Categoria: Crítica

  • JUDAS, de Amós Oz

    JUDAS, de Amós Oz

    JudasO maior escritor israelense volta-se para o ícone máximo da traição no ocidente, mas absolve-o do pecado supremo de entregar Jesus aos carrascos romanos: Judas Iscariotes queria apenas que seu ato fosse a causa de um novo milagre. O nazareno deveria ter descido da cruz e submetido romanos e os vis judeus que os serviam à vergonha e à extinção. Mas não foi o que ocorreu e a Judas só restou enforcar-se ao entardecer.

    Em seu romance, Amós Oz traça um paralelo entre o discípulo que traiu Jesus e David Ben Gurion, o líder judeu que no final dos anos 50 consolidou o estado de Israel contra o entorno regional árabe. O confronto ali se iniciava e até hoje se mantém. A certa altura um dos personagens afirma: “judeus e árabes foram, ao longo da história, vítimas da Europa cristã. Os árabes foram humilhados pelas potencias colonialistas e sofreram a vergonha da opressão e da exploração e gerações e mais gerações de judeus sofreram degradação, banimento, perseguições, expulsões, morticínio e por fim o assassinato de um povo que não teve precedentes na história do mundo. Duas vítimas da Europa cristã. Será que não existe um fundamento histórico profundo para relações de amizade e compreensão entre eles?”

    O romance levanta a questão, pouco absorvida pelo grande público, de que a colonização inglesa alimentou os conflitos religiosos para se beneficiar. A antiga técnica de dividir para governar. Há também uma severa crítica ao expansionismo israelense resumida nas seguintes palavras: “O grande mal é que os oprimidos anseiam secretamente em se tornar opressores de seus opressores. Os perseguidos sonham em ser perseguidores. Os escravos sonham em ser senhores.”

    A obra consolida a posição de Amós Oz não só como um dos autores máximos de Israel, mas de todo o Oriente Médio.

    Flavio Braga é escritor

  • O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos

    O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos

    Gracilianos Ramos livroReavaliada 120 anos depois de seu início, em 27 de outubro de 1892, a extraordinária trajetória pessoal, literária, intelectual e política de Graciliano Ramos contada por seu melhor biógrafo ganha nova edição, ampliada e revisada, pela Boitempo Editorial. O velho Graça, de Dênis de Moraes, nos conduz pelos sessenta anos de história de um dos maiores narradores da literatura brasileira, com todo o rigor da documentação e dos depoimentos pessoais daqueles que o cercavam. O livro chega aos leitores com acréscimos que acentuam o conhecimento pormenorizado da vida e da obra do escritor alagoano. Entre as novidades estão um bem-cuidado caderno iconográfico, com imagens raras e até inéditas, e a mais esclarecedora entrevista concedida pelo escritor, em 1944, nunca antes publicada em livro.

    Publicado pela primeira vez no centenário de Graciliano Ramos, o trabalho de Moraes foi recebido com grande entusiasmo pela crítica, por se tratar da primeira “biografia de conjunto” sobre o romancista, como classificou Carlos Nelson Coutinho no prefácio.

    O estilo jornalístico do biógrafo se perfaz num rigoroso e amplo trabalho de pesquisa – com texto ao mesmo tempo leve e erudito, escrito com sóbria simplicidade, O velho Graça refaz a trajetória luminosa e sofrida de Graciliano. Tendo como objeto de estudo um escritor aferrado ao seu tempo, Moraes desenha o pano de fundo de cinco décadas de grande efervescência política e de transformações aceleradas no processo modernizador do Brasil.

    A garimpagem em arquivos públicos e privados de Rio de Janeiro, São Paulo e Alagoas, assim como as dezenas de testemunhos de amigos, parentes, artistas, intelectuais e companheiros de geração enriqueceram sobremaneira o trabalho. Com argúcia de historiador e sensibilidade literária, Moraes traça a interligação entre as várias personas de Graciliano Ramos: o menino traumatizado pelas surras na infância; o jovem autodidata que lia Balzac, Zola e Marx em francês; o mítico comerciante da loja Sincera; o revolucionário prefeito de Palmeira dos Índios; o zeloso diretor da Imprensa Oficial e da Instrução Pública de Alagoas; o preso político no inferno da Ilha Grande; o escritor sufocado por apuros financeiros; o estilista da palavra na redação do Correio da Manhã; o militante comunista aos esbarrões com a burocracia partidária.

    Sem cair na armadilha do biografismo, Moraes recompõe a emergência dessa complexa figura, reconstituindo no percurso dialético de seus diversos momentos alguns dilemas fundamentais de nossa formação histórica. “Temos um Graciliano sem retoques: duro, mas apaixonado; frio e áspero na superfície da fala e do gesto, mas ardente e sempre humano na fonte da vida pessoal”, diz na capa o professor Alfredo Bosi, que também encontrou na biografia o cruzamento de itinerários do homem capaz de refletir, como num jogo de espelhos, a somatória de vivências acumuladas: “a paixão pela palavra nele precedeu e acompanhou a opção política que, por sua vez, transcendeu (mas jamais renegou) a adesão partidária”.

    Para o autor, remontar o quebra-cabeça de Graciliano assemelhou-se ao ofício de artesão, já que os fragmentos do passado precisavam ser pacientemente reunidos e dispostos com a máxima coerência possível, a despeito da pluralidade de suas significações.

    A necessidade de correlacionar peripécias, valores e sentimentos foi inspirada em uma passagem do prólogo de Memórias do Cárcere. O escritor consciente, assinala Graciliano, não deve esquivar-se dos zigue-zagues e tumultos próprios de uma existência. “Esforcei-me para mirar o objeto sem perder de vista suas interfaces e imbricações, tratando de averiguar convicções, dúvidas, anseios, vicissitudes e triunfos a fim de estabelecer conexões com a esfera ficcional engendrada por ele. Nas tensões entre o homem, a atmosfera social e a criação literária recolhi pistas que me levassem às motivações familiares, afetivas, estéticas, ideológicas e políticas presentes em sua intervenção na realidade concreta”, completa Moraes. O resultado é uma história de projeções e influências, de paradoxos e contrastes, mas, sobretudo, de coerência na busca incessante do que é essencial à vida.

    Trecho do livro

    “Fico imaginando o que Graciliano acharia de ter sido biografado. Talvez fingisse desprezo por sua escolha. O que me leva a crer nisso? Uma declaração feita por ele, em novembro de 1937, em uma carta ao tradutor argentino Raúl Navarro, que lhe pedira um currículo sumário para anexar a um conto em vias de publicação em Buenos Aires.

    “Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão. Depois que redigi esses infames relatórios, os jornais e o governo resolveram não me deixar em paz. Houve uma série de desastres: mudanças, intrigas, cargos públicos, hospital, coisas piores e três romances fabricados em situações horríveis – Caetés, publicado em 1933, S. Bernardo, em 1934, e Angústia, em 1936. Evidentemente, isso não dá para uma biografia. Que hei de fazer? Eu devia enfeitar-me com algumas mentiras, mas talvez seja melhor deixá-las para romances.”

    Dênis de Moraes nasceu no Rio de Janeiro em 1954. É doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), sediado em Buenos Aires. Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). É autor e organizador de mais de vinte livros, dos quais oito foram editados no exterior (Argentina, Espanha, Cuba e México). Além de O velho Graça, publicou duas biografias de intelectuais e artistas de esquerda: Vianinha, cúmplice da paixão: uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho (Rio de Janeiro, Record, 2000; São Paulo, Expressão Popular, no prelo) e O rebelde do traço: a vida de Henfil (Rio de Janeiro, José Olympio, 1996). Ainda, com Francisco Viana, Prestes: lutas e autocríticas (Petrópolis, Vozes, 1982; Rio de Janeiro, Mauad, 1998), obra baseada no único depoimento concedido pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes sobre sua trajetória.

    Fonte: Carta Maior, 23/10/2012

     


    120 anos de Graciliano Ramos

    Luiz Ricardo Leitão

    Ler Graciliano é uma experiência imprescindível para quem deseja conhecer os segredos mais profundos deste país de latifundiários que se chama Brasil

    Nascido em Quebrangulo, no interior das Alagoas, em 27 de outubro de 1892, o dileto e genial mestre Graciliano Ramos teria completado na última semana seu 120º aniversário. Infelizmente, em meio às escaramuças do segundo turno eleitoral nesta nossa Bruzundanga e à bulha midiática pelos capítulos finais de mais um folhetim eletrônico global, a data passou quase despercebida entre nós. Houve belas homenagens, sem dúvida, entre elas o relançamento da primorosa biografia escrita por Dênis de Moraes (O Velho Graça) e a edição de Garranchos, compilação de textos a cargo de Thiago Mio Salla. O escritor, contudo, merecia muito mais – e espero que, em breve, tratemos de saldar essa dívida, celebrando com pompa e circunstância as seis décadas de sua dolorosa e precoce partida deste planeta azul em 1953.

    Ler Graciliano é uma experiência imprescindível para quem deseja conhecer, pelos atalhos mágicos da ficção, os segredos mais profundos deste país de latifundiários que se chama Brasil. Desde o tempo das sesmarias dos finados Zacarias, ainda no século 16, durante a primeira onda de globalização do Novo Mundo, ser proprietário de vastas extensões de terra é um símbolo de poder na Terra de Santa Cruz (que o diga FHC, ex-sociólogo dos príncipes, cioso de sua brejeira fazenda em Buritis). Muitos pensadores brasileiros esmiuçaram essa verdade tropical, mas poucos romancistas souberam apreender com sufi ciente lucidez e imaginação o singularíssimo arranjo de classes graças ao qual os velhos coronéis da casa grande ludibriaram a senzala e se perpetuaram no imaginário nacional e também na vida prosaica da República.

    O seco e agreste alagoano, autor de obras-primas como São Bernardo e Vidas Secas, foi decerto o mais agudo crítico dessa fórmula quase prussiana de modernização sem ruptura que dita o processo de evolução capitalista no país. Isso não quer dizer que, antes da criação de personagens como Paulo Honório ou Fabiano & Sinha Vitória, não tenha havido outros intérpretes clarividentes de nossa truncada e excludente história. A começar por Machado de Assis: quando lemos Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e nos espantamos com os caprichos de seu narrador, capaz de montar a cavalo em crianças escravas e prometer ao leitor eventos que nunca relatará, a associação com Fernando Collor ou FHC é imediata. O menino é o pai do homem… No plano retórico, a modernidade é uma lei natural, verdadeira panaceia para os males dos “descamisados”; na vida real, “esqueçam tudo o que escrevi” – e também aquilo que casualmente se disse em campanha.

    Machado, porém, não quis sair da cidade. Segundo ele próprio escreveu, o mundo “começa aqui no Cais da Glória ou na Rua do Ouvidor e acaba no Cemitério de São João Batista. Ouço que há uns mares tenebrosos para os lados da ponta do Caju, mas eu sou um velho incrédulo” (Esaú e Jacó). Foi, de fato, uma pena. Se tivesse seguido o exemplo de Lima Barreto (outro mulato extraordinário, mas quase um marginal na cidade das letras), o criador de Brás Cubas talvez nos tivesse revelado aspectos ainda mais sutis da nossa modernização, em um país onde o progresso é fruto de uma aliança secular do latifúndio com a burguesia urbana – e cujo capital industrial e financeiro, em última instância, também provém desse pacto turbulento, porém eficaz, entre as classes dominantes do campo e da cidade. Cronista das vidas secas e agrestes, o mestre Graça parecia querer nos dizer que, nesta cultura da modernização sem ruptura, o velho ainda sabe usar a roupagem do novo, ditando o curso da transformação capitalista sob o ritmo dos alqueires infinitos. Em suas contínuas versões, esta articula golpes e contragolpes, rastreia as turbulências prestes a explodir e antecipa- se à sua propagação. Seduz alguma gente e, se necessário, reprime outras tantas. Até quando, porém, o fôlego lhe sobrará? Só há curvas onde as retas foram impossíveis. Creio que era nisso que o vaqueiro Graciliano cismava à porta de seu cárcere imemorial… Axé, Velho Graça!

    Fonte: Brasil de Fato, 30/10/2012

  • Centenário do nascimento de Julio Cortázar, o mestre do “fantástico”

    Centenário do nascimento de Julio Cortázar, o mestre do “fantástico”

    Escritor argentino Julio Cortázar, que faria 100 anos este ano, foi um dos mais importantes protagonistas do boom da literatura latino-americana nos anos de 1960 – Romina Santarelli/Ministerio de Cultura de la Nación
    Escritor argentino Julio Cortázar, que faria 100 anos este ano, foi um dos mais importantes protagonistas do boom da literatura latino-americana nos anos de 1960 – Romina Santarelli/Ministerio de Cultura de la Nación

    “Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças dos nossos bisavôs, do avô paterno, dos nossos pais e de toda a nossa infância.” Assim arranca o conto Casa Tomada, o primeiro que o então desconhecido Julio Cortázar publicou, em 1946, na revista literária Anales de Buenos Aires, dirigida por Jorge Luís Borges.

    “Tenho orgulho de ter sido o primeiro a publicar um trabalho dele”, recordou Borges, que na época tinha 47 anos e já dera à estampa uma das suas obras maiores, Ficciones. “Lembro de um jovem alto que se apresentou no escritório e me entregou um manuscrito. Prometi que o iria ler, e ele regressou uma semana depois. O conto chamava-se Casa Tomada. Disse-lhe que era excelente; a minha irmã Nora fez a ilustração”. Cortázar tinha 32 anos, escrevia desde criança, mas decidira só tornar público o seu trabalho quando achasse que o estilo já tinha atingido um nível aceitável.

    “Devo ter pecado por vaidade, porque determinei uma espécie de teto, de nível muito alto, para começar a publicar, e tinha suficiente sentido autocrítico para ler o que ia escrevendo e dar-me conta de que estava abaixo”, explicaria Cortázar mais tarde.

    Até àquela data, publicara apenas Los Reyes, um livro de poesia “meio clandestino”, mas escrevera um romance de 600 páginas, duas novelas, muitos contos e inúmeras poesias que nunca quis levar às editoras (na realidade, levou o romance, que foi recusado). “Sentia, sem saber muito bem porquê, que os meus primeiros contos não funcionavam e em vez de ficar a lamentar-me parecia-me mais lógico metê-los numa caixa ou jogá-los fora”, disse Cortázar na mesma entrevista.

    “Até que um dia apareceu um conto que na minha opinião funcionava, esse trouxe outros – alguns que funcionavam, outros não – e outros que na sua maioria começaram a dar certo. Foi quando os dei à publicação.”

    O gênero “fantástico”

    Mesmo assim, foi um processo lento. Um ano depois, a mesma revista de Borges publicava Bestiário, e foi preciso esperar mais um ano para que saísse o terceiro, Lejana, na revista de artes e letras Cabalgata. Só em 1951, data da sua mudança para França, juntou os três contos, acrescentou mais cinco e publicou o primeiro livro, que recebeu o título Bestiário.

    Era a primeira de muitas coletâneas de contos que Cortázar definia como pertencentes “ao gênero chamado fantástico, à falta de uma melhor designação”.

    Casa Tomada passa-se num enorme casarão de família, onde vive um casal de irmãos que veem a sua residência ser paulatinamente tomada por entes nunca definidos, por vozes, por ruídos que forçam os irmãos a recuar, a ceder-lhes partes da casa, que fecham, para tentar deter a invasão.

    Bestiário é a história de uma menina que vai de férias, como habitualmente, para a casa de uma família amiga que vive com um tigre. O cotidiano da casa é marcado pela necessidade de constantemente vigiar a fera, que passeia livremente pelas salas da casa ou pelos jardins, de forma a que não haja encontros desagradáveis entre os humanos e o potencialmente agressivo felino.

    Nos dois casos, como na maioria dos restantes contos, o fantástico de Cortázar (como, aliás, o de Borges) tem pouco a ver com o gênero que recebera o nome no século anterior, histórias góticas de terror, do horrível, centradas no “lado noturno” do homem. O fantástico (ou neofantástico, como lhe chamou o crítico literário Harold Bloom) de Cortázar mergulha o leitor num mundo em que o irreal invade e contamina o real. Uma espécie de deslocamento, como observa o escritor e jornalista uruguaio Omar Prego Gadea, numa longa entrevista a Cortázar.

    Na opinião de Gadea, em Bestiário, por exemplo, o elemento fantástico não é o tigre, mas sim a aceitação natural da sua presença e a adaptação de toda a rotina da família ao estranho convívio. Já em Casa Tomada, o clima fantástico instala-se devido à atitude dos irmãos, que em nenhum momento pensam em investigar a origem daqueles ruídos que vão assinalando a invasão da casa.

    Hoje, Bestiário é sem dúvida um marco na literatura hispano-americana; mas na altura não foi assim visto. O livro de Cortázar ficava um pouco ofuscado por Ficciones e por El Aleph, de Jorge Luís Borges. Mas o jovem escritor tinha fé de que estava a fazer algo de original: “Tinha total certeza de que quase todas as coisas que mantinha inéditas eram boas, e algumas delas eram mesmo muito boas”, recordou, referindo-se a “um ou dois dos contos de Bestiário”. E prosseguiu: “Havia outros, os admiráveis contos de Borges. Mas eu fazia outra coisa”.

    Demoraria mais cinco anos a publicar um novo livro de contos, Final del Juego.

    A vida na França

    Esses foram os anos em que se estabeleceu na França, país onde viveria pelo resto da vida, recebendo mesmo a nacionalidade francesa em 1981, outorgada pelo próprio François Mitterrand, sem porém renunciar à cidadania argentina. Foi na verdade um regresso à Europa. De fato, Julio Cortázar nascera, “por total acaso” – como gostava de dizer – em Bruxelas, no ano que marcou o início da Primeira Guerra Mundial. O pai, Julio José Cortázar, era funcionário da embaixada, mas as vicissitudes da guerra forçaram a família a mudar-se para Genebra e depois para Zurique, onde aguardou o final do conflito. Em 1918, os Cortázar regressaram à Argentina, indo viver em Banfield, subúrbio de Buenos Aires.

    Logo o pai se separou e abandonou a família, e o pequeno Julio seria criado pela mãe, a tia e a avó. Formou-se em 1932 como professor primário e três anos depois como professor de Letras. Deu aulas em pequenas cidades do interior, Bolívar e Chivilcoy, e ensinou literatura na Universidade de Cuyo, mesmo sem ter qualquer título universitário. Em 1945, ano da eleição de Perón à Presidência da Argentina, desistiu da carreira docente e voltou para Buenos Aires, onde foi trabalhar na Câmara Argentina do Livro.

    A oportunidade para a viagem a França surgiu com uma bolsa do governo francês e Julio chegou a Paris decidido a ficar. Levava apenas uma mala de roupa e um disco de jazz: Stack O’Lee blues.

    Na época, conta, tinha “uma vida quase mínima, convencido a ser solteirão irredutível, amigo de muito pouca gente, melômano leitor de jornada completa, apaixonado pelo cinema, burguesito cego a quase tudo o que acontecia mais além da esfera estética”. Conseguiu então um emprego como tradutor da ONU que, além de um salário regular, lhe permitiu viajar para muitos lugares e deu-lhe a oportunidade de realmente se estabelecer no país, como pretendia. E em 1953 abandonou as convicções celibatárias e casou-se com Aurora Bernárdez, como ele tradutora e argentina.

    Pouco depois de Final del Juego, publicou uma tradução castelhana das obras completas de Edgard Allan Poe, até hoje considerada a melhor, naquela língua, do autor de Histórias Extraordinárias. Em 1959, saiu Las armas secretas, que inclui o famoso conto (ou novela) El Perseguidor, inspirado no saxofonista Charlie Parker.

    E no ano seguinte viajou à Argentina e publicou o primeiro romance, escrito durante a viagem de barco: Los Premios. Essa seria também a sua primeira obra traduzida para o francês e publicada em 1961 pela editora Fayard.

    O boom literário sul-americano

    Os anos de 1960 foram também marcados pelo boom da literatura latino-americana, um fenômeno editorial e literário sem precedentes que marcou a década e pôs em destaque uma geração de escritores sul-americanos que até então tinha grandes dificuldades para fazer circular as suas obras.

    Pela primeira vez, publicavam em editoras europeias e encontravam boa aceitação. O público, por outro lado, sentia-se atraído por autores que desafiavam convencionalismos estabelecidos e lançavam obras experimentais, algumas de caráter político que refletiam o clima do continente e o impacto da revolução cubana.

    Entre os expoentes deste boom estavam Cortázar, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes. Destes, Cortázar era o mais velho e o que vivia em Paris, e por isso a sua casa passou a ser um polo para os escritores latino-americanos que viajavam à Europa.

    García Márquez, por exemplo, dizia que desde a leitura de Bestiário compreendera que Cortázar era o escritor “que ele queria ser quando fosse grande”. Entre os dois havia 13 anos de diferença. O colombiano, que seria mais tarde Prêmio Nobel, reconheceu que sentia verdadeira devoção pelo argentino. Antes de se tornarem amigos, García Márquez procurara Cortázar pelos cafés de Paris, na esperança de assistir ao seu processo criativo. “Alguém me disse que ele escrevia no café Old Navy, do boulevard Saint Germain, e lá o esperei várias semanas, até que o vi entrar como uma aparição”, recordou. “Vi-o escrever durante mais de uma hora, sem uma pausa para pensar, sem tomar nada além de meio copo de água mineral, até que começou a escurecer na rua e guardou a caneta no bolso e saiu com o caderno debaixo do braço, como o estudante mais alto e magro do mundo.”

    Todos recordam a aparência jovem do autor de Bestiário, aparência essa que se devia à sua jovialidade, mas também à acromegalia, uma doença semelhante ao gigantismo, que se manifesta na idade adulta e que fazia com que nunca tivesse parado de crescer. Aos 60 anos, Julio tinha pés e mãos disformes e, ao morrer, com 70 anos, media 2,14m. Carlos Fuentes, outro que foi visitá-lo em Paris, conta que viu a porta ser aberta por um rapaz que aparentava ter 20 e poucos e a quem pediu que fosse chamar o pai. Mas era o próprio Cortázar, já com 50 anos de idade, que estava diante dele.

    Outro futuro Prêmio Nobel, Mario Vargas Llosa, conheceu Julio em 1958, durante um jantar de amigos num restaurante de Paris, quando ficou sentado ao lado de “um rapaz alto e magro, de cabelos curtíssimos e grandes mãos que agitava ao falar. Tinha já publicado um livrinho de contos e estava por publicar uma segunda compilação, numa pequena coleção dirigida por Juan José Arreola, no México. Eu estava prestes a publicar, também, um livro de contos e trocamos experiências e projetos, como dois jovenzinhos que fazem a sua velada de armas literária”, recordou o escritor peruano.

    “Só quando nos despedimos é que soube – pasmado – que era o autor de Bestiário e de tantos textos lidos na revista de Borges e Victoria Ocampo, Sur, e o admirável tradutor das obras completas de Poe… Parecia meu contemporâneo, e, na realidade, era 22 anos mais velho que eu. Durante os anos de 1970, e em especial os sete que vivi em Paris, foi um dos meus melhores amigos e, também, algo assim como o meu modelo e o meu mentor. Eu admirava a sua vida, os seus ritos, as suas manias e os seus costumes tanto como a facilidade e a limpeza da sua prosa e essa aparência cotidiana, doméstica e risonha, que nos seus contos e novelas adotavam os temas fantásticos.”

    O perseguidor

    El Perseguidor, o conto longo de 1959, vem marcar uma nova fase da literatura do escritor argentino. Até então, explicaria o próprio numa entrevista, os personagens dos seus contos podiam estar vivos, podiam comunicar alguma coisa ao leitor, mas não passavam de “marionetas ao serviço de uma ação fantástica”. Desta vez, a abordagem era diferente: o que fez neste conto foi o diálogo com um semelhante, “com alguém que não é um duplo meu, mas sim outro ser humano que não está posto ao serviço de uma história fantástica”. Neste caso, a história está determinada pelo personagem.

    El Perseguidor baseia-se na vida do saxofonista Charlie Parker para criar o músico de jazz Johnny Carter, “um indivíduo que ao mesmo tempo tem uma capacidade intuitiva enorme, mas que é muito ignorante, primário. É muito difícil criar um personagem que não pensa, um homem que não pensa, que sente. Que sente e reage na sua música, nos seus amores, nos seus vícios, na sua desgraça, em tudo”.

    O outro personagem é Bruno, jornalista e crítico de jazz numa revista especializada, autor de uma biografia do músico. Ele acompanha-o, protege-o, dá-lhe eventualmente dinheiro, mas por outro lado vive dele, parasita-o para aceder à sua própria glória como biógrafo do gênio.

    As intuições de Carter levam o músico a vislumbrar como que uma outra dimensão, algo que ele só verdadeiramente apreende através da música, uma realidade que às vezes define como “buracos”. “Na mão, no jornal, no tempo, no ar: tudo cheio de buracos, tudo esponjoso”, explica Carter. Um mundo ao qual ele tenta aceder sem sucesso e que não consegue explicar.

    Johnny Carter tem também uma percepção muito particular do tempo, um tema que sempre aparece nas suas conversas com Bruno. Para ele, o tempo é algo indefinido, maleável, variável. Diz: “Como se pode pensar um quarto de hora num minuto e meio?” E, numa das passagens marcantes do conto, interrompe uma gravação com Miles Davis e começa a gritar: “Já toquei isto amanhã, Miles, é horrível, já toquei isto amanhã”.

    Bruno, o crítico, é o contraponto de Carter: racional, preciso, sabe bem o que quer, escreve uma boa biografia, mas não consegue explicar por palavras a genialidade musical do biografado. Insiste que Carter lhe dê uma opinião sobre o livro e, depois de muito insistir, ouve o que não queria. “O teu livro é muito bom… Estás muito mais bem informado que eu, mas parece-me que falta alguma coisa… O que te esqueceste foi de mim.”

    No final, Carter morre, e o crítico ainda vai a tempo de incluir uma nota necrológica na segunda edição da biografia, que considera, assim, completa. “Talvez não seja certo eu dizer isto, mas como é natural situo-me num plano meramente estético”, conclui Bruno, satisfeito por já se falar de novas traduções da sua obra para sueco e norueguês.

    Quando acabou de ler El Perseguidor, Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio amigo de Cortázar, esmurrou o vidro da casa de banho até parti-lo. Depois, escreveu-lhe uma carta (coisa que ele só fazia muito raramente) a manifestar o seu entusiasmo pelo conto.

    O jogo da macaca

    O editor português do mais famoso romance de Cortázar, Rayuela, decidiu dar-lhe o título de O Jogo do Mundo. Publicado em Portugal com mais de 50 anos de atraso, a escolha é muito discutível, já que a tradução ao pé da letra deveria ser “o jogo da macaca” (no Brasil foi publicado como O Jogo da Amarelinha, título correto, já que o jogo infantil chamado “macaca” em Portugal tem o nome de “jogo da amarelinha” no Brasil). Cortázar pensara chamar o romance de Mandala, mas como lhe soava pretensioso optou pelo nome do jogo infantil cujo objetivo é chegar ao nono quadrado, o céu, através de saltos ao pé coxinho. O céu, neste caso, representaria a quimera do protagonista Horacio Oliveira que procura obsessivamente alguma coisa que não sabe definir.

    Rayuela foi publicado em 1963 e transformou-se com rapidez num clássico e até num livro de culto, uma das obras-chave do boom latino-americano. Escrita como um diálogo interior do protagonista Oliveira, a obra chamou desde logo a atenção pela forma. Com 155 capítulos, pode ser lida de maneiras diferentes, e o próprio leitor terá de escolher como o vai fazer: leitura normal, sequencial, do capítulo 1 ao 56, e prescindindo “sem remorsos” do resto; ou pela sequência sugerida pelo autor no início, seguindo uma tabela proposta pelo autor, que começa no capítulo 73 e segue para o 1, o 2, o 116… No fundo, também pode ser lido pela ordem que o leitor desejar, até porque aconteceu a muitos perderem-se e só se darem conta, ao fim de muita leitura, que afinal tinham seguido uma ordem diferente da proposta.

    O livro teve uma recepção entusiástica na América Latina. Pela primeira vez, o próprio leitor ganhava um protagonismo que não tivera antes, onde o seu papel era unicamente deixar-se conduzir passivamente pelo autor. Agora era diferente, e por isso alguns críticos chegaram a dizer que Rayuela era uma antinovela. Cortázar preferia o termo “contranovela”, porque o seu objetivo não era destruir a novela (romance) como gênero, mas “ver de outra forma o contato entre a novela e o leitor”. Qualquer que seja o termo que se escolha, o certo é que veio responder ao que os ventos de mudança pediam.

    A recepção da crítica na França, porém, foi bastante fria, com Roger Caillois – um promotor da literatura latino-americana e o primeiro a divulgar Borges no país – a recusar-se a publicá-lo na Gallimard. Em contrapartida, Rayuela, traduzido como Hopscotch, teve um acolhimento entusiástico nos Estados Unidos, recebendo em 1967 um dos recém-criados National Book Awards para livros traduzidos. James Irby, na revista Novel, publicou um estudo longo em que vinculava Cortázar a Cervantes e dizia que o romance é “uma meritória renovação do louco empreendimento proposto há séculos na Espanha pelo maior dos antinovelistas”. Um crítico do The New Republic disse de Rayuela que era a “mais poderosa enciclopédia de emoções e visões que emergiu da geração de escritores internacionais do pós-guerra”. O mexicano Carlos Fuentes, numa recensão publicada na revista norte-americana Commentary, recordou que o Times Literary Supplement de Londres considerara Rayuela como “a primeira grande novela da Hispano-américa”.

    Militância política

    Em 1961, Cortázar visitou Cuba e passou por uma nova mudança. “A Revolução Cubana, por analogia, mostrou-me então e de uma maneira muito cruel, e que doeu muito, o grande vazio político que havia em mim, a minha inutilidade política. Desde esse dia dediquei-me a documentar-me, a compreender, a ler: o processo foi-se fazendo paulatinamente e às vezes de uma maneira quase inconsciente, os temas onde havia implicações de tipo político, ou ideológico mais que político, foram entrando na minha literatura”, lembraria Julio na já citada conversa com Omar Prego Gadea.

    Para marcar essa nova fase, o escritor cita o conto Reunión, publicado em Todos los Fuegos el Fuego (1966) cujo personagem é o Che Guevara. “Esse é um conto que jamais teria escrito se tivesse ficado em Buenos Aires, nem nos meus primeiros anos de Paris.”

    Na mesma conversa, Cortázar afirma que em muito pouco tempo surgiu nele aquilo “que atualmente se chama o compromisso… O que não quer dizer que vá ser um escritor de obediência, um escritor que se limita unicamente a defender a sua causa e a atacar a contrária, mas sim que vou continuar a viver em plena liberdade, no meu terreno fantástico”.

    Um conto bastante representativo deste caráter é Satarsa, incluído no livro Deshoras, publicado em 1982, uma parábola sobre a ditadura argentina sem uma única vez serem citadas as palavras “ditadura” ou “Argentina”. Este é um regresso à linha de Bestiário, 30 anos depois.

    Um grupo de fugitivos, perseguidos por causas políticas, refugia-se na fictícia Calagasta, onde partilha a miséria da população local e, tal como ela, dedica-se à principal ocupação local: caçar ratazanas que são vendidas a uma empresa e embarcadas para a Dinamarca. O líder do grupo, Lozano, é um fanático dos jogos de palavras, especificamente dos palíndromos. Diante do boato de que os seus perseguidores estão prestes a chegar a Calagasta, decidem fazer uma grande caçada para obter dinheiro suficiente para fugir.

    Em 1976, Cortázar viajou à Costa Rica, onde se encontrou com Sergio Ramírez e Ernesto Cardenal e com eles realizou uma viagem clandestina, cheia de peripécias, à localidade de Solentiname, na Nicarágua. Logo após a vitória da Revolução Sandinista, fez várias visitas ao país e escreveu diversos textos, reunidos no livro Nicarágua, tan violentamente dulce.

    Anos finais

    Em 1981, Julio teve uma hemorragia gástrica que quase o matou. Mas, no ano seguinte, receberia um golpe maior, com a morte da sua terceira mulher, Carol Dunlop, mergulhando-o numa profunda depressão. Pouco depois, foi-lhe diagnosticada uma leucemia, que o mataria em 12 de fevereiro de 1984. Nos últimos meses, Aurora Bernárdez, a primeira mulher, acompanhou-o até ao fim. Foi sepultado no cemitério de Monptarnasse, no mesmo túmulo de Carol. Os visitantes costumam deixar sobre a lápide pequenas recordações, notas, flores secas, cartas, moedas, bilhetes de metrô com os quadrados do jogo da macaca desenhados, um livro aberto ou pacotes de cerejas.

    Numa entrevista que deu poucos anos antes, respondeu assim à questão de se considerava que o essencial da sua obra estava feito: “Nenhum escritor acredita que o essencial da sua obra está escrito porque não seria um escritor se pensasse assim. Quando termino um livro, tenho imediatamente a impressão de que poderia tê-lo escrito muito melhor, que uma enorme quantidade de coisas ficaram de fora, e que então, dentro de um certo tempo, poderia escrever outro que complete um pouco as lacunas do anterior, sendo completamente diferente. A noção de essencialidade não existe para mim”.

    Julio Cortázar nunca parou de escrever.

    Fonte: Brasil de Fato, 03/09/2014

  • Resenha: O Alfaiate de Ulm, de Lucio Magri

    Resenha: O Alfaiate de Ulm, de Lucio Magri

    AlfaiateA história do movimento operário internacional e do pensamento marxista no século XX, a partir da Revolução Russa de 1917, foi talvez a maior epopeia da História humana. Por quase 80 anos, milhares de homens, de diversas nacionalidades e de todas as partes do mundo, deram o melhor de suas forças (e, em muitos casos, suas vidas) em prol da causa de transformação da sociedade.

    Organizados em partidos com um programa, funcionamento interno e ligações internacionais, os comunistas estiveram presentes nos principais eventos do século, organizando a resistência dos de baixo contra as forças destrutivas do capital. Pegando em armas, ajudando a consolidar conquistas democráticas nos marcos do capitalismo, empreendendo um trabalho pedagógico de conscientização e organização popular que alcançava milhões de seres humanos, mas também errando, e pagando caro por esses erros, a epopeia comunista moldou toda a história do século passado.

    Hoje, essa história rica, contraditória e repleta de lições, mas derrotada, é vitima do esquecimento intencional por parte da História oficial. O comunismo é descartado como uma utopia irracional, reduzido à caricatura grotesca do totalitarismo stalinista, e seus fundamentos teóricos, baseados na compreensão concreta da dinâmica do sistema capitalista e no antagonismo de classe, são vistos como uma velharia que nada têm a dizer sobre a moderna sociedade. Bertolt Brecht, grande poeta, militante e observador social alemão, certa vez escreveu um poema que serve de resposta a esse tipo de pensamento: O alfaiate de Ulm, a história de um artesão da Idade Média que tenta construir um aparelho que permita ao homem voar. O aparelho falha, e o bispo da cidade anuncia triunfante que esse fracasso é a prova conclusiva que o homem jamais voará. Como todos sabem, apesar de todos os percalços, o homem finalmente conseguiu voar.

    Lucio Magri, dirigente comunista da Itália, escolhe justamente tal título para seu livro, que trata de uma pequena parte da grande epopéia comunista: a história do Partido Comunista Italiano (PCI), por várias décadas o maior partido comunista do Ocidente. Ler esse livro é ter diante dos olhos um quadro vivo, rico e complexo da história e das opções políticas de uma grande organização, que mantinha em sua perspectiva teórica a revolução social, mas operava em um contexto social e geopolítico que limitava sua ação e restringia seu potencial.

    É importante dizer que Magri não conta toda a história do PCI. Como ele mesmo coloca na introdução, a sua proposta é contar a história a partir do momento em que se torna militante e entra no partido, em meados dos anos 1950. A história pregressa do partido, seus anos de formação e as duras condições de funcionamento durante o período fascista, são tratados muito rapidamente. O capítulo primeiro, chamado “A Herança”, é dividido em duas partes: “O fardo do homem comunista” discute, a partir das lutas operárias e das controvérsias entre os revolucionários do século 19, a formação de uma identidade comunista, plasmada tanto por convicções teóricas quanto pelas contradições vividas no seio do movimento real, chegando até o período do terror stalinista. Ai está uma primeira limitação da obra de Magri: ele trata a repressão da burocracia soviética como “erros” da direção do partido bolchevique, erros graves, por certo, que produziram consequências desastrosas, mas poderiam ser evitados, mas não as vê como resultado da luta de uma camada social, a burocracia, para manter seus privilégios nascidos do estrangulamento da revolução de Outubro. A incapacidade de reconhecer o caráter de classe da degeneração da União Soviética estaria na origem dos principais erros teóricos e práticos do movimento comunista.

    A segunda parte trata do que o autor chama de “Genoma de Gramsci”, ou seja, a importância que a obra teórica do revolucionário Antonio Gramsci, descoberta depois da II Guerra Mundial, teria para a construção da identidade do PCI. Vale lembrar que Gramsci foi o primeiro pensador marxista a refletir sobre e a elaborar uma teoria da ruptura revolucionária nos países do Ocidente. A esse respeito, ele discutiu a relativa autonomia da “superestrutura” política em relação à base econômica, e a importância de construção de uma hegemonia do interior da “sociedade civil”. De importância capital também é sua concepção do partido revolucionário como “intelectual coletivo”, ou seja, uma organização capaz de educar e formar as massas no exercício da própria autonomia e promotor de uma reforma cultural e moral. Sobre esse último aspecto do pensamento gramsciniano é significativo que Magri reconheça que o PCI tal como surgiu da II Guerra (o “partido novo” de Togliatti) foi incapaz de se transformar. Ele cita o próprio Togliatti, que pouco antes de sua morte admitiu que “nós, comunistas italianos, temos uma dívida com Antonio Gramsci: nós construímos largamente sobre ele nossa identidade e nossa estratégia, mas, para isso, o reduzimos a nossa medida, à necessidade de nossa política, sacrificando o que ele pensava, que estava ‘muito além’”.

    Para Magri, o momento fundador da identidade particular do PCI foi a chamada “Viragem de Salerno”. Quase ao fim da guerra mundial, Mussolini havia sido deposto, mas o poder ainda estava nas mãos do rei e de apoiadores do fascismo. Desenvolvia-se uma resistência armada, impulsionada por católicos, socialistas e comunistas, mas não havia uma unidade entre eles a respeito de uma futura forma de governo, nem um programa comum. Os alemães invadiram o norte da Itália e criaram uma república fantoche com Mussolini à frente. Preparava-se o desembarque das tropas aliadas para ocupar o país. Togliatti chega à Itália, após um exílio de décadas, e propõe ao partido e às outras forças de resistência adiar a questão da monarquia para um referendo depois da guerra, e união de todas as forças antifascistas para derrotar os invasores e libertar o país.

    Para além das questões imediatas, essa orientação do PCI serviu para consolidar, nas décadas seguintes, sua perspectiva estratégica. Seria importante reconhecer também as determinações advindas da correlação de forças mundial e as orientações vindas da União Soviética, que mantinha uma influência decisiva sobre a linha política dos diferentes PCs (fato que Magri dá pouca importância). Os acordos de Stalin com as potências ocidentais dividiam o mundo em zonas de influência, reservando os países da Europa Ocidental para o capitalismo. Nessa zona, a radicalização da resistência ao nazi-fascismo (muitas vezes, liderada por comunistas) era desencorajado, e seus objetivos políticos eram limitados à “conquista da democracia”. É indubitável que Togliatti, que se formou no aparelho da Internacional Comunista stalinizada, tenha absorvido completamente essa concepção, que relegava a revolução social a um futuro distante. Fiel a essa orientação, o PCI após a derrota do fascismo se compromete com a criação de uma democracia burguesa, desarmando a resistência partisana e empenhando-se em alianças com as forças capitalistas.

    O PCI que emergiu após a guerra é resultado dessas opções estratégicas e limitações impostas pela geopolítica mundial: um partido que ganhou enorme prestígio por seu papel na resistência, consolidando-se como um partido de massas, comprometido com as causas populares e com os interesses materiais da classe operária. No entanto, limitou-se a si mesmo ao fixar seu objetivo com a conquista da democracia dentro dos marcos do capitalismo. A isso, acrescente-se que a configuração política da guerra fria, com a OTAN, também impunha uma ameaça permanente de intervenção militar contra qualquer país onde estourasse uma revolução social. Estabelecido um limite além do qual não queria ultrapassar (ou, depois de um certo período, não podia), o PCI no entanto esforçou-se para também ser coerente com sua herança comunista e se constituir como um partido das massas populares. O trabalho pedagógico e organizativo desenvolvido por ele nos anos 1950 foi de uma importância enorme para a politização de milhares de trabalhadores. Ele estava ramificado em centenas de milhares de pequenas organizações locais, que realizavam desde obras de alfabetização e educação política, até criação de cooperativas, sindicatos rurais, a luta contra as práticas mais primitivas de exploração do trabalho herdadas do período fascista (ainda profundamente arraigadas, em particular no sul mais pobre e menos desenvolvido), até a gestão de municipalidades e a aprovação de uma constituição social, uma das mais avançadas da Europa.

    Magri analisa com muita lucidez toda a política do partido durante o período que vai dos anos 1950 até o seu fim em 1991, vendo os acertos e os erros que praticou dentro dessa perspectiva estratégica. Interessante é ver como o PCI, embora mantendo uma retórica internacionalista e de simpatia com os movimentos de libertação do 3o Mundo, aos poucos foi se afastando de um internacionalismo ativo, abstendo-se de intervir nos eventos da União Soviética e dos partidos comunistas de outros países. Sua abordagem cada vez mais centrada na realidade nacional estará na raiz dos muitos erros que desembocarão no seu fim, apesar de que, como o próprio Magri reconhece, a partir dos eventos de 1968 se tornava cada vez mais necessária, e possível, uma articulação da esquerda europeia, que dialogasse com os novos movimentos, e estabelecesse um programa comum contra o avanço do capital.

    A análise do autor não se centra apenas na ação subjetiva dos atores de sua história, mas se preocupa em acompanhar as mudanças econômicas e sociais, inclusive culturais, pelas quais passava o capitalismo europeu e mundial, como pano de fundo para as escolhas feitas pelo partido e suas limitações. As transformações do sistema capitalista a partir dos anos 1970, e suas consequências no mundo do trabalho (reorganização no espaço de produção, a difusão do consumismo, a desindustrialização da Europa e o crescimento do setor de serviços, a decadência do campo soviético etc.) são dados objetivos que precisavam ser levados em conta na avaliação das possibilidades e limites da ação de um partido revolucionário. Magri reconhece que o principal erro do PCI foi não ter reconhecido e avaliado essas transformações na elaboração de sua prática.

    A difusão de novos movimentos (ambientalistas, da juventude, mulheres etc.) que não tinham mais uma referência identitária direta no mundo do trabalho tornava necessário um diálogo com eles e uma rediscussão das perspectivas estratégicas do partido. O PCI, infelizmente, como boa parte da esquerda tradicional, possuía uma profunda desconfiança par com esses movimentos, e manteve um distanciamento hostil. Tal descolamento, no final dos anos 1970, também começou a ocorrer na base tradicional do partido. As grandes lutas operárias dessa década, iniciadas no que ficou conhecido como “outono quente”, foram apoiadas pelo PCI, mas ele não buscou incentivá-las, nem generalizar seu exemplo para outros setores. Aliás, há muito tempo que já havia se estabelecido uma “divisão de tarefas” entre o PCI e a central sindical CGIL, onde o primeiro se concentrava na “política” (eleições parlamentares e de municípios) e a segunda em questões sindicais, e um não se metia no “domínio” do outro. O partido, então, não quis dar um sentido político a esse movimento grevista na Itália, que estava em sintonia, embora com atraso, ao movimento geral da classe trabalhadora européia, que a partir de 1968, protagonizou lutas heróicas na França, Inglaterra, Portugal, Grécia etc.

    A reestruturação capitalista, iniciada no início dos anos 1980 (mas, como o autor aponta corretamente, suas principais características já apareciam de forma embrionária uma década antes), foi tanto uma reação contra o poder crescente dos trabalhadores quanto uma resposta dos capitalistas à queda da produtividade e da taxa de lucro a nível mundial. O seu receituário, que ficou conhecido como neoliberalismo, inaugurava uma nova etapa do sistema capitalista, com ataques sistemáticos às conquistas operárias das últimas décadas, e exigia uma reelaboração da estratégia socialista. No bojo dessas mudanças, talvez fosse inevitável um enfraquecimento dos partidos de esquerda, traduzido na diminuição do número de militantes e de sua influência, reflexo dos ataques às condições de vida e organização dos trabalhadores. Mas tal dano seria minimizado se o partido soubesse reconhecer a nova etapa, estudá-la, aprender as lições do passado e preparar as bases para uma retomada posterior, baseada na centralidade da classe trabalhadora, mas levando em consideração os novos sujeitos da luta social. O PCI, infelizmente, foi incapaz de realizar esse processo de conservação do patrimônio passado, e fechou os olhos para a realidade em transformação.

    A estratégia do PCI centrava-se na possibilidade de, em conjunto com os socialistas, chegar ao governo (o chamado “compromisso histórico”) e aplicar os pontos mais avançados da constituição, aprovados mas nunca implementados. Por várias décadas, os governos da Democracia Cristã se obstinaram em impor um veto aos comunistas em qualquer coalizão. Na década de 1970, o crescimento eleitoral do PCI, por um lado, e a perda de apoio dos demais partidos, por outro, levou a uma situação onde era impossível se formar um governo estável sem os comunistas. Mas todos os partidos, inclusive os socialistas relutavam em aceitar uma coalizão. O PCI, então, passa a uma lenta aproximação com o empresariado italiano e com as forças de centro, chegando até mesmo a realizar esforços para uma coalizão com a Democracia Cristã, apresentando-se como uma força “responsável”.

    No final da década de 1980, com a ofensiva mundial do capital e a crise do stalinismo, a direção do PCI, liderada por Achille Ochetto, rapidamente chega à conclusão de que se deveria abandonar a identidade comunista. No que Magri corretamente critica como “culto do novo”, para essa direção o método marxista e a história do movimento comunista não mais eram relevantes para se acompanhar as mudanças trazidas pela reestruturação capitalista, e o PCI deveria se esforçar por ser um partido “moderno”, afinado com as “novidades” trazidas pelas mudanças de comportamento e identidade.

    Chama atenção a quase unanimidade que a proposta de Ochetto encontrou dentro do partido. A princípio, houve muita revolta entre os militantes mais velhos, em especial os que participaram na resistência ao nazifascismo, mas só Magri votou contra na direção nacional. Apesar de, para o congresso que decidiria a questão da mudança do nome, haver se formado uma plataforma de oposição, também não houve uma grande resistência entre as fileiras do partido. Isso não se explica apenas por uma suposta “disciplina de ferro” existente em partidos stalinistas. A partir dos anos 1960, o PCI possuía uma relativa abertura e tolerância dentro de suas fileiras, e a leitura de autores marxistas “heterodoxos” era incentivada. Essa aceitação encontra sua explicação no fato que, há décadas, a militância do PCI era educada e formada na visão de que a “República Social” italiana era a conquista máxima a que poderiam almejar, e que deveriam trabalhar dentro dela, preservá-las das forças da reação e não ir além. O descolamento gradual do PCI em relação às lutas da nova geração é mostrado pela composição etária do partido em sua fase final: De um universo de 1,4 milhão de filiados, apenas 1,9% possuíam menos de 25 anos, inferior aos que tinham mais de 80 anos. O número dos que tinham menos de 30 anos era inferior aos que tinham mais de 70 anos. Magri chega à conclusão que “a relação com as lutas e focos de conflitos reais parece desgastada ou delegada ao sindicato e aos movimentos (pacifista ou ambientalista), a cuja vida cotidiana o partido é relativamente alheio” (pg. 406).

    Nesse quadro, e não podendo e não sabendo interpretar a crise do bloco soviético em um sentido marxista, a proposta de Ochetto de fundar um novo partido reformista, para o qual confluiriam outras forças políticas, fazia todo o sentido para essa militância que perdia sintonia com as lutas reais da classe trabalhadora e não tinha uma perspectiva clara para lhe dar. Em 1991, o PCI muda seu nome para Partido Democrático da Esquerda. Uma pequena parte, não aceitando a decisão, formou o Partido da Refundação Comunista.

    Uma das partes mais interessantes do livro é o apêndice ao seu final, um documento escrito por Magri para a discussão no congresso de mudança do nome. Sabendo que a discussão não poderia se centrar apenas na herança do passado, ele buscou nesse documento apresentar vários elementos em torno dos quais se poderia articular uma nova identidade que justificasse a manutenção da perspectiva de ruptura revolucionária. Estudando as características do que ele chama de “sociedade pós-industrial”, o autor aponta corretamente a questão ambiental, os problemas sociais oriundos do consumismo e do hedonismo desenfreados, o aumento da pobreza não mais como um efeito, mas como uma tendência do atual modelo de desenvolvimento, as novas formas de trabalho, o esvaziamento e a crescente irrelevância das instituições “democráticas” (já que os centros de decisão se deslocam para grandes organismos financeiros internacionais), e, por fim, a degeneração e burocratização dos partidos, todos evidências de “um capitalismo que procura sobreviver às razões históricas que lhe deram origem e guiar com seus valores e suas regras uma época futura” (pg 373).

    Numa crítica premonitória ao que desde aquela época era chamado de “movimentismo” (ou seja, a ideia que pequenas ações locais e descentralizadas com objetivos pontuais poderiam criar uma mudança de mentalidade que levaria a uma nova sociedade), Magri irá reivindicar o valor de um projeto coletivo de mudanças e o internacionalismo ativos. Ao mesmo tempo que reivindica o socialismo como premissa para a verdadeira democracia, ele também defende a construção de uma hegemonia política entre os subalternos para fazer frente ao poder cada vez mais centralizado do capitalismo internacional: “A democracia não vive sem um soberano coletivo, e esse soberano coletivo não pode existir na forma de uma multidão atomizada, de uma soma confusa de impulsos e culturas heterogêneas. A fragmentação não é pluralismo, é uniformidade camuflada” (pg. 399, itálico nosso).

    Para concluir, para todos aqueles militantes e ativistas comprometidos seriamente com as lutas dos de baixo, esse livro é uma fonte rica em interrogações, sugestões e quem sabe algumas respostas, mas que só serão válidas se estiverem ligadas à práxis pela mudança da sociedade. E, como a metáfora do título do livro sugere, não é porque um projeto grandioso fracassou uma vez, que ele não poderá triunfar no futuro, se seus defensores souberem incorporar as lições desse fracasso.

  • Baleia

    Baleia

    NOTÍCIA

    Vidas Secas é o quarto romance do alagoana Graciliano Ramos (1892-1953). Foi editado pela Jose Olympio em 1938. Sua 89a edição é de 2003 (Record).

    Foi publicado nos seguintes países: Argentina (desde 1967), Polônia (desde 1950),Tcheco-eslováquia (desde 1959), Rússia (desde 1961), Itália (desde 1961), Portugal (desde 1962), Estados Unidos (desde 1963), Cuba (desde 1964), França (desde 1964),Alemanha (desde 1965), Romênia (desde 1966), Hungria (desde 1967) eBulgária (desde 1969).

    Em 1962, Vidas Secas recebeu o Prêmio da Fundação William Faulkner (EUA) como livro representativo da Literatura Brasileira Contemporânea.1

    Essa breve notícia dá uma idéia da importância de Vidas Secas para a literatura brasileira.

    AUTOR

    No posfácio à 89a edição (Record), Marilene Filinto escreve: “Graciliano Ramos é, a propósito, e com merecida justificativa, o romancista brasileiro que recebe de nossos mais importantes críticos literários a avaliação unânime de ter escrito obras-primas: Vidas Secas, para Bosi; São Bernardo, para Nelson Werneck Sodré; Angústia, para Otto Maria Carpeaux; todas essas e Infância, para Antonio Candido.”2

    Há escritores que se notabilizam pela extraordinária unidade de sua obra, seja em termos estilísticos ou temáticos. São autores que, a rigor, buscam a perfeição em uma obra-prima que é perseguida livro após livro. É como se a sucessão de seus escritos não fosse senão o aperfeiçoamento de um mesmo livro.

    Graciliano Ramos não pertence a essa plêiade. É inquieto, muda de estilo e de tema, surpreende a cada livro. Mas se lhe pode notar uma preocupação, um interesse especial, uma quase obsessão em perscrutar o mundo interior das personagens; o que, aliás, ele não regateia em confessar: “Tento saber o que eles têm por dentro”.3 Para Adonias Filho, Graciliano “é tão intransigente na revelação da personagem, nessa necessidade em apresentá-la em função da natureza humana, que obscurece o cenário”.4 Em Vidas Secas, no entanto, Antonio Cândido nota que “em lugar de contentar-se com o estudo do homem, Graciliano Ramos o relaciona aqui intimamente ao da paisagem”.5

    Graciliano Ramos se inscreve na tradição do movimento modernista. Adonias Filho é enfático: “Graciliano Ramos trouxe a ficção nordestina para o círculo exato em que se move o romance moderno”.6 Ele procurou aproximar a língua escrita da falada, comprometido com uma “tradução” brasileira do português. “De fato”, comenta Godofredo de Oliveira Neto, “são por todos sobejamente conhecidas, além da nobreza e da parcimonia com que Graciliano faz uso do idioma, as preocupações do autor com o uso da língua portuguesa.”7

    O traço intimista permeia a obra de Graciliano Ramos, a par da sua conhecida preocupação formal. Mas “a preocupação estilística e a sondagem psicológica – dados que levaram alguns críticos a aproximá-lo de Machado de Assis – não bastaram para ocultar a tendência visível, o interesse regional, o acentuado ruralismo”.8

    Para ele, “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”9 E ele escreve como um artesão, garimpando a palavra certa, a construção sintática exata. É um escritor que escreve pouco e detem-se demoradamente na cuidadosa composição ficcional, retomando o escrito, de tempos em tempos, para reescrevê-lo incansáveis vezes. E, assim, vai reelaborando o texto, refinando o estilo como expressão do tema. Talvez por isso seja um escritor de estilo tão variado e original; mas é, sobretudo, um escritor que diz o que tem de ser dito como deve ser dito.

    VIDAS SECAS

    “Depois de Vidas Secas”, escreveu Nelson Werneck Sodré a propósito de Graciliano, “a sua posição de primeiro plano deixou de ser objeto de discussão, havendo a tácita ou pública aceitação de um destaque merecido”.10

    O livro se estende por 120 páginas estruturadas em 13 capítulos narrados na 3a pessoa. “É seu único romance escrito sob a objetividade da terceira pessoa”11, observa Marilene Felinto. Mas é narrado, em sua maior parte, no discurso indireto livre, confundindo e, por vezes, fundindo narrador e personagem.

    Wilson Martins observou que “todos os livros de Graciliano Ramos terminam na desgraça irremediável, menos Vidas Secas, cujos personagens sabem tirar da maior desgraça o alimento para as suas esperanças”.12

    Em Vidas Secas, Graciliano inova a estruturação do romance brasileiro. Os capítulos do livro constituem unidades autônomas – como contos ou crônicas relacionados, que podem ser lidos separadamente com sentido completo – cujo encadeamento faz parte da integração que o leitor der a elas.

    “Ao contrário da composição cerrada de seus outros romances” – comenta Wilson Martins -, “Graciliano Ramos adotou neste a composição em quadros, e cada um desses quadros é um estudo psicológico. Há o estudo psicológico de Fabiano, o de Sinha Vitória, o dos meninos, o de Baleia, o do soldado amarelo. A paisagem comparece predominantemente no primeiro e no último capítulos, porque ‘Cadeia’, ‘Inverno’, ‘Festa’ e ‘O mundo coberto de penas’ são ainda estudos psicológicos”.13

    O livro conta a aperreação de um cabra e sua família na aridez da caatinga. O cabra é Fabiano, um sem-terra. Sua família é a mulher (Sinha Vitória), os dois filhos (o menino mais velho e o menino mais novo) e a cachorra Baleia, que “era como uma pessoa da família”14. Sabe-se, logo no primeiro capítulo, que houvera também um papagaio “mudo e inútil”15 que fora sacrificado para matar a fome do grupo familiar flagelado pela seca.

    “Ordinariamente a família falava pouco”.16 Fabiano, no mais das vezes, expressava-se por meio de “exclamações e onomatopéias”.17   De modo que o papagaio não teria mesmo muito o que imitar.

    E, subjacente ao texto, a questão da linguagem coloca-se com toda contudência. Vidas Secas é, assim, em grande parte, a história da luta de Fabiano para sobrepujar a precariedade da sua fala e, por extenção, do seu pensar e entender.

    BALEIA

    BaleiaA personagem começou a ser construída antes do livro; na verdade, como um conto. O texto é de 1937. Faz parte de um conjunto de quatro histórias que Graciliano redigira pouco depois de sair do cárcere, e que foram publicadas em primeira mão por um jornal de Buenos Aires. Em carta a Heloísa, sua segunda mulher, o escritor revelava: “Escrevi um conto sobre a morte de uma cachorra”. E confessava: “um troço difícil”. Esclarecendo em seguida: “procurei advinhar o que se passa na alma duma cachorra”.18 Em 1938, esse conto foi transformado em capítulo de Vidas Secas – “uma pequena obra-prima de sobriedade formal”19, comentaria mais tarde o crítico Alfredo Bossi. E, em 1946, seria republicado como conto no livro Histórias Incompletas (Globo).

    A cachorra Baleia dá nome ao 9o capítulo, que conta a sua execução por Fabiano. Mas está presente nos oito capítulos precedentes, e reaparece nos dois últimos como remorço. É uma personagem fundamental na tessitura do enredo, pois, como apontou Antonio Cândido, ela “vale sutilmente como vínculo entre a inconsciência da natureza e a frouxa consciência das pessoas”.20

    “Evidentemente”, diz a narrativa, “os matutos como ele não passavam de cachorros”.21 Ou ainda: “Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos”.22 E essa identificação era maior entre os meninos e a cachorra: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam”.23

    Comparando Graciliano a Faulkner, Adonias Filho sublinha que “o instinto de humanização (…) hipertrofia-se de tal modo no romancista brasileiro que atinge animais e aves (o papagaio e a cachorra em Vidas Secas)”.24

    MORTE

    A morte da cachorra se abateu sobre a família como uma tragédia. Baleia estava doente. Fabiano desconfiou que ela estivesse com raiva e a executou. Sinha Vitória lamentou a morte, mas compreendeu as razões do marido. Os meninos a pressentiram e não a aceitaram. Baleia não a entendeu. Era fiel ao dono, ajudava-o no trabalho com a criação, era companheira de seus filhos, não podia esperar que Fabiano lhe fizesse mal. Mas, quando o cabra se aproximou com a espingarda de pederneira, a cadela achacada desconfiou. O instinto da cachorra não a enganara. Fabiano a alvejaria, acertando-lhe uma carga de chumbo nos quartos traseiros, inutilizando-lhe uma perna. “Ouvindo o tiro e os latidos, sinha Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto.”25

    Desse ponto em diante, o foco da narrativa concentra-se em Baleia, com o autor tentando advinhar o sentimento da cachorra em seus extertores.

    Sobre esse relato magistral, Augusto Frederico Schmidt deixou-nos esta passagem:

    “Quando os que se julgam poderosos das letras nada mais forem, quando esses a quem ninguém ousa disputar honrarias, viagens e proventos não forem lembrados sequer, ainda se ouvirão na estrada os passos da família de Fabiano tangida pela seca, a Baleia continuará a morrer angustiada por não estar cumprindo o seu dever de vigiar cabras, naquela hora em que cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, a rondar as moitas afastadas”.26

    FILME

    Graciliano Ramos teve três de suas obras adaptadas para o cinema: Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, em 1963; São Bernardo, de Leon Hirszman, em 1972; e Memórias do Cárcere, também de Nelson Pereira dos Santos, em1983.

    O filme Vidas Secas recebeu o Prêmio Cinema de Arte, o de Melhor Filme para a Juventude e o Prêmio Office Catolique de Cinemá, durante o XVII Festival Internacional de Cinema de Cannes.27

    Nelson Pereira dos Santos, num Fórum na UERJ (gravado em vídeo), tece interessantes comentários sobre a realização do filme Vidas Secas.

    Ele teve a preocupação de respeitar o pensamento de Graciliano Ramos, o projeto do livro, a sua estética, a filosofia e a ideologia do escritor.

    Parece ter sido esse o seu intuito, por exemplo, no plano estético, ao contrariar os cânones, filmando com uma abertura máxima da câmara, numa exposição excessiva à luz, para denotar o sol cáustico do sertão.

    Outra preocupação foi com a estrutura narrativa. Coloca-se aqui a difícil equivalência entre as linguagens literária e cinematográfica. O romance é narrado através de uma seqüência de capítulos que formam compartimentos estanques.   Já o cinema narrativo requer uma sucessão de seqüências encadeadas, integradas, na qual cada seqüência invoca as anteriores e só adqüire sentido na sua linearidade contextual.

    A caracterização de personagens e cenário é outra dificuldade. A linguagem literária é sugestiva, rica em adjetivos e metáforas, delegando ao leitor a tarefa de realizá-la em imagens mentais. A linguagem cinematográfica é mais restritiva, realiza-se sobretudo em imagens concretas. Se, na literatura, cabe ao leitor formalizar a caracterização que a escrita insinua, esboça subjetivamente, no cinema é o diretor que deve objetivá-la.

    Nelson Pereira dos Santos lembra também que a adaptação para o cinema requer a busca da síntese, sem quebra da ordenação dramática, pois o tempo narrativo é outro: o filme deve ser empacotado em uma hora e meia de projeção contínua. Isso implica não apenas em cortes, mas também na fusão de episódios.

    TEORIA CRÍTICA

    Walter Benjamin, em seu ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, aborda estes dois fatos culturais: a reprodução técnica da escrita (“conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa”) e o cinema.

    “Nas obras cinematográficas – diz ele -, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão maciça.” Isso porque na literatura e na pintura tem-se uma obra individual, artesanal, de baixo custo; ao passo que a produção de um filme é um processo industrial, o que obriga a sua difusão maciça para cobrir os custos. A conseqüência é que a obra cinematográfica destina-se ao grande público, enquanto a obra literária – para ficarmos apenas na comparação que aqui mais nos interessa – pode se dar ao luxo de ser dirigida a um público restrito. Se nos fixarmos na dicotomia proposta por Benjamin, valor de cultoversus valor de exposição (categorias mutuamente exclusivas), para o cinema e aliteratura, teríamos a matriz:

    Literatura Cinema
    Valor de exposição +
    Valor de culto +

    Isso porque a exposição de uma obra de arte corrói a sua “aura”. E esse fato é saudado por Benjamin como um processo revolucionário de incorporação das massas à esfera cultural e artística.

    Vistas as coisas de um ponto vista quantitativo, a argumentação de Benjamin é impecável. Com efeito, o cinema tem potencial para atingir um público bem mais amplo do que o da literatura. (No caso de Vidas Secas, eu não saberia dizer se esse potencial se realizou.)

    Mas existem outros aspectos a ser ponderados. Por exemplo, o da permanência da obra de arte. Revendo, hoje, o filme, parece-me que, por razões técnicas, ele “envelheceu”, ao passo que o romance continua sendo vendido em novas reedições. Nesse sentido, o filme adquire uma “aura” que o romance não tem. E, aí, podemos comparar cinema de arte ecinema comercial:

    Cinema de arte Cinema comercial
    Valor de exposição +
    Valor de culto +

    Seria, então, o cinema de arte elitista (reacionário)? Essa questão se colocou, em seu tempo, para o cinema brasileiro, em razão da crise de público do Cinema Novo (aí incluído Vidas Secas).

    Analisando a questão de um ponto-de-vista qualitativo, chega-se a outras conclusões. O cinema, devido aos custos da sua produção industrial, tende a ser comercial. Isso não representa uma incorporação das massas à esfera cultural e artística, mas sim “uma produção em série de bens culturais” por uma “indústria cultural” que reproduz a ideologia dominante e gera alienação. Esse é o ponto-de-vista de Adorno, que, afinal, parece consistente com a realidade.

    NOTAS:

    1 http://www.graciliano.com.br [www]

    2 Filinto, Marilene, in Posfácio a Vidas Secas, 89o edição, Rio de Janeiro, Record, 2003, [MF], p. 130

    3 Carta de Graciliano Ramos a sua segunda mulher, Heloísa, datada de 7 de maio de 1937 [Carta]

    4 Adonias Filho, Volta a Gracliano Ramos, in posfácio a Insônia, Rio de Janeiro, Record, 1996, [AF], p. 166

    5 Candido, Antonio, citado por MF, p. 131

    6 AF, p. 164

    7 Oliveira Neto, Godofredo de, in posfácio a S. Bernardo, Ed. revista, Rio de Janeiro, Record, 2003, [GO], p. 223

    8 AF, p. 163

    9 Ramos, Graciliano, Vidas Secas, 89o edição, Rio de Janeiro, Record, 2003, [VS], contracapa e www

    10 Sodré, Nelson Werneck, in prefácio a Memórias do Cárcere, Rio de Janeiro, Record, 1996, [WS], p. 23

    11 MF, p. 131

    12 Martins, Wilson, Graciliano Ramos, O Cristo e O Grande Inquisidor in posfácio aCaetés, Record, 1996, [WM], p. 233

    13 WM, p. 232

    14 VS, p. 86

    15 VS, p.12

    16 VS, p. 12

    17 VS, p. 20

    18 Carta

    19 Bosi, Alfredo, citado por MF, p. 130

    20 Candido, Antonio, citado por MF, p. 131

    21 VS, p. 79

    22 VS, p. 97

    23 VS, p. 86

    24 AF, p. 167

    25 VS, p. 88

    26 Schmidt, Augusto Frederico, citado por WS, p. 23-24

    2003

    Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos

  • Amor e capital

    Amor e capital

    Amor_e_capitalÉ absolutamente inacreditável que a obra de Marx tenha sido escrita sob as condições em que foram, e com a morte de quatro de seus filhos, incluída uma menina e dois recém-nascidos. Sem dúvida Jenny foi fundamental para essa obra – que vai muito além da parte escrita, mas também a fundação do primeiro partido internacional, a I Internacional Comunista, participação em diversos processos revolucionários, as sementes de vários sindicatos e partidos nacionais, inúmeras lutas em meados do século XIX até mais do que seu quarto final. Marx foi na maior parte da vida um homem de ação, sempre um revolucionário.

    A obra de Marx e Jenny também é tributária à muita gente, como Helene Demuth e do mais que irmão Frederich Engels, bem como todas as três filhas, Jenny, Eleanor e Laura – das quais, as duas últimas se suicidaram, todas com vidas de tormentas. A partir da visão imprimida no livro Amor e capital, uma obra como a de Karl Marx é a obra de uma família que, da profundeza de uma vida miserável materialmente, conseguiu, a partir de crença e convicção imbatíveis, forças para mudar o mundo. Essa é a tese da autora Mary Gabriel.

    Mary também ajuda a desmistificar que teria sido obra do mecenas Engels a sustentação da família. De fato ele buscava não os deixar na mão (mas também nem sempre conseguia), mas foi o trabalho suado do corpo dos Marx e de tantos e tantas camaradas que garantiu a sobrevivência da família. A autora mostra também a traição de Marx e o filho dele fora do casamento (com Demuth), o Freddy.

    É possível perceber, finalmente, que Marx é filho de uma época, que, com a luta e vitórias feministas, como na Revolução Russa, na pílula anticoncepcional, o direito ao aborto (que no Brasil passa à decisão de bancada de fundamentalistas religiosos), Marx como um mítico macho heróico não é mais possível.

    [GABRIEL, Mary. Amor e capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.]

  • “Marighella”, uma biografia

    “Marighella”, uma biografia

    “Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela.”

    Walter Benjamin

    “Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mário Magalhães
    “Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mário Magalhães

    “Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo” foi o grande vencedor do prêmio Jabuti 2013 na categoria biografia.  O livro do jornalista Mário Magalhães, numa edição primorosa da Companhia das Letras,reuniu todos os requisitos para receber o troféu.  Merecido, em primeiro lugar pelo perfil fascinante do biografado.  Não há dúvida, Marighella é um mulato baiano que seduz e um personagem épico no sentido forte do termo. Mas merecido também porque a obra resultou num artefato de alta qualidade literária, pela prosa envolvente de Mário Magalhães, que, como jornalista, já recebera os prêmios Vladimir Herzog, Dom Helder Câmara, Esso de Jornalismo e o Every Human Hass Rights Media Awards.

    Trata-se de uma reportagem objetiva e bem informada, muito bem redigida, revelando o biografado e suas circunstâncias, ancorada num vasto levantamento historiográfico.  Para escrever a biografia de Marighella, o autor entrevistou 256 pessoas e pesquisou cerca de seiscentos títulos em 32 arquivos públicos e privados, no país e no estrangeiro.  Alinhavou isso tudo em mais de setecentas páginas de tirar o fôlego, costuradas  por uma narrativa ágil, que prende o leitor da primeira à última página.

     

    Revista RUMO, de Angra dos Reis
    Revista RUMO, de Angra dos Reis

    “Marighella” é a vida de um homem que marcou a esquerda brasileira e que, por isso mesmo, se confunde com boa parte da moderna história nacional.  Depois de ler o livro, o leitor fica com a sensação de haver visitado episódios decisivos da vida política brasileira que, não obstante sua importância para a compreensão da totalidade do processo histórico, estavam relegados à penumbra. O jornalismo investigativo de Mário Magalhães lança luz sobre esses episódios e, ao iluminá-los, escova a história a contrapelo, bem ao gosto de Walter Benjamin, para quem “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”.No “Marighella” de Mário Magalhães, o leitor vai cruzar com inúmeras personalidades brasileiras e internacionais que influenciaram a vida política e cultural de seu tempo.  Entre esses notáveis estão Gregório Bezerra, Luis Carlos Prestes, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Oduvaldo Vianna, Norma Benguel, Jean Paul Sartre, Fidel Castro, CaetanoVeloso, Glauber Rocha e tantos outros.Sobre Marighella e sua organização guerrilheira, a ALN, Caetano Veloso testemunharia: “o heroísmo dos guerrilheiros como única resposta radical à perpetuação da ditadura merecia meu respeito assombrado”.

    “Marighella” é uma leitura recomendável para quem aprecia o prazer do texto.  Imprescindível a quem quer conhecer a trajetória da esquerda brasileira, é indispensável para se vislumbrar que há uma face oculta na história do Brasil.

    Sergio Granja é Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ, professor da rede estadual de ensino e pesquisador da Fundação Lauro Campos

    [Artigo publicado na revista RUMO, de Angra dos Reis]

  • A poesia pulsante e desconfortadora de “Pedagogia do Suprimido”

    A poesia pulsante e desconfortadora de “Pedagogia do Suprimido”

    Pedagogia-do-suprimidoHá muitas razões para que uma leitura seja considerada agradável e um sem-número de motivos para que seja tida como instigante, desconcertante, desassossegadora. E aí está o maior mérito de “Pedagogia do Suprimido”, obra de Zeh Gustavo, publicada recentemente pela Editora Verve, do Rio de Janeiro.

    Em meio a um panorama desumanizante em que, nas sociedades contemporâneas, os indivíduos se deixam consumir pelo mercado e se autoaniquilam, perdendo a própria identidade, surge uma escrita singular, transgressora, tematizando o cotidiano de sujeitos que, deslumbrados pelas facilidades advindas da modernidade e de uma educação midiática emburrecedora, acabam por suprimir a si próprios. Trata-se da escrita de Zeh Gustavo, marcada por um lirismo árduo, que se vale de fragmentos da memória, para dar forma a uma poesia pulsante e engajada, no sentido íntegro da palavra.

    Com alusão direta a Paulo Freire, “Pedagogia do Suprimido” provoca questionamentos em relação à formação dos indivíduos e traça uma radiografia poética de um momento histórico infecundo, entorpecido e dopado por um consumismo desenfreado e por uma educação repleta de falhas em que estamos inseridos e contra a qual precisamos nos rebelar para que não sejamos igualmente extinguidos.

    Fruto também de uma oportuna formação fracassada, latente na própria obra, o autor surge com sua linguagem própria e um estilo único, repleto de experiências sinestésicas, fazendo um uso peculiar do léxico e da estrutura sintática, e se valendo, com destreza, de neologismos necessários para garantir a autonomia de seus pontos de vistas e a produção de sentido de seu discurso libertador e libertário.

    Em diálogo constante com a arte e ciente do seu potencial criativo, o poeta dá novo fôlego a ideais de humanidade cada vez mais esquecidos, ao entoar seus poemas com um timbre particular, dando voz a sujeitos que, por motivos vários, tiveram suas cordas vocais suturadas.

    Luciana Crespo Dutra – Carioca, radicada em São Luiz Gonzaga; colaboradora do Jornal A Notícia; professora e revisora de textos; pós-graduada pela UERJ, com Especialização em Língua Portuguesa; bacharela e licenciada em LETRAS (Português/Literaturas), formada pela UFRJ.

    Fonte: A Notícia (São Luiz Gonzaga, RS, 14/10/2013).

    * Encomendas do livro pelas livrarias Relíquia, Cultura e Saraiva ou diretamente com oautor.

  • Antes de História e consciência de classe

    Antes de História e consciência de classe

    Apesar dos esforços dos comentadores em assinalar uma continuidade e uma presença da obra inicial de Georg Lukács em seu primeiro livro marxista, História e consciência de classe, um exame cuidadoso de seus primeiros livros e manuscritos desmente essa hipótese. Além da evidente discrepância formal patente em seus primeiros trabalhos, marcados por súbitas mudanças de registro cultural e filiação, esses textos inserem-se num empenho e num solo conceitual bastante distinto da adoção do marxismo consolidada em História e consciência de classe.

    Luckas

    Os comentários sobre a obra de Georg Lukács, ou mais especificamente sobre História e consciência de classe (de 1923), em geral, iniciam a apresentação e a análise desse livro com a reconstituição do itinerário intelectual do autor. Assim, não deixam de pressupor que seus escritos pré-marxistas constituem uma espécie de chave mestra para a compreensão de sua trajetória posterior ou mesmo da gênese do marxismo ocidental. Essa premissa, no entanto, é frequentemente negada no próprio decorrer da exposição, uma advertência que sinaliza as aporias inerentes a tal perspectiva. Afinal, a par de uma preocupação comum com a compreensão da produção artística, suas obras de juventude discrepam bastante entre si, configurando um percurso marcado por sucessivas rupturas e por descontinuidades formais e metodológicas.

    Seu primeiro livro, Evolução histórica do drama moderno (escrito em 1906-1907 e publicado em 1911), redigido ainda em húngaro, pode ser descrito como uma obra de sociologia literária composta sob o prisma de uma ordenação enciclopédica da cultura.1 Para compreender o trágico moderno – a forma peculiar adquirida pelo conflito entre a afirmação do indivíduo e a objetividade da vida social -, Lukács recorre a categorias como “despersonalização”, “coisificação”, “intelectualismo”, “racionalização” etc., peças proeminentes do arsenal conceitual da sociologia alemã.2

    Em 1911, Lukács publica na Alemanha A alma e as formas, coletânea de artigos redigidos entre 1908 e 1910, na qual incluiu alguns textos já editados na revista húngara Nyugat (Lukács, 1971). Abre o livro, à guisa de prefácio, uma carta a Leo Popper que pondera sobre o estatuto do ensaio, reconhecendo em sua forma autônoma – um âmbito distinto tanto da arte como da ciência e da filosofia – um potente instrumento para a apreensão da totalidade do fenômeno estético e da “vivência” que lhe é subjacente.3 Com essa defesa do ensaio, ele almeja não somente dirimir o viés reducionista dos estudos histórico-literários, mas, sobretudo, fornecer uma fundamentação teórica para a renovação da crítica cultural.

    Apesar da heterogeneidade dos autores escolhidos como ponto de partida dos ensaios – Rudolph Kassner, Søren Kierkegaard, Novalis, Theodor Storm, Stefan George, Charles-Louis Philipee, Richard Beer-Hofmann, Laurence Sterne e Paul Ernst -, patente seja pelo ângulo da tendência estética, do período histórico ou mesmo da língua e nacionalidade; cristalizam-se no decorrer do livro vários fios comuns. O mais destacado deles talvez seja a reiteração da cisão que Lukács expressa por meio da duplicidade entre a “vida” e a “vida”, matriz de uma série de dicotomias: o imediato e o autêntico, a vivência empírica e a essencial, o cotidiano e a existência plena. A mediação entre esses polos constitui a tarefa primordial da “forma artística”, que se torna assim o objeto por excelência da investigação ensaística.

    O programa proposto por Lukács (2008b, p.110), no entanto, extravasa o campo estético:

    O crítico é aquele que vislumbra a fatalidade das formas, cuja vivência mais intensa é aquele conteúdo da alma que as formas, indireta e inconscientemente, escondem em si mesmas. A forma é sua maior vivência, ela é, como realidade imediata, o que há de figurativo, de verdadeiramente vivo em seus escritos. Da força dessa vivência essa forma, originada de uma observação dos símbolos da vida, recebe uma vida própria. Ela se torna uma visão de mundo, um ponto de vista, uma tomada de posição diante da vida da qual ela se originou: uma possibilidade de transformá-la e recriá-la.

    Nessa direção, A alma e as formas procura desentranhar, em cada uma das manifestações literárias examinadas, a partir da observação da “forma artística”, potenciais “formas de vida”, nas quais transparecem determinações valorativas, escolhas éticas, indicações para a ação, experimentos utópicos que apontem à vida verdadeira.

    Em seguida, instalado em Heidelberg, Lukács concentra-se na redação de uma teoria estética sistemática.4 Nesses fragmentos, adota como ponto inicial a existência de obras de arte para, em seguida, indagar sobre suas condições de possibilidade.

    Esse modo de colocar a questão, ainda no âmbito da investigação transcendental, promove, no entanto, um deslocamento em relação ao modo como Kant examina o fenômeno estético na Crítica da faculdade de julgar. Configura também uma ruptura radical com as premissas do neokantismo, movimento que Lukács rechaça a partir do veredicto de que suas análises não superam o estatuto de uma mera “metafísica do belo”.

    Além disso, sua estética desdobra considerações de A alma e as formas acerca da especificidade, da autonomia e do caráter significativo da “forma artística”. Esse movimento direciona sua reflexão para uma espécie de “fenomenologia” das obras de arte, atenta à apreensão do aparato formal que lhes é inerente.

    Apesar da recepção entusiasmada do manuscrito por parte de Max Weber e de seus incentivos para que concluísse o trabalho, Lukács não hesita em interromper – com três capítulos rascunhados – essa tentativa de “filosofia da arte”, para se dedicar integralmente ao projeto de um livro sobre Fiódor Dostoiévski.5

    Com a irrupção da Primeira Guerra e o retorno do autor à Hungria, esse plano é abandonado. Os prolegômenos da obra esboçada, no entanto, foram agrupados e concentrados, no inverno de 1914-1915, em dois ensaios articulados publicados no ano seguinte na revista de Max Dessoir, Zeitschrift für allgemeine Kunstwissenschaft, e editados posteriormente como livro, em 1920, sob o título A teoria do romance.

    Nesse volume, Lukács procura compreender a dimensão histórica das formas estéticas por meio de uma análise comparativa da essência dos gêneros literários no mundo antigo e no mundo moderno. Os pressupostos, os procedimentos e o próprio resultado conciliam, num híbrido, a tentativa de uma filosofia da história (impactada pelos temas da sociologia da modernização) com o esboço de uma tipologia do romance.

    A grande épica, representativa do mundo grego, na reconstrução de A teoria do romance, transcreve um universo “perfeito e acabado”, no qual a imediatez da vida cotidiana ainda se apresenta como plenamente significativa. Nesse solo, os fins do indivíduo se confundem, harmonicamente, com o destino da coletividade:

    Totalidade do ser só é possível quando tudo já é homogêneo, antes de ser envolvido pelas formas; quando as formas não são uma coerção, mas somente a conscientização, a vinda à tona de tudo quanto dormitava como vaga aspiração no interior daquilo a que se devia dar forma: quando o saber é virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza põe em evidência o sentido do mundo. (Lukács, 2000, p.31)

    O romance, “epopeia de um mundo abandonado por deus”, em contraposição, desenvolve-se em uma sociedade que se organiza como uma segunda natureza, na qual prevalece a cisão entre as aspirações do indivíduo e a objetividade das relações sociais. Sua composição, estruturalmente problemática, denota o empenho em resistir à perda da imanência do sentido, à privação da “totalidade espontânea do ser”, configurando-se como uma “busca para descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida” (ibidem, p.60).6

    O herói, no romance, apresenta-se como uma individualidade isolada, como uma subjetividade cujos estados de ânimo exprimem sua inadequação à vida convencional. Encontra-se condenado, num mundo em que “objetivo algum é dado de modo imediato”, a perseguir incessantemente um sentido para a existência (ibidem, p.62). O caráter aporético de tal empreendimento é registrado na consciência narrativa como “ironia” – índice de “objetividade do romance” -, um recurso formal que “apreende não apenas a profunda desesperança dessa luta, mas também a desesperança tanto mais profunda de seu abandono” (ibidem, p.87).

    Lukács constrói sua tipologia do romance adotando como diretriz duas modalidades distintas de inadequação do personagem em relação à vida corrente: “a alma é mais estreita ou mais ampla que o mundo exterior que lhe é dado como palco e substrato de seus atos” (ibidem, p.99). Privilegia assim uma explicação mais concentrada no exame de conteúdos do que na decomposição dos elementos formais do gênero, embora parta da pressuposição de que o romance, ao longo de seu processo de desenvolvimento, manteve sua forma exterior “essencialmente biográfica”.

    Denomina a primeira situação de “idealismo abstrato”, destacando já na terminologia a “rigidez da psicologia” do personagem. Engloba os casos em que o estreitamento da alma do herói, sua inaptidão para qualquer espécie de vivência interior restringe sua atividade à pura ação. Suas aventuras, atomizadas no espaço geográfico, extraem sua significação do embate entre o caráter estático de seu ideal e a realidade externa.

    A outra modalidade, o “romantismo da desilusão”, congrega personagens dotados, na estrita esfera da interioridade, de uma “vida própria e dinâmica”, “repleta de conteúdo e mais ou menos perfeita em si mesmo” (ibidem, p.118). Com a rarefação da ação, resultante do pendor contemplativo do herói, predomina a análise psicológica, elevando ao ápice a importância intrínseca do indivíduo. O sentido e a própria configuração formal do romance derivam assim de uma incorporação consciente da temporalidade, sucedâneo da fabulação épica em um “mundo abandonado por deus”.

    O legado do jovem Lukács com sua diversidade de orientações assumiu, nos relatos estabilizadores e unificantes dos historiadores das ideias e dos intérpretes de sua obra, os contornos de um objeto atravessado por incoerências e contradições. Perspectiva acentuada seja pela evidente discrepância formal entre os projetos a que se dedicou – tratado de sociologia literária, ensaios de crítica cultural, fragmentos de reflexão filosófica, teoria histórico-filosófica dos gêneros literários -, seja por súbitas mudanças de registro cultural e de filiação, sinalizadas no decorrer de seu itinerário intelectual.

    Na primeira década do século XX, Lukács, ainda que sob a influência da cultura alemã, insere-se e convive primordialmente no campo intelectual húngaro. Em 1902, estreia como crítico de teatro no jornal Magyar Szalon, uma experiência que durou poucos meses, mas delineou o rumo prosseguido com sua participação, em 1904, na fundação da Sociedade Thalia, uma tentativa bem-sucedida de atualização do movimento teatral de Budapeste.7 A partir de 1906, passa a publicar regularmente nas duas principais revistas da Hungria, Huszadik Század [Século XX] e Nyugat [Ocidente].

    Em entrevistas e relatos autobiográficos, ele destacou seu entusiasmo, nessa época, com dois intelectuais contemporâneos, reconhecendo em suas obras e condutas modelos e fontes de inspiração: o poeta Endre Ady, por seu inconformismo e recusa obstinada em se reconciliar com a ordem social existente, e Ervin Szabó, expoente da ala esquerda que, inspirado no sindicalismo francês e em Georges Sorel, tentou chocalhar a passividade evolucionista do Partido Social-Democrata Húngaro (MSZP).8

    Em 1911, Lukács transfere-se para a Alemanha. Depois de uma breve passagem por Berlin, durante a qual assistiu a cursos e entrou em contato com Georg Simmel, instalou-se em Heidelberg. Lá, integrou-se prontamente ao círculo que se reunia aos domingos na residência de Max Weber, uma congregação de intelectuais consagrados e jovens estudantes, frequentada, entre outros, por Ferdinand Tönnies, Werner Sombart, Georg Simmel, Alfred Weber, George Jellinek, Ernst Tröltsch, Wilhelm Windelband, Emil Lask, Friedrich Gundolf, Karl Jaspers, Franz Rosenzweig, Robert Michels, Ernst Bloch e Ernst Toller.9

    Durante a guerra, convocado pelo serviço militar, retorna à Hungria, prestando serviços civis no exército. Em breve, é dispensado.10 Nesses anos, participa ativamente das discussões e da organização dos cursos oferecidos pela Escola Livre das Ciências do Espírito – instituição concebida e mantida por um grupo de intelectuais que cultivava a filosofia e a sociologia germânicas, alguns deles, como Lukács, retornando de temporadas de estudos na Alemanha.11

    Nos prefácios que redigiu nos anos 1960, por ocasião da primeira reedição de suas obras de juventude, Lukács reconstitui seu percurso como uma “evolução dialética” do idealismo subjetivo (Kant) ao materialismo histórico (Marx), com uma estação de passagem no idealismo objetivo (Hegel).12 Segundo ele, todas as suas obras desse período, incluindo A teoria do romance, foram concebidas conforme os métodos das Geisteswissenschaft [ciências do espírito] tendo como modelo os trabalhos de Dilthey, Simmel e Weber (Lukács, 2000, p.9). As diferenças entre elas devem ser atribuídas, sobretudo, às oscilações de suas inclinações filosóficas.

    Nessa classificação, Evolução histórica do drama moderno e A alma e as formas situam-se na primeira fase, período marcado por sua adesão estrita à “teoria neokantiana da imanência da consciência”.13 A teoria do romance, por sua vez, assinala a transição do idealismo subjetivo ao objetivo, patente não apenas no empenho em aplicar os conceitos de Hegel às questões artísticas, como também no esforço de “historicização das categorias estéticas”, embrião de uma tentativa de filosofia da história (Lukács, 2000, p.11-13).14 O diagnóstico do presente, no entanto, sintetizado, em terminologia fichtiana, no emblema “a era da perfeita pecaminosidade” traduziria antes a influência de Kierkegaard do que um retorno a Fichte (ibidem, p.15).

    Apesar de sua manifesta intenção de procurar evitar a composição de um “desenvolvimento intelectual imanente e orgânico” e de seu cuidado em indicar a presença simultânea de “oposições abruptas”, seus relatos estão regidos por um telos, como se sua trajetória intelectual fosse a consecução ordenada de um projeto, ao que consta, inexistente na origem ou mesmo no decorrer do caminho.15 Assim, nos marcos dessa construção evolutiva, cada etapa passa a ser avaliada com o padrão de medida do resultado final, destacando a cada momento o grau de afastamento ou proximidade da “correta” compreensão do marxismo.

    Outro traço característico desses textos autobiográficos, além da intensidade valorativa, consiste em sua preocupação em identificar desdobramentos de sua obra juvenil no corpo do “marxismo ocidental”. Desse modo, Lukács, que acusou Bloch de invocar contra ele A teoria do romance, no debate sobre o expressionismo nos anos 1930, não deixa também – numa inversão especular – de colocar-se na mesma posição, que considerou “grotesca”: ataca com certa dose de virulência seus primeiros livros, no propósito de assim minar a credibilidade de projetos intelectuais concorrentes.16

    Nesse movimento, não hesita em minimizar a originalidade de seus primeiros trabalhos, apresentando-os como mero epigonismo de escolas e correntes filosóficas ou então como resultantes de uma mesma, homogênea e unilateral, “base sociofilosófica”, o famigerado “anticapitalismo romântico”. Subestima ainda o teor contestatório desses escritos ao sentenciar que são o produto de “uma fusão de uma ética de esquerda e de uma epistemologia de direita”. Não espanta então que Lukács conclua o Prefácio de 1962 proclamando que a leitura de A teoria do romance por quem busca orientação terá como resultado “uma desorientação ainda maior”.

    Em linhas gerais, parece mais factível, no entanto, conceber o itinerário do jovem Lukács como consequência de um empenho em dominar os gêneros predominantes no mundo acadêmico, concomitante ao esforço em incorporar em seu repertório autores e tendências culturais – um aprendizado obrigatório para quem buscava inserção e reconhecimento no campo intelectual da Alemanha guilhermista.17

    Em outro registro, destacando a descontinuidade e o impulso repentino dessas rupturas, cabe observar que suas atitudes e interesses percorrem um trajeto que parece mimetizar o trânsito entre as “esferas” descrito na filosofia de Kierkegaard.18 Impactado pela barbárie da Primeira Guerra, Lukács “salta” do universo estético para o ético e em seguida para a ação revolucionária.19

    A recapitulação de seus trabalhos anteriores certamente contribui para explicar a maturidade intelectual de História e consciência de classe, iluminar sua proficiência no terreno da filosofia e da sociologia alemã ou mesmo para atestar a precocidade de sua crítica à civilização burguesa. Porém, de modo geral, a dissecação do percurso intelectual do jovem Lukács pouco esclarece sobre as teses de sua primeira publicação marxista, alicerçadas na mudança de sua situação da condição de crítico cultural para a de militante político e, em princípio, orientadas por uma decidida tomada de posição no interior dessa linhagem.

    A obra de Engels, a partir do Anti-Dühring, redigida em grande parte após a morte de Marx (1883), contribuiu para estabelecer como parâmetro de inserção na tradição do marxismo o esforço concomitante de divulgação, sistematização teórica e ampliação temática do materialismo histórico.20

    Em Lukács, o empenho em atualizar o marxismo – empreitada renovada a cada geração tendo em vista o caráter assumidamente histórico dessa vertente – adquiriu contornos próprios. História e consciência de classe estabelece como critério de aferição da pertinência e validade de qualquer obra que se pretenda herdeira do legado de Marx a sua capacidade em desdobrar de forma articulada três tarefas, distintas e entrelaçadas: fornecer um diagnóstico do presente histórico, se posicionar ante a já extensa linhagem do marxismo e conceber uma interpretação original dos textos canônicos dessa doutrina.

    História e consciência de classe se propõe, assim, a recuperar a capacidade autorreflexiva que o marxismo havia perdido nos anos de predomínio da Segunda Internacional. Nesse sentido, um de seus alvos principais consiste na codificação da dialética apresentada pelo último Engels, avaliada como uma das premissas dos equívocos políticos e intelectuais da geração subsequente. Não se trata apenas do fato de Engels, seguindo o panlogicismo de Hegel, estender a atuação da dialética ao reino da natureza, adotando as ciências naturais como regra e modelo. A sua principal crítica refere-se à desatenção ante o vínculo entre método e transformação do mundo, que tende a ignorar o papel da dialética como “álgebra da revolução” (cf. Musse, 2005).

    Para além dessa correção metodológica, convém observar que História e consciência de classe se insere em outro cenário, moldado por novas circunstâncias históricas – entre as quais cabe destacar a sucessão de insurreições operárias que só foram derrotadas definitivamente alguns meses depois da publicação do livro, no outono de 1923 – que permitiram a Lukács vivenciar um contexto semelhante àquele que levou o jovem Marx a expor sua teoria como “expressão pensada do processo revolucionário”.

    Notas

    1 Lukács (1981), Entwicklungsgeschichte des modernen Drama. O livro comenta a dramaturgia, entre outros, dos seguintes autores: Lessing, Schiller, Goethe, Hebbel, Ibsen, Strindberg, Gerhart Hauptmann, Anton Tchékhov, Maurice Maeterlinck, Bernard Shaw, Oscar Wilde, Gabriele d’Annunzio e Hugo von Hofmannsthal. Um dos capítulos foi publicado, em 1914, na então mais prestigiosa revista acadêmica alemã, os Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, sob o título “Zur Soziologie des modernen Dramas”.

    2 Lukács destaca, entre suas leituras nesse período, a Filosofia do dinheiro, de Georg Simmel, e os textos de Weber sobre o protestantismo (cf. Lukács, 2008a, p.38).

    3 Lukács (2008b), “Sobre a essência e a forma do ensaio: Uma carta a Leo Popper”. Rejeitado em seguida pelo próprio autor, esse texto foi recuperado e desdobrado, quase meio século depois, em Adorno (2003), “O ensaio como forma”.

    4 O manuscrito, iniciado em Florença no inverno de 1911-1912, só veio a lume, em 1974, numa edição organizada por György Márkus e Frank Benseler, sob o título Heidelberger Philosophie der Kunst 1912-1914 (Lukács, 1974b). Para uma apresentação da “primeira” estética de Lukács, ver Tertulian (2008) e Almeida da Silva (2008).

    5 Weber avaliava que esse texto, com sua pretensão sistemática, constituía a melhor opção que Lukács dispunha para desenvolver e apresentar como tese de habilitação, exigência obrigatória para o ingresso na carreira de professor na Universidade alemã. Embora contrariado, ele acabou aceitando a sugestão de Weber. A partir desse manuscrito, redigiu a tese com a qual pleiteou a habilitação em 25 de maio de 1918 junto à Universidade de Heidelberg. Apesar dos apoios, sua postulação foi recusada. A tese também só foi publicada postumamente, sob o título Heidelberger Ästhetik 1916-1918 (Lukács, 1974a).

    6 “O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade” (ibidem, p.55).

    7 Na entrevista autobiográfica Pensamento vivido, Lukács (1999, p.33-4) relata que – além das tarefas de organização do grupo Thalia e da tradução para encenação de O pato selvagem, de Ibsen -, ciente das insuficiências da crítica impressionista, dedicou-se nesse período ao estudo de obras teóricas, especialmente as de Kant, Dilthey e Simmel.

    8 Apesar e talvez por conta dessa admiração, Lukács (1999, p.40-2) confessa que manteve escasso contato pessoal com eles.

    9 Para um relato pessoal desses encontros e das opiniões de Weber sobre seus contemporâneos, ver Honigsheim (1968).

    10 Décadas depois, Ernst Bloch intriga-se ainda com o fato de Lukács, um opositor declarado da guerra, ter acatado o alistamento militar (ver a entrevista concedida a Michael Löwy (1979, p.284-5) em Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários). Em Pensamento vivido, Lukács (1999) esclarece que contava com a influência de seu pai, então diretor-presidente de um banco de crédito – e a corrupção vigente nas altas esferas da sociedade húngara – para conseguir sua liberação.

    11 Ministraram conferências lá, além de Lukács, entre outros, Karl Mannheim, Arnold Hauser, Béla Balázs, Ervin Szabó, Béla Bartók, Eugene Varga e Béla Fogarasi.

    12 Prefácio (1962) de A teoria do romance e Prefácio (1967) aos Frühschriften II (em Lukács, 2003, p.1-50). Nesses textos, Lukács desenvolve de forma pormenorizada a descrição esboçada em 1933 no artigo “Meu caminho para Marx” (Lukács, 2008a).

    13 Lukács reconhece afinidades com Windelband, Rickert, Simmel e Dilthey, mas não com os pensadores da tendência que denomina “idealismo subjetivo extremo” – os neokantianos da escola de Marburgo e Ernst Mach (ver Lukács, 2008a, p.38).

    14 Ele reconhece aí sua dívida para com a correspondência Schiller-Goethe, no que tange à questão dos gêneros literários, e de Friedrich Schlegel e Solger, no tratamento do conceito de ironia.

    15 No Prefácio de 1967, ele destaca: “Se a Fausto é permitido abrigar duas almas em seu peito, porque uma pessoa normal não pode apresentar o funcionamento simultâneo e contraditório de tendências intelectuais opostas quando muda de uma classe para outra em meio a uma crise mundial?” (Lukács, 2003, p.4).

    16 No Prefácio de 1962 para A teoria do romance, Lukács menciona explicitamente Jean-Paul Sartre, Ernst Bloch e Theodor W. Adorno.

    17 Nos relatos autobiográficos, Lukács, conforme a conjuntura, ora ilumina ora joga sombra sobre os autores que leu. Em “Meu caminho para Marx” menciona Marx, Simmel, Weber, Dilthey, Windelband, Rickert, Hegel, Feuerbach, Szabó, Rosa Luxemburg e Lenin. No Prefácio de 1962, adiciona a esse catálogo Bergson, Friedrich Schlegel, Solger, a correspondência Goethe-Schiller, Kierkegaard, Bloch, Tolstói e Dostoiévski. O roteiro de Pensamento vivido completa a lista com o acréscimo de Paul Ernst, Mehring, Lessing, o romantismo de Iena, Schopenhauer, Nietzsche e Georges Sorel.

    18 Kierkegaard (1986). Sobre a teoria das “esferas”, ver também Adorno (2010, p.193-231).

    19 Para uma descrição dos dilemas éticos de Lukács antes de aderir ao Partido Comunista ver Lukács (1979).

    20 Para uma exposição do papel de Engels na gênese da tradição marxista, ver Musse (2000).

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    Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP