Categoria: Contos e Crônicas

  • Primeiro de Maio

    Primeiro de Maio

    Mário de Andrade
    Mário de Andrade

    Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.

    Dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.

    Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas ruças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.

    O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer… Comunismo? … Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas ruças dum polícia… A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.

    Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar… E o 35 comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.

    Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.

    E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E continuou no passo em férias.

    Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!…” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons… Depois vinham as notícias. Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as ruças de algum… polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.

    Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino…), é melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos menos… O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

    Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!

    Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

    Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

    Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

    Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

    Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.

    O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de “motim”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.

    Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.

    Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandando assim na gente… O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.

    Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:

    — Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no parque ninguém não pára não!

    Cabeças-chatas… E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.

    O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.

    Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro…

    Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus “proletários” também.

    E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.

    Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: “Assim não serve não! As malas não vão não!” Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas “não largavam não”, só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.

    O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.

    — Deixe que te ajudo, chegou o 35.

    E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.

    [Contos Novos]

  • Ideias do Canário

    Ideias do Canário

    machado_de_assis-ideias_do_canarioUm homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

    No princípio do mês passado — disse ele, — indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior.

    Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

    A loja era escura, atulhada das coisas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

    Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois.

    Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

    — Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

    E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

    — Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo…

    — Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

    — Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.

    — Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

    — Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

    Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito.

    — Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?

    — Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que coisa é o mundo?

    — O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

    Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

    — As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

    — Quero só o canário.

    Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

    Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

    Não tendo mais família que dois criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.

    Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar.

    Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

    — O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

    Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias, Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e por-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

    Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto…

    — Mas não o procuraram?

    — Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

    Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

    — Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

    Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuidados de amigos?

    Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular. . .

    — Que jardim? que repuxo?

    — O mundo, meu querido.

    — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

    Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior. . .

    — De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?

  • 1º de abril

    1º de abril

    Rute Gusmão
    Rute Gusmão

    Quarenta e três anos depois, cá estou novamente com minha velha camisa no cenário de acontecimento que marcou minha juventude. A casa veio abaixo, mas o terreno foi recentemente ocupado pelos estudantes, arrumado com palco, som, cadeiras e painéis para um show e exposição de fotos históricas. O evento comemora a retomada vitoriosa do espaço usurpado pela ditadura, com muita gente presente à celebração neste 1º de abril – políticos, jornalistas, estudantes, ex-dirigentes das entidades, cidadãos.

    Enquanto observava as fotos expostas, comentei em voz alta que estivera no local naquele dia. Alguns estudantes escutaram o que eu disse, notaram a camisa que eu usava e começaram a me perguntar sobre o que ocorrera. Organizaram uma roda num canto e chamaram companheiros para me ouvir.

    *

    Na véspera iniciáramos uma greve contra possíveis tentativas de derrubada do governo e em defesa da legalidade. O país vivia período conturbado, forças se articulavam para reagir à possibilidade de reformas. Eu fazia o primeiro ano de Engenharia e participava das atividades culturais, políticas e esportivas do diretório acadêmico. Entidades estudantis tinham marcado um torneio de tênis de mesa em que eu representaria a escola e, embora fosse difícil que se realizasse num dia de greve, não quis deixar de ir. No diretório jogava com frequência partidas de tênis de mesa. Namorava uma menina do Serviço Social, a Lúcia, que conheci numa festa.

    Saí de casa debaixo de chuva fina assobiando “A canção do subdesenvolvido”, do Carlos Lyra com o Chico de Assis, que eu e o broto gostávamos de ouvir e de cantar. Era uma espécie de hino do Centro Popular de Cultura, associado à União Nacional dos Estudantes. Tínhamos assistido à apresentação e ouvíamos sempre o compacto com a música. Enquanto andava, pensava na Lúcia, e repetia mentalmente os versos que falavam de amor e ironizavam o país:

    “O Brasil é uma terra de amores…”

    Eu morava no Catete com meus pais. Naquele fim de tarde de março vestia calça marrom e camisa bege de tergal. O encontro com o Bolão, meu companheiro de time, seria às cinco da tarde, na porta da UNE. Ao seguir em direção à praia me lembrei do que meu pai dissera no café da manhã – o governador se entrincheirara no Palácio Guanabara, o presidente se encontrava no Rio. Naquele dia o velho fizera uma caminhada a Laranjeiras. Na ida tinha passado pelo Parque Guinle, onde, espiando entre os flamboyants, deduziu que Jango estava no palácio, pois dois tanques de guerra guardavam o prédio. Na Rua Pinheiro Machado, em frente ao palácio do governo estadual, fora erguida uma barricada com caminhões e sacos de areia. A Polícia Militar estava de prontidão. O governador Carlos Lacerda temia as tropas fiéis ao presidente ou, quem sabe, uma invasão do povo ao palácio. O medo não era à toa: alguns anos antes tinha mandado fechar a sede da entidade estudantil e combatia os que queriam reformas.

    Enquanto andava na praia do Flamengo lembrei-me do comício em que estivera com colegas, há algumas semanas, na Central do Brasil. Vibramos com a massa humana que se reuniu para ouvir a liderança sindical, estudantil, política e a esperada fala do presidente. Foi forte a impressão provocada pelo discurso indignado de Jango naquele dia, ao lado da bela esposa, quando comunicou à multidão propostas ousadas, entre as quais a desapropriação de terras para a reforma agrária e a encampação de refinarias de petróleo. Saímos preocupados com a denúncia da campanha organizada com o propósito de prejudicar o comício. Havia pressões de todos os lados: dos que temiam mudanças e dos que não aceitavam acordos. O país poderia caminhar em direção às reformas de base, mas havia o risco de dar tudo errado.

    Na caminhada, olhando o Cara de Cão à minha frente, pensei no texto que o departamento cultural de nosso diretório tinha distribuído com a fala do ministro da Educação. Não me saía da cabeça seu entendimento sobre a educação para o desenvolvimento e a cultura para a liberdade. Nossa formação deveria se comprometer com a mudança das estruturas que impediam a expressão da cultura.

    Eu seguia em direção à UNE, quando passou por minha mente o que assistira na véspera pela televisão. A Associação de Sargentos comemorava no Automóvel Clube a posse da diretoria com a presença de marinheiros e de Jango. Em seu discurso ele alertou sobre grupos empenhados em barrar conquistas populares, inimigos da democracia e à resposta de Dom Hélder aos que – em nome da igreja – atacavam as reformas. Defendeu a mudança constitucional e a regulamentação da remessa de lucros. A polarização política era evidente.

    Em poucos minutos cheguei ao Bar Cabanas, aqui ao lado, que hoje tem outro nome. A canção ainda me martelava a cabeça:

    “(…) Debaixo de um céu de anil,

    Encontrareis um gigante deitado:

    Santa Cruz, hoje o Brasil”.

    Pedi pão na chapa com manteiga e café preto. Assim estaria com o estômago forrado, o torneio poderia ir até tarde. Enquanto comia o pão crocante no balcão do bar, observava a porta da entidade. Bolão ainda não dera sinal de vida. Havia um movimento pouco usual. Reuni mentalmente alguns fatos. A UNE sofrera atentados e era guardada por fuzileiros. A igreja católica conservadora, setores da classe média e a elite colocaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade nas ruas de São Paulo, do Rio e de outros Estados. O que seria agora?

    Ao chegar à porta do prédio um jovem pediu minha identidade. Expliquei que estava ali para participar de um campeonato de tênis de mesa organizado por nossa Confederação de Desporto. Quantas vezes eu entrara no prédio como em minha casa, sem nenhuma explicação ou documento! Ele me olhou com ar irônico. O prédio foi metralhado e você vem aqui jogar pingue-pongue, companheiro? Fiquei sem graça. Olhei para o alto do edifício e vi uma faixa com a inscrição: “A Ubes repudia a marcha dos golpistas”. Mostrei a carteira do diretório e entrei, nem queria saber. Fui até o local onde seria o torneio e não encontrei ninguém. Agitação, gente reunida, alguns subiam, outros desciam a escada, às pressas pelos corredores. Perguntei a um estudante o que estava acontecendo.

    O general Mourão conseguiu apoio militar. Está vindo de Juiz de Fora com tropas.

    A situação era muito grave. Eu devia ficar um pouco mais e ajudar em alguma tarefa. Precisávamos nos organizar para manifestações. Comecei a andar pelo prédio. Numa sala do térreo encontrei dois estudantes que, aturdidos, tentavam pôr para funcionar um mimeógrafo elétrico. Queriam imprimir um panfleto. Eu conhecia o equipamento, utilizara um idêntico na impressão de boletins da igreja que frequentava e ofereci ajuda. Com engenharia acertei o estêncil e a engrenagem passou a rodar. Quando algumas pilhas de panfletos estavam prontas, além do suor que ensopou minhas costas, eu estampava na camisa de tergal uma grande mancha da tinta preta usada no trabalho. Dirigi um “até amanhã” aos companheiros e fiz o caminho de volta para casa. Era 31 de março de 1964.

    *

    Meu pai me esperava na sala, a mãe já dormia. O velho era fumante, tinha uma tosse cavernosa. Olhou para mim e não pode deixar de ver na camisa a mancha que aparecia como bandeira numa passeata. Passei a mão sobre o tecido, como se quisesse limpá-lo. Onde estava, filho, na UNE de novo? Expliquei que fora até lá para o torneio e, como a situação era tensa, dera uma ajuda na impressão de um panfleto. Ia lavar a camisa e tudo ficaria bem. O pai não deixou que eu saísse da sala, me segurou pelo braço. Torneio? Espera aí, Marcos, quero lembrá-lo de uma história, aliás, já conhecida sua.

    Fiquei irritado, o coroa não entendia que eu não precisava mais de tanta proteção. Queria dormir, era tarde, no dia seguinte o movimento seria grande e ainda pretendia acertar um encontro com a Lúcia. Não era necessário me contar de novo que fora desancado pela polícia quando rapaz e por isso sofria até hoje de dores no lombo. Ele insistiu, queria me envolver em suas emoções e convencer a ter cuidado. Você VAI OUVIR AGORA, disse, me puxando pela camisa.

    Foi no final da primeira guerra, época em que a gripe espanhola matava no mundo todo e já chegara ao Rio. Até o presidente Rodrigues Alves tinha sido vítima dela. Eu era rapazola e me envolvi com os socialistas, por meio de um amigo do sindicato. Consegui emprego na Cantareira, a empresa das barcas que fazia o trajeto Rio – Niterói. Trabalhava na parte mecânica e tinha parado de estudar. Era necessário participar das despesas de casa. Naquele ano houve greves operárias importantes, em vários pontos do país, pela melhoria dos salários e das condições de trabalho. Nossa greve na Cantareira foi muito forte, mas a repressão também. Eu estava na gráfica quando a polícia baixou lá. Foi uma pancadaria só. Horas depois fui encontrado por companheiros desacordado. Podia ter morrido na greve, como outros morreram. Meus pais decidiram que eu não continuaria enfurnado no porão das máquinas e voltaria à escola.

    *

    Levantei-me cedo, antes do pai e da mãe. Lavei a camisa, mas não havia o que tirasse a mancha. Fiz café às pressas, engoli o pão e sai. Quase corria em direção à UNE. Dobrei a esquina da praia e não gostei do que vi – trânsito e fumaça. Logo adiante, gente parada na calçada. Uma fogueira. Tremi. Homens estranhos dominavam a cena. Socorreu-me a lembrança do refrão “subdesenvolvido, subdesenvolvido”, que comecei a assobiar nervoso, como se a estudantada estivesse toda ali, comigo. Lúcia não aparecera.

    Pedaços de móveis e de equipamentos, papéis, fotos, queimavam ao lado de uma palmeira solitária, também sujeita ao fogo, em cujo tronco costumávamos colar cartazes. O canteiro com mato, em que fora plantada, ardia. O vento espalhava fumaça e cinzas, virava páginas. Balbuciei desolado um verso da canção, que não me abandonou:

    “O país passou a ser um bom quintal…”

    Algumas pessoas próximas à fogueira, outras dos carros, olhavam surpresas. O prédio número cento e trinta e dois da Praia do Flamengo soltava fumaça como chaminé, o velho prédio da UNE. Eu não conseguia dar um passo. Estivera ali há poucas horas e não podia acreditar no que via. O que tinha acontecido aos diretores, estudantes, artistas?

    Minha pele começava a arder. Alguém comentou que os bombeiros já tinham sido chamados, mas o fogo continuava. Soube que companheiros saíram pelo telhado. Panfletos atirados e espalhados pela rua, como se fosse uma comemoração. Por uma janela eram jogados cadernos, documentos, discos, livros, caixas. Algo ficou preso no fio elétrico. Um pedaço de alguma coisa voou pela varanda do segundo andar e se espatifou na calçada. Estourou uma bomba lá dentro. Gritos. Correria. Confusão.

    Entre um equipamento quebrado e madeiras – eu não podia acreditar – vi uma sucata queimada e retorcida que lembrava o mimeógrafo de estêncil, e montes de panfletos alimentando labaredas. Cheguei mais perto, olhei para o chão. Podia reconhecer os que pegavam fogo logo ali, a meus pés. O corpo ardia, eu estava no meio da fogueira. Na mente, alegrias e sofrimentos da luta. No coração filmes, poemas, peças, debates que transformaram minha vida. O estômago queimava. Tudo se apagaria ao final da fogueira? Palavrões queriam sair com o café da manhã. Veio à tona o trecho da canção:

    “Na boca do forno, forno.”

    Não consegui ficar ali. Virei de costas para o prédio em chamas. A Baía de Guanabara continuava calma. Queria mergulhar naquela água, mesmo misturada a esgoto. Melhor que assistir àquele espetáculo e sentir o corpo queimar. A paisagem estava lá, no mesmo lugar. Respirei fundo.

    Lúcia finalmente chegou, me segurou pela mão e disse baixo, ao pé do ouvido: é o prédio que esse bando depreda. A história de lutas continua. A entidade somos nós!

    Estudantes nos chamaram para ir à Cinelândia. Suprimi o desejo de mergulhar. Esqueci as palavras prudentes de meu pai. Num impulso seguimos com os companheiros.

    A Avenida Rio Branco estava vazia, fora interditada ao trânsito. Na Cinelândia nos juntamos aos que gritavam nervosas palavras de ordem. Depois de algum tempo percebi um tanque despontando lá longe, seguido por outros, e soldados armados que caminhavam em direção à praça. A presença de um sargento em cima do aparato de guerra nos deixou na expectativa de que os sargentos apoiariam a legalidade, afinal, eram aliados do governo. Dois dias antes o presidente estivera na posse da diretoria de sua associação.

    O primeiro tanque se aproximou e se posicionou em frente ao Clube Militar. A multidão estava tensa. O soldado que manejava o canhão começou a girá-lo devagar, até apontá-lo na direção dos manifestantes. Surpresa geral. Exclamações. Protestos. Desespero.

    É o inimigo. O governo caiu!

    Abracei minha namorada. Choramos agarrados. Quando tomei o rumo de casa, depois de deixá-la numa condução, me veio à cabeça um trecho da canção:

    “Subdesenvolvida, subdesenvolvida.

    Essa é que é a vida nacional.”

    *

    Não era um primeiro de abril.

    Segui a pé pela beira-mar chutando uma lata amassada que encontrei no meio-fio. Um cachorro me seguiu da Glória à Rua do Catete. Chovia.

    Ao chegar em casa desabei no ombro do pai. Disse-lhe: queimaram tudo, Jango caiu. Naquele dia me abraçou apertado. Contei que uma edição inteira de um livro virara cinzas. Para o poeta que o escrevera, a cultura podia transformar a sociedade, devia estar a serviço do povo. Artistas e intelectuais deviam estar mergulhados na realidade do país. O que poderia estar errado naquele pensamento para merecer a fogueira?

    Meu pai tossiu forte, limpou a garganta e depois de alguns segundos em silêncio disse, sem conseguir conter a emoção: é purificar pelo fogo. Intolerância, golpe! Então se controlou. Um vinco fundo surgiu entre as sobrancelhas. Começou a falar em tom professoral sobre tentativas de destruição do conhecimento através do fogo, desde os ataques à biblioteca da Alexandria. Algumas vezes queimaram não só os livros, mas os autores também, como na Inquisição. Outras, perseguiram aqueles que não pensavam como nazistas: Freud, Einstein, Thomas Mann. Esse golpe não pode destruir a liberdade de pensamento, a democracia, o que avançamos em matéria de cultura.

    O pai tinha razão. Por que os golpistas tiveram que metralhar, saquear e queimar a entidade?

    Muitos interesses foram ameaçados. Vamos esperar que Jango seja reconduzido sob condições.

    *

    O pai estava equivocado naquela avaliação. No mesmo ano a UNE foi colocada na ilegalidade. O trabalho do CPC entrou em recesso. No ano seguinte, contrariando meu velho, aderi à clandestinidade.

    Quando saí da casa de meus pais, entre meus pertences levei para o conjugado que aluguei no Catete a camisa de tergal manchada. Sempre que algum companheiro desaparecia – preso ou assassinado pela mão pesada da ditadura – me lembrava do que acontecera naquele dia, sinal dos anos de violência que se seguiriam.

    *

    Dezesseis anos depois vesti de novo a velha camisa. Veio à lembrança a conversa que tive com meu pai. Mesmo sem força, o governo militar mandara demolir o prédio que não abrigava mais nada e – apesar da reação de milhares de estudantes e cidadãos em ato público, sob violenta repressão – conseguiu destruir a velha casa das lutas estudantis. Naquele dia um brucutu lançou água com tinta para marcar os manifestantes. Minha camisa ganhou outra mancha, agora colorida, que se espalhou no peito, ao lado da mancha preta.

    Agosto de 2010

    Rute Gusmão

  • Conversa limite

    Conversa limite

    Charge TorturaEle contou quando chegavam os pratos à mesa: feijão, arroz, carne de banda engordurada e batatas; começou no assunto se gabando, como quem quer dizer coisa que valha; levantei o olhar da comida quando senti carência de atenção; o assunto passou a interessar. Era policial miúdo, segundo não disse, mas tinha função que julgava importante: torturava. Não. Disse que nos últimos anos, devido a sua habilidade em arrancar confissões, se especializara. Vieram bolinhos de arroz à mesa, ensebados; pensei: desses, passo. Após se vangloriar de sua escolha entre tantos para tão espinhosa tarefa, começou a contar o que de início já queria; falou com cara espremida, como de ruim inevitável; de socos, pontapés, da insistência de uns em resistir, resistir, resistir…. Falou repetindo, muito amargando a resistência de quem resistia. Pedi cerveja, ele cachaça. Estava quente e a comida gordurosa fazia impressão de calor maior. Suávamos na testa e no pescoço. Ele continuou narrando um caso especial, um homem que mais do que resistir o matara de impaciência; impacientou o fulano esse homem especial por uma negativa que esbarrava na evidência; o homem sabia, mas negava e apanhava; se sabia o que ele sabia e mesmo o que ele sabia não era mais importante, mas não… Foi preciso ir mais e mais fundo; fez um gesto de impaciência o homem que me contava sobre o homem que resistia; deu um gole na cachaça, jogou o corpo pra frente e me falou tão de perto que seu bafo me repugnou: ? Todo homem tem um limite, pode me acreditar. Disse como quem diz: Matei de porrada, desanquei o desgraçado, fodi sua existência, acabei com a raça, apaguei o filho da puta; mas assim não disse. Não. Falou que todo homem tem um limite. Acreditei e ele me disse, como quem encerra um assunto, que o homem que o fizera perder a paciência não havia confessado o que todos sabiam. Não perguntei o que todos sabiam, nem o que acontecera ao homem que resistira. O prato feito era maçaroca gordurosa que só engoli ajudado com goles de cerveja em cada garfada. Seguiu falando o homem que constatara que o homem tem um limite; falou de tudo; mudou; pressentiu, creio, minha fraqueza para esses assuntos. Depois pedimos a conta e ele foi embora, como um homem comum.

    Flávio Braga é romancista, roteirista e editor.

  • Lembranças de Nova Iorque

    Lembranças de Nova Iorque

    www.robertogranja.com.br
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    Morava eu em Paris e tinha um passaporte do Alto Comissariado da ONU para Refugiados, quando, por volta de 1978, viajei com outros exilados para participar de um evento na Costa Rica.  Era um seminário sobre a América Latina, patrocinado pela Federação Mundial da Juventude Democrática.  Não tenho muita certeza do ano, mas o mês era dezembro, sem dúvida.

    Bem, todo mundo sabe que sou um desmemoriado.  Então, como posso afiançar assim, tão categoricamente, que foi num mês de dezembro?  É simples.  Esses encontros nunca excediam uma semana e, quando o seminário terminou, estávamos às vésperas do Natal.  Acreditem ou não, isso é sustentado pela própria história que vou contar.

    Como não havia voo direto Paris-San Jose, o jeito era fazer uma troca de avião no Panamá.  Mas o aeroporto do Panamá tinha um probleminha: era uma espécie de buraco negro no qual sumiam as bagagens durante a transferência de uma aeronave para a outra.  Embora o sumiço fosse previsível, não se podia evitá-lo.  Parece que a coisa tinha um estatuto de lei da física.  Tratava-se, pelo visto, de uma fatalidade irrecorrível.  E foi assim que desembarquei em San Jose só com a roupa do corpo e a maleta de mão.

    O seminário versava sobre a questão democrática na América Latina, ou qualquer coisa que o valha.  E transcorreu burocraticamente, como soia acontecer nesses eventos juvenis internacionais, que reuniam invariavelmente aprendizes de diplomata dos países do “socialismo real” e representantes das juventudes dos partidos socialistas e comunistas ocidentais e dos partidos social-democratas no governo.

    A inutilidade dessas reuniões era proverbial.  Se por acaso alguém vislumbrar alguma função nelas, este será um gênio ou uma besta.  Mas, com certeza, era uma oportunidade para se fazer um turismo semi-oficial.  Foi desse modo que conheci a Costa Rica e, de quebra, uma costarriquense cujo interesse teórico pela questão democrática latino-americana se incendiava ao contato das nossas íntimas partes pudendas.   A bem da verdade, foi a ela que me dediquei com maior afinco na meia-dúzia de três ou quatro dias de reuniões a que assisti.

    Dessa viagem, ficou-me uma viva impressão da brava companheira costarriquense, reformista social-democrata que se acasalou à perfeição com o meu indomável espírito revolucionário proletário .  Aprendi muito com ela.  Sobre o diálogo silencioso dos corpos, por exemplo.  E, inclusive, sobre estalidos de salivas e gemidos e sussuros que fazem a alma desabafar em suspiros.  Mas também sobre doces palavras castelhanas que não saberia traduzir, mas cujo sentido não me escapava e eriçava-me as mais recônditas penugens pubianas.

    Pois encontrava-me nessas lides, que todos podem imaginar, quando me dei conta de que era hora de voltar à Paris.  Voltar pra quê?  Ora, para passar o natal em casa com a minha encantadora esposa, que me esperava.  Todavia, aguardava-me uma ingrata surpresa: as passagens estavam esgotadas por conta das festas de fim de ano.  O leitor (ou será leitora?) poderá imaginar a aflição de um marido apaixonado diante da trágica perspectiva de passar a noite do menino da manjedoura longe de sua adorada esposa.  Era tal meu desespero que esqueci da costarriquense.  Eu queria porque queria passar o natal com a minha amada em Paris.  Então, o vendedor da American Airlines apresentou uma saída: tomar um voo da companhia estadunidense até o aeroporto de Nova Iorque e lá fazer a transferência para um voo da Air France para Paris.  Comprei os bilhetes e embarquei para o aeroporto John Kennedy.

    Eu pensava que o pior já havia passado, mas o pior ainda estava por vir.  Antes de prosseguir, uma correção.  Eu venho relatando os fatos como se a dificuldade em voltar para a Europa fosse um problema só meu.  Na verdade, afetava um grupo mais ou menos numeroso de participantes do evento, entre os quais vários brasileiros.  Não citarei nomes, por duas boas razões.  A primeira é a minha falta de memória: simplesmente não lembro.  A segunda é que as pessoas estão vivas e não quero provocar melindres.  (Abro aqui um parêntese para dizer que essa história de poder citar mortos e não poder citar vivos me soa como uma perfeita covardia.  Afinal os vivos têm sobre os mortos a vantagem de poder se defender.  No caso, porém, não citarei vivos nem mortos.  E digamos que é porque me esqueci dos nomes.)

    Voava rumo a Nova Iorque com a atenção dividida entre o futuro imediato, que me aguardava em Paris, e o passado recente, que eu deixara ficar definitivamente para trás, mas ainda se insinuava fresco na memória.  Passara a última noite com a costarriquense e fora uma despedida inesquecível.  Ela me pedira que eu deixasse um pouco de mim para ela.  Eu a penetrei, vagarosamente, e emiti golfadas de emoção.  Depois, parti sem olhar para trás.  Trazia opresso no espírito a certeza de que na Costa Rica ficara uma gota do meu ser.  Dessa gota, eu jamais teria notícias.

    Havia um pequeno detalhe: eu não tinha visto de entrada para os Estados Unidos.  Todavia, o vendedor da American Airlines me certificara de que não era necessário, pois eu estaria em trânsito no aeroporto John Kennedy por apenas algumas horas ou mesmo menos de uma hora.

    Quando desembarquei em Nova Iorque, ainda enlevado com as lembranças do pedaço de mim que ficara na Costa Rica, mostrei na aduana o passaporte e a passagem para o vôo da Air France que partiria em seguida para Paris.  O funcionário olhou para mim e exclamou: Terrorista!  Desentendido, olhei pros lados buscando saber de quem ele estava falando.  Logo me dei conta que era de mim.

    Agora, vejam vocês.  Havia todo um grupo nas mesmas condições que eu.  Por que o funcionário da aduana foi invocar logo comigo, e apenas comigo?  Achei aquilo uma tremenda injustiça.  Entre os brasileiros havia até um banido.  Pois o banido passou e eu fui preso.  Muito estranho os critérios dos nossos vizinhos do norte.  Por que eu?  Até hoje não tenho uma explicação plausível.  Eu fora um militante apagado, com escassas e secundárias atuações nas lides da clandestinidade.  Por que eles queriam a mim e não ao banido?  Nunca imaginei que eu pudesse ser matéria de interesse para a CIA ou o FBI.  De certa forma, isso era até motivo de lisonja para mim.  Ou será que eles se enganaram de pessoa?

    Fui algemado e conduzido a um canto sob a mira do revólver de um guarda do aeroporto.  Logo se formou uma aglomeração de curiosos.  Invariavelmente, perguntavam ao guarda quem era eu.  O guarda, muito excitado, dizia que eu era um terrorista perigoso.  Tentei argumentar que terrorista, vá lá; mas perigoso, não, pelo amor de deus!  O guarda, um sujeito baixinho, gordinho, meio ridículo, de descendência hispânica, pôs-se possesso e, num espanhol de meter medo, mandou, ameaçador, que eu calasse a boca.  Olhei para o cano do revólver que ele apontava para o meu nariz e achei melhor ficar quieto.  Mas, sabe como é, numa situação dessas, a tendência é a gente ficar com vontade de mijar (isso quando o sujeito tem dignidade e não se caga todo).  Disse ao guarda que precisava ir ao mictório.  Ele ficou me olhando como se eu estivesse dizendo algo sem sentido.  Expliquei que sofria de incontinência urinária, que já não agüentava mais e que iria urinar nas calças ali mesmo.  Diante da minha ênfase, ele me conduziu ao banheiro.  Acontece que eu estava com as mãos algemadas nas costas.  Fiz ele ver que eu precisa de ajuda para abrir a braguilha e direcionar o jato de urina para o recipiente adequado.  Ele fez uma cara de nojo.  Hesitou por um momento.  Finalmente, decidiu liberar as minhas mãos para que eu fizesse por mim mesmo o que de outro modo as mãos dele teriam de fazer por mim.  Dei uma longa e prazerosa mijada, o que aliviou a minha tensão.

    O local aonde fui levado em seguida era uma cela ampla, nas instalações do próprio aeroporto, que estava lotada com africanos e asiáticos (talvez muito mais asiáticos do que africanos).  Não havia camas, de modo que me acomodei num banco, certo de que, em meio àquela balbúrdia, no dia seguinte ninguém mais saberia informar quem era eu e o que estava fazendo ali.  Nessas situações, costumo ser acometido de uma sonolência irreprimível.  Dormi.  Fui acordado no dia seguinte por um sujeito que poderia muito bem ser o Agente 007: alto, forte, loiro, de olhos azuis, impecavelmente bem vestido, de terno e gravata, trato cordial, falava um português gramaticalmente correto e sem sotaque.  Seria, talvez, um frio assassino, como soem ser os agentes da CIA; não me pareceu, entretanto, um sádico.  Perguntou se eu aceitava partir num voo para Amesterdã que saía daí a 15 minutos.  Prontamente, disse que sim.  Embarcaria para qualquer lugar que não fosse o Brasil.  Devolveu-me o passaporte e conduziu-me ao avião.

    O calendário marcava o dia 24 de dezembro quando desembarquei à tarde no aeroporto de Amesterdã.  O funcionário da aduana holandesa tomou um susto ao inspecionar o meu passaporte.  Haviam estampado lá algo assim: Perigoso terrorista expulso dos Estados Unidos.  O holandês perguntou o que eu havia feito contra os estadunidenses.  Respondi que, simplesmente, não fizera nada.  Contei que faria uma baldeação no aeroporto John Kennedy e que fora detido sem mais nem menos.  O amesterdamês acreditou na sinceridade de minhas palavras.  Apenas comentou: Esses americanos são malucos!

    Ainda deu tempo de tomar o trem e chegar a Paris antes da meia-noite.  Minha adorada esposa me aguardava aflita.  Passamos a ceia de Natal juntinhos.  Já nem me lembrava mais da costarriquense.

    E quer saber de uma coisa?  Sinceramente, acho que essa história de costarriquense só pode ter sido mais uma astúcia da minha imaginação.

    Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996)

  • O carro pagador do IPEG

    O carro pagador do IPEG

    www.robertogranja.com.br
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    Quando procurei o Iúri[1] para dizer que não via mais sentido em continuar no partidão, ouvi dele que era para eu ter paciência, que algo de diferente estava sendo gestado.  Nós éramos do Comitê Secundarista do PCB no Rio de Janeiro.  Eu não me conformava com a linha política absentista do partido na luta contra a ditadura.  É claro que o papo não foi exatamente nesses termos, mas foi mais ou menos esse o teor da conversa.  Aliás, não cobrem precisão das palavras.  A ambiguidade delas é imanente  No caso das minhas, a imprecisão é ainda maior, por causa da amnésia que me corrói as reminiscências.  Guardo lembranças retalhadas, recordações em frangalhos, como um quebra-cabeça em que se perderam muitas das suas peças.  Por isso, para recompor o passado, às vezes, minto.  Consciente ou inconscientemente, preencho os hiatos da memória com invencionices, criações da imaginação, pura fantasia.  Mas, como ia dizendo, quando procurei Iúri, não suspeitava aonde aquela conversa me levaria.

    Fruto desse papo germinal, um belo dia, outro companheiro me procurou.  Era o Crioulo[2].  A bem dizer, não sei se fazia um belo dia.  Tampouco me lembro se isso foi antes ou depois de eu ser apresentado ao Marighella.  Deve ter sido depois.  Eu já era estudante universitário, embora continuasse no Comitê Secundarista.  Mas o Crioulo chegou e me chamou para fazer um levantamento.  O Crioulo era da Seção Juvenil do Comitê Central do PCB, e também estava ligado ao Marighella.  Fomos até a frente do prédio do IPEG (Instituto de Pensões e Aposentadorias do Estado da Guanabara), na avenida Presidente Vargas, e ficamos observando a saída do carro pagador.  Era um carro forte que levava o dinheiro da sede para as agências.  Voltamos algumas vezes.  Acho que fui sempre com o Crioulo, mas pode ser que alguma vez tenha ido com o Iúri.  Sei lá.  Em todo caso, foram poucas vezes.

    Disseram-me que a informação sobre os pagamentos do IPEG fora colhida nos jornais, o que era verossímil, pois o dia do pagamento, as agências e a lista dos beneficiários saíam publicados nos jornais.  Muito tempo depois, fiquei sabendo que a informação viera de dentro, por um contato do Marighella.  Tratava-se de uma alta funcionária do IPEG.  Para o que vou contar, entretanto, esse é um detalhe sem relevância.

    A ação foi planejada e chegaram ao Rio os companheiro do famoso GTA, o Grupo Tático Armado de São Paulo.  Do Rio, participaríamos três companheiros: o Barba, o Poeta e eu.  Os dois primeiros ficariam no carro de cobertura; eu faria dupla com Marquito[3], o comandante da ação.

    Hora e local aprazados, estávamos a postos.  Era uma agência. Na porta dela se formara uma fila de pensionistas.  Havia um PM guardando a fila e outro dentro da agência.  A ação começou com a chegada do carro pagador.  Minha tarefa era dar cobertura ao Marquito, que deu uma banda no PM que guardava a fila.  O cara era grandalhão, mas caiu de costas na calçada.  Com o impacto do tombo, o capacete dele voou prum lado e o revólver pro outro.  O PM esticou o braço, tentando alcançar a arma no chão.   Reagi com uma coronhada no couro cabeludo dele.  A cabeça rachou e o sangue jorrou.  Inseguro da eficácia do meu golpe, ia desferir outro em seguida, mas o Marquito me deteve.  O cara estava desmaiado.   Respirei aliviado.  Eu estava muito tenso e ao mesmo tempo orgulhoso da minha coronhada.  Era a primeira vez que participava de uma ação armada.  Marquito, mais experiente e comedido, comentou que eu não precisava bater com tanta força na cabeça dos outros.

    Com a respiração ainda ofegante, vi que na calçada oposta caminhava, displicente, outro PM.  Atravessei a rua, correndo em direção a ele.  Ele vinha distraído porque estava paquerando uma mulher.  A mulher devia ser jovem, talvez atraente, e com certeza desfilava coxas, bunda e peitos que eu não notei.  Minha atenção estava toda concentrada no PM.  Surpreendi-o com um soco frontal do cano do revólver no seu tórax.  Acho que a força do golpe foi excessiva de novo.  Eu ia sempre com demasiada sede ao pote.  Ele foi jogado contra a parede e caiu sentado, com um olhar apavorado, pedindo pelo amor de deus para que eu não o matasse.  Talvez tivesse se machucado com o choque do cano do revólver contra o seu diafragma.  Vi que estava desarmado e vulnerável.  Dava pena.  Parecia muito fragilizado.   Procurei pela mulher.  Nem deu pra sacar se valia a pena.  Havia desaparecido.  Voltei para junto do Marquito.

    Estava tudo dominado.  Então, entramos no carro pagador.  Mas, para minha surpresa, havia lá dentro um senhor agarrado feito um carrapato à sacola do dinheiro.  Eu disse para ele entregar a sacola e sair do carro.  Não me obedeceu,   Gritei com ele e nada.  Dei-lhe um tapa na cara.  Continuou imóvel.  Comecei a esmurrá-lo.  Ele não se mexia.  Eu já não sabia como proceder quando o Marquito disse para eu deixar o sujeito em paz.  Marquito tirou a sacola das mãos dele e o conduziu pelo braço, calmamente, para fora do carro.  Foi aí que percebi que o sujeito estava paralisado de pavor.  O que eu interpretara como resistência era apenas pânico.

    A essa altura, a situação se complicara com a chegada de um carro da polícia civil que começou uma troca de tiros conosco.  O PM que estava dentro da agência também abriu fogo contra nós.  Ficamos sem poder usar a metralhadora porque o companheiro que a portava foi ferido no braço direito.  Mas conseguimos arrancar com o carro pagador, deixando a polícia para trás.

    Numa esquina erma, eu e o Jonas[4] descemos do carro forte.  Caminhamos um pouco e tomamos um táxi para a Praça XV.  Jonas carregava uma sacola com a metralhadora que tomáramos de um PM que estava no carro pagador e fora rendido logo de cara.  O rádio do táxi anunciou o assalto ao carro do IPEG.  E mais: informou que os assaltantes fugiam com o dinheiro em direção à Praça XV.   No banco traseiro, Jonas e eu nos entreolhamos.  Chegando à Praça XV, pagamos a corrida e descemos do táxi.  Eu o aconselhei a não pegar a barca para Niterói.  Mas ele não fez caso.  Disse para eu ficar observando, porque ele estava determinado a atravessar a baía com a metralhadora.  Fiquei de olheiro.  Ele tomou a barca, que zarpou baía adentro.  Logo em seguida a polícia chegou, fazendo estardalhaço.  Retirei-me.

    Devo ter passado uns dois dias dormindo, tamanha era a minha exaustão.  Quando acordei, liguei para o Aldo[5], que era companheiro e vizinho, e combinamos de nos encontrar na casa dele.

    Aldo era sobrinho do Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, Arcebispo do Rio de Janeiro, e morava com a avó.  Estávamos no quarto dele, conversando, quando fomos chamados à mesa, que estava posta.  Não me lembro se era almoço ou jantar.  Acho que era o almoço.  Fomos.  Quando sentei à mesa, a avó do Aldo me apresentou a um amigo dela que estava de visita e comeria conosco.  Tratava-se de um senhor de cabelos brancos ou grisalhos, não sei muito bem, mas que, para os meus padrões da época, era um velho.  Cumprimentei-o e me acomodei na cadeira sem prestar atenção nele.  Foi aí que a avó do Aldo introduziu um assunto espinhoso.  O amigo dela passara por uma experiência terrível.  Ele era tesoureiro do IPEG.  Estava dentro do carro pagador quando aconteceu o assalto.  Surpreso, fiquei abestalhado.  Ela passou a palavra para ele.  Espantado, escutei o relato do tesoureiro do IPEG, cara a cara com ele.

    O velho senhor disse que havia um assaltante muito mau, um sujeito grande e forte, com uma expressão de ódio, certamente um sádico, que o espancara sem nenhum motivo.   Ele só não fora morto por esse bandido, porque um comparsa do bando de assaltantes, talvez chefe da quadrilha, ficara penalizado e intercedera, livrando-o do brutamontes.

    Aldo olhou para o amigo da avó e depois para mim.  Adivinhou o que estava se passando.  Troquei uma olhada de cumplicidade com ele.  Que fazer? Temia ser reconhecido.  Interpelei o visitante.  “Puxa vida, o senhor passou um sufoco, hem?”  Era a forma de eu tentar saber se ele havia me reconhecido.  “Ah! Foi, meu filho.  Você nem imagina”, respondeu.  “Esse bandido era mau mesmo, né?”, falei.  Ele concordou comigo. Falou horrores do bandido e me deixou tranquilo.  Pelo jeito como falava comigo, não me havia reconhecido.  Na verdade, nem ele a mim, nem eu a ele.

    A avó do Aldo virou-se para mim e perguntou se eu não havia gostado da comida.  Aí me dei conta de que não havia tocado no prato.  Fiquei embaraçado.  Meti o garfo no prato, levei a comida à boca e mastiguei pela primeira vez.  “A comida está muito gostosa”, respondi, sem conseguir sentir-lhe o sabor.  “É que foi tão impressionante essa história, que eu nem me lembrei de comer”, acrescentei, soltando a respiração e relaxando finalmente.

    Relendo, agora, o que acabei de escrever, fico na dúvida se isso de fato aconteceu.

    Notas:

    [1] Iúri Xavier Pereira morreu na luta contra a ditadura.

    [2] Luiz José da Cunha morreu na luta contra a ditadura.

    [3] Marco Antonio Brás de Carvalho morreu na luta contra a ditadura.

    [4] Virgílio Gomes da Silva morreu na luta contra a ditadura.

    [5] Aldo Sá Brito morreu na luta contra a ditadura.

    Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996)

     

  • O Peru de Natal

    O Peru de Natal

    Retrato de Mário de Andrade, por Lasar Segall (1891-1957)
    Retrato de Mário de Andrade,
    por Lasar Segall (1891-1957)

    O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

    Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

    Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

    Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:

    – Bom, no Natal, quero comer peru.

    Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

    – Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…

    – Meu filho, não fale assim…

    – Pois falo, pronto!

    E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

    Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

    Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

    – É louco mesmo!…

    Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

    – Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

    Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus… Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

    – Eu que sirvo!

    “É louco, mesmo” pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

    – Se lembre de seus manos, Juca!

    Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

    – Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

    Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos… Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

    Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

    Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

    – Só falta seu pai…

    Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

    – É mesmo… Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

    E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

    Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

    Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

    A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor… Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

    Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!…

    Mário de Andrade (1893-1945) nasceu em São Paulo, mostrando desde cedoinclinação pela música e pela literatura. Seu interesse pelas artes levou-o a realizar emSão Paulo, em parceria com Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna, querasgou novas perspectivas para a cultura brasileira. Sua obra, essencialmentebrasileira, reflete um nacionalismo humanista, que nada tem de místico e abstrato. “Macunaíma”, baseada em temas folclóricos é, geralmente, considerada a sua obra-prima.

    [O texto acima foi extraído do livro “Nós e o Natal”, Artes Gráficas Gomes de Souza, Rio de Janeiro, 1964, pág. 23.]

    Fonte: http://www.releituras.com/marioandrade_natal.asp

     


    O Peru de Natal (parte 01 de 02), de Mário de Andrade. Leitura dramática por Fellipe Foureaux. Música de Miles Davis.

     


    O Peru de Natal (parte 02 de 02), de Mário de Andrade. Leitura dramática por Fellipe Foureaux. Música de Miles Davis.

  • O Rei Logro, seu Conselho Turro e a saga de um povo

    O Rei Logro, seu Conselho Turro e a saga de um povo

    Ricardo CrôLá, bem adiante, naquele Reino tão… tão distante, entre vales e montes, riachos, lagos e fontes, vivia um Rei. O Grande Logro. Ao contrário de outros monarcas de seu tempo, ele não alcançou seu trono por descendência, por hereditariedade. Foi por incidência. Por conseqüência de sua “astuciosidade”.

    Apesar de muito jovem, o “híbrido” Rei – alcunha que lhe fora dada pelas hostes oposicionistas, pelo fato de ele passear por ideologias e patronos tão díspares – já havia percorrido diversos territórios, cruzado continentes. Mancomunava-se com sultões, imperadores, mulás e aiatolás. Aliás, foi com esse legado, por essa bagagem, que ele habilmente galgou todos os degraus a caminho da glória, fez estória. Rumo ao trono, não poupou riquezas e, feito um cruel legionário, pisou em tudo, em todos. Esmagou seus adversários. Diga-se de passagem: os poucos que restaram. Pois, quando mercenários vislumbraram um novo cenário, debandaram feito lobos, buscando refúgio no Erário.

    Contudo, todavia, ao poder ele foi levado dentro das regras da capengo democracia. Tanto a plebe, persuadida com as migalhas que lhes eram atiradas no dia a dia, quanto a aristocracia, ávida por um substituto ao velho Soberano que os traíra, avistaram no Rei moço, algo que pudesse lavar a alma do povo, que assistia tudo do fosso. Fantasia? E, ao mesmo tempo, fortalecer ia, as já corpulentas regalias. Quem diria!?

    Rei Logro, em suas andanças – tal qual um caixeiro viajante –, vendia sua lábia, comercializava seu discurso, mas nunca pregou abertamente a tirania. Pelo contrário! No imaginário, parecia um ser gregário. Vaticinavam os periódicos em seu comentário: aquele que, mesmo não negando sua origem de lorde, privilegiará também o pobre, o proletário.

    Postado ao Trono, Cetro em riste e, nem um pouquinho triste, convocou o Conselho Turro. Até aí, nada de anormal! Esse é um Reino de todos. Afinal, foi pra isso que eleito ele foi. Neca de re-enriquecer criando soja ou plantando sêmen de boi.

    Logro e o Conselho Turro reunidos baixa-se um Decreto Real: danem-se o gentio, eleitores serviçais. Tendo o apoio dos poderosos, dos pensadores, e, até mesmo dos cardeais, jogue-se a Guarda Pretoriana sobre o povo e humilhe seus ideais.

    O choque era a ordem: expulsem os vendilhões do tempo. Os não estabelecidos que se mudem. Afastem dos olhos da Nobreza esse cálice tinto que nos envergonha.  Antes que algum aventureiro corsário, desses que nos presenteiam com ouro, prata e iguarias, seja abordado por um esmolado, e não mais retorne ao Reino da mais-valia.

    E segue: nosso Reino, esse Torrão, é dos Nobres. Nossos bancos e praças, marquises com vidraças, não são feitos para abrigar os pobres. Que voltem para suas origens, suas vilas de mazelas, suas grimpas e favelas, seus locais de moradia e desfrutem seus pantanosos piscinões. Não invadam nossa praia, mal vindos aldeões. Habitem nas periferias das cidades, mesmo sem dignidade e preservem a ecologia. Encostas ocupadas, lagoas e florestas habitadas, só por castelos suntuosos e o poder da fidalguia.

    E, que nos sirvam, por conveniência, com muito esmero e decência. De preferência, que nem nos falem de suas chagas, sua saga. Em troca lhes daremos uma boa paga. Algumas moedas, de comer, de beber. Afinal, quem não vive para servir, não serve para viver. Era o que o Rei e seu Conselho tinham a dizer…

    Porém, iludem-se o Grande Logro, os Turros e os Nobres… quão pobres… Cegos, não enxergam sob a névoa elitista e prestigiosa, um palmo adiante de seu quintal, et cetera e tal.

    Todo santo dia a plebe desce, e não é para os festejos pagãos do carnaval – onde Rei, Turros e Nobres, se confundem com os “donos do cobre”, do cortejo colossal. Descem, sem tempo para um ensaio geral, desfilam no comercio, são destaques nos serviços e balançam nas construções do Reino. Requebram e batucam na condução e não fazem feio. Desde a concentração, trazem a necessária harmonia que auxilia na evolução.  Da reconstrução, do novo. Quem dera poder reunir a sapiência dos Nobres, a obediência cega dos Turros e a liderança de um Rei Logro à bela saga do nosso povo.


    Ricardo Crô
    é escritor e compositor

  • O cemitério que virou mictório

    O cemitério que virou mictório

    Cemitério MictórioDormindo de bruços só se escutam ruídos.  Por isso, vira-se de barriga para cima.  A sombra salta do escuro, pula por cima da cama, projeta-se pela janela e some no negrume da noite.  K. esfrega os olhos antes de levantar.  Tem o costume de dormir nu.  Sai assim mesmo porta afora.  A rua está deserta.  K. caminha ao acaso um sem tempo como se pisasse o espaço do sem fim.  Caminha, caminha e continua a caminhada sem esforço.  Então, prossegue caminhando por caminhar.  A noturna negrura está ofuscada por um luar inverossímel.  K. exclama “Valha-me Deus, Nossa Senhora!” numa voz sem sonoridade.  Estala os dedos, de curiosidade, e o estalar não se faz escutar.  Olha para ver a sombra.  A sombra o acompanha.  O luar a tudo ilumina e abafa tudo.  Vislumbra à distância um adolescente nu no limiar de um portal.  Vai até lá.  O adolescente ultrapassa o limiar e detém-se defronte a um bebê nu que, sorridente, gesticula e pateia o vento, de dorso sobre a lápide onde jaz sua mãe.  O bebê abandonado está feliz.  Faz pipi pro céu como se fosse um chafariz num carro alegórico.  E proclama com sua graça pueril: “Nasceu, morreu.  Antes ela do que eu!”.  O adolescente inspira-se no bebê e mija no canteiro de flores que enfeita a lápide.  Tem um estremecimento e reconhece-se no bebê.  K. sente uma irrefreável vontade de urinar.  Urina na coluna do portal.  Tem um calafrio e reconhece-se no adolescente.  “Tríplice e não obstante uno: o mistério da trindade.  Cruz, credo!”, benze-se K.  A sombra assusta-se e foge.  O luar escafede-se também.  K. fica perdido no breu total.  Estala os dedos, de curiosidade.  Escuta-se o estalar.  Nada se vê.  No descampado da noite ressoa tudo e tudo se oculta.  K. de olhos fechados caminha ao léu.  Não sabe, mas está de volta à casa, deitado na cama.  Continua de olhos fechados como se caminhando estivesse.  E dorme.  O ronco de K. propaga-se em noturnas ondas sonoras.  E nelas surfa o sonho de W.

    Sente sórdidos calores, como se suas carnes ardessem no Inferno: “Vade-retro,  Satanás!”  E excitantes odores, irresistíveis pendores…  W. revira-se no colchão, amarfanha os lençóis, despoja-se da camisola e aconchega em sua nudez a coisa escura que o negrume da noite brota na janela e despeja sobre o seu leito.  A coisa se esgueira.  Ela a puxa sobre si, a quer em si…  A coisa escorrega, escapa pela porta  Ela se levanta e sai para a rua.  Caminha sonâmbula atrás da coisa que quer para si.  “Onde está a coisa?  Aonde foi?”  Faz escuro e ela nada enxerga.  A coisa a enlouquece.  W. contempla pela fresta da loucura o noturno da rua deserta na loucura da fresta: “Fresta.  Quero festa!”  Vislumbra ao longe uma mansão iluminada.  Ruma para lá.  No umbral da mansão é recepcionada por uma falange angelical.  W. está extasiada.  “Volte para casa e sossegue.  Somos assexuados.”  W. verte lágrimas que comovem o arcanjo, mas os anjos são impotentes.  Aos prantos, W. implora aos céus: “Pelo amor de Deus, ao menos por compaixão!”  Os anjos choram compadecidos: “Nada do que você precisa está ao nosso alcance.  Quem sabe outros possam ajudá-la.  Tente exús, pombajiras…”  W. ruma para o cemitério.  Sente cheiro de mijo na coluna do portal.  Segue farejando.  O seu olfato de fêmea não a engana.  Encontra uma tumba recém visitada.  Agacha-se sobre ela e faz xixi.  Mas já não há vivalma.  Um manto de escuridão enseja uma tempestade de relâmpagos no campo dos mortos.  É assustador.  W. afasta-se do cemitério. Fora, faz uma cálida noite de lua plena.  W. aguça o olfato.  É toda instinto.  Segue sonâmbula de volta à casa.  Acosta-se com a coisa que está em seu leito.  Deleita-se.  O deleite a faz arfar.  A sua arfada ganha a imensidão noturna e agita o sono de Y.

    O sonho agita-se em sono terminal.  Y. sente a alma querendo fugir pela boca.  Tranca os lábios, mas logo percebe que a alma busca escapar também pelas narinas, apenas que com muito maior dificuldade, haja vista a exigüidade dos orifícios nasais.  Consciente de que é chegada a hora, Y. liga para K.: “Meu filho, ouça-me: estou ligando para avisar que não vou acordar.”  Mas K. não o escuta.  Está muito entretido, sonhando com W.  Mesmo sem escutar, trata de se livrar do velho:  “Legal, pai.  Melhor assim.  A gente tem mesmo que partir um dia, né?”  E volta a sonhar o seu idílio com W.  Extasia-se.  O êxtase o faz urrar: “Ip ip hurra!”.  O hurra o desperta.  É tarde da noite.  Escuta um ruído soturno no corredor.  Pé ante pé, espia.  É Y.  Está pálido e pelado.  Seu ser exausto já renunciara à vitalidade.  “Pô, pai.  Tá a fim de me assombrar?”  Y. fita K. e retruca na lata: “Qual é?  O ateu aqui é você.  Eu sempre disse que era espírita”.

    Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996).