Na saleta não há um relógio de parede. Estranho, muito estranho, porque escutarás o seu tique-taque. Não exatamente assim, mas um tique, uma pausa ligeira, um taque, que repetir-se-ão em intervalos regulares, numa mesma altura, num compasso monocórdico, em perpétua seqüência monótona: tique… taque… tique… taque… tique… taque…
Encostarás o relógio de pulso ao ouvido. As batidas não virão dali. Claro que não! Trouxera-lo durante anos, e nunca emitira um som. Fora sempre um marcador de horas preciso e silencioso.
Mas, então, de onde viria aquela percussão: tique… taque… tique… taque… Os nervos alterar-se-ão. Que diabos será aquilo? Que significaria?
– Calma, cara, você está se descontrolando, sussurrará uma voz.
Olharás para os lados, não verás ninguém. Desconfiado, procurarás embaixo do sofá, atrás, em cada canto, no verso de um quadro bizarro pendurado na parede… mas a saleta estará vazia. Seria a voz das horas?
Um zumbido próximo ao ouvido esquerdo. Ruídos do inconsciente? Concentrar-te-ás e, atento ao zuummm, baterás as mãos, espalmadas, de súbito, esmigalhando um pernilongo sanguinolento.
E o quadro? Maneirista? O Reencontro do Corpo de São Marcos, de Tintoretto?
Tique… taque… tique… taque… o pulsar do relógio de parede que não há. Estarás confuso. O enigma aturdir-te-á.
E a voz outra vez:
– Calma, cara, você está imaginando coisas.
Ora! Imaginar como, se sequer haverás cogitado? Imaginar o que nunca terás suposto? Não, aquilo estará muito esquisito. Sentirás um calafrio. Arrepiarás. O pânico apossar-se-á de ti.
– Calma, cara, calma, ditará a voz que não terá timbre nem sotaque, que não será de homem nem de mulher, nem adulta nem infantil…
Esbarrarás a vista num recorte de jornal que se pegara ao calcanhar cambo do teu sapato. Será um anúncio dos classificados.
Procura-se objeto inexistente
O objeto em questão é uma pequena caixa oblonga. Pode ser de madeira ou papelão reforçado, ao estilo de uma tabaqueira ou caixinha de rapé. É importante que tenha uma tampa removível que a deixe bem cerrada. Nela, deve-se poder guardar as lembranças afetivas, as saudades e os devaneios, para que nunca se desvaneçam. E é preciso ainda que lá caibam as esperanças. Deve ter uma aparência sedutora, como a boceta de Pandora. Mas é imprescindível que não origine males dissimulados.
O tique-taque martelar-te-á o crânio. O espaço estreitar-se-á. O ar escasseará. As paredes fechar-se-ão sobre ti. O chão oscilará bêbedo. O teto desabará em câmara lenta. Sentirás ânsias de vômito. Suarás. O calor tornar-se-á insuportável.
… lembranças afetivas…
Não há ali onde lavar as mãos. Nem um lenço de papel para limpá-las. Esfregá-las-ás, então, para esfarelar os restos de pernilongo grudados nas palmas das tuas mãos.
Um desconforto crescerá dentro de ti, deixando-te ofegante, as pernas bambas, a memória embaralhada, o raciocínio entorpecido, os olhos embaçados, submetendo-te o físico e a vontade, dominando-te por inteiro.
Desejarás sair dali. Os movimentos não responder-te-ão. Quererás gritar. O grito entalará na garganta.
De repente, o ranger da porta. Sobressalto. Pavor. Virar-te-ás, ansioso, acuado: esquelética, uma mulher de branco, tez pálida, olheiras roxeadas, fitar-te-á.
Retesarás, gélido.
Rosto encavado, mãos ossudas, a voz impessoal dirigir-se-á a ti:
– É a sua vez.
– Ahn!?
Haverá chegado tua hora.
Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996).
Os nomes, não sei. Nunca soube ou me esqueci. A desmemória é perversa. Mas, como o cego que desenvolve habilidades auditivas e táteis compensatórias, desenvolvi a capacidade de imaginar. Esse é o aspecto positivo da amnésia. Se não sei, invento. E de tão imaginativo, de tão acostumado a me equilibrar no limiar entre o que é e o que poderia ser, fui aos poucos perdendo a percepção da diferença entre tudo o que vivi ativamente na invenção e aquilo a que assisti passivamente fora dela. Enfim, como diria o outro, palavras, palavras…
Mas, retomando o fio da meada, os nomes, não os sei. Sei que ela era espigada como uma exclamação e ele encurvado feito uma interrogação. Ela toda enfática, ao passo que ele reflexivo. Enquanto ela afirmava que sem dúvida era o que era, ele, enigmático, indagava se seria mesmo. E, sendo do jeito que eram, se apaixonaram.
A história dessa paixão, não vou contá-la em seus detalhes íntimos. Não seria ético. Ponha-se na pele das personagens e diga se você gostaria de ver-se exposto assim. Não, todo casal tem direito à privacidade. Não se deve espiar a vida conjugal de ninguém. Que tenham lá suas preferências… ninguém tem nada com isso. Problema deles, e só deles e de quem mais partilhe as experiências com eles. Há muito tempo a nossa sociedade rasgou o manto do puritanismo – que, diga-se de passagem, nunca cobriu os nossos autóctones. A bem dizer, esse manto foi feito retalhos desde que os cristãos aqui aportaram e ficaram hipnotizados pelos paganismos com que se defrontaram. Tanto é que os seus escribas enviaram epístolas a El-Rei nas quais esqueciam de relatar a paisagem em favor da descrição pormenorizada das vergonhas das bugras – muito asseadas, diziam. Não lhes tiro a razão nem os censuro. Seriam hipócritas se agissem diferente. Eu, todavia, prefiro o recato, e não direi palavra que possa suscitar o escândalo dos moralistas.
Algumas coisas são óbvias. É claro que, sendo ela impulsiva e ele introspectivo, coubesse a ela toda a iniciativa da relação. E, efetivamente, assim foi. Ele não se atrevia a fazer-lhe a corte. Então, foi ela que se aproximou dele. Ela foi direta; ele, evazivo. E o ímpeto dela acabou vencendo a tibieza dele. Foi ela que segurou a mão dele, acaricou-o no rosto e deu-lhe o primeiro beijo no canto dos lábios. Sobre o beijo posso contar. Afinal, diante dos que se vêem em nossas telenovelas, esse beijo foi pudico. Nada de chupões, bocas escancaradas, línguas entremeadas e escambo de salivas como nos closes televisivos. Não. Ela bem que entreabriu de leve os lábios, muito discretamente, e apenas tocou o canto da boca dele com a ponta da língua. Uma coisa sutil. Tanto que ele ficou na dúvida e foi para casa pensando naquele beijo de despedida. Sentira ou não sentira o roçar da ponta da língua dela no canto da sua boca? E o encostar do corpo dela no seu, teria sido imotivado ou denotaria alguma intenção por parte dela? Ele se indagava, se indagava… E depois de muito perscrutar chegou à conclusão de que poderia ser que sim, mas que também poderia ser que não. Até que ela fez, de supetão, o pedido formal de namoro. Ele, pego de surpresa, solicitou um tempo para pensar. Aquilo não era coisa para se decidir de uma hora para a outra. Era uma decisão muito séria. A entrega amorosa vinha carregada de conseqüências talvez indeléveis. Ele se guardara para o amor de sua vida. Precisava saber se era realmente ela a pessoa certa. Ela, moça esperta nessas lides, mal pode esperar um dia. No dia seguinte, mudou-se de mala e cuia para a casa dele. Esse episódio vale a pena contar.
O porteiro do prédio dele já a conhecia de outras visitas e deixou que ela subisse com bagagens e acompanhada de um ilustre desconhecido pelo elevador social. Só que o ilustre era um chaveiro que abriu as portas do apartamento e fez chaves para ela. Ela entrou e se instalou como pôde, apossando-se de metade do armário dele. Depois das arrumações, tomou um banho e deitou-se na cama, agora deles, para repousar. Quando ele chegou em casa, o fato estava consumado. Ademais era um cavalheiro e jamais expulsaria uma dama do seu leito. E o concubinato se consumou como nas noites de núpcias após os casamentos de véu e grinalda na Igreja.
Ele queixou-se ao síndico do prédio. Relatou-lhe a temeridade do corrido. Este, preocupado com a segurança do condomínio, mandou o porteiro embora, por justa causa, alegando inépcia laboral. E a assembléia de condôminos, alarmada, deu todo o apoio ao ato expulsório, apesar de deixar escapar à socapa uns risinhos logo abafados.
Ela, irrequieta e instável, às vezes sumia por uns dias. Ele, pacato e metódico, não se acostumava com os sumiços dela, ainda que soubesse que ao cabo de dois ou três dias a teria de volta ao lar. Numa dessas escapadas dela, ele, não conseguindo se reconciliar com o sono, saiu a passear pela madrugada. Caminhava distraído com os pensamentos absortos nela quando tropeçou numa trouxa sobre a calçada. Atônito, viu a trouxa se mexer e de seu interior assomar a cabeça de uma criança que o fitou espantada com os olhos arregalados. Estava paralisado, sem saber o que pensar quando a criança começou a chorar. Outra trouxa maior também se mexeu e dela surgiram os rostos de um homem e de uma mulher, provavelmente os pais da criança. Ia desculpar-se, mas recuou diante dos impropérios lançados contra ele pelos dois. Ainda deu uma olhadela, de soslaio, e pareceu-lhe reconhecer o porteiro que fora posto no olho da rua. Afastou-se apressado. E, de volta a casa, deitado em seu leito sem ela, não conseguia discernir se as trouxas eram ou não o porteiro e sua família.
Desde esse dia, nunca mais saiu a caminhar pelas calçadas nas madrugadas sem ela. É que se acostumou a dormir sozinho, pois nunca mais soube dela e temia tropeçar em uma trouxa da qual ela ressurgisse em sua vida. Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996).
Estamos a 3.000 anos-luz do Vaticano. Um dia, acreditei que o espaço não tinha poderes sobre a fé, assim como acreditava que os céus proclamariam a glória da obra de Deus. Agora, já vi essa obra e minha fé se encontra seriamente abalada. Olho para o crucifixo, suspenso na parede da cabine, acima do computador Mark VI, e pela primeira vez em minha vida me pergunto se não será um símbolo vazio.
Ainda não contei a ninguém, mas a verdade não pode ser escondida. Os fatos estão lá para todos lerem, registrados em quilômetros sem conta de fita magnética e nos milhares de fotografias que transportamos de volta à Terra. Outros cientistas poderão interpretá-las tão facilmente quanto eu, e não serei eu quem vai compactuar em ocultar a verdade, fato quase sempre responsável pela má fama da nossa ordem nos velhos dias.
A tripulação já se encontra suficientemente deprimida e não sei como eles aceitarão esta ironia final. Poucos dentre eles possuem qualquer tipo de fé religiosa e, no entanto, não encontrarão prazer em usar essa arma final em sua campanha contra mim. Aquela guerrinha particular, bem-humorada, mas de fundamental importância, que transcorreu durante todo o caminho desde a Terra. Eles achavam divertido ter um jesuíta como astrofísico-chefe: o Dr. Chandler, por exemplo, nunca se acostumou com isso (por que será que os médicos são tão ateus?). Algumas vezes ele me encontrava no convés de observação, onde as luzes eram sempre reduzidas, de modo a que as estrelas pudessem brilhar em toda a sua glória. Ficava ao meu lado na penumbra, olhando através da grande janela oval para os céus que se moviam lentamente à nossa volta, enquanto a nave girava, com a rotação residual, que nunca nos incomodaríamos em corrigir.
– Bem, padre – dizia ele, afinal -, parece prolongar-se para sempre, não? Talvez alguma coisa o tenha criado. Mas como pode acreditar que essa alguma coisa tenha um interesse especial por nós e nosso mundinho miserável, nunca poderei entender.
E a discussão começava enquanto, lá fora, estrelas e nebulosas giravam em seus arcos eternos e silenciosos, além do plástico claro e sem falhas da vigia de observação.
Acredito que, em grande parte, era a aparente incongruência de minha posição que fazia a tripulação achar a coisa tão divertida. Seria inútíl eu chamar a atenção para os meus três artigos publicados no jornal de Astrofísica ou os cinco no Noticias Mensais da Real Sociedade Astronômica. Lembrava-lhes que a minha ordem era famosa há muito tempo por seus trabalhos científicos. Nós podemos ser poucos agora, mas desde o século XVIII temos feito contribuições à astronomia e à geografia que parecem fora de proporção com o número de nossos quadros. Será que meu relatório sobre a nebulosa Fênix vai pôr fim a nossos mil anos de história? Porá fim, receio, a muito mais que isso.
Não sei quem deu esse nome à nebulosa, que me parece muito inadequado. Se contém alguma profecia, é coisa que não será verificada durante vários bilhões de anos. Mesmo a palavra nebulosa é um engano: trata-se de um objeto muito menor do que aquelas estupendas nuvens de poeira – a matéria-prima das estrelas ainda por nascer – que se espalham ao longo da Via-Láctea. Na escala cósmica, de fato, a nebulosa Fênix é algo pequeno – uma tênue concha de gás envolvendo uma única estrela…
Ou o que sobrou de uma estrela …
O retrato de Loyola feito por Rubens parece zombar de mim, suspenso ali, acima dos registros do espectrofotômetro. O que tu terias feito, padre, com este conhecimento que veio às minhas mãos, tão longe do pequeno mundo que foi todo o universo que conheceste? Teria tua fé se erguido ante o desafio onde a minha falhou?
Teu olhar se perde na distância, padre, mas eu viajei por uma distância além de qualquer uma que pudeste ter imaginado ao fundar a nossa ordem, há mil anos. Nenhuma outra nave de pesquisa esteve tão longe da Terra. Encontramo-nos nas fronteiras do universo explorado. Partimos para encontrar a nebulosa Fênix, tivemos sucesso e agora voltamos com o peso de nossos conhecimentos. Quisera eu poder erguer esse peso dos meus ombros, mas é em vão que te chamo através dos séculos e anos-luz que nos separam.
No livro que seguras, as palavras são nítidas:
AD MAIOREM DEI GLORIAM, diz a mensagem, mas é uma mensagem em que não mais posso crer. Poderias ainda acreditar nela se pudesses ver o que encontramos?
Nós sabíamos, é claro, o que era a nebulosa Fênix. Apenas em nossa galáxia, a cada ano, mais de 100 estrelas explodem, queimando durante algumas horas ou dias com milhares de vezes o seu brilho normal antes de mergulharem na morte e na obscuridade. Essas são as novas normais, desastres comuns no universo. Já gravei espectrogramas e curvas de luminosidade de dúzias delas, desde que comecei a trabalhar no observatório lunar.
Mas três ou quatro vezes a cada mil anos ocorre alguma coisa, ao lado da qual até mesmo uma nova empalidece na total insignificância.
Quando uma estrela se torna supernova, ela pode brilhar brevemente mais que todos os sóis reunidos na galáxia. Os astrônomos chineses observaram isso acontecer no ano 1054 d.C. sem conhecerem a razão do que viam. Cinco séculos depois, em 1572, uma super-nova explodiu na constelação de Cassiopéia, tão brilhante que podia ser vista à luz do dia. E houve mais três durante os mil anos que se passaram desde.então.
Nossa missão era visitar o remanescente de semelhante catástrofe, tentando reconstruir os eventos que haviam conduzido a ela para, se possível, aprender sua causa. Entramos lentamente através das conchas concêntricas de gás que haviam sido lançadas para fora há seis mil anos e ainda se expandiam. Ainda estavam imensamente quentes, irradiando mesmo agora numa violenta luz violeta, mas eram demasiado tênues para nos causar qualquer dano. Quando uma estrela explode, suas camadas externas são impulsionadas para fora com tamanha velocidade que escapam completamente ao seu campo gravitacional.
Agora formavam essa concha oca, grande o suficiente para envolver mil sistemas solares. Em seu centro queimava o objeto pequeno e fantástico em que a estrela se tornara. Uma anã branca, menor do que a Terra e no entanto pesando um milhão de vezes mais.
As conchas de gás luminoso nos envolviam banindo a noite normal do espaço ínterestelar. Voávamos para o centro de uma bomba cósmica que detonara há milênios, e cujos fragmentos incandescentes ainda se expandiam. A imensa escala da explosão e o fato de que os resíduos já cobriam um volume de espaço com muitos bilhões de quilômetros de diâmetro roubavam à cena qualquer movimento visível. Levaria décadas para que a visão pudesse discernir qualquer movimento nesses tortuosos filamentos e redemoinhos de gás. E, no entanto, o sentimento de uma expansão turbulenta era irresistível.
Havíamos verificado nossa direção básica horas atrás e agora flutuávamos lentamente rumo à pequenina e fogosa estrela à nossa frente. Ela já fora um sol como o nosso, mas consumira em algumas horas toda a energia que a teria mantido brilhando por um milhão de anos. Agora se tornara avarenta e encolhida, reunindo seus recursos como se tentasse compensar os excessos de uma juventude perdulária.
Ninguém esperava seriamente que pudéssemos encontrar planetas. Se houvesse existido algum antes da explosão, teria sido cozido em sopros de vapor e sua substância dissolvida em meio aos resíduos da estrela. Ainda assim fizemos a busca automática, como sempre fazemos ao nos aproximarmos de um sol desconhecido. Dentro em pouco localizamos um mundo pequeno, circundando a estrela a imensa distância. Ele devia ter sido o Plutão desse desaparecido sistema solar, orbitando nas fronteiras da noite. Demasiado afastado do sol central para jamais ter conhecido a vida, sua distância salvara-o do destino que consumira todos os seus companheiros.
A passagem do fogo queimara suas rochas, dissolvendo o manto de gás congelado que devia cobri-lo nos dias anteriores ao desastre. Nós pousamos e descobrimos a Cripta.
Seus construtores se haviam assegurado de que isso ocorreria. O marco monolítico erguido acima da entrada não passava agora de um toco fundido, mas mesmo nossas fotos de longa distância já nos revelavam existir ali o trabalho de uma inteligência. Pouco depois detectamos o padrão de radioatividade, amplo como um continente, que fora embutido na rocha. Mesmo que o pilar acima da Cripta tivesse sido destruído, essa energia teria permanecido, um eterno e irremovível farol acenando para as estrelas. Nossa nave mergulhou como uma flecha em direção a esse gigantesco alvo.
O pilar devia ter uma altura de I,5 km quando foi construído. Agora parecia uma vela que se derretera até formar um monte de cera. Levamos uma semana para perfurar a rocha fundida, já que não tínhamos ferramentas adequadas para essa tarefa. Éramos astrônomos, não arqueólogos, mas podíamos improvisar. Nosso propósito original fora esquecido: esse monumento solitário, erguido com tamanho esforço à maior distância possível do sol condenado, só poderia ter um significado. Uma civilização que tinha consciência de seu fim próximo fizera ali seu último apelo à imortalidade.
Examinar todos os tesouros depositados na Cripta será trabalho para gerações. Eles tiveram muito tempo para se preparar, já que seu sol deve ter dado os primeiros avisos muitos anos antes da detonação final. Tudo o que desejavam preservar, todos os frutos de seu gênio, eles depositaram ali, naquele mundo distante, dias antes do fim, na esperança de que alguma outra raça os encontrasse, para que não fossem inteiramente esquecidos. Teríamos nos portado desse modo? Ou teríamos nos perdido em nossa própria autocomiseração, incapazes de pensar num futuro que nunca poderíamos ver ou compartilhar?
Se ao menos eles tivessem tido um pouco mais de tempo … Podiam viajar livremente entre os planetas de seu próprio sol, mas ainda não haviam aprendido a cruzar os golfos interestelares, e o sistema solar mais próximo encontrava-se a 100 anos-luz de distância. Mas mesmo que possuíssem o segredo do impulso transfinito, não mais que uns poucos milhões poderiam ter sido salvos. Talvez tenha sido melhor assim.
Mesmo que eles não fossem tão perturbadoramente humanos, como revelam suas esculturas, não poderíamos deixar de admirá-los e lamentar seu destino. Eles deixaram milhares de registros visuais, juntamente com minuciosas máquinas para projetá-los. Havia instruções ‘pictóricas, de modo que não fosse difícil aprender a sua linguagem escrita. Temos examinado muitas dessas gravações, trazendo de volta à vida, pela primeira vez em seis mil anos, todo o calor e a beleza de uma civilização que, em muitos aspectos, deve ter sido bem superior à nossa. Talvez eles tenham deixado apenas seu lado melhor, mas ninguém poderá condená-los por isso. Seus mundos, contudo, eram adoráveis e suas cidades, erguidas com uma graça que iguala qualquer coisa já feita pelo homem. Nós os observamos no trabalho e nas diversões, ouvimos sua linguagem musical soando através dos séculos. E uma cena permanece ante meus olhos. Um grupo de crianças numa praia de estranha areia azul, brincando nas ondas como as crianças brincam na Terra. Há uma fileira de árvores exóticas, que lembram chicotes, ao longo da praia, e algum animal muito grande aparece, atravessando os baixios, sem atrair atenção.
Mergulhando no mar, ainda cálido e generoso, vemos o sol que logo se tornaria traidor, apagando toda essa felicidade inocente.
Talvez se não estivéssemos tão longe de casa, e portanto tão vulneráveis à solidão, não ficássemos tão profundamente comovidos. Muitos de nós já observaram as ruínas de antigas civilizações em outros mundos, mas elas nunca nos afetaram tão profundamente. Essa tragédia era única. Uma coisa é uma raça falhar e morrer, como nações e culturas já o fizeram na Terra. Mas ser destruída tão completamente, em pleno ápice de seu desenvolvimento, sem deixar qualquer sobrevivente – como tal coisa poderia conciliar-se com a misericórdia divina?
Meus colegas já perguntaram isso e eu dei as respostas que pude. Talvez tivesses feito melhor, padre Loyola, mas nada encontrei no Exercitia Spiritualia que me ajudasse nessa tarefa. Eles não eram gente má: não sei que deuses adoravam, se é que adoravam algum. Mas tenho olhado para eles através do abismo dos séculos e vi a beleza que preservaram em seu último esforço sendo de novo trazida à luz de seu sol encolhido. Eles poderiam ter-nos ensinado tanto. Por que foram destruídos?
Conheço as respostas que meus colegas darão quando estiverem de volta à Terra. Dirão que o universo não possui propósito ou plano, e que de vez que 100 sóis explodem, a cada ano, em nossa galáxia, neste exato momento alguma raça está morrendo nas profundezas do espaço. Se essa raça fez o bem ou o mal durante sua existência, não faz qualquer diferença no final. Não há justiça divina porque não existe Deus.
É claro que o que vimos não prova nada disso. Qualquer um que assim afirme está sendo influenciado pela emoção, não pela lógica. Deus não necessita justificar suas ações perante o Homem. Ele, que construiu o universo, pode destruí-lo quando quiser. Constitui arrogância – perigosamente próxima da blasfêmia – pensar que podemos dizer o que Ele pode ou não fazer.
Isso eu teria aceito, não importando quão dolorosa fosse a perspectiva de mundos inteiros, juntamente com seus povos, sendo lançados em fornalhas. Mas chega um ponto em que até mesmo a mais profunda fé pode vacilar, e agora, quando olho para os cálculos colocados diante de mim, percebo que afinal cheguei a esse ponto.
Não podíamos dizer, antes de alcançar a nebulosa, há quanto tempo ocorrera a explosão. Agora, partindo da evidência astronômica e dos registros nas rochas daquele único planeta sobrevivente, fui capaz de datá-la com precisão. E sei em que ano a luz desse incêndio colossal chegou à Terra. Sei o quanto essa supernova, cujo cadáver agora se apaga atrás de nossa nave em aceleração, deve ter brilhado nos céus da Terra. Sei como deve ter fulgurado, baixa sobre o horizonte do leste, antes do nascer do Sol, como um farol na alvorada oriental.
Não pode haver mais dúvida. O mistério ancestral foi finalmente solucionado. E no entanto, ó Deus!, havia tantas estrelas que poderias ter usado. Qual a necessidade de lançar essas pessoas ao fogo para que o símbolo de sua morte pudesse brilhar acima de Belém?
Arthur Charles Clarke, famoso escritor inglês, um dos expoentes da chamada “Hard Ficção Científica”, autor do clássico 2001: uma odisséia no espaço, morreu na terça-feira (18/03/2008) desta semana santa.
Certa noite tive uma idéia, daquelas que chegam sem nenhuma explicação aparente, de escrever uma topografia sentimental de Copacabana. O método seria simples: cada rua me levaria a lembranças, evocações, alegrias, tristezas quiçá, saudades sem dúvida. Exercícios mnemônicos. Vamos a eles.
Avenida Princesa Isabel, há quarenta anos. Belorizontino, primeira vez no Rio enturmado, já que um amigo trabalhava para a TCA (companhia de teatro Tônia – Celi – Autran). Íamos beber e ouvir música na boate Hi – Fi que ficava no térreo do Hotel Plaza. Dudu Barreto Leite, irreverente e bem-humorada, brincava então com os versos de uma canção da moda: “Mulher que em casa é fria / fode lá fora” (A noite está tão fria / Chove lá fora).
Ali perto a Prado Júnior, local obrigatório de boemia da época. Cervantes e Beco da Fome. No primeiro, dois tipos de incursão: uma mais ou menos careta, quando as festinhas terminavam e a gente ia comer sanduíche e tomar os chopes finais com pessoas comportadas; a outra temerosa, no final da madrugada, já que o Cervantes era um dos poucos bares abertos, quando topávamos com o Peréio já meio alto, correndo o risco de uma discussão evidentemente gratuita (ele namorava Jura, uma amiga de Belo Horizonte). No Beco da Fome, a paz com o caldo verde ou os quibes maravilhosos que até hoje são uma referência qualitativa para qualquer quibe: tão gostoso como o do Beco da Fome.
Do outro beco, o das Garrafas, não me esqueço nunca de ter ouvido no Litlle Club o Cauby Peixoto, com seu vozeirão, cantar, se não me engano, “Litlle Darling” (também não tenho certeza se o nome da música é este).
Saindo da Duvivier, caminhando para o Lido, a Belfort Roxo me faz lembrar da Mara Mijona. Com ela fui a um bar chamado Chaplin, onde passava comédias de Carlitos, e as pessoas ficavam sentadas em tamboretes no balcão; fui para casa com a morena gaúcha Mara e descobri na cama molhada a razão do seu apelido.
Ronald de Carvalho! Lá estava o primeiro apartamento que aluguei no Rio, a um preço de banana, conseguido por um grande amigo. Desperdicei a chance irresponsavelmente. E até com certo perigo: uma bela noite, pleno verão, fui dormir com o cigarro aceso para a última tragada: apago aparentemente com um copo d’água um foguinho no colchão; acordo com a porta sendo arrombada pelos bombeiros, a fumaçada que saía pela janela (era no térreo) alertou a vizinhança que amedrontada chamou a corporação. É claro que a dona do apartamento, que ficou em péssimo estado, perdeu a confiança no locatário.
Sem sair deste início de Copacabana, ainda tem nesta pequena topografia sentimental a Viveiros de Castro. A evocação é singela. Fiz uma operação no pé direito e fiquei engessado até a coxa por 90 dias. Aluguei um apartamento na Viveiros por temporada, não podia sair de casa, convidei uma amiga pra ficar comigo, bebia uísque o dia todo (meu médico não desaprovou). Foi no início de 64. Jango ainda no poder, nada de milico. Minha amiga era assídua do Paissandu e adorava a nouvelle vague. Eu também. Batíamos grandes papos, diálogos brilhantes. A diferença fundamental é que nos filmes franceses, além de conversa havia especialmente a transa. Nós, porém, ficávamos a ver estrelas.
Flávio Pinto Vieira é jornalista e escritor; autor do livro de contos Nove histórias e dez mulheres, Ed. Sete Letras.
Filho, não se surpreenda, nem duvide da autenticidade desta mensagem. Sou eu que estou escrevendo, mesmo. Suas possíveis lágrimas derramadas com meu desaparecimento tinham apenas meia razão de ser. Desculpe, mas não foi possível avisar. Ainda corro risco por escrever, mas não resisti ao contato. Estou livre como nenhum homem jamais esteve, filho. Talvez você possa um dia usufruir de minha experiência… Bem sucedida. A essa altura você talvez esteja adivinhando o que quero dizer… Sim, é isso. Eu consegui. Destrua essa mensagem após a leitura. Ela é a primeira de outras. Não tente respondê-la. Desenvolvi um software próprio para te escrever. Finalmente não preciso usar as mãos. Até mais. Cuide-se.
Encarei o e-mail como uma brincadeira idiota. Mais, talvez uma vingança de algum dos inúmeros desafetos de meu pai, não contente com seu desaparecimento físico. Torturar seu único filho talvez aplacasse a ira de alguém que se oponha às suas idéias progressistas. Talvez um dos muitos que não as julgava tão progressistas assim. Mas havia alguma coisa no estilo da escrita que era muito dele. Quando escreve por exemplo que “estava livre como homem nenhum jamais esteve” sua voz é própria, dele. Resisti em deletar o texto. Não queria fazer o jogo do zombeteiro, por outro lado, alguma coisa real me apegava àquelas palavras. Gravei em disco e mostrei para Alma. Minha mulher fora íntima de papai durante muitos anos. Conhecia seu modo de agir. Ela decretou: o texto é de Caio. Argumentei que papai estava bem morto. Seu corpo fora cremado conforme desejo expresso. Ela sorriu. Pude ler em seu rosto tudo o que estava pensando. Caio era esperto demais para desaparecer sem surpresa. Ela tinha razão.
Filho, demorei algumas horas para escrever essas poucas linhas. Empaquei na primeira sentença. “Estou vivo”, escrevi, e logo acionei o backspace. Isso é pouco, Júlio. Vivo está você, sua mulher, meus netos, o resto da humanidade. Vocês estão vivos porque vão morrer. Eu estou eternizado. Bem, agora está dito e posso começar a falar. Minha condição supra existencial, acho que posso dizer assim, me coloca aonde nenhum homem jamais esteve. Mais, eu sou a essência pura do homem livre. Engraçado, Júlio, é tal a minha independência que preciso de alguém. De você. Te convoco a ser minha ponte com o mundo. Desculpe a imodéstia, filho, mas é uma honra para você. Estou tentando elaborar os próximos passos.
Esse segundo e-mail deixou a certeza de que era ele quem falava. Chamei Alma, tomado de angústia metafísica. Ela leu e sorriu novamente, mas desta vez não consegui ler seus pensamentos. Quase gritei pedindo sua interpretação. “Ele programou um processador para emitir mensagens após o seu desaparecimento. As últimas blagues”. Fazia sentido, papai fora um genial cientista da informática. Desenvolvera avanços na área que a humanidade ficaria lhe devendo para todo o sempre. Além disto seu excelente humor faria supor tais desdobramentos. Só uma coisa não se encaixava. Não havia sinal de que soubesse de sua morte com antecipação, nem, aparentemente cometera suicídio.
Júlio, o tempo para mim não existe mais. Considere portanto os quarenta e dois dias passados entre esta e a última mensagem como apenas alguns segundos. Sei que devo contar com a sua mortalidade, mas, perdoe-me, a nova condição ainda não me tomou inteiramente. Preciso anunciar a vocês, humanos vivos, a minha descoberta, invenção, condição, como devo chamar o que estou sendo? Sim, filho, puro ser. Inefável ser. Condição do super-homem, não de Nietszche, super-homem de Caio da Silva Luz. Passarei para a história, cheguei a pensar. Mas logo retifiquei, quando todos chegarem à minha condição, nem história mais haverá. Perdoe-me, filho, mas preciso interromper-me. Em breve voltarei a contatar.
Bem, esse terceiro e-mail colocou-me em oposição a minha mulher. Alma continuava a sustentar a tese da blague póstuma, para mim papai estava vivo, ou alguma coisa assemelhada. Rodei até o laboratório de Praia Bonita. A Fundação Caio Luz funcionava lá. Papai em sua absurda independência montara uma central informatizada que se utilizava de um único funcionário. Era um pobre homem semi alfabetizado. Ele verificava os indicadores da bateria nuclear que sustentavam toda a parafernália funcionando. Os computadores da Fundação mantinham a sua obra teórica intacta. Em qualquer parte do mundo, através da rede, a população do planeta podia acessar os conhecimentos ali contidos. Era vetado o acesso de qualquer pessoa além de Paulo Cordo, o tal guardião. Mas eu era o filho. Suspeitei que os e-mails partiam dali. Só consegui chegar até uma primeira sala onde um terminal dava acesso aos arquivos tanto quanto qualquer computador doméstico ao redor do mundo. Voltei para a casa num certo desconsolo.
Esqueça a Fundação, filho. Eu posso informar o que é preciso saber. Aliás eu sou só informação, agora. Peço-te algum tempo antes que possamos conversar diretamente. Preciso me acostumar à nova condição. É incrível, Júlio, como a consciência livre do corpo está, ao mesmo tempo, totalmente só e absolutamente integrada. Você e Alma poderão usufruir disto também. Pedrinho ainda é muito pequeno. Tenho pensado que talvez não seja preciso nascer novas crianças num futuro próximo. Um número de consciências a ser definido habitará tudo. Tudo? Tudo o que, Júlio?
Esse e-mail estava na caixa de correio de meu computador quando cheguei em casa. Foi aterrorizante porque era a prova de que papai não só vivia como era informado de meus passos quando estivesse próximo dele. Chamei Alma. Concluímos que ele estava na Fundação. Estava? O que significava ser e estar para meu pai, agora?
Alma sugeriu que falássemos com John Hamilton. Ele fora assistente de papai durante vinte anos até que os dois romperam. Ele nos recebeu com gentileza, mas quando falamos de Caio, perdeu o aplomb. Levei um pequeno gravador dentro do bolso do casaco:
Alma: O senhor está a par das pesquisas que Caio estava desenvolvendo nos últimos anos?
John: Até nossa divergência há dois anos eu partilhava de todos os seus experimentos.
Alma: E o que ele estava tentando fazer?
John: Tudo o que foi pesquisado está no site da Fundação.
Alma: É mesmo? Ele não tinha um campo secreto de pesquisa?
John: OK. Vocês querem saber da loucura? Caio era obcecado por abandonar o corpo. Ele queria transformar-se num processador de dados. Nosso rompimento aconteceu por esses delírios dele.
Júlio: Não havia a menor possibilidade de suas pesquisas darem bons resultados?
John: Resultados, talvez, mas bons?
Caro Júlio. Finalmente, consegui ajustar a minha realidade à ação. O grande perigo do estágio em que estou é sua incrível fragilidade. Cá entre nós, posso ser deletado até por acidente. Mas esse momento fugaz vai passar. Posso revelar agora. Consegui “entrar” no sistema acoplado da Fundação. Estou contido em um programa que deve estar aparecendo aí no canto de sua tela. Basta você “clicar” no ícone IN THE BOX para que eu seja instalado em seu computador. E poderemos conversar então. Mas quero mais do que isso, Júlio, quero que você me envie para a lista de endereços que vai em anexo. Serei instalado então em máquinas de todo o planeta, e o primeiro homem realmente ubíquo. Qualidade que a superstição antiga atribuía a deus. Foi necessário, por razões técnicas, que alguém acionasse o programa após a minha conversão em megabits. Pensei que esse alguém só poderia ser você, meu único filho, ou Alma. Mas confiar essa tarefa a uma mulher pareceu-me arriscado, não por incapacidade física… bem, divago. Acione o sistema, Júlio. Entre para a história da super humanidade. Sim, Júlio, a humanidade que nós conhecemos encerrou seu ciclo. Estamos livres do macaco, Júlio, finalmente seremos pura energia.
Bem, esse e-mail congelou minha medula. Bastava clicar para abrir o programa. Após a leitura da mensagem me ergui e tranquei a porta do escritório. As palavras estavam lá na tela. Clicar no ícone INTHE BOX. Lembrei de papai diante do primeiro PC, nos longínquos anos 90. Ele explicando para mim e minha mãe sobre a rede. Falando de como o homem poderia se superar. As horas e horas que ele passava trancado dentro de sua sala, em frente a tela do computador. O seu desespero porque eu não era um NERD. A sua aproximação de Alma após o meu casamento. A ida dela para a Fundação. A violenta e nunca explicada separação dos dois. Nunca compreendi muito bem esse mundo em que ele viveu.
Júlio, pelos relógios que regulam a vida de vocês, se passaram dez horas depois que você recebeu o meu e-mail. Basta você clicar no ícone, meu filho. Não haja como um covarde como tantas vezes. Não me decepcione. É melhor ser alguém que auxiliou a História do que não ser ninguém, Júlio. Clique no ícone IN THE BOX, agora.
Flávio Braga é autor do romance O que contei a Zveiter sobre sexo (Record, 2006)
Nós, o Ano Novo, passamos os três. Ceiamos em casa e depois fomos ver os fogos na praia. Do céu despencou um dilúvio. Adivinhei que havia chegado a hora do Juízo Final. Do mar bateu uma ventania de cortar os ossos encharcados. Vanda estava com uma manta roxa, e a tintura escorria em gotas roxas que tingiram o vestido ex-branco e as sandálias ex-brancas dela, pintaram a minha calça ex-branca e a roupa ex-branca da Marina. Fui jogar umas flores ao mar e Iemanjá arrebatou-as de minhas mãos com uma rajada fria. Durante trinta minutos tiritamos na umidade semigélida, os cabelos pingando ao vento, esperando dar meia-noite. De repente o céu explodiu em clarões. No susto percebi que havia chegado a hora: É agora! Pedi perdão pelos meus pecados, pelos que pecara e pelos que ainda pecaria se me sobrasse tempo, e apertei as pálpebras temendo o pior. A multidão gritava agitada. Enchi-me de coragem e abri os olhos para ver os Cavaleiros do Apocalipse ? por incrível que pareça, era só um show de fogos de artifício para saudar não se sabe bem se o fim de um milênio ou o começo do outro. Quando me dei conta, já estávamos no século XXI. Vanda e Marina, abraçadas, fundiam-se num voluptuoso beijo de língua. Ei, também quero, reivindiquei. Meti-me entre as duas e enlaçamo-nos os três com sofreguidão. Vivido o momento, ensaiamos a volta à casa. A multidão se comprimia nas ruas que desaguavam na praia e tentava em vão remar contra a maré. Ficamos entalados no meio da turba compacta. A nossa vingança foi tingir de roxo todos os que esbarravam em nós: a maldição da manta roxa! Aquilo devia ser um sinal de Iemanjá. Quem sabe, a deusa do mar achasse que ainda era cedo e quisesse mais festa. Resolvemos voltar à praia. Mas não dava para nadar contra um mar de pessoas que insistia em avançar contra uma muralha de gente imóvel ? adultos, velhos, crianças esmagados uns contra os outros. Finalmente, como por milagre, conseguimos escapar por uma brecha na compacta massa humana. Esperamos um bocado à beira do mar; a multidão foi descompactando, e pudemos retomar o caminho de casa. Chegando ao apartamento, fomos correndo pro chuveiro lavar a tinta roxa que já impregnara até as unhas dos nossos pés. Esfregamo-nos, com lascívia, uns nos outros. Esfregamo-nos, com vigor, uns aos outros. Esfregamos e não conseguimos remover o tingimento. De modo que acordamos roxos no dia primeiro.
Pois é, que coincidência… Diziam os babalorixás que o ano seria regido por Omulu, o orixá que cuida da saúde e da morte. Não foi à toa a cor roxa. Sinal de que as flores foram bem aceitas e de que nós, roxos, receberíamos proteção o ano inteiro. Que bom!
Virei-me para as duas e pontifiquei: Este milênio, anotem o que estou dizendo, este será um milênio roxo. Acreditem. O tempo se conta em mil anos. E tem cor.
Ao que Vanda e Marina ripostaram uníssonas: Um feliz milênio roxo para todos nós!
Estávamos de férias. Comprei uma sunga roxa, elas compraram biquines roxos, e fomos tocando os dias, alegres e distraídos, na praia de Copacabana.
No dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, sob um sol escaldante, no mesmo ponto da beira onde Iemanjá arrancara a oferenda das minhas mãos, as ondas devolveram à areia os nossos três corpos roxos.
Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996).
Espreguicei na cama e, ao voltear a cabeça, revelou-se para mim a aliança sobre a mesinha de cabeceira. A visão escabrosa acarretou-me o mal-estar das apostas perdidas, das desilusões amargadas, do passado traído, do sonho despedaçado.
Aquela argola de ouro com o nome dela gravado, aquele anel de compromisso custara-me os olhos da cara. Ela fora pudica, dizendo-me que dispensava algemas. Eu insistira, cego que não enxerga senão o que quer ver. Ela me disse que então comprasse umas baratinhas. Mas comprei umas caras, não as mais caras, mas bastante caras para o tamanho do meu bolso; desvario, romantismo que me fazia imaginá-la esfuziante no aconchego arcaico de um minueto naftalênico.
Ela aceitara a aliança em seu dedo de casada, resignada, ainda que pouco à vontade. Disse-me que eu desperdiçara dinheiro. Eu não queria ouvi-la, mas a frase forte impressionara minhas células cerebrais. Mal pagara, melhor, recém assinara a fatura da compra a prazo, quer dizer, ainda não a pagara, já me arrependia da compra. Mas resistia a encarar o fato que afrontava o meu desejo. Disse-lhe que só me importava vê-la feliz. E perguntei se ela estava feliz. Ela olhou pela primeira vez o anelar esquerdo com a aliança de ouro que levava o meu nome e me respondeu que era bonita. Coloquei a outra aliança em mim e, estendendo a mão para exibi-la, indaguei se ficava bem no meu dedo. Olhou e disse, hesitante, que sim. Perguntei se meu dedo não era muito gordo para o anel. Respondeu que não, que ficara bem.
Eu já estava desesperado com o meu fiasco e não sabia mais a que recorrer: que frase, que artifício… O silêncio tombou sobre nós com a frieza de uma lâmina de guilhotina, instalando-se a abissal distância que só a rejeição pode cavar.
Ela baixara a vista. Eu não poderia me render sem mais nem menos; e ansiava, desesperadamente, por uma saída honrosa. Percorri a galeria de lojas com o olhar vago até vislumbrar um restaurante japonês. Ela adorava comida japonesa. Pensei rápido e convidei-a para comemorarmos as alianças com um saquê. Ela assentiu com um sorriso pálido.
Sentamos à mesa; uma que dava a vista para o mar. O ar condicionado aliviava o calor e a paisagem me trazia a sensação aprazível da brisa marinha, mas os goles de saquê afogavam-me o espírito numa enxurrada de tristeza. As lágrimas foram brotando, primeiro em meus olhos, depois nos dela. E o peixe cru foi sendo salgado por nosso pranto incontido, até ficar intragável.
Ela assoou o nariz no guardanapo. Quis recriminá-la, mas não tive ânimo. Ela assoou o nariz com mais força. Eu peguei o meu guardanapo e assoei o nariz também.
Perguntei se ela chorava por algum amor não correspondido. Ela não respondeu que sim nem que não. Não admitiu que o outro só a queria para fazer sexo. Nem revelou que ele era casado. Perguntei desde quando ela me traía. Ela não me confessou que desde sempre. Com quantos? Não me segredou que com muitos, com todos que souberam despertar os instintos que trazia à flor da pele e que a arrebatavam. Tampouco disse que queria que eu soubesse que me amara e que se martirizara a cada traição, mas que agora, não sabia como havia acontecido, agora se perdera nesta nova paixão.
A sua expressão magoada me dizia que o amante a desenganara com a afirmação de que jamais se separaria da sua mulher. Perguntei se ele tinha filhos. Emudecida dizia que não, que ele amava a mulher dele. E com a intensidade de seu olhar desamparado exclamava que não suportaria me perder.
As lágrimas sulcavam-lhe o rosto em testemunho da sinceridade de suas emoções. O garçom protestou conosco que estávamos inundando o restaurante. Pensei em matá-la em legítima defesa da minha integridade afetiva. Ela me disse que queria morrer. Soluçava. Decidi puni-la, deixando que experimentasse o fel da frustração. Saí sem pagar a conta. Ela me chamou. Minha alma quis voltar, meu coração quis ficar, mas as pernas seguiram em frente com pisadas trôpegas no chão encharcado que, à minha passagem, respingava lágrimas enlameadas nas mesas em volta.
Hoje, faz dez anos que esta aliança, relíquia indecorosa, está sobre a mesinha de cabeceira. Estamos no mesmo apartamento, na mesma cama. Ela dorme tranqüila, aliança no anelar esquerdo, luxuriante ao meu lado, seios lascivos, mamilos voluptuosos, bicos crapulosos. Nossa filha dorme no outro quarto. Nossa filha?! Peguei a aliança da mesinha de cabeceira. Encaixei-a no dedo. Resolvi estrangulá-las.
* Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS(Record, 1996).
Único aprovado entre quinze candidatos no teste para a Rádio Cairo , em 1971, fiquei sabendo no consulado que o contrato como redator-locutor-tradutor seria de dois anos renováveis e que o salário era bem razoável, considerando-se o baixo custo de vida da capital egípcia.
O momento crítico levou à dúvida: ir com minha mulher Linda ou deixá-la com a família, já que tão bem se reintegrara a ela. Não havia eu de certo modo cumprido a minha missão, o meu dever de ampará-la e recolocá-la de cabeça erguida e com os pés firmes junto aos seus parentes? O Egito, cujo passado deslumbrava por causa dos Faraós, das Pirâmides e da Esfinge e cujo presente atemorizava por causa de Nasser (já assassinado) e sua independência, não seria país muito estranho para brasileiros? O Cairo, sempre evocando filmes de espionagem, não seria perigoso? Essas indagações foram absolutamente em vão e inclusive o argumento segundo o qual dois anos passariam rápido e eu voltaria com uma reserva de grana para uma vida mais folgada. Nada removia Linda da decisão de me acompanhar, a qualquer lugar que fosse. Ademais, era uma chance difícil de obter nas nossas condições financeiras, de conhecermos a Europa – especialmente Paris.
Tínhamos mais ou menos dois meses para preparar a partida, o que significava desfazer o lar que com tanto carinho e tanta dificuldade fora montado há três anos e meio numa cobertura da Buarque de Macedo.
Vendemos móveis, eletrodomésticos e alguns livros. Dos primeiros lá se foi a belíssima poltrona de couro da Oca, presente de um amigo; dos segundos, a televisão comprada à vista na rua Uruguaiana; e dos terceiros, edições preciosas no original desejadas por um poeta, amigo meu: as obras completas de Baudelaire da Pléiade, as “Crônicas Italianas”de Stendhal e a “Volta ao dia em 80 mundos” do Cortázar.
Linda teve que preparar seu guarda-roupa de inverno e me lembro de um belo casaco – foi pago? não sei – da butique Vison, o qual a acompanhou durante todo o período no exterior. Porém, houve algo esdrúxulo: a compra de uma peruca então na moda e que Linda, apesar de seus belos, finos e macios cabelos, fazia questão de usar.
Me lembro aqui do Professor, criado por Antonio Bulhões no “Elogio da Corrupção”, ao dissertar sobre a moda: “(…) A sedução da moda também se verifica em extensa gama de atividades outras; do livro à revista, do filme ao programa de televisão, do must ao esporte do momento, da gourmandise ao drinque de classe, dos lugares públicos aos endereços privados, dos passeios turísticos às admirações estéticas, do candidato à eleição ao melhor carnavalesco, do ator ou atriz preferidos ao maestro temperamental ,do objeto cult à griffe em voga, dos óculos extravagantes às lapiseiras requintadas, ia quase dizendo – tão extenso é o elenco a que me poderia ater, se quisesse – do talismã ideal ao bandido mais romântico. Ou do pensamento à linguagem. (…) O individualismo está agonizante. O efêmero, adotado insensivelmente como valor permanente, impõe-se. A célula social erigiu em padrão exemplar a aparência publicitária.”
Afinal, embarcamos do verão austral para o inverno boreal: Linda, com a dispensável peruca e o casaco da Vison; eu, com um blazer usado cedido pelo pai de Linda. No bolso, os cheques de viagem em dólares comprados com a venda da desmontagem do lar. Não muito polpudos: duas semanas antes o dentista de Linda exigiu que ela fizesse uma pequena intervenção periodôntica que me comeu alguma grana. (Tenho quase certeza de que certas doenças podem entrar na lista de sedução da moda feita pelo Professor citado há pouco.)
Dissemos adeus aos parentes de Linda e a alguns meus.
Eu particularmente disse adeus ao governo militar de Médici, adeus a três ou quatro prestações de jóias e de móveis, adeus aos juros do agiota (ah! minha porção dostoievisquiana!), adeus ao desemprego, adeus ao sufoco financeiro, adeus à crise conjugal, adeus ao púbis preto-peludo e ao cheiro forte de Helena, adeus aos quatro anos de vida doce, terna, angustiante, realizada, instável, crítica, adeus.
Flávio Pinto Vieira , jornalista e escritor, é autor do livro de contos Nove histórias e dez mulheres (7Letras).
Os olhos escuros de Eva encontraram os olhos claros de Ricardo. Aos 15 anos a menina pesava 45 quilos e a sua pele era formosa. O corpo ágil chamou a atenção de Ricardo. Ele jamais olhava por olhar. Sua mirada sempre significava. Eva não sabia.
Eva brincava na praia vazia, sob a luz matinal. Ele pensou em como a menina se prestava aos seus intentos.
Eva era filha do caseiro de Crane, que hospedava Ricardo. Tudo ali era de Crane: a casa, a praia onde ficava a casa e a ilha em que se localizava a praia.
Os cabelos fartos e os profundos olhos azul-acinzentados de Ricardo encantaram a menina. Eva também gostou do leve sotaque castelhano. Ele falou de flores, da luz da manhã e até recitou um poema de Kávafis. Finalmente, a convidou para tomar sorvete com cassis que trouxera do continente na bolsa de gelo.
Sentaram na varanda e Eva falou dos roedores que viviam no jardim, dos pássaros que comiam em sua mão, e dos ventos que envergavam as árvores. Ricardo se confessou encantado com o Oceano Pacífico. Ele pediu licença e entrou na casa. Voltou com um estranho aparelho. Assemelhava a uma arma. “A sua pele é perfeita” ele disse. Ela apenas sorriu.
Eva completara 18 anos quando o homem representando Crane desembarcou na ilha. Era formal. Usava terno e gravata. Eva nunca vira alguém assim. O homem falou com seu pai e depois a chamaram. Seu pai a fez cobrir o busto acentuado e mostrar a tatuagem. O homem a examinou durante alguns minutos, depois sacou uma pequena câmera e fotografou a obra. Ele chamou a tatuagem assim: a Obra de Ricardo Morales.
Um mês depois o homem voltou, acompanhado de dois outros. Eram formais, bem barbeados, e também examinaram a tatuagem. Eva pensou que não eram atraentes como Ricardo. O pai de Eva a convidou para um passeio na praia e contou tudo. O rico Crane os queria na cidade.
Eva e seus pais foram instalados numa casa pequena, dentro do parque onde ficava outra casa, enorme. Lá morava Crane. Seu pai assinou papéis e uma costureira preparou um vestido para Eva. Havia um grande decote nas costas onde ficava visível a tatuagem. Logo abaixo, na altura da bunda, estava gravado no vestido: tatuagem sobre pele. 12 X 16 cm. Ricardo Morales.
Crane oferecia jantares num enorme salão onde as paredes eram cobertas de quadros de todos os tipos, com variados motivos. Também havia esculturas, as mais estranhas e em todos os materiais. Durante esses jantares, Eva ficava parada, em pé, entre outras estátuas e quadros assinados por Ricardo Morales. Eva ficou sabendo que ele havia praticado suicídio um ano depois de tatuar as suas costas.
Eva conversava com os empregados da casa. Não havia nenhum como Ricardo, de olhos tão claros e voz tão inesquecível, mas Eva gostou de Roberto. Ele dirigia os carros de Crane. Eram muitos modelos e ainda havia outro motorista. Eva era impedida de sair da área da mansão, mas Roberto a escondeu no banco traseiro da Mercedes e saíram para passear. Roberto a tentou beijar. Ela consentiu. Ele quis tirar suas roupas. Ela quis mostrar a tatuagem, mas ele não estava interessado. Até xingou a tatuagem. Tentou beijar seus seios, e ela deixou. Finalmente, Eva perdeu a virgindade com Roberto. Gostaria que houvesse sido com Ricardo, mas…
Aos poucos, Eva aprendeu a amar Roberto. Ele queria ficar com ela. Declarou sua vontade. Eva aceitou, mas o rapaz impôs uma condição. Conhecia um tatuador que cobriria a tatuagem da noiva com outra. Eva contou para seu pai, que contou para o advogado, que contou para Crane. Roberto foi dispensado e Eva nunca mais o viu.
Quando Eva completou 48 anos, seu pai e mãe haviam morrido. Ela passou a morar num quarto dentro da mansão. Fazia pequenos serviços para matar o tempo. Era solicitada poucas vezes a mostrar a tatuagem. Se tornara amante de um dos jardineiros. Sua felicidade consistia nos bons momentos que passava com ele, embora o homem não lembrasse nem um pouco Ricardo. Estava ajudando seu namorado a preparar um canteiro quando a governanta saiu porta afora anunciando: Crane havia morrido.
Dois meses depois, todos os empregados foram chamados à presença do advogado dos novos proprietários. Eva não tinha função específica. O homem sorriu quando ela contou o que fazia na casa. Alguns dias depois ela recebeu um envelope com algumas notas. Assinou um recibo e foi dispensada. Saiu na avenida com uma pequena mala. O movimento a assustou um pouco. O mundo era um tumulto incompreensível.
* Flávio Braga é romancista, roteirista e editor. Este ano publica pela ed. Record 68, o romance.