política brasileira nas últimas décadas.

    Portanto, não é possível que um parlamento dirigido por um político completamente envolvido em práticas de corrupção, conforme recente indicação do procurador geral da República, tenha legitimidade para depor o governo Dilma. Se o PT está envolvido até a medula em práticas de corrupção (o que está ainda sendo investigado), desde os inícios do governo Lula, não há ainda elementos que incriminem a presidência. Não há um elemento factível a dizer que a presidente da República, até o presente, envolveu-se diretamente com corrupção, contas e outros casos apresentados pela Operação Lava Jato.

    O quadro, portanto, é de crises econômica, política e social profundas. E gera uma completa imprevisibilidade sobre se Dilma governará nesse voo rasante e derrapante até 2018, ou se sofrerá impeachment nos próximos tempos, ou se conseguirá algum soerguimento em função da retomada de algum crescimento econômico, o que nenhuma avaliação minimamente lúcida indica – na melhor das hipóteses, apenas em 2017. Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência.

    E tem um elemento importante: em caso de queda de Dilma, seu vice também fica comprometido, de modo que aquela ideia que meses atrás ganhava força, de ter Michel Temer como espécie de paladino da ordem e da “frente amplíssima” pra preservar o impreservável, não cola mais. Afinal, o comprometimento da Dilma seria a partir das contas de campanha, que envolvem a presidência, ou das chamadas pedaladas, à medida que estendidas a 2015, supondo que levadas adiante, também envolveriam a vice-presidência da República.

    Assim, veja o tamanho da tragédia. Ou farsa. Dilma cai acusada de corrupção junto de Temer, o presidente da Câmara (Cunha) toma posse de 90 dias, e o flanco fica aberto, pois este seria atacado por todos os lados por ter deixado rastros em todos os pontos por onde passou.

    Correio da Cidadania: Desse modo, é precipitado reduzir a hipótese do impeachment à mera coleira política do mandato de Dilma, a ser usada pelo maior tempo possível.

    Ricardo Antunes: Certamente. Não é apenas coleira. Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte no país, por outro, uma paralisia completa da economia é assustadora para o empresariado. É inaceitável também para os assalariados. O que os trabalhadores(as) estão vendo? Milhares de demissões. Quando não são demitidos, têm de negociar com uma faca no coração e uma espada nas costas para aceitar uma redução da jornada com redução salarial, a antessala do desemprego.

    O capital financeiro, claro, percebe a alta dos juros e a ciranda financeira favorável, mas na medida em que tem de controlar o crédito quase sem poder emprestar, pois o risco de calote é enorme, cria toda uma paralisia econômica. E o movimento de rua das classes médias conservadoras, hoje, digamos, mais retraído, pode voltar, naturalmente. Pra completar, 2016 é ano eleitoral.

    Não havendo o impeachment, se tenta uma alternativa onde o governo reina, mas não governa. Mas Dilma nem sequer reina. Isso é feito pelo “primeiro-ministro”, que até semanas atrás pautava a vida política do país, mas não sabe até quando será presidente da Câmara. Por certo tem o risco, crescente, de perder até o mandato, pois deixou rastro em todos os lugares por onde andou: contas esparramadas em varias áreas, com digitais, passaporte diplomático… E como existe relativa autonomização do poder judiciário e da Polícia Federal, não é possível controlar tais movimentos, o que torna tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado.

    Correio da Cidadania: Como enxerga a figura de Lula em meio à crise política? O que se pode esperar deste político, ou deste ‘personagem’, ou do que se chama de lulismo, para os próximos tempos?

    Ricardo Antunes: Primeiramente, o fenômeno do lulismo é muito recente. Fui dos primeiros a tratar algumas pistas a respeito, em dois livros de artigos – A Desertificação Neoliberal do Brasil e A Esquerda Fora do Lugar. A figura do lulismo é ainda pouco conhecida entre nós, embora se possa ter muitas pistas, como vem se dando desde 2002 pelo menos.

    Em rápidas palavras, o lulismo é a figura carismática e em momentos de apogeu foi quase messiânica, de um líder que conseguia atingir as duas pontas da classe trabalhadora. No apogeu do Lula, ele tinha um respaldo quase inquebrantável da classe trabalhadora organizada brasileira, aquela classe trabalhadora que tem formas de associação sindical ou de algum outro nível, onde Lula era sua principal liderança. Não sem razão. É preciso dizer que Lula foi, talvez, a maior liderança sindical do século 20 brasileiro. É passado, mas foi. E foi com base nessa trajetória, de 1975 até 1989, e depois até 2002, algo real, que ele se tornou uma liderança nacional.

    O lulismo, e em particular seu personagem, está também atado de forma indissolúvel à figura do Lula – assim como o varguismo está atado a Vargas e o brizolismo à figura do Brizola. Mas o lulismo não tem herdeiros. É um limite entre tantos outros do Lula. É tão autocentrado e personalizado que não tem herdeiros. O varguismo ao menos teve o janguismo e o brizolismo como herdeiros, entre outros que não eram Vargas, mas tentaram remar de forma similar. O lulismo não tem herdeiro algum.

    No entanto, como dito anteriormente, com a crise do mensalão, a primeira devassa que se abateu na alta cúpula do PT, mostrando a corrupção política e, como sabemos hoje, com grandes traços de corrupção privada e enriquecimento pessoal, foi uma crise profunda. E a crise de 2005 tem muitas similaridades com a atual. Não tenho dúvida de que o Lula esteve a alguns segundos de sua renúncia naquele fatídico ano. Não tenho nenhuma dúvida disso, embora não tenha elementos objetivos. É pura intuição. Não sei se os leitores lembram de uma entrevista que ele deu na França, a uma jovem jornalista, completamente perdido. Seus olhos rodopiavam mais que pião. Só girava, não sabia o que responder. Dizia-se alvo de traição de dentro do próprio PT.

    Depois de passado aquele período, Lula ganhou as eleições em 2006 e começou seu segundo governo. Houve uma mudança importante, conforme escrevi na época: “Lula começava a migrar da classe trabalhadora mais organizada para os setores mais empobrecidos da sociedade brasileira, que vivenciam os trabalhos mais precarizados, até o completo não trabalho e desemprego, típicos das populações pobres dos rincões brasileiros, onde o programa Bolsa Família teve incidência”. Vamos lembrar que o Bolsa Família começou no segundo mandato. No primeiro mandato o programa era o Fome Zero e foi um fracasso completo.

    O Bolsa veio com um novo desenho, atingiu milhões de famílias e criou um bolsão eleitoral, que no fundo era uma tragédia política. O Bolsa Família garantia a sobrevida de famílias paupérrimas. A miséria poderia ser eliminada através de reformas estruturais profundas, pra diminuir a miséria brasileira, a exemplo do que seriam reformas agrária e urbana profundas e mudança do padrão capitalista brasileiro… Nada. O governo passou longe disso e o Bolsa Família passou a ser um modus operandi perpetuador do governo Lula. Com o Bolsa, o PT teria uma base excedente garantidora das vitórias eleitorais.

    Esse segundo substrato de apoio ao lulismo garantiu a perda de apoio do Lula em setores organizados da classe trabalhadora. Quando vimos que nas eleições o Aécio – essa figura grotesca da direita brasileira – teve mais votos no ABC do que a Dilma, mostrou-se o tamanho da perda de apoio ao lulismo nos estratos organizadas da classe trabalhadora brasileira – embora no ABC haja uma classe média expressiva, ainda é um cinturão industrial. E a perda também atingiu as periferias.

    É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. E quando a criatura vai à falência, como a Dilma, uma parte expressiva da conta vai para o criador, pois é corresponsável pela falência política do governo de sua criatura, a exemplo de Paulo Maluf com Celso Pitta em São Paulo. Aliás, outro erro grave de Lula é a indicação de uma pessoa completamente inexperiente, pois qualquer um com o mínimo de lucidez sabia que na crise a Dilma não daria conta – e sou obrigado a dizer de novo que meus artigos apontavam isso na época.

    Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT. Ninguém faz nada dentro do PT que não seja completamente dependente de Lula. Qualquer mínimo exercício de autonomia é tolhido por Lula, outro traço certamente nefasto do lulismo.

    A intuição que tenho é que para Lula ganhar uma eleição vai ter de suar muito a camisa, vai ter que usar muito a voz, que já sabemos não ser mais a mesma, nem literal, nem metaforicamente. Vai ter de suar demais, porque o desgaste do PT é poli e multiclassista. Esse é o dado novo. Ele perdeu o apoio decisivo das classes ricas, dominantes e proprietárias. De forma devastadora, perdeu apoio das classes médias tradicionais – o mito de que o PT criou uma nova classe média não pode ser levado a sério. E perde apoio, também exponencial, nos vários estratos distintos, “compósitos e heterogêneos”, para lembrar nosso querido Florestan Fernandes, que fazem parte da nossa classe trabalhadora. E Lula sabe de tudo isso.

    Só uma mudança muito profunda de situação, com expansão econômica em 2017, a apagar um pouco da tragédia atual, pode dar-lhe sobrevida. Hoje não tem, e se imaginar que tem sobrevida garantida estará errando mais uma vez. Sua sorte é que a oposição mais à direita – porque o PT tem um amplo leque de direita ao seu lado – não tem candidato forte. Aécio saiu fortalecido da última eleição, porque seu nome tornou-se mais nacional, mas o próprio PSDB não se entende, e o Alckmin não quer deixar que as Minas Gerais novamente carreguem a bandeja.

    Já as esquerdas do PT não foram capazes de esboçar até hoje uma confluência política de tantos movimentos sociais e sindicais que pudessem gerar novas lideranças. De certo modo, já vemos novas lideranças aparecendo em movimentos. Na última eleição, Luciana Genro qualificou-se como jovem candidata de esquerda, corajosa e capaz de tratar temas contemporâneos com qualidade. Mas ainda não conseguimos criar confluência social e política. Há algumas lideranças como a de Luciana Genro – à medida que tem ligações fortes com PSOL e a juventude – ou o Boulos do MTST, em São Paulo, mas estamos aquém de ter uma alternativa. Portanto, o quadro para 2018 também é muito nebuloso.

    A única coisa que me parece evidente é que imaginar o Lula vencedor das eleições em 2018 significa não ter ideia do nível de corrosão que o PT e todos os seus dirigentes vêm sofrendo, de modo devastador.

    Correio da Cidadania: Já que você falou de Boulos e Genro, o que pensa das iniciativas de reação a esse quadro de retrocessos generalizados, tanto dentro quanto fora do escopo governista, a exemplo da Agenda Brasil (mais governista) e da conformação da Frente Povo sem Medo?

    Ricardo Antunes: São manifestações distintas, embrionárias e num quadro defensivo. Quanto à primeira das citadas, pensar numa Frente de Esquerda com liderança do PT enseja a pergunta jocosa: “a Odebrecht vem junto?” É uma piada. Se não fosse verdadeiro, seria piada. Frente de Esquerda com o governo que está em seu quarto mandato e ainda não tomou nenhuma medida de esquerda, nenhuma, que minimamente contrariasse os interesses dominantes, é piada. De novo: não tomou nenhuma medida de esquerda. Não houve nada no sentido de falar “agora o governo é popular e o país não vai ser mais o mesmo”.

    Não houve taxação de grandes fortunas; não houve reforma tributária progressiva, algo elementar, no sentido de tributar mais quem tem mais e destributar a classe trabalhadora; não houve nenhuma mudança da estrutura agrária, pelo contrário, o PT foi espetacular para o agronegócio. A burguesia agrária, devastadora, que não faz outra coisa se não aprofundar o uso de transgênicos e pesticidas, foi inteiramente beneficiada pelos governos do PT.

    Portanto, uma “Frente Popular” ou “Frente de Esquerda” com o PT é provocação. Só se for uma Frente de Esquerda para carregar cadáver político. O PT tem de ser responsabilizado por suas atitudes. Claro que me refiro à ala dominante do partido e separo certos núcleos de base, as pessoas sérias, a militância que acreditava num partido diferente, como nos anos 80.

    Mas o núcleo dominante do PT, que está em parte encarcerado, em parte processado, não tem mais como chegar no PSOL, no PSTU, nos movimentos, e dizer “vamos costurar, agora que estamos morrendo, uma Frente de Esquerda”. Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. O PT de 2015 tem muito pouco a ver com o PT de 1980. A CUT perdeu, ao longo dos anos 2000, um conjunto enorme de tendências e militantes sociais que estavam lá desde sua formação, em 1983. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso.

    Naturalmente, sou contrário ao impeachment. Até prova cabal de que a presidência esteve diretamente envolvida em corrupções, como se prova hoje em relação a Cunha (e como deveria se provar com as muitas “Lava Jatos” de governos de PSDB, DEM etc.). As pedaladas podem ser reprováveis, mas aí teríamos de “cassar” os mandatos de FHC e de todos os governos e prefeitos que fizeram e fazem o mesmo. Elas podem ser reprováveis, mas não podem valer somente com um governo.

    Iniciativas como a “Frente Povo Sem Medo” e vários outros movimentos têm uma dificuldade interna. São muito importantes para dizer, por exemplo, que o Levy é, sim, o governo Dilma. Ele não foi imposto contra a vontade. Primeiro, ela tentou o Luiz Carlos Trabuco e por sorte deus nos livrou desse trambolho, como o próprio nome indicava. Aí veio o Levy. E as medidas do Levy são as medidas de Dilma. E do PT também, pois o Lula tem dito que é preciso apoiá-las.

    Outro ponto: dizem que Levy não tem apoio do PT. Mas nunca vi uma nota pública do Lula desqualificando Levy. O Lula, pícaro que é, vai no MST e faz um discurso bravio. Depois vai na Dilma e fala “maneira, Dilma, entrega tudo ao PMDB, até a alma”. Importante é ver que a tragédia, que ruiu em 2015, foi toda arquitetada por Lula: uma frente de conciliação entre modos de ser incompatíveis e antagônicos. Mas Lula tem uma habilidade política espetacular, é um homem da conciliação. E a Dilma é da rejeição. O que ouvimos dizer é que a convivência diária com a Dilma é infernal. Ela é autoritária, autocrática, mandonista, impositiva. O oposto do Lula, uma figura “encantadora” para praticar, espetacularmente, a conciliação.

    Ou seja, o PT foi fagocitado justamente por aquilo que criticou. O PT nasceu nos anos 80 criticando a política de conciliação de classes do velho PCB. O PT está sendo completamente fagocitado por uma política de conciliação na qual se entregou de corpo e alma para o demônio, o capital. Agora é vomitado e devolvido, porque não interessa mais. Agora o demônio quer de volta os velhos executores de sua política.

    A questão dessas manifestações é: muito dificilmente se pode criticar o Levy e defender Dilma. Eu não concordo com isso. Criticar o Levy nos obriga a dizer que o governo Dilma é nefasto e antipopular. Mas é muito difícil dizê-lo e, ao mesmo tempo, também conforme penso, afirmar que não dá pra aceitar a derrubada do governo. Hoje seria com a Dilma, mas amanhã poderia ser contra Luciana Genro ou qualquer governo popular. É inaceitável. Não falo de golpe militar, mas parlamentar. Como todos sabem, em 1964, quando Jango saiu de Brasília a Porto Alegre para buscar forma de resistir ao golpe, o parlamento e os Cunhas de então legitimaram a “vacância do cargo” e o golpe militar.

    Por isso que o atual parlamento está na sarjeta. É das instituições mais repudiadas e tenho impressão de ser mais rejeitada que a Dilma, com essa bancada BBB, mais o capital financeiro e tudo o mais que há por lá, salvo pequenos núcleos ligados às esquerdas, que são minoritários.

    Correio da Cidadania: Estamos diante da maior taxa de desemprego dos últimos cinco anos. Já se pode fazer um balanço contundente a respeito das políticas de ajuste fiscal ditadas pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e suas graves consequências sociais em geral e para o mundo do trabalho em particular?

    Ricardo Antunes: Existe a aparência de algo nefasto porque esse projeto é essencialmente nefasto. É o projeto do sistema financeiro, no sentido de ser momento de enxugar o Estado em tudo que diz respeito às suas atividades públicas e sociais. O que se gasta com a dívida pública e juros que se remuneram ao sistema financeiro é muito maior que todo o arrocho praticado pelo ajuste fiscal de 2015.

    Bastaria outra política, de contenção de juros, antiespeculativa, com outro rumo, o que neste momento, com esse governo, seria impossível. Mas ninguém poderia esperar em outubro de 2014 uma guinada à esquerda do PT, depois de 12 anos servindo as direitas e aos capitais.

    A Dilma não poderia fazer diferente, portanto. Podia continuar o que já vinha fazendo, o que daria em curto-circuito, ou jogar a conta em cima dos assalariados, como feito. O ajuste se resume ao mesmo que as classes dominantes sempre fizeram em tempos de crise: jogar a conta para a classe-que-vive- do-trabalho, que depende do salário pra sobreviver. E hoje não tem emprego, não tem seguro-desemprego e vivemos uma situação mais triste que anteriormente.

    O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Era uma redistribuição por dentro dos assalariados. Os capitais só engordaram e cresceram no Brasil da era Lula.

    Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem. As respostas da classe trabalhadora serão duras contra o PT. E será triste se não formos capazes de ao menos germinar alternativas à esquerda, capazes de canalizar o descontentamento e não deixá-lo ir pra direita, desse modo tosco e bruto que vemos.

    Que ao menos comecemos a reinventar a ideia de outro modo de vida, outro modo de produção, outra organização da política, que recuse essa institucionalidade. Um modelo mais democrático, mais popular, mais fundado na soberania do povo, com mais assembleias e plebiscitos. Enfim, o exercício de alguma coisa de novo tipo.

    Correio da Cidadania: Diante do que você espera de uma continuidade do mandato de Dilma e suas consequências na vida política nacional, o que restará para a população, em termos de condições de vida e trabalho?

    Ricardo Antunes: Vários movimentos. Deterioração das condições de vida, destroçamento do que resta da res publica, com a saúde e a educação públicas ficando mais precarizadas. O governo estadual do PSDB fecha escolas! Ou seja, a coisa passa por todas as esferas de governo. Quando Levy anunciou suas primeiras medidas, a pasta que mais sofreu cortes foi a Educação. Essa tendência vai aumentar.

    Paralelamente, vamos ter aumento das revoltas e rebeliões. É evidente. A população das periferias adquiriu um novo patamar de consciência de seus direitos e das tragédias que permeiam o país. A Copa das Confederações (em junho de 2013) conjugou três movimentos: as rebeliões do mundo inteiro (Oriente Médio, EUA e Europa), a percepção da falência do mito do projeto lulista e, por fim, o fato de os megaeventos esportivos mostrarem que havia dinheiro pra estádio, pra Copa, pras transnacionais, mas não pra educação e saúde.

    Não é difícil imaginar, novamente, uma situação de curto-circuito com esses três fios se interseccionando e reaparecendo um quadro favorável a rebeliões de massa. Se não caminhar em tal direção, teremos rebeliões episódicas e moleculares em todo o país, mais ou menos passivas. Greves também, coisa que o Brasil só viu crescer nos últimos anos. Em 2013 e 2014 o número se ampliou ainda mais, conforme dados do Dieese. E em 2015, quem está empregado teme o pior. Quem está no desemprego, não tem muito a perder.

    Imagino uma nova era de rebeliões. Se mais ou menos moleculares, não sabemos. Tomara que essas manifestações de rua, greves, de caráter polissêmico, que marcam as lutas sociais do país, comecem a encontrar alguns polos de confluência que permitam um salto. Uma ideia que venho elaborando mais recentemente, uma triste constatação, é que as direitas, em 2015, politizaram as rebeliões de 2013 para seu campo, isto é, da contrarrevolução, do ódio ao comunista, ao socialista. Todos são comunistas, o PT é comunista, até os liberais! A direita vê comunista até no rabanete das feiras livres.

    Correio da Cidadania: Conclui-se que a esquerda agora vê o preço de não ter acelerado sua reorganização nos últimos tempos?

    Ricardo Antunes: As esquerdas dos movimentos sociais não conseguiram dar um salto, a partir das manifestações de massa e populares, para um patamar mais ofensivo. Tomara que saibamos avançar. O caminho, que em geral nossas esquerdas têm dificuldade de encarar, é não ficar focado na próxima eleição. Não adianta pensar nas eleições de 2016, 2018! Precisamos de um campo social e político organizado pela base, em manifestações cotidianas, decisões plebiscitárias, avanço de ações coletivas, sejam sindicais ou sociais. É necessária uma articulação mais generosa dessa enorme multiplicidade de movimentos sociais e das esquerdas, onde isoladamente cada um de nós somos poucos. Mas juntos, não!

    Outro ponto é que trabalhamos muito com a dicotomia movimentos sociais x partidos. Um ou outro. Não estou de acordo que são dicotômicos. Os movimentos são muito importantes por estarem atados à vida cotidiana. A questão da terra é o sentido da vida para o MST, o assalariado rural, a camponesa. Terra, alimentação, casa e vida nova. Os sem teto sabem que na arquitetura do “planeta favela” os ricos vivem fechados em guetos com segurança à lá Robocop e fazem as periferias serem expulsas para lugares ainda mais periféricos. O estádio Itaquerão é exemplo perfeito: a região se valorizou e teve gente que foi expulsa para a periferia da periferia.

    Os movimentos, portanto, têm muita colação com a vida cotidiana, mas têm mais dificuldade, até pelos seus métodos e necessidades, de terem projetos mais longevos, de pensar no amanhã e também no depois de amanhã e combinar com a atualidade. Falo isso deixando de lado as excepcionais exceções, trata-se mais de uma síntese. Os partidos de esquerda ao menos reconhecem que precisam adentrar o século 21 pensando o novo. Refiro fundamentalmente a PSOL, PSTU, PCB e pequenos grupamentos que procuram se inserir no mundo e na vida real, e em geral têm um olhar mais longevo, a respeito de que sociedade queremos e como caminhar. Mas têm uma grande dificuldade de se vincular às lutas cotidianas, que são exatamente a força dos movimentos sociais. A força de uns é o limite de outros e vice-versa.

    Estou fazendo uma síntese, repito. Não sou da ideia de que “os partidos acabaram, viva os movimentos sociais”! Os movimentos podem ter muita vinculação com a vida concreta, mas é difícil um movimento ter a longevidade, por exemplo, do MST. Este, é um movimento forte porque tem dinâmica e vida de base, não só de luta cotidiana. As mulheres do MST podem discutir ações e atitudes, assim como os assentados, pois têm autonomia na base que lhes permite avançar um pouco. E creio que o mesmo possa se dizer, em certa medida, no MTST. Mas eles também têm dificuldades.

    Muitos movimentos sociais nascem e desaparecem. Os partidos ao menos têm se mostrado mais longevos, porém, perdem capilaridade com a vida cotidiana, de tal modo que o salto positivo no século 21 seria a aproximação desses dois polos orgânicos do mundo do trabalho. A energia que ainda tenho invisto nessa direção, que talvez nos permita sair de um momento, para lembrar Florestan Fernandes, de contrarrevolução. Das rebeliões de 2013 às “contrarrebeliões”. Do flagelo dos imigrantes na Europa à construção de muros pelo Estado fascista húngaro, para que não atravessem o continente. Assim como as, até agora, balas de chumbinho nos haitianos em São Paulo o demonstram.

    Fonte: Correio da Cidadania, 09/11/2015

  • Do privado ao Comum, práticas de uma reforma urbana radical

    Do privado ao Comum, práticas de uma reforma urbana radical

    Entrevista especial com Joviano Gabriel Maia Mayer

    “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades”, frisa o advogado.

    foto1Ao contrário do que se supõe à primeira vista, maioria não se opõe à minoria (há aqui apenas uma diferença de grau). Maioria se opõe à Multidão, no sentido de totalidade das singularidades. No espaço urbano, as disputas biopolíticas que se dão nas cidades tensionam um modo de ser análogo a uma espécie de fábrica pós-fordista que produz uma única coisa de inúmeras formas: o Comum. “Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade. Assim, é nessa fábrica pós-fordista, esparramada pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva se conforma cada vez mais como uma intelectualidade da multidão”, explica Joviano Gabriel Maia Mayer, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

    “Se, por um lado, o poder instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio do medo e das paixões tristes, por outro, os(as) ativistas de todo o mundo reconhecem a dimensão política da felicidade e das paixões alegres para potencializar as resistências e agregar mais pessoas”, provoca o entrevistado. Ele coloca que o binômio Estado-Iniciativa Privada só é capaz de oferecer políticas públicas verticalizadas e rígidas, como o Minha Casa Minha Vida. “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades”, completa.

    Joviano Gabriel Maia Mayer possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG. Atualmente é sócio fundador do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular.

    Mayer esteve no IHU nesta quarta-feira, 07-10, ministrando a conferência Por uma teoria e uma prática radical de reforma urbana: o caso BH em comum, que integra o evento 2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, que segue com suas atividades até o dia 05-11-2015. A próxima atividade será a conferência Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, com o professor Mário Leal Lahorgue, que ocorrerá no dia 22-10-2015, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas aqui.

    Confira a entrevista:

    IHU On-Line – De que maneira as cidades se constituem enquanto espaços de produção do Comum?

    foto2Joviano Gabriel Maia Mayer – As apostas lançadas no tabuleiro da política que tomam o comum enquanto horizonte de enfrentamento ao capital e construção de novos modos de existir se amparam fundamentalmente na produção social contemporânea, nos marcos do capitalismo pós-fordista neoliberal que toma as cidades como lócus (e objeto) privilegiado à acumulação de riqueza. Por outro lado, o que caracteriza o capitalismo pós-fordista do nosso tempo é uma estrutura produtiva dinâmica e flexível, disseminada em rede e fundada sobre a cooperação das singularidades, em que a produção imaterial tende progressivamente a suplantar a hegemonia da produção industrial: ideias, informações, conhecimentos, formas de comunicação, relações sociais, etc., como “fonte primordial de riqueza”, tendo a produção de subjetividade a primazia sobre qualquer outro produto. Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade. Assim, é nessa fábrica pós-fordista, esparramada pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva se conforma cada vez mais como uma intelectualidade da multidão.

    Metrópole biopolítica

    O que seriam os piquetes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST nas principais avenidas de São Paulo se não a investida política em face da produção/circulação de mercadorias materiais/imateriais nessa gigantesca fábrica biopolítica? Como diz Peter Pelbart, [1] vivemos num “momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer na sua máxima força de afetação, e de maneira imanente, dado o novo contexto produtivo e biopolítico atual” (PELBART, 2011:29). Posto isso, fica mais claro como rastrear e cartografar a produção do comum no âmbito da metrópole biopolítica almeja alcançar pistas, possíveis indicações de como, “no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade, surgem novas modalidades de agregar, de trabalhar, de criar sentido, de inventar dispositivos de valorização e de autovalorização” (PELBART, 2011:23), fora do comando exercido pelo Estado-capital e de modo antagônico aos valores capitalísticos por ele encampados e disseminados na conformação das subjetividades, seja na escola, seja via concessões públicas do espectro rádio-televisivo ou via dispositivos móveis parcelados em 24 meses no cartão de crédito.

    Desse modo, já não cabem formulações e projeções utópicas, ou seja, prescindimos de construtos imaginativos apartados da realidade para nos fazer caminhar rumo à sociedade pós-capitalista, visto que o comum se confirma no horizonte da metrópole biopolítica exatamente porque o presente traz consigo uma produção que é comum; em outras palavras, não se trata de utopia, porque a aposta em torno do comum parte do campo de imanência, da dimensão constituinte da produção biopolítica. De igual modo, a felicidade capaz de nos mover é mais aquela que hoje experienciamos nas resistências positivas, mais do que qualquer outra situada no lugar da utopia, ou melhor, no não-lugar. Basta observar as formas de produção, organização e expressão dos movimentos multitudinários na atualidade para perceber a importância dada à busca da felicidade e à experimentação de outros modos de vida no seio das lutas. Se, por um lado, o poder instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio do medo e das paixões tristes, por outro, os(as) ativistas de todo o mundo reconhecem a dimensão política da felicidade e das paixões alegres para potencializar as resistências e agregar mais pessoas.

    IHU On-Line – Como os movimentos de resistência da Multidão tensionam a lógica hegemônica de pensar o espaço urbano?


    Joviano Gabriel Maia Mayer –
    Mais do que a lógica hegemônica de pensar o espaço urbano, os movimentos multitudinários tensionam a própria lógica de produzir o espaço urbano. As resistências positivas, espaços performáticos de combatividade, afetividade e subjetividade, tomaram de assalto as metrópoles como territórios privilegiados de disputa, sobretudo no tocante ao enfrentamento a grandes projetos urbanos ancorados no paradigma da cidade-empresa do planejamento estratégico e das parcerias público-privadas. Nos marcos do neoliberalismo, cada vez mais as resistências se expressam como a defesa de bens comuns frente ao avanço da acumulação por espoliação (HARVEY, 2005), perpetrada ora pelo Estado, ora diretamente pelo capital, mas quase sempre pelo Estado-capital, unidos em simbiose para a captura do comum. Por outro lado, as ações dos movimentos de resistência da multidão potencializam na cidade a conformação de contrapoderes, redes e conexões subversivas, baseadas na comunicação, cooperação e criatividade, em contraposição à cidade neoliberal das parcerias público-privadas. Do Parque Gezi [2] na Turquia, ao parque Augusta [3] em São Paulo; da praça Tahrir [4] no Egito à Puerta del Sol [5] em Madrid, do cais do porto Estelita [6] no Recife à praça de concreto transformada em “Praia da Estação” [7], em Belo Horizonte, em todos esses processos é possível captar um desejo compartilhado de democracia real frente à investida do Estado-capital a despeito dos interesses da coletividade.

    Democracia Real

    Democracia real que se contrapõe à “democracia direta do capital” característica do paradigma da cidade-empresa. Ademais, a própria complexidade do urbano, enquanto sede privilegiada do poder político e econômico, onde se concentra tudo aquilo que faz a sociedade contemporânea em todos os domínios, especialmente nas metrópoles, cobra a cooperação transdisciplinar como mecanismo indispensável à compreensão dos fenômenos socioespaciais interligados com sua dimensão subjetiva. A “lógica do caos” que acompanha aquilo que Guattari (1992) denominou “cidade subjetiva” exige o uso de métodos de pesquisa que assumam o desafio da complexidade urbana, como é o caso da copesquisa cartográfica, método assumido pelo grupo de pesquisa Indisciplinar UFMG, do qual faço parte.

    As lutas multitudinárias nos inspiram a pensar como a inteligência coletiva, ou melhor, como a inteligência de enxame da multidão “pode inventar e construir uma sociedade na qual quem governe seja a sociedade em rede, a riqueza coletiva da cooperação, a potência do comum” (HERREROS e RODRÍGUEZ, 2012:113). Noutros termos, as práticas, estratégias e objetivos das lutas dos movimentos da multidão, embora diferentes, são capazes de se conectar, se combinar e, quiçá, constituir ações e projetos plurais compartilhados. Na atualidade ganha destaque o desejo ambicioso da multidão metropolitana de produção e defesa do comum urbano, partindo da expressão das múltiplas singularidades, sob as bases da democracia real, para além da gestão democrática da cidade concernente às intervenções no espaço. A cidade-empresa do paradigma neoliberal de planejamento estratégico é, por sua vez, a expressão mais bem acabada da ofensiva público-privada contra o comum. Talvez por isso o direito ao comum seja, em última instância, um possível horizonte de convergência das forças vivas que enfrentam o Estado-capital na metrópole biopolítica. Acrescente-se ainda que o comum enquanto princípio político, ao ser criticamente confrontado com a realidade das resistências, das organizações e movimentos, pode contribuir para dar sentido, orientar as práticas de produção, gestão e deliberação, além de potencializar e conectar em rede uma pluralidade de lutas e práticas alternativas antagônicas à cidade-empresa.

    IHU On-Line – De que forma os processos históricos, a partir do século XVIII, foram transformando as cidades, que eram espaços de refúgio e liberdade, em ambientes de acumulação capitalista?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – O capitalismo se formou fora dos muros das cidades. Cabe aqui um breve retrospecto. De fato, a cidade criou as condições de expansão da grande indústria, concentrando a mão de obra, o mercado consumidor, os capitais acumulados, a infraestrutura e o poder político. Simultaneamente, a grande indústria levou ao crescimento da cidade, revolucionando a organização do espaço em nível planetário. A natureza, antes dominante, passou a ser dominada por meio de técnicas cada vez mais sofisticadas. Entretanto, até a conquista do poder político pela burguesia revolucionária europeia, durante séculos a cidade foi o refúgio contra a opressão feudal, o destino prioritário daqueles que buscavam a felicidade, a liberdade e a justiça (PAULA, 2006).

    A partir do século XVIII, a cidade se tornou espaço privilegiado da reprodução do capital, abrigando a grande indústria em prejuízo das corporações de ofício. Durante esse percurso a própria estrutura urbana passou a ser produzida e reproduzida sob a lógica da acumulação capitalista, manifestando a cidade não apenas como espaço de reprodução do capital, mas também como objeto desta reprodução, determinada, em grande medida, pela expansão do capital imobiliário, elevado à condição de importante indutor do crescimento econômico. A cidade, gradativamente, reproduziu as contradições sistêmicas da nova ordem social, mercantilizou-se para ser vendida aos pedaços, um produto e não mais uma obra genuinamente humana. O privado se revoltou contra o público, e a festa, antes na rua, espaço comum, torna-se fechada, privada.

    A cidade se tornou assim, ao longo do desenvolvimento do capitalismo, um grande negócio, mais do que isso, tornou-se a nova fábrica do capitalismo contemporâneo, “a usina de geração do mundo, fabrica mundi, usina biopolítica de que precisa o capitalismo para vitalizar-se” (CAVA, 2015), plataforma fundamental de acumulação do capital global, espaço privilegiado de controle político, econômico, cultural, etc.

    IHU On-Line – De que maneira o espaço urbano se transformou em um grande laboratório das forças sociais? Quais são as potencialidades desses movimentos de resistência?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – A cidade, especialmente na sua forma metropolitana, agregou no tempo e no espaço as condições objetivas e subjetivas para a libertação da multidão frente ao domínio capitalista imperial. No final do século XIX, Engels [8] já afirmava que somente o proletariado “criado pela indústria moderna e concentrado nas grandes cidades, libertado de todas as cadeias tradicionais, inclusive das que o ligavam à terra, é capaz de realizar a grande revolução social” (ENGELS, 1988). Nesse sentido, a nostalgia romântica da volta ao campo do velho e bom camponês, agora incorporado ao espaço urbano e quebrado em seus tradicionais valores, representaria “atrasar o relógio da história” (idem).

    O mesmo raciocínio agora vale para a multidão ante o proletariado descrito por Engels, pois a biopotência criativa da multidão, na qual reside a possibilidade da produção do comum, não deixa margem a nenhum tipo de nostalgia ou utopia com relação às ilhas isoladas pelo oceano. Com todos os seus graves problemas, contradições e mazelas, é a cidade que oferece as maiores possibilidades emancipatórias, pois, dentre outras inúmeras razões, concentra no mesmo território, conectados em redes comunicativas e colaborativas cada vez mais amplas, os(as) agentes da transformação — trabalhadoras, trabalhadores, e todos os que vivem sob o domínio do capital —, o fluxo de informações, a produção artístico-cultural, os avanços tecnológicos, os encontros afetivos, a produção de subjetividade, o poder político, etc. Desse modo, avançar na construção e no compartilhamento dos princípios que orientam as práticas dos movimentos de resistência é importante na medida em que “podem criar o andaime sobre o qual, no caso de uma ruptura social radical, uma nova sociedade possa ser construída” (HARDT e NEGRI, 2014:138).

    IHU On-Line – Como o conceito capitalista de pensar o espaço urbano se converte em atomicismo e em uma espécie de antiurbanismo?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – É interessante notar como a configuração da cidade, em princípio, indica a organização da população em torno de uma vida comunitária — casas próximas umas das outras, espaços de convivência, equipamentos sociais compartilhados, sistema público de comunicação e transporte. Entretanto, o que sobressai, contemporaneamente, é o espaço esmigalhado vendido aos pedaços, a segregação social e racial, o isolamento e o atomicismo. Como dito anteriormente, o capitalismo corrompeu a cidade, fez do solo uma mercadoria valiosa e escassa, protegida pelo instituto sagrado da propriedade imóvel e, paralelamente, criou uma ideologia antiurbana capaz de fazer ruir sua construção como espaço da liberdade, do encontro e da solidariedade. No quadro urbano na atualidade, a exploração direta do(as) trabalhadores(as) se multiplica por meio de uma exploração indireta (LEFEBVRE, 2001) que se estende ao conjunto da vida cotidiana. Esta superexploração é evidenciada, por exemplo, no tempo livre do(a) trabalhador(a) gasto na autoconstrução de sua moradia, nas horas sacrificadas no longo percurso diário entre a casa e o emprego ou, ainda, na carga do trabalho doméstico invisível e não remunerado desempenhado pelas mulheres, indispensável para a reprodução da força de trabalho.

    Obscurantismo

    Em paralelo, como veementemente criticou Henri Lefebvre, [9] o urbanismo mais oculta do que revela, produz representações ideológicas e institucionais que não dão conta da realidade urbana, com suas problemáticas e práticas, de modo que “a ciência do fenômeno urbano só pode resultar da convergência de todas as ciências” (LEFEBVRE, 2008). Atualmente, entretanto, já não basta mobilizar todas as ciências já que a compreensão da realidade urbana também cobra outros saberes que não gozam necessariamente do estatuto científico.

    Multiplicidade de olhares

    Evidentemente, a investigação/intervenção sobre o território na metrópole demanda uma multiplicidade infindável de olhares, saberes e formas de expressão: da arquiteta à performer, da produtora cultural à advogada, da liderança comunitária à artista plástica, da cientista política ao morador em situação de rua. Ora, quem melhor para dizer sobre as opressões relacionadas aos processos segregatórios das cidades do que os(as) moradores(as) em situação de rua que trazem nos corpos as marcas da violência cotidiana? Quem melhor para falar sobre autoconstrução do que os(as) pobres urbanos que autoconstruíram suas casas nas favelas e ocupações, os(as) quais cunharam na história de produção das grandes cidades brasileiras essa forma autogestionada de apropriação espacial? É preciso extravasar os campos disciplinares formalmente reconhecidos pelo paradigma científico moderno, agenciando horizontalmente saberes científicos em sentido estrito com outros saberes, narrativas e formas de apreensão da realidade, subvertendo o lugar de enunciação para desafiar o pensamento ideológico hegemônico sobre o território.

    IHU On-Line – Atualmente, quais são as principais contradições do espaço urbano?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – Como dito, a afirmação do capitalismo financeiro global é acompanhada pela acentuação da centralização do capital na metrópole, impondo a ela uma determinada configuração espacial. Tal característica faz da metrópole, como condição geral de produção, o cenário peculiar das contradições próprias do capitalismo: centro e periferia, luxo e miséria, moderno e antigo, legal e ilegal, acessibilidade e exclusão, tudo isso “convivendo” no mesmo espaço metropolitano, forma estendida como condição planetária geral. A própria natureza desses antagonismos da vida metropolitana é essencial para explicar a emergência dos movimentos sociais urbanos em embate com o Estado-capital, provedor das condições necessárias à reprodução dos(as) trabalhadores(as) na cidade. Inegavelmente as manifestações de junho de 2013 no Brasil colocaram, aos movimentos sociais e aos partidos ditos de esquerda, a necessidade de aprofundar a compreensão dos mecanismos de produção e reprodução do espaço urbano, bem como a atuação dos agentes políticos e financeiros nesse campo. As rebeliões deflagradas, sobretudo pela multidão metropolitana, tiveram como pano de fundo a agudização da crise urbana, no entanto as forças políticas da chamada esquerda instituída ainda estão longe de compreender as complexidades próprias do fenômeno urbano fora do prisma estreito da contradição capital-trabalho. Também é evidente que compreender as contradições próprias da lógica de apropriação do espaço, sob os marcos do neoliberalismo, do planejamento estratégico e da cidade-empresa, é pressuposto para a compreensão da crise urbana, razão última das jornadas de junho de 2013, expressa no agravamento da mobilidade urbana e da questão habitacional, pautas centrais na atualidade.

    IHU On-Line – Quais são os principais desafios do movimento urbano na busca pelo comum?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – As transformações experimentadas no mundo do trabalho e as novas configurações da classe trabalhadora que emergiram da crise do fordismo colocaram desafios enormes às esquerdas tradicionais e especialmente à organização sindical que não está preparada para se opor de maneira ampla e contundente aos processos de acumulação por espoliação, sem contar que o neoliberalismo teve como um dos escopos principais o enfraquecimento das formas tradicionais de organização e luta do trabalho. Se, como diz Harvey, [10] na atualidade a acumulação por espoliação de fato está no primeiro plano da acumulação capitalista global, inegavelmente as lutas contra o saqueio neoliberal das nossas vidas, bens e formas de existência também ocupam hoje o primeiro plano das resistências contra o Estado-capital e, como as vidas são muitas, as lutas também são múltiplas.

    Ademais, como os métodos e as formas organizativas do mundo do trabalho são diretamente vinculados a um modo específico de viver e sentir a vida, cabe considerar as mutações operadas no mundo do trabalho que expressam, em síntese, a passagem do conceito de operário-massa para a noção de operário-social, o que se dá especialmente a partir da crise do fordismo e da emergência do chamado capitalismo cognitivo e imaterial que confere primazia à produção de subjetividades. Ocorre que a produção de subjetividade operada e determinada pelo poder instituído sempre deixa margem às resistências pela via de “dispositivos irresistíveis” (NEGRI, 2004). Entretanto, demorou muito para que as forças tradicionais de esquerda começassem a perceber o papel da subjetividade, tanto no domínio biopolítico exercido pelo Império, quanto na arena das resistências empreendidas contra o Estado-capital, as quais frequentemente trazem consigo a afirmação constituinte de outras formas de vida e relações pós-capitalistas. Se, de um lado, nos marcos do capitalismo cognitivo e imaterial, a produção de subjetividade ganha progressivamente importância na extração de mais valor (valores subjetivos agregados ao produto), por outro, a produção de novas subjetividades também se torna central para se vislumbrar qualquer ruptura com o domínio imperial e com o controle biopolítico exercido pelo Estado-capital. Porém, como diz Lazzarato, [11] estamos num momento em que “os métodos para a produção de subjetividade que brotaram do leninismo (o partido, a concepção da classe operária como vanguarda, o ‘revolucionário profissional’) não são mais relevantes para as composições de classes atuais” (LAZZARATO, 2014:19). Isso graças à perda de centralidade do proletariado (representado por um partido de vanguarda) como o sujeito revolucionário por excelência, especialmente em face da crise do fordismo e a nova configuração do trabalho imaterial que modificou profundamente a natureza e a composição da classe trabalhadora mundial.

    Horizontalidade

    Há muitos outros desafios para além daqueles inerentes às mudanças operadas no mundo do trabalho. Dentre eles a construção de processos autônomos e horizontais de produção coletiva, formação política e ação direta que canalizem as insatisfações dos(as) citadinos(as) e que expressem a construção do comum em oposição ao Estado-capital. Porém, lamentavelmente, as forças políticas construídas pela esquerda brasileira no último quarto do século passado, especialmente os partidos políticos e as centrais sindicais, mostraram-se inadequados como ferramentas políticas aptas a dar vazão à força multitudinária que eclodiu nas ruas em junho. As rebeliões urbanas de 2013 colocam às organizações tradicionais de esquerda a necessidade de rever velhas práticas políticas, reformular concepções tidas como verdades absolutas e ter humildade para se colocar lado a lado, horizontalmente, com a multidão que abalou as estruturas do poder instituído. Quem sabe assim, partindo da compreensão de que essa multidão metropolitana (que não se reduz à classe operária e seus aparelhos de representação) pode se revelar como potência constituinte frente ao poder instituído quando seus múltiplos desejos se confluem, essa velha esquerda possa contribuir na edificação de uma alternativa que confronte o controle biopolítico do Estado-capital a partir da produção do comum. Nas maiores metrópoles brasileiras atualmente, grandes projetos urbanos concebidos via parceria público-privada à revelia da população chamam a atenção como importantes trincheiras de organização multitudinária, mobilização política, constituição do comum e produção de novas subjetividades. Não somente pela amplitude desses projetos que muitas vezes afetam a vida de parte considerável da população, mas também por serem a expressão mais bem acabada da lógica de gerenciamento empresarial do espaço urbano.

    IHU On-Line – Frente os desafios habitacionais de nosso tempo, que estratégias são mais condizentes com a constituição do poder popular? Por que as ocupações se constituem em uma forma não somente de luta por moradia, mas também política?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – No Brasil, a questão habitacional é uma das principais questões modernas não resolvidas pela modernidade, o que ainda torna a luta pela moradia central na atuação dos movimentos urbanos, os quais recorrentemente utilizam as ocupações de imóveis ociosos como mecanismo legítimo de pressão política e efetivação do direito de morar. A legitimidade da retomada organizada ou espontânea de vazios urbanos inutilizados encontra guarida no próprio ordenamento jurídico nacional, sobretudo na função social da propriedade urbana, cumulada com o princípio democrático que pressupõe o direito de lutar pela efetivação dos direitos e o direito constitucional à moradia adequada que também goza de proteção no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é país signatário.

    Para além do objetivo imediato de conquista da moradia, a retomada de vazios urbanos pelos sem-teto implica a experimentação de novas formas de apropriação do espaço, nas quais princípios como a cooperação, o coletivismo ou a democracia real ganham conteúdo subversivo sob certas condições. É nesse domínio que a multidão (também) se revela como contrapoder: resistência, insurgência e poder constituinte, conjuntamente articulados, dinamicamente imbricados, ora mais, ora menos. Essas três dimensões do contrapoder, organicamente coadunadas, também podem ser identificadas na luta das ocupações de sem-teto. Resistência contra o desalojamento, liminarmente concedido, tão logo divulgada e denunciada a violação coletiva da cerca que protegia a ilegalidade do descumprimento da função social. Poder insurgente, por sua vez, consubstanciado na quebra do estatuto de propriedade como instituição protegida pelo Estado (constituído). Força constituinte conformada pela multidão na defesa e construção do comum urbano, cuja potência pode criar territorialidades contra-hegemônicas, novas sociabilidades, modos de vida, experimentações e narrativas insurgentes, em que pese o poder simbólico e material da cidade-empresa. Especialmente na última década e, ainda com maior intensidade, após as jornadas de junho de 2013, as ocupações organizadas por movimentos sociais se multiplicam nas metrópoles brasileiras, não raro garantindo o assentamento de milhares de famílias pobres que não podem aceder à aquisição da moradia, como é o caso de Belo Horizonte, em que grandes ocupações têm possibilitado moradia digna a milhares de famílias, a exemplo das ocupações da Izidora, [12] Dandara [13] etc.

    IHU On-Line – Que novas formas de convivência e, portanto, biopolíticas emergem com as ocupações nas Metrópoles?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – Nos territórios recuperados pelos sem-teto, a multidão se explicita como carne no fazer comum, organismo multiforme no qual não é possível diferenciar propriamente o corpóreo e o intelectual, a práxis e a teoria, a experiência concreta e o projeto encarnado. Enquanto o Estado e a iniciativa privada só têm o Minha Casa Minha Vida a oferecer, verticalmente, como política habitacional, com unidades rígidas, projetos padronizados e conflitantes com as culturas construtivas dos(as) pobres urbanos, as ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades. A autoconstrução nas ocupações urbanas é uma modalidade aberta de produção habitacional que respeita as práticas culturais e as singularidades dos pobres urbanos. Cabe lembrar que as ocupações e outras práticas de autoconstrução de moradias fazem parte da história de formação, expansão e esgarçamento das grandes cidades brasileiras, não há qualquer novidade em pobres ocupando imóveis ociosos para autoconstruir suas moradias e experimentar nos territórios aí constituídos formas de vida, produção, convivência e sociabilidade singulares. Como frequentemente afirmam os movimentos, a luta das ocupações de moradia não se reduz apenas à defesa do direito à moradia, não raro ainda confundido com o direito de propriedade, mas também dizem respeito ao direito à cidade.
    “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras”

    Resistência

    Isso também implica a defesa pelas famílias sem teto do seu modo de viver e ocupar o espaço na cidade, com autonomia para determinar, por exemplo, a tipologia e o tempo de construção da moradia, tempo quase sempre estendido e condicionado às condições econômicas de cada família, mas por outro lado sem o risco de retomada compulsória pela instituição financeira credora ao longo das décadas do financiamento imobiliário contratado. Nas ocupações, o risco do despejo por parte do Estado, por sua vez, é contornado pela fé coletiva no êxito da resistência organizada em rede para a defesa do território comum. Em Belo Horizonte, desde 2008, nenhuma ocupação urbana organizada pelos movimentos foi despejada! Dentre os desafios colocados aos movimentos urbanos e às novas ocupações de sem teto, destacamos a necessidade de se superar o limite estreito da propriedade privada dentro das próprias ocupações, com a demarcação de lotes individuais, para experimentar formas coletivas inovadoras de apropriação espacial, bem como avançar na dimensão constituinte da resistência, com a produção de equipamentos e práticas coletivas (econômicas, políticas e culturais) que aprofundem a produção de novas subjetividades nessas ocupações. Para tanto, talvez o primeiro passo seja conceber tais ocupações como espaços comuns de resistência biopotente e exercício democrático na metrópole contemporânea, sujeitos indispensáveis à construção de uma nova sociabilidade urbana.

    *Esta entrevista foi publicada originalmente na Revista IHU On-Line, Nº. 474, de 05/10/2015

    Notas:

    [1] Peter Pal Pelbart: graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, e em Filosofia pela Sorbonne, em Paris, é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP com a dissertação Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão (2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2009). Cursou doutorado na USP e é livre docente pela PUCSP. Entre outras obras, é autor de Vida capital. Ensaios de biopolítica (São Paulo: Iluminuras, 2003) e O tempo não reconciliado (São Paulo: Perspectiva, 1998). Leciona na PUCSP. (Nota da IHU On-Line)

    [2] Parque Taksim Gezi: é um parque urbano situado na Praça Taksim, no distrito de Beyoğlu, em Istambul, na Turquia. É um dos parques de menor tamanho da cidade. Em maio de 2013, o anúncio governamental de um plano que pretende demolir o parque para dar lugar à reconstrução do histórico Quartel Militar Taksim (demolido em 1940) e, também, à construção de um centro comercial, desencadeou uma onda de protestos na Turquia. (Nota da IHU On-Line)

    [3] Parque Augusta: é uma área de 24 mil metros quadrados, delimitada pelas Ruas Augusta, Marquês de Paranaguá, Caio Prado, no centro da Cidade De São Paulo. É uma propriedade privada, mas com áreas registradas em cartório como públicas – 80% dela não pode, por lei, ser alterada – e que uma parcela significativa da população paulistana quer ver transformada em parque público sem edificações em seu interior. (Nota da IHU On-Line)

    [4] Praça Tahrir cujo equivalente latino é “Praça da Libertação”): é a maior praça pública no centro de Cairo, Egito. Originalmente chamada Praça de Ismail, em honra a Ismail Paxá, vice-rei (quediva) do Egito no século XIX, que comissionou o projeto arquitetônico do novo distrito central da capital egípcia na década de 1860. Depois da Revolução Egípcia de 1952, quando o Egito deixou de ser uma monarquia constitucional e tornou-se uma república, a praça passou a se chamar midan al-tahrir, praça da libertação. (Nota da IHU On-Line)

    [5] Puerta del Sol: é um dos locais mais famosos e concorridos da cidade espanhola de Madrid. É neste local que se encontra desde 1950, o quilómetro zero das estradas espanholas.Em 2011 a praça foi ocupada por integrantes do Movimento 15M que protestavam por uma democracia mais participativa na Espanha. (Nota da IHU On-Line)

    [6] Ocupe Estelita: é um movimento social que se contrapõe à construação de 12 torres de uso residencial e comercial no Cais José Estelita, em Recife, Pernambunco. O local o abrigava o pátio ferroviário onde foi inaugurada a segunda linha ferroviária urbana do Brasil, em 1859, por Dom Pedro. (Nota da IHU On-Line)

    [7] Praia da Estação: trata-se de um movimento que surgiu em 2010 como uma reação a um decreto da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, um dos pontos turísticos mais antigos da capital mineira. (Nota da IHU On-Line)

    [8] Friedrich Engels (1820-1895): filósofo alemão que, junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo científico ou comunismo. Ele foi co-autor de diversas obras com Marx, e entre as mais conhecidas destacam-se o Manifesto Comunista e O Capital. Grande companheiro intelectual de Karl Marx, escreveu livros de profunda análise social. (Nota da IHU On-Line)

    [9] Henri Lefebvre (1901—1991): foi um filósofo marxista e sociólogo francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, onde se graduou em 1920. (Nota da IHU On-Line)

    [10] David Harvey (1935): é um geógrafo marxista britânico, formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana. (Nota da IHU On-Line)

    [11] Maurizio Lazzarato: Sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. É um dos fundadores da revista Multitudes. O IHU já publicou uma série de textos e entrevistas com Maurizio Lazzarato entre elas: O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte. Entrevista com Maurizio Lazzarato publicada na IHU On-Line, edição 468, de 29-06-2015, disponível em http://bit.ly/1WmGF9v; Subverter a máquina da dívida infinita. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 02-06-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1N0i2JB; “Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo”. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 05-01-2011, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejolW; “Os críticos do Bolsa Família deveriam ler Foucault…” Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 15-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GLy9d9; Capitalismo cognitivo e trabalho imaterial. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejOsv; As Revoluções do Capitalismo. Um novo livro de Maurizio Lazzarato. Reportagem publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GXuMlq. (Nota da IHU On-Line)

    [12] Resiste Izidora: batizada de Izidora, a ocupação mineira é formada por 3 vilas interligadas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) e tem cerca de 20 mil pessoas a mais que a paulista, quase todas morando em casas de alvenaria. A enorme área da Mata do Izidoro, na região norte da capital mineira. (Nota da IHU On-Line)

    [13] Ocupação Dandara: ocupação urbana na região norte de BH- MG que conta com mais de 1000 famílias organizadas há mais de 5 anos na luta por uma vida mais digna. (Nota da IHU On-Line)

    Referências

    CAVA, Bruno. Metrópole como usina biopolítica. O trabalho da metrópole: transformações biopolíticas e a virada do comum na conjuntura brasileira. In Revista on line do Instituto Humanitas Unisinos. Ano XV, nº. 464, 2015. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php… d=5909&secao=464. Acesso em 04 de julho de 2015.

    ENGELS, Friederich. A questão da habitação. São Paulo: Acadêmica, 1988.

    HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração – Isso não é um manifesto. São Paulo: n-1 edições, 2014.

    HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 2ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

    HERREROS, Tomás; e RODRÍGUEZ, Adriá. Revolução 2.0: direitos emergentes e reinvenção da democracia. In: Revolução 2.0 e a crise do capitalismo global. COCCO, Giuseppe e ALBAGLI, Sarita (Org.). Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2012.

    LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo, Editora n-1, 2014.

    LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. 2ª ed., Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.

    LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

    NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da multidão. In revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Comunicação, nº. 19-20, 2004.

    PAULA, João Antônio de. As cidades e A cidade e a universidade. In: As cidades da cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

    PELBART, P. P. Vida capital. Ensaios de biopolítica. Ed. Iluminuras: São Paulo, 1ª Ed., 2ª reimpr., 2011.

    Fonte: IHU, quinta-feira, 8 de outubro de 2015

  • Guilherme Boulos: “Não há saída mágica, é preciso retomar as ruas e o trabalho de base”

    Guilherme Boulos: “Não há saída mágica, é preciso retomar as ruas e o trabalho de base”

    Guilherme Boulos
    Guilherme Boulos

    Há um dilema na esquerda brasileira em meio a uma conjuntura negativa em todos os âmbitos. Em meio ao desmoronamento do projeto de poder lulista, que aglutinou durante décadas amplos setores da esquerda, vemos o avanço do capitalismo financeiro sobre os direitos trabalhistas, expresso também pela atual investida contra a previdência, o seguro-desemprego e a institucionalizada lei das terceirizações sem limites.

    “O caminho para a retomada de um novo ciclo de mobilizações é o aprofundamento e a radicalização do trabalho de base. É o que nós acreditamos e vemos a Frente Povo Sem Medo como um instrumento para atingir esse objetivo”, afirma Guilherme Boulos, em entrevista concedida ao Correio da Cidadania. Para ele, é preciso se defender do avanço conservador, mas também criticar e se opor às políticas de austeridade.

    Nesse sentido, diversos esforços têm sido feitos. No âmbito do lulismo, foi formada a Frente Brasil Popular, com a militância governista à frente e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como grande figura, ladeado por nomes como João Pedro Stédile, líder do MST. É inevitável associá-la à disputa presidencial de 2018. Apesar disso, vê-se um esforço por parte da militância em barrar retrocessos sociais promovidos pelo líderes do Congresso.

    “A saída para a crise não pode ser a proposta pela direita. Tampouco são essas políticas de austeridade, que põem a conta nas costas dos trabalhadores. Precisamos de uma saída à esquerda, taxar os ricos e fazer o enfrentamento necessário para que tenhamos um projeto popular”, afirmou.

    Guilherme Boulos, além de ressaltar a urgência de se promover o trabalho de base, faz uma breve análise sobre sua decadência como prática da esquerda e dos movimentos sociais, apesar de sua importância para uma retomada das ruas. “O preço de ter deixado o trabalho de base para centrar-se na disputa institucional foi altíssimo para a esquerda brasileira. E não tem espaço vazio na política. Esse espaço foi ocupado, hoje, principalmente pelas igrejas pentecostais e neopentecostais. Elas fazem trabalho de base”, pontuou.

    Confira abaixo a entrevista completa.

    Correio da Cidadania: É possível defender reformas com viés popular e ao mesmo tempo demonstrar apoio, ainda que crítico, ao governo federal e sua série de políticas de austeridade?

    Guilherme Boulos: A nossa postura não é de apoio ao governo. É uma postura de defesa das reformas populares e de crítica às políticas de austeridade. Isso precisa ficar claro. Por outro lado, nós não nos misturamos com aqueles que defendem a derrubada do governo, acabando por construir uma saída ainda mais à direita do que a colocada hoje no país. Nós não acreditamos que a construção com o Michel Temer e o PSDB possa ser boa para os brasileiros. Por outro lado, isso não nos faz defender o governo. É importante dizer isso. Se transformarem a discussão em “pão-pão, queijo-queijo” não conseguimos fazer uma discussão séria. O cenário é complexo e precisamos de posições que o respondam.

    O que estamos construindo na Frente Povo Sem Medo (e também reflete a posição do MTST), é a necessidade de um enfrentamento às políticas de austeridade do governo. Ao mesmo tempo, fazer enfrentamento a essa ofensiva conservadora que ocorre no país e não tem só o governo como parte, mas também setores da direita histórica brasileira, encastelados no parlamento.

    Uma elite típica da Casa Grande, que promove um discurso e uma prática nesse sentido. E, claro, defendemos uma saída à esquerda, com reformas populares. A saída para a crise não pode ser a proposta pela direita. Tampouco são as políticas de austeridade, que põem a conta nas costas dos trabalhadores. Precisamos de uma saída à esquerda, taxar os ricos e fazer o enfrentamento necessário para que tenhamos um projeto popular em pauta.

    Correio da Cidadania: Qual sua perspectiva, através da Frente Povo Sem Medo, para chegarmos ao ponto de taxar as grandes fortunas e, enfim, termos uma resposta com corte popular à conjuntura?

    Guilherme Boulos: Precisamos retomar as ruas. Programa revolucionário nunca fez revolução. Não adianta ter as melhores ideias e os melhores programas se não tiver força social. Não vai ter gente na rua para defendê-los. Isso é esquecido por uma parte da esquerda que fica em uma coisa quase masturbatória em torno de programas que não acumulam força e não geram impacto social.

    A proposta da Frente Povo Sem Medo é reconstruir um ciclo de mobilização social no Brasil. Construir uma capacidade de mobilização que implica trabalho de base, ou seja, a retomada do trabalho de base dos movimentos sociais e a construção de uma agenda de amplas mobilizações. Acreditamos que isso trará condições para estabelecer de forma séria um projeto de reformas populares e de saída da crise “pela esquerda”.

    Correio da Cidadania: Há outros movimentos que fazem uma leitura parecida, por exemplo, a CUFA (Central Única das Favelas) que coloca que a esquerda, seja ela partidária ou de movimentos da sociedade civil em geral, se ausentou completamente nas últimas décadas das periferias e esse espaço foi ocupado por outros setores, como por exemplo as igrejas neopentecostais. E, por falar sobre redes e ruas, como você avalia que a esquerda possa retomar esse espaço de protagonismo na disputa política pelas periferias?

    Guilherme Boulos: Isso é essencial. O trabalho que a esquerda brasileira desenvolveu nos anos 80, por exemplo, com o sindicalismo enraizado, uma série de iniciativas comunitárias, como as Comunidades Eclesiais de Base que desenvolveram um método bastante utilizado na base, foi sendo paulatinamente substituído por uma estratégia parlamentar institucional. A questão não era mais formar núcleos nas comunidades. A questão era formar comitês eleitorais, eleger uma bancada parlamentar maior, prefeitos, governadores e chegar à presidência da República. Chegou-se lá. E todo o processo, ao contrário do discurso de que “faríamos isso para mudar o sistema político”, acabou absorvido pelo sistema político.

    O preço de ter deixado o trabalho de base para centrar-se na disputa institucional foi altíssimo para a esquerda brasileira. E não tem espaço vazio. Como se mencionou, tal espaço foi ocupado, principalmente, pelas igrejas pentecostais e neopentecostais, porque elas fazem trabalho de base. O que a esquerda deixou de fazer, elas fazem. Às vezes o pessoal se impressiona: “poxa, que coisa incrível, eles colocam um milhão na rua, o que está acontecendo?” Eles fazem o feijão com arroz que a esquerda e os movimentos sociais já fizeram e deixaram de fazer. Temos que retomar isso. Às vezes o pessoal acredita em saídas mágicas. Não há saída mágica para a construção social.

    Temos novas condições, como as redes sociais, campo de uma disputa que também precisa ser travada. Não podemos ter uma visão conservadora quanto a isso, uma visão “brucutu” sobre as redes, mas ao mesmo tempo não podemos continuar mistificando quais são as saídas. É preciso fazer trabalho de base, nosso feijão com arroz. É preciso subir o morro, sujar o pé com barro, gastar tempo, estar com as pessoas, ao lado delas.

    Se a esquerda não retomar isso, a ofensiva conservadora só vai crescer no nosso país. O caminho para a retomada de um novo ciclo de mobilizações é o aprofundamento e a radicalização do trabalho de base. É nisso que nós acreditamos e vemos a Frente Povo Sem Medo como um instrumento para atingir tal objetivo.

    Correio da Cidadania: Tendo em vista esse dilema, entre um projeto institucional e a proposta de retomar o trabalho de base, conceitos que naturalmente se chocam, como é possível construir uma alternativa de esquerda e, ao mesmo tempo, manter um diálogo próximo com os setores que abandonaram o trabalho de base em troca da institucionalidade?

    Guilherme Boulos: Uma parte da esquerda comete o erro de achar que dialogar é contaminar, que não se pode dialogar e compor um espaço com quem se diverge, porque seria uma traição, uma contaminação, ou seja, é uma ideia muito purista. Nós temos na esquerda um purismo muito danoso. É meio que o discurso do ovo de ouro, não é? O ovo de ouro é uma coisa brilhante, bonita, mas não serve para nada. Ter um discurso puro, reto, perfeito, não dialogar com as contradições, não dialogar com quem tem base social, me desculpe, podem dizer o que quiserem, mas a CUT é a maior central sindical do Brasil, onde está a maior parte dos sindicatos do país. Achar que vamos construir espaços de unidade, de mobilização social, sem dialogar com a CUT, é uma ilusão. Eu não acredito nisso. Posso não concordar com tudo o que a CUT diz, mas nem por isso eu não posso sentar e discutir com ela.

    O que define uma alternativa é o tom que ela vai ter. Se há um acordo, do ponto de vista de enfrentar a ofensiva conservadora e as políticas de austeridade do atual governo, de manter uma independência firme e de construção de saídas populares para a crise, essa é a plataforma. Se fulano ou cicrano estão ali ou não, não somos nós quem vamos definir. Unidade se faz dessa forma, não é só com quem a gente concorda. Isso não é unidade, é identidade. Quem não tem capacidade de tolerar e dialogar com quem pensa diferente não vai construir nada de relevante no país.

    Correio da Cidadania: Diante de toda essa conjuntura, como fica a questão da moradia? As políticas públicas e os setores da sociedade organizados em torno de tal demanda?

    Guilherme Boulos: Junto com os servidores públicos, a moradia foi o setor mais atacado pelo ajuste fiscal. O Minha Casa Minha Vida foi paralisado. Este ano não houve contratações para o programa. Só um, o empreendimento Copa do Povo, do MTST. Enfim, praticamente foram zeradas as contratações no país todo, em nome de políticas que fazem os trabalhadores pagarem pela crise.

    Temos críticas ao programa Minha Casa Minha Vida. Vemos vários limites nele. Mas a alternativa não é acabar com esse programa e deixar o país sem política habitacional. O MTST tem feito vários enfrentamentos: semana passada, ocupamos sedes do Ministério da Fazendo no país todo, em Brasília, em São Paulo e em outras capitais, para exigir a retomada dos investimentos em habitação popular. A política do governo, de ajuste fiscal, é um tiro no pé. Em todos os sentidos. A questão da construção de habitações não é só deixar de atender a uma demanda social, mas tem a ver com emprego, ou seja, acaba deixando de movimentar a economia.

    O ajuste, quando aumenta juros, corta investimentos e gera recessão na economia, diminui também a arrecadação e pode gerar um novo desajuste fiscal. Essa política que está sendo aplicada é inconsequente, inaceitável e precisa ser enfrentada nas ruas. O MTST tem feito isso, a Frente Povo Sem Medo o fará após sua formalização e, retomando a pergunta, eu digo que a moradia foi o direito social, talvez, mais afetado pelo ajuste fiscal. Junto, claro, com os servidores públicos, tanto que fizemos uma luta conjunta no último dia 23.

    Além disso, vemos uma série de ataques aos trabalhadores através da diminuição do seguro desemprego, pensões etc. Agora estão falando em mexer na previdência, na aposentadoria, um absurdo que precisa ser enfrentado, venha de onde venha. Se fosse um governo do PSDB nós enfrentaríamos na rua. Não é porque o governo que está fazendo isso é do PT que nós não vamos para a rua enfrentar.

    Raphael Sanz e Felipe Bianchi são jornalistas

    Esta entrevista foi feita em parceria com o Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé.

    Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 03 de outubro de 2015

  • Zoe Konstantopoulou: “Parlamento foi chamado a ratificar o enterro da sua própria função”

    Zoe Konstantopoulou: “Parlamento foi chamado a ratificar o enterro da sua própria função”

    O infoGrécia traduziu o discurso da presidente do Parlamento da Grécia, na votação da semana passada que aprovou o primeiro pacote de medidas imposto por Bruxelas para avançar com o programa de financiamento ao país. Zoe Konstantopoulou diz não ter dúvidas de que “Alexis Tsipras foi chantageado com a sobrevivência do seu povo”.

    Zoe Konstantopoulou
    Zoe Konstantopoulou

    Senhoras e Senhores, caros colegas,

    Começo por agradecer ao especialista independente da ONU para a Dívida e os Direitos Humanos, Bohoslavsky, que interveio hoje, pela terceira vez neste último mês e meio, com o seu apelo público com o propósito de proteger a população grega das novas reduções dos seus direitos sociais, direitos sociais estes que já foram minados e violados.

    Quero também agradecer ao coordenador científico do Comité para a Verdade sobre a Dívida Pública, Éric Toussaint, que, com a sua intervenção pública de hoje, indica e propõe uma solução para a Grécia, para o povo grego. Esta solução pressupõe a abolição da dívida odiosa, ilegal e ilegítima; esta dívida que alguns tentam, por todos os meios, transferir para o povo grego e para as novas gerações. Estas gerações que não vos devem nada, senhores da Nova Democracia e do PASOK. Vocês, que governaram durante 40 anos, outorgam hoje a cada recém-nascido, desde a sua primeira respiração, uma dívida de 32 500 euros.

    Quero também agradecer a estas pessoas, a estes movimentos e forças políticas na Europa que se mexeram e mobilizaram dizendo que isto é um golpe de Estado contra a Grécia, mas também contra o seu governo. Quero agradecer também a todos os economistas, pessoas da cultura, das artes, das letras, aos intelectuais, que não estão corrompidos pelo poder nem pela sujidade dos programas de austeridade, e que se lhes opuseram afirmando que é inaceitável, numa civilização contemporânea, em 2015, que uma ação de vingança autoritária e antidemocrática tenha lugar contra este povo e este governo de esquerda e de oposição ao memorando.

    Caros e caras colegas, esta noite é um dia negro para a democracia na Grécia e na Europa. Mas é também um dia negro para o parlamento grego porque, com uma chantagem cruel, proveniente da União Europeia e dirigida primeiro ao governo e depois aos deputados, o parlamento foi chamado a ratificar, em 2h30 e sem discussões de fundo, o enterro da sua própria função, a ceder a soberania nacional e a hipotecar os bens públicos, tendo como horizonte a sua liquidação por um novo e bem mais monstruoso TAIPED (fundo privado de gestão de bens públicos), que o meu partido, o Syriza, chamava e chama “setor produtor de escândalos”. É também chamado a assumir a totalidade da dívida e de todas as obrigações a ela associadas, mesmo que esta dívida seja insustentável, odiosa, ilegítima e ilegal. Além disso, é chamado a ratificar mais cortes nas pensões, cortes que foram considerados anticonstitucionais pelo Supremo Tribunal Administrativo e que foram votados em novembro de 2012, quando a totalidade do grupo parlamentar do Syriza mostrou cartazes que diziam “Vocês destruíram o país, é hora de irem embora”, unindo-se assim ao povo e à sociedade, de onde provém e aos quais pertence. O parlamento foi chamado a ratificar mais cortes na despesa pública, apesar de esses gastos estarem abaixo da média europeia, apesar da aceitação de superavit primários irrealizáveis conduzirem a uma maior recessão, apesar da aceitação do facto de que o processo democrático do referendo gerou uma perda de confiança. Foi também chamado a ratificar o restabelecimento da confiança numa legislação sob controlo externo, em prazos irrealistas e com a aceitação humilhante de des-legislar, abolir, leis que nós votamos aqui no parlamento.

    Se este projeto de lei, que contém referências a um futuro terceiro memorando, fosse trazido pelos partidos que neste país são pró-memorando, isto é, a Nova Democracia, o PASOK, o Potami, o DIMAR e o LAOS, eu dirigir-me-ia ao parlamento com um discurso denunciando, uma a uma, todas as suas disposições. No entanto, é o governo de esquerda e das forças antimemorando que traz este projeto de lei, é o governo do Syriza e do ANEL, que nunca teve como objetivo a introdução e a aplicação de memorandos, mas, pelo contrário, a libertação do país destes últimos. Este governo que não acredita que os memorandos da submissão e da austeridade sejam um remédio para a economia, mas que defende, há muitos anos, que eles são a receita errada, o veneno que mata a sociedade e que sabe até que ponto eles são destrutivos.

    Não há nenhuma dúvida de que o governo age sob coação, que o primeiro-ministro foi cruel e implacavelmente chantageado, tendo sido usado, como instrumento de chantagem, a sobrevivência do seu povo. E não há nenhuma dúvida que se esta chantagem for ratificada esta noite, ninguém impedirá a sua repetição, não apenas contra nós, mas também contra outros povos e outros governos. Aliás, nós não somos os primeiros, Chipre precedeu-nos em março de 2013, o mesmo mês em que dois estudantes morreram em Larissa por causa do fumo de um fogareiro, pois não tinham dinheiro para se aquecer de outra forma, o mesmo ano em que um jovem de 18 anos perdeu a vida para evitar o controlo dos bilhetes do autocarro, pois não tinha meios para pagar, o mesmo ano em que uma menina de 10 anos, de Salónica, Sarah, perdeu também ela a vida por causa das emanações de um fogareiro na casa onde vivia há dois meses, sem eletricidade, com a sua mãe imigrante. O memorando provocou uma crise humanitária na Grécia e os nossos ditos parceiros sabem-no. Não têm nenhum direito de ameaçar o governo e o primeiro-ministro com uma destruição humanitária total, com um holocausto real, que eles mesmos orquestraram com a recusa de dotar os bancos de liquidez, a fim de forçar o primeiro-ministro a ceder e a consentir em tudo aquilo a que se tem oposto, a tudo aquilo contra o qual se tem continuadamente batido. Trata-se de um golpe de Estado, da abolição da democracia, da abolição da função constitucional e de uma imposição de condições de vida que certamente conduzirão – em parte ou totalmente – à destruição (de uma parte ou do conjunto) da população grega. Trata-se, pois, de um crime contra a humanidade e de um genocídio social.

    Creio que o primeiro-ministro fez tudo o que lhe era possível para se opor a esta chantagem. Ninguém o pode negar. E ninguém pode subestimar a coragem, o desinteresse e a grandeza moral da sua intenção – hoje – de proceder à sua autodestruição política, considerando que assim servirá o povo e a sociedade. Creio que o parlamento e o grupo parlamentar do Syriza não devem permitir que tal coisa aconteça.

    Considero que o parlamento deve impedir a realização do plano do “parêntesis de esquerda”, posto em prática por espíritos perversos que querem transformar o governo de esquerda em diretor e executante do memorando. Esses que nos querem obrigar, um por um e uma por uma, a dizer e a fazer o oposto de tudo aquilo pelo qual nos temos batido, que nos querem humilhar ao ponto de não nos podermos reconhecer a nós próprios e que a sociedade, a nossa aliada natural, não possa mais reconhecer-nos como povo, de cuja carne somos a carne.

    Não temos o direito de deixar isso acontecer. Não por causa de um suposto orgulho ou de um dogmatismo ideológico, mas por causa da consciência profunda de que será uma ferida incurável para a moral coletiva e social, pelo que pulsa e é encorajado e, sobretudo, pela raiva e grandeza a crescer nas jovens gerações. Por todos aqueles e todas aquelas que acreditaram em nós, não por lhe termos prometido contratos ou privilégios, mas porque confiaram na nossa persistência, no nosso desinteresse, nas nossas lutas e nos nossos compromissos.

    O plano “parêntesis de esquerda” é o mesmo plano que queria que o governo de esquerda e da luta contra o memorando fosse desacreditado. O plano que queria que o povo ficasse desesperado e sem apoios. Que quer a sociedade a insurgir-se. E que quer que certos poderes de desestabilização, como aqueles que vimos agir repetidamente no nosso país, reivindiquem a sua superioridade. Querem ver os interesses do sistema de corrupção manobrar os seus fantoches, designar os seus representantes para a liderança do ELSTAT, onde nos arriscamos a ter de manter o senhor Georgiou, responsável pela submissão do país ao memorando, na sede do Banco da Grécia, onde ainda nos sujeitamos ao senhor Stournaras, na liderança do Fundo de Estabilidade Financeira e do TAIPED (fundo privado de gestão de bens públicos).

    Este plano quer que aqueles que destruíram o país ressuscitem enquanto opinadores qualificados, quando deviam era prestar contas à história e à justiça. Quer também, infelizmente, que as forças da extrema-direita e do fascismo, saídas diretamente do nosso passado horroroso, assumam a representação verdadeira da sociedade e usurpem as lutas do povo. Ninguém tem o direito de fingir que não o vê. Esta sessão é também o prelúdio de tudo isto.

    Senhoras e senhores, caros colegas, e agora dirijo-me aos meus camaradas do Syriza. Em democracia não há impasse. O povo falou. Disse um grande NÃO aos ultimatos, às chantagens, às intimidações, à propaganda e ao terror. NÃO aos memorandos. Não temos o direito de transformar, com o nosso voto, este NÃO do povo num SIM. Não temos o direito de o interpretar como um NÃO com condições. Cada uma das medidas presentes no referido acordo foi rejeitada pelos cidadãos com uma maioria ensurdecedora. Somos obrigados a defender o seu veredito, porque o nosso poder reside neles. E porque nós, contrariamente aos outros, nunca reivindicamos ou quisemos o poder para o partilharmos entre nós ou para dele nos aproveitarmos, como o fizeram as forças do memorando e do antigo sistema político do bipartidarismo, vicioso e cleptocrático, do PASOK e da Nova Democracia, que têm, atualmente, a audácia de nos dar lições. Nós reivindicamos o poder para o devolvermos ao povo. O NÃO do povo não foi um NÃO condicional. O NÃO do povo não foi um NÃO entre aspas. Aqueles que pensam que o NÃO do referendo se exprimiu sob a condição de que o país fica no Euro devem reformular a questão e colocá-la novamente ao povo. Mas a questão nunca poderá ser aquela a que a troika e o seu novo ultimato querem que respondamos. A questão nunca poderá ser entre o euro ou a democracia, o euro ou os direitos humanos, o euro ou a Europa. Porque se tratam de questões reacionárias, antidemocráticas, antieuropeias e anti-humanitárias. As questões perante as quais o povo tem o saber, o vigor e a experiência histórica para lhes responder.

    Mas, em algum momento, pois alguns têm a audácia de falar do lobby do dracma, vai ser preciso falar também do lobby do sistema Simitis, do lobby da modernização, que continua a reivindicar governar o país através do sistema de corrupção e se quer justificar por meio de ações profundamente antidemocráticas e putshistas, que aqui foi trazida pela intervenção do senhor Vanizelos, quando pedia que o parlamento aprovasse o documento, isto é, que ratificasse um documento sem fundamento, de modo a apresentar provas de submissão e a criar situações sem retorno possível.

    Não tenho nenhuma dúvida, e digo-o com toda a clarividência da minha consciência tranquila, porque é com a nossa consciência que devemos falar nestes momentos, que tanto o governo como o povo estão realmente do lado do NÃO na votação de hoje. Não há lugar para ilusões. O grupo parlamentar deve ajudar o primeiro-ministro e o governo, que estão sob a pressão da chantagem, e não dar-lhes o golpe de misericórdia com um SIM, pensando que isso os ajuda, ou pedir-lhes que façam chantagem, coisa que o primeiro-ministro não fez, ao contrário dos seus predecessores, honra lhe seja feita.

    As causas da esquerda e da democracia, da emancipação social e popular e da libertação são todas as resistências, pequenas e grandes, que a servem. Se o parlamento não resiste hoje à chantagem, ceder-lhe-á novamente. Se legisla aceitando ultimatos, fá-lo-á novamente, e ver-se-á constrangido a fazê-lo de novo muito proximamente. Se cede, engana-se, se se deixa paralisar, encontrar-se-á perante si mesmo e a sua consciência, mas também perante a sua alma.

    Minhas senhoras e meus senhores, caros colegas, se é verdade que para alguns de vós a questão e a responsabilidade vos pesa, é importante considerar que na nossa história houve pessoas que, quando foi necessário, assumiram responsabilidades e souberam opor uma resistência muito superior a este NÃO de consciência a algo que, efetivamente, deve ser repudiado.

    Muito obrigada.


    Zoe Konstantopoulou é advogada e política grega. Deputada do partido de esquerda radical Syriza, que ganhou as eleições legislativas de 25 de janeiro de 2015 na Grécia, foi eleita, a 6 de fevereiro, presidente do parlamento. Com trinta e oito anos, é a mais jovem presidente do parlamento e a segunda mulher a exercer esta função.

    Tradução a partir do texto da intervenção publicado no site do CADTM.

    Fonte: infoGrécia, 23/07/2015

  • ‘O caso Rafael Braga revela de forma patente a seletividade do sistema penal’

    ‘O caso Rafael Braga revela de forma patente a seletividade do sistema penal’

    Rafael Braga
    Rafael Braga

    Um dos casos mais emblemáticos dentre todas as prisões políticas presenciadas pela sociedade brasileira a partir das manifestações de junho de 2013 é o de Rafael Braga, preso no Rio de Janeiro por portar um frasco de pinho sol enquanto vagava pelas ruas da cidade em um dos dias de manifestação popular. Talvez o único preso sem vinculo político com os protestos, Rafael recebeu a maior condenação, 5 anos de reclusão. Agora que seu caso chegou ao STF, entrevistamos João Henrique Tristão, advogado da ONG Defensores dos Direitos Humanos, que defende Rafael.

    “Malgrado à atitude policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima do material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre”, explicou Tristão.

    Em sua visão, o caso de Rafael Braga simboliza bem como o Estado brasileiro “adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer preço visa a manutenção do status quo”, o que explica como as reivindicações de caráter social que marcaram diversos protestos são bloqueadas por todas as instâncias de poder constituído.

    “Constatamos, a partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras”, criticou.

    A entrevista com João Henrique Tristão, realizada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Além dos ativistas de diversos locais processados pelas instituições de Estado após as históricas manifestações de junho de 2013, chamou atenção o caso de Rafael Braga, preso por portar pinho sol próximo a uma manifestação no Rio de Janeiro. O que você tem a contar do caso e o que espera do STF, que agora tem o processo em mãos?

    João Henrique Tristão: O caso do Rafael Braga é um dos que revelam de forma patente a seletividade sob a qual atua o sistema penal e como é a política criminal, em especial o judiciário, o Ministério Público e todas as agências de poder constituídas. O Rafael, como todos sabem, é um jovem negro, pobre, que na época de sua prisão estava em situação de rua. Foi preso num dos dias das manifestações das jornadas de junho, próximo da avenida Presidente Vargas e da Central do Brasil, perto de onde se recolhia. Portava materiais de limpeza, pinho sol e outro desinfetante, e foi pinçado pela polícia que patrulhava a região. Pegaram-no e aduziram que estava causando tumultuando, conduzindo-o à delegacia de forma arbitrária. Posteriormente, segundo o próprio Rafael Braga relatou, apareceu um material já manejado, depois de sua prisão, que foi introduzido no sentido de qualificar aquilo como possível artefato explosivo, tudo à sua revelia.

    Malgrado a atitude policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob tal manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima deste material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo, digamos assim. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. Por isso, foi processado pelo artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, que se refere à posse de material explosivo, e condenado a 5 anos de reclusão, de forma totalmente arbitrária e insensível por parte da justiça. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre.

    A pena, na época, foi majorada porque o juiz considerou que ele, por estar próximo a lugar de manifestação e concentração de gente, colocou em perigo a vida de muitas pessoas. Uma evidente incongruência, porque o próprio laudo atesta o mínimo de potencialidade do material. Tal aspecto foi objeto dos nossos recursos, mas a 3a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) negou nossa apelação, reduzindo a pena em somente quatro meses, ficando em 4 anos e 8 meses.

    Entramos com recursos no STJ e STF. Todavia, é evidente que por má vontade política com o caso e todas as circunstâncias correlatas nosso recurso não foi admitido na 3a. Vice-presidência do TJ-RJ. Por isso, entramos com medidas cabíveis no STJ superar tal apreciação. Não conseguimos êxito e agora recorremos à última instância do judiciário, o STF. Atualmente, o ministro Luiz Fux é relator de um agravo que visa superar esse óbice da apreciação do recurso, para assim reconhecerem e apreciarem o mérito da causa do Rafael Braga.

    Correio da Cidadania: Entre os que realmente participavam de atos políticos, há vários outros processados, como um militante da Federação Anarquista Gaúcha e outros 23 cariocas, a exemplo de Sininho, Igor Mendes e Eloisa Samy. Há também casos como o do fotógrafo paulista Sergio Silva, cegado de um olho por bala de borracha, cujo inquérito que investigava abuso policial acabou de ser arquivado. O que esses casos todos refletem pra você, a respeito da democracia brasileira?

    João Henrique Tristão: Atualmente, vivemos uma conjuntura política muito obscura, à luz do que deveria ser um estado democrático de direito. Constatamos, a partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras.

    Isso mostra a clara tentativa estatal de sufocar e inibir quaisquer atitudes de reivindicação por parte da população. É lamentável, mas infelizmente se adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer preço visa a manutenção do status quo. Seja através da criminalização de movimentos sociais, seja de qualquer outra forma pela qual o Estado possa manter as coisas como estão.

    Minha visão política do contexto é exatamente essa. Sobre os 23 ativistas cariocas processados também posso falar, pois o DDH atua no caso. É um processo estapafúrdio. O MP elaborou tudo na base de ilações e conjecturas, no sentido de que haveria vínculo estável e permanente entre todos os ativistas, o que sabemos não ser verdade. É uma clara tentativa de criminalizar movimentos sociais. Basta olhar a conjuntura, a forma de atuação do Estado e a truculência da polícia pra vermos como é clara a tentativa de sufocar qualquer suspiro em prol de um país melhor e mais justo.

    Correio da Cidadania: Muitos desses protestos tiveram relação direta com a contestação aos megaeventos esportivos e seus gastos bilionários. Como fica o Rio de Janeiro em meio a isso, que, além da Copa do Mundo, encerrada há um ano, ainda tem uma Olimpíada pela frente? Como você analisa a propalada ideia do ‘legado’?

    João Henrique Tristão: Sobre a Copa do Mundo se seguiu a lógica capitalista, que nos “contemplou” com a vinda dos megaeventos. Assim, não se pode falar muito de legado, ao menos a partir do momento em que se investiu e concederam isenções bilionárias a uma entidade privada que agora é alvo de investigações de corrupção, em detrimento de serviços básicos como saúde e educação, que vivem em petição de miséria, no Rio e nacionalmente.

    Valorizou-se um evento concebido para uma determinada classe, a dominante, poder acompanhar e usufruir de perto o suposto legado. Isso à margem da maioria esmagadora da população, que vive sem acesso a serviços básicos e muitas vezes em situação deplorável.

    No meu entendimento não se pode falar de quaisquer legados, nem mesmo a reforma do Maracanã. Tudo foi feito em detrimento da melhoria de outros serviços, algo ainda mais nefasto, e não trouxe nenhuma benesse para a população. Em relação às Olimpíadas, creio que seguimos a mesma lógica, com seletividade de público e somente pessoas de melhores condições tendo acesso aos eventos.

    Pior: temos casos de remoções drásticas de populações que vivem há muito tempo no entorno de alguns palcos desses grandes eventos. Podemos citar a Vila Autódromo, marco de resistência de moradores pobres à beira de um dos locais onde teremos Olimpíada, em constante ameaça de remoções ilegais e arbitrárias da prefeitura. Não consigo constatar nenhum legado para a população.

    Correio da Cidadania: Você acha que as instituições brasileiras absorveram algum recado deixado pelas ruas nesses últimos dois anos?

    João Henrique Tristão: Infelizmente, acho que as oligarquias midiáticas, os grandes conglomerados corporativos de mídia, foram atores no processo, de maneira que alienaram e deturparam muitos acontecimentos e fatos, tanto das manifestações de junho como nas que se seguiram depois.

    Creio que grande parte da população ainda não compreendeu a real essência do que tudo aquilo representou. Hoje vivemos uma conjuntura política conservadora no Congresso Nacional. Quero muito acreditar que nada tenha sido em vão, que muitas pessoas possam ter sido tocadas no sentido de que o poder realmente emana do povo, que o próprio poder constituinte originário nos outorga isso.

    Malgrado todos os percalços, deturpados e dissimulados pela grande mídia, quero acreditar que muitas pessoas possam ter se sensibilizado e constatado algo positivo, em termos de sentimentos de protestos e mudança. Quero acreditar que muitas pessoas tenham se sensibilizado e desenvolvido uma nova concepção política dos fatos.

    Correio da Cidadania: Como relaciona tudo o que foi aqui conversado com esse ano político, marcado por cortes do orçamento social, desemprego e greves? Acredita que estamos próximos de reviver manifestações similares às de 2013?

    João Henrique Tristão: Infelizmente, tenho uma análise política bem específica. Consiste no fato de que vivemos um momento político bastante singular, pois elegemos uma composição ultraconservadora para o Congresso Nacional. Além disso, tivemos as notícias de corrupção envolvendo membros do governo atual. Tudo isso gerou um oportunismo político muito bem manipulado pela grande mídia, que acabou difundindo um sentimento em diversas pessoas – não aquelas que se revoltaram em 2013, mas talvez um pouco também. Tivemos em 2015 protesto mais conservador, que visa principalmente sua própria autotutela, sua própria manutenção. Em março, tal sentimento foi capitaneado pela população de média e alta classe média.

    Creio que, analisando a conjuntura e o fenômeno, as manifestações deste ano não podem ser confundidas com aquelas que ficaram marcadas como jornadas de junho. Tem muito oportunismo envolvido e uma classe média manipulada de modo a servir a senhores políticos e senhores do próprio capital, pra tentar desvirtuar a linha de protesto inicialmente adotada, que clamava muito mais por aspectos sociais do que pela própria manutenção de tudo, como vimos em março desse ano, em protestos travestidos de revolta contra a corrupção, algo totalmente genérico e sem pauta.

    Evidentemente, a conjuntura atual do país potencializou e de certa forma viabilizou a deturpação do que efetivamente ocorre, aliado, volto a ressaltar, a um oportunismo político muito forte e uma manipulação por parte das grandes oligarquias midiáticas.

    Quanto à possibilidade de vermos retornar as pautas das jornadas de junho, espero muito que aconteça. Espero que os atos em prol das pautas realmente necessárias ao país – ou seja, sociais – voltem com força total, como naqueles dias de 2013.

    Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas

    Fonte: Correio da Cidadania, domingo, 12 de julho de 2015

  • Guilherme Boulos: ‘O modelo petista de governabilidade se esgotou’

    Guilherme Boulos: ‘O modelo petista de governabilidade se esgotou’

    Guilherme Boulos
    Guilherme Boulos

    “Vimos que a opção da presidente Dilma de construir uma política neoliberal logo no início de 2015 é expressão do esgotamento de um modelo. Da mesma forma, o avanço da mobilização social no país desde junho de 2013 (o ano passado foi de muitas mobilizações e 2015 tende a ser também) é outro sintoma do esgotamento desse mesmo modelo”. Foi assim que Guilherme Boulos, dirigente do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), definiu o momento político em que se encontra o país, em entrevista ao Correio da Cidadania.

    Na conversa, que visa analisar um complexo início de ano, Boulos lembrou do clima eleitoral, quando um discurso à esquerda de Dilma se beneficiou do medo da volta do PSDB ao poder central, com um neoliberalismo “puro sangue”. Para surpresa de muitos, mas não todos, os tão denunciados “retrocessos foram encarnados pelo novo mandato petista”, que incorporou por inteiro o programa imputado apenas a um eventual mandato de Aécio. Assim, o líder do principal movimento de moradia do país não espera grandes avanços em nenhuma área social, inclusive a da moradia.

    “O movimento buscou propor, ao dialogar com o governo e a presidenta no ano passado, modificações importantes no Minha Casa Minha Vida. Mas, lamentavelmente, não temos nenhuma perspectiva de que as modificações ocorram, no sentido de o programa ser menos voltado ao lucro das construtoras, e mais voltado à qualidade das habitações e à gestão popular e direta dos projetos. Todas as sinalizações do governo são de que o programa, quando começar a andar, virá com os mesmos vícios das edições anteriores”, criticou.

    Além de prever um ano de fortes mobilizações sociais, no esteio dos últimos dois, Guilherme Boulos também tratou das articulações com centrais sindicais e outros setores governistas para o que pode vir a ser uma ampla “Frente de Esquerda”. Nesse sentido, deixou claro que de modo algum tal iniciativa visa buscar conciliações e caminhos institucionais, mas uma agenda comum de lutas do interesse das classes populares.

    “Não podemos ter peio de sentar com setores governistas e de relação histórica com o PT. A contradição não é nossa. É dos setores que apoiam o governo e que estão sendo forçados pelos ataques do próprio governo a se mobilizar. É um fator positivo na conjuntura. É fundamental que cada ataque do governo seja respondido à altura pela mobilização popular. Uma frente dessa natureza é, para nós, uma necessidade”, explicou.

    A entrevista completa com Guilherme Boulos pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Como encarou a vitória de Dilma para um segundo mandato e, especialmente, o rumo que se insinua, a partir das escolhas ministeriais da presidente?

    Guilherme Boulos: As eleições do segundo turno foram extremamente polarizadas e também tiveram um componente de mobilização social que não víamos há vários anos. Houve, em dado momento, um alinhamento do setor mais tradicional da direita e até setores da extrema-direita em torno da candidatura do Aécio Neves. Numa parte importante da sociedade e dos trabalhadores, gerou-se um receio quanto ao risco de um maior retrocesso.

    É importante pontuar que as políticas dos 12 anos de governos do PT foram essencialmente conservadoras, não foram políticas que enfrentaram os grandes desafios, no sentido de buscar saídas para um projeto popular de país. As reformas estruturais não foram pautadas. De todo modo, houve um receio, naquele momento, de que uma vitória do Aécio representasse um retrocesso nos pequenos avanços do período, como o maior investimento social, em favor de uma política neoliberal puro sangue, de ataque frontal aos direitos trabalhistas.

    No entanto, mal acabaram as eleições e vimos aquele risco de retrocesso ser encarnado pela própria Dilma, embora na eleição tenha guinado à esquerda em seu discurso. Mas ela não deu qualquer sinalização aos setores de esquerda que lhe deram apoio, crítico ou não, no segundo turno, e deu todas as sinalizações ao mercado, realizando integralmente o programa defendido por Aécio Neves: aumentos sucessivos de taxas de juros (já há três meses), aumento do combustível, declaração de abertura de capital da Caixa Econômica Federal, indicação de um dirigente do Bradesco pra conduzir a economia do país e, mais recentemente, ataques diretos a direitos trabalhistas, como seguro-desemprego e pensões, além de cortes em investimentos sociais. Tal cenário caracteriza como a Dilma encarnou o retrocesso.

    Portanto, para nós, do MTST, está bem claro que 2015 será um período de grandes mobilizações contra esses ataques que querem fazer os trabalhadores pagarem pela crise, ao lado de uma plataforma de esquerda e popular, que pedirá avanços para o Brasil.

    Correio da Cidadania: Como liderança do MTST, como acredita que deva caminhar o tema habitacional neste governo, especialmente em um ano que promete grave e profunda recessão?

    Guilherme Boulos: Pois é. O programa Minha Casa Minha Vida 3, que pretende construir 3 milhões de casas, já foi lançado duas vezes, e não foi iniciado até agora. Foi lançado em junho passado, depois no discurso de posse, mas até agora não se deu 1 real para o programa. O Ministério das Cidades, que opera o programa, é o segundo que mais sofreu cortes no contingenciamento da tesoura do Levy, atrás apenas da Educação. Assim, a primeira questão é a dúvida sobre o fato de haver, ou não, recursos para viabilizar o programa.

    Porém, mesmo que tais recursos sejam empenhados, e nós acreditamos que em algum momento serão, porque há um grande interesse das construtoras, do capital da construção civil e do setor imobiliário no andamento do programa, tudo será feito de acordo com os interesses desses mesmos grupos.

    O movimento buscou propor, ao dialogar com o governo e a presidenta no ano passado, modificações importantes no programa Minha Casa Minha Vida. Mas, lamentavelmente, não temos nenhuma perspectiva de que as modificações ocorram, no sentido de o programa ser menos voltado ao lucro das construtoras, e mais voltado à qualidade das habitações e à gestão popular e direta dos projetos. É o contrário. Todas as sinalizações do governo são de que o programa, quando começar a andar, virá com os mesmos vícios das edições anteriores.

    Correio da Cidadania: O que tem a dizer sobre as manifestações e protestos que mudaram a tradicional cara pacata de anos que se iniciam, e tomam conta de 2015?

    Guilherme Boulos: 2015 foi o ano que começou antes do carnaval. E com muita intensidade. Começou com as respostas aos ataques feitos pelos próprios governos. O tema das tarifas de transporte está no país todo, pois em todas as capitais e grandes cidades houve aumento, o que tem gerado, e deve continuar gerando, mobilizações contra esse que é um ataque à economia popular.

    Ao mesmo tempo, começam a surgir mobilizações quanto ao tema da água, particularmente em São Paulo, por conta da política desastrosa do governo Alckmin – mas tende também a afetar outros estados do Sudeste. Tem também a moradia. Com o não lançamento do Minha Casa Minha Vida 3, temos um vácuo. Não se pode contratar, pois os recursos do programa 2 acabaram e o 3 ainda não foi lançado. Ou seja, temos um período sem contratações de habitação popular no país, o que tende a acirrar tensões.

    O MTST já realizou três mobilizações neste ano e realizará mais. Além do mais, teremos a mobilização encabeçada pelas centrais sindicais, mas também com o apoio do conjunto do movimento social brasileiro contra o ataque aos direitos trabalhistas. Na semana passada, já tivemos um dia de luta nesse sentido e teremos outros nas próximas semanas.

    É fundamental que cada ataque do governo seja respondido à altura pela mobilização popular. O MTST e outros movimentos temos construído o enfrentamento a essa linha de fogo, pra não deixar os ataques sem resposta.

    Correio da Cidadania: Portanto, vocês têm clara a necessidade de atuarem em conjunto com outros segmentos, inclusive pelos interesses do próprio movimento de moradia.

    Guilherme Boulos: Sem dúvida. A própria pauta do MTST não é estritamente pela moradia. No ano passado deixamos isso muito claro, com mobilizações em torno de vários outros temas urbanos. O MTST é um movimento de luta por reforma urbana e transformação da sociedade. Mesmo o sem teto que luta por uma casa precisa de água na torneira e pega transporte público pra ir trabalhar todo dia. Portanto, são pautas articuladas.

    Mas não é só. Temos participado e estimulado a construção de uma frente ampla pelas reformas populares e contra os ataques aos direitos sociais no país, para que a luta seja travada em maior escala.

    Correio da Cidadania: Nesse sentido, como explica e o que pensa da estratégia de aproximação e formação de uma agenda comum de lutas entre os novos movimentos e partidos e a esquerda mais institucional e governista?

    Guilherme Boulos: Para nós, é essencial, numa frente articulada, saber a plataforma que se defenderá e a forma de mobilização a ser adotada. A frente que queremos construir é com plataforma caracterizadamente de esquerda, em favor de reformas populares e estruturais, e contra o ataque aos direitos trabalhistas, inclusive do próprio governo petista. É uma frente voltada ao processo de mobilização, não para costuras institucionais. Uma frente dessa natureza é, para nós, uma necessidade.

    Não podemos ter peio de sentar com setores governistas e de relação histórica com o PT. Para nós do MTST isso não é um problema, porque temos segurança da nossa posição, que demonstramos no dia a dia, tanto nas mobilizações como nos discursos e posições políticas do movimento, de completa autonomia e crítica a qualquer governo.

    Pensamos que quanto mais amplo for e quanto mais setores pudermos juntar numa plataforma unificada de esquerda, mais poderemos avançar em políticas sociais pelo país.

    Correio da Cidadania: Acredita que entidades como a CUT, por exemplo, que começam a ir às ruas, mas cujas pautas e atuação nos últimos anos foram visivelmente rebaixadas diante do atrelamento ao governismo, possam de fato intensificar uma postura mais reivindicatória e de enfrentamento, em função da grave recessão que se anuncia?

    Guilherme Boulos: É o processo que vai mostrar. Essa contradição não é nossa. É dos setores que apoiam o governo e que estão sendo forçados pelos ataques do próprio governo a se mobilizar. Da parte do MTST, não existe contradição alguma. No entanto, a atuação do governo petista no final de 2014 e começo de 2015 tem sido tão ofensiva às pautas dos trabalhadores que forçou os próprios setores historicamente ligados ao governo a darem resposta e se mobilizarem.

    É um fator positivo na conjuntura. Não é problema. Seria um problema maior se, mesmo com tais ataques, esses setores ficassem parados, contendo suas bases. Temos de ver esses fatos, pelo ponto de vista mais amplo da conjuntura, como fatores positivos, a serem potencializados. O limite disso tudo é o processo que irá revelar.

    Correio da Cidadania: Finalmente, com tantas crises que se anunciam, algumas dentre as mais graves da história do país, como o desabastecimento de água, energia, além das pautas mais discutidas nessa entrevista, você se arrisca decretar o esgotamento do modelo político e de desenvolvimento econômico adotado pelo país nas últimas décadas?

    Guilherme Boulos: Para nós, existe uma análise consolidada de que o modelo petista de governabilidade se esgotou. O petismo produziu, particularmente nos primeiros seis anos de Lula, uma tentativa de amplo processo de conciliação de classes na sociedade. Consegue-se tal conciliação por um período, e com relativo sucesso, se tivermos as forças sociais desmobilizadas e, fundamentalmente, crescimento econômico.

    O que permitiu ao Lula produzir lucros recordes ao setor financeiro, às empreiteiras, ao agronegócio, enfim, uma bonança inédita ao grande capital, ao mesmo tempo em que se ampliaram o salário mínimo e o crédito aos trabalhadores, além de programas sociais como o Bolsa Família e o próprio Minha Casa Minha Vida? Foi o período de crescimento econômico. Entre 2003 e 2010, a média de crescimento era de 4% ao ano.

    O problema é que veio a crise de 2008, com forte queda na exportação de produtos primários, particularmente para a China. Os preços caíram, a economia chinesa desacelerou e esse crescimento foi para o buraco. A média de crescimento dos 4 anos de Dilma foi de 1,5% ao ano. Diminuiu-se a margem de manobra para a conciliação, o que força o governo a tomar opções mais claras e drásticas. Ao mesmo tempo, isso gera reações e resistências em setores organizados da sociedade.

    Vimos que a opção da presidente Dilma de construir uma política neoliberal logo no início de 2015 é expressão do esgotamento de um modelo. Da mesma forma, o avanço da mobilização social no país desde junho de 2013 (o ano passado foi de muitas mobilizações e 2015 tende a ser também) é outro sintoma do esgotamento desse mesmo modelo.

    O papel de uma esquerda socialista e combativa no país é apontar a perspectiva para um novo modelo político e econômico. E temos clareza de que isso não será alcançado por meio de disputas institucionais. Será alcançado por meio de construções de processos sociais, amplas mobilizações e intensificação das lutas populares no país.

    Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

    Fonte: Correio da Cidadania, terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

  • Neoliberalismo, Estado de mal-estar social

    Neoliberalismo, Estado de mal-estar social

    Não basta que o pensamento procure se realizar; a realidade deve compelir a si mesma em direção ao pensamento.” – Karl Marx

    Sergio Granja
    Sergio Granja

    Na regulação das relações que os homens estabelecem entre si, configuram-se direitos sociais, que constituem garantias de solidariedade na comunidade humana. Em todos os tempos, eles são objeto de uma encarniçada disputa. Em torno deles se armou o cenário das lutas de classe nos países capitalistas centrais. Entre esses direitos, a escola pública gratuita, laica e universal foi uma das primeiras conquistas, nascida da Revolução Francesa. Seguiram-na como direitos sociais conquistados pelas forças populares: a saúde pública, a previdência social, a assistência social, etc.   Esse conjunto de direitos sociais deu origem, após a II Grande Guerra (1939-1945), aowelfare State [Estado de bem-estar], contra o qual o capital lançou a ofensiva neoliberal.

    Assim, ao longo das lutas de classes no mundo capitalista, foi se afirmando a ideia de que o Estado é responsável pela proteção dos setores sociais mais vulneráveis economicamente.  Mas foi só com o welfare State que se consolidou o conceito de Seguridade Social.

    A Seguridade Social abarca o tripé saúde, previdência e assistência social.   No Brasil, esse conceito foi plasmado pelo art. 194 da Constituição de 1988, baseado na noção de “pacto entre gerações” e no “princípio da solidariedade”, segundo os quais os benefícios presentes e futuros dos trabalhadores são custeados pelas contribuições passadas, presentes e futuras de toda a sociedade.

    A Constituição de 1988 consagrou direitos sociais que são contestados pela direita desde a sua promulgação.  Muitos desses direitos foram sistematicamente ignorados e, em alguns casos, revogados sumariamente.  Na linha de fogo dos ataques da direita encontra-se o próprio conceito de Seguridade Social nos termos em que está inscrito na Constituição de 1988.

    Collor, Fernando Henrique e Lula intentaram contrarreformas da Previdência Social, sempre na mesma linha de revogação de direitos sociais.  Alguns desses intentos contrarreformistas obtiveram êxitos e resultaram seja na perda de arrecadação de recursos da Seguridade Social (através de isenções fiscais e contrarreformas tributárias), seja na perda de direitos previdenciários de categorias específicas, seja na depreciação de aposentadorias, pensões e benefícios de uma forma geral, seja na dilatação do tempo de contribuição ou do aumento da idade para a aposentadoria.

    A Constituição de 1988 garantiu os recursos para o financiamento da Seguridade Social, assegurando o provimento dos direitos sociais.  Na atual quadra da vida política nacional, defender o marco legal da Constituição de 1988 é barrar a ofensiva neoliberal contra os direitos sociais por ela consagrados.  Por isso, é inadiável o comprometimento com a luta em defesa dos direitos sociais consagrados no dispositivo constitucional de 1988, particularmente no que se refere à Seguridade Social e à Previdência.  Aliás, o PSOL nasce da resistência dos trabalhadores e de uma fração dos parlamentares petistas à contrarreforma previdenciária levada a cabo pelo governo Lula.

    À política de desmanche do Estado – como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social -, de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego deu-se o nome de neoliberalismo.  Todavia o Estado neoliberal continua operando na esfera econômica como grande consumidor de mercadorias e contratador de serviços, mas também através de mecanismos tributários, fiscais e financeiros de transferência de renda para o setor privado e da contenção das lutas sindicais e populares.

    Trata-se da velha ideologia liberal, que correspondia à época do capitalismo de livre concorrência, só que ressurgida em condições históricas de crescente monopolização da economia, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, apontando não para o pluralismo, mas para a homogeneização, a massificação, a uniformização do consumo de descartáveis, a tendência ao pensamento único.  O discurso liberal é o mesmo, mas o acontecimento discursivo é outro.

    Antes de se generalizar como diretriz de política econômica dos países capitalistas – em reação contrarreformista à estagflação gerada pela crise de 1973-1979, que colocou em xeque o welfare State –, o neoliberalismo foi implantado, primeiro, no Chile de Pinochet (1973-1990) e, em seguida, na Inglaterra de Thatcher (1979-1990) e nos Estados Unidos de Reagan (1980-1988).

    Perry Anderson, em Balanço do neoliberalismo (1994),  considera que a Inglaterra de Margaret Thatcher encarnou a forma canônica do neoliberalismo.  “O modelo inglês – diz Perry Anderson – foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.”

    No Brasil, o neoliberalismo surge como política de governo sob a presidência de Collor (1990-1992); atinge o seu clímax no PROER e no auge das privatizações durante os governos FHC (1995-2002); e tem seguimento, atenuado por políticas compensatórias, nos governos de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2014). Em 2015, a crise bate à porta dos brasileiros e as políticas de “ajuste” do governo Dilma apontam para o aprofundamento das políticas neoliberais, com novas perdas de direitos sociais e desidratação das políticas compensatórias.

    No ensaio A época neoliberal: revolução passiva ou contrarreforma?, Carlos Nelson Coutinho conceitua a época neoliberal como um período de contrarreformas.

    As consequências sociais do neoliberalismo são graves: a combinação de desemprego, exclusão social e apelo ao consumo – numa sociedade atomizada pelo individualismo e pela competitividade, na qual o marketing dita a moda e as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são – delineia um quadro de degradação da convivência social que fomenta a desesperança, a violência e a barbárie.

    Resistir aos “ajustes” é preciso!

    Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos