Categoria: Crítica

  • “Se houve um assomo de Trotsky em Cuba, foi o Che”

    “Se houve um assomo de Trotsky em Cuba, foi o Che”

    Seu romance sobre Trotsky e seu assassino causou impacto em nosso país. O escritor cubano fala no sábado na Feira.

    “Lutarei para ser a cada dia um pouco mais livre.” No domingo 17 de fevereiro, na Sala Guillén da Fortaleza de la Cabaña de La Habana, o escritor Leonardo Padura recebeu o Prêmio Nacional de Literatura 2012.
    “Lutarei para ser a cada dia um pouco mais livre.” No domingo 17 de fevereiro, na Sala Guillén da Fortaleza de la Cabaña de La Habana, o escritor Leonardo Padura recebeu o Prêmio Nacional de Literatura 2012.

    A última vez que Leonardo Padura esteve na Argentina foi em 1994. Ainda fazia barulho a queda da URSS, o “período especial” começava em Cuba e aqui nos ensinavam que um peso era igual a um dólar. O cubano apenas publicara as primeiras histórias de seu detetive Mario Conde em Havana e passeava por esta Feira como um perfeito desconhecido. “Eu era outro escritor” diz agora, nesta entrevista a Clarín. Grande parte desse salto para a fama, ele o deve a El hombre que amaba a los perros [O homem que amava os cachorros]. Publicou esse livro em 2009 e desde então não para de ganhar leitores e prêmios, em Cuba e na França, no México e na Espanha. Mas aqui ocorreu algo curioso: a difusão dessa obra se fez boca a boca. Assim, Padura – que veio ao país convidado pela revista Nueva Sociedad – é hoje o autor mais vendido de Tusquets nesta Feira, superando Milan Kundera, Henning Mankell e o próprio Haruki Murakami. O cubano engoliu o japonês, o sueco e o checo também.

    Em seu livro mais celebrado, Padura desanda os caminhos do assassinato de Trotsky. Indaga sobre este fato crucial para o Século XX, através da vítima e de seu vitimário, Ramón Mercader. Faz isso a partir de uma perspectiva cubana, a sua, a de um autor que sempre viveu em Havana. Mas é um livro universal. “Levei cinco anos escrevendo-o, com uma busca documental intensa e extensa. De Trotsky havia abundante informação, de Mercader quase nada”, recorda. Por que elegeu contar esta história? Padura diz que aí pode haver algo de nostálgico, mas também do resentimento que lhe causou encontrar os culpados. “De pronto entendi algumas das razões pelas quais se perverteu a utopia. O papel do stalinismo, a herança de sua figura, foi algo terrível”, diz e o assume na própria carne. Está falando de uma revolução traída, quando conta a morte de Trotsky.

    Para dinamizar a história, Padura inventou o escritor Iván Cárdenas Maturell, que em 1977 conhece um tal López, uma enigmática personagem que passeia pela praia dos formosos galgos russos, um homem disposto a lhe confiar os detalhes mais profundos da vida de Ramón Mercader, o verdugo de Trotsky. Trotsky tem cachorros, Mercader os tem, também Iván.

    –  Que são os cachorros, Padura?

    –  Recursos que utilizo para ir além das perspectivas históricas e encontrar elementos de permanência.

    Diz isso. E fala de outros dois romances seus, um anterior, no qual a personagem é o poeta José María Heredia, e de Herejes, seu novo trabalho, que dará à luz em setembro e que está enfocado em Rembrandt, o pintor. “Me identifiquei com Heredia quando descobri que ele gostava de um prato cubano que eu também gosto: a sopa de quimbombó . No caso de Rembrandt, me aproximou dele o fato de que padecera dores de dente, de que quase não tivesse dentadura porque gostava de comer caramelos na Holanda”. Cães, guisados, dor de dente.  Assim Padura se mete nas personagens. Assim e com muita investigação bibliográfica.

    Enquanto investigava para El hombre que amaba… [O homem que amava…], o cubano ia acumulando bronca. “Encontrei um documento que me comoveu. Um editorial de um jornal mexicano comunista dos anos 30, stalinista claro, celebrava a morte de Sandino. Dizia que morrera como um pequeno burguês e sozinho como um cão, porque a visão de Sandino violava os códigos que se queriam impor através da Terceira Internacional. Quando vi essa mesquinharia comecei a me preocupar por essas histórias perversas”.

    Essa perversão, essa cegueira a reflete Mercader na história. Uma cegueira que arrasou figuras como Andreu Nin, o trotskista espanhol que dirigiu o POUM, e os mesmíssimos filhos de Trotsky, entre tantos outros. Através de Iván, o escritor cubano que dirige a história, Padura busca explicar Mercader, ao mesmo tempo que vai se aproximando da figura de Trotsky, cuja magnitude o envolve e cativa de vez. Liev Davídovich Bronstein, Trotsky.

    Padura sustenta que um dos problemas da literatura cubana é a sua falta de universalidade. Essa é sua grande preocupação, algo que aprendeu com Alejo Carpentier, que por sua vez o aprendera com Miguel de Unamuno. Celebra que a literatura tenha hoje um espaço maior do que o da imprensa em Cuba. Mas sofre pela falta de difusão.

    –  Quando alguém no ano 2040 ler um de meus romances e ler um jornal Granma vai pensar que se trata de dois países diferentes. E creio que o meu país é mais parecido com a realidade do que o do jornal.

    E acrescenta que esse é um problema que o próprio governo cubano critica. “Conheço pouco o fenômeno dos blogs, mas nele há um embrião de um jornalismo diferente”, sugere. E diz que sua independência como escritor quiçá radique em que nunca militou na Juventude Comunista. “Eles não me quiseram ”, esclarece, e diz que se passou muito tempo até que notasse a importância desse fato. Hoje, Padura tem melhores condições de vida que a maioria de seus compatriotas. E celebra algumas das mudanças que se estão produzindo na ilha, ainda que se lhe mude a expressão quando conta que está encerrado em trâmites burocráticos para comprar um carro: “Não fazem ideia”.

    –  Há dois Padura, um autor de policiais e outro que faz um trabalho mais documental e jornalístico?

    –  Não. Minha obra tem uma preocupação fundamental, a busca das orígens. Nos policiais há uma busca, a da verdade. E em romances como El hombre… [Ohomem…] também utilizei certas estruturas do romance policial para marcar mais essa busca duma verdade que pode ser filosófica, histórica ou política.

    –  Conde, o detetive de seus policiais, e Iván, o escritor que desenrola a história de Mercader, têm pontos comuns então…

    –  Conde é a expressão de minha geração, uma figura metafórica. Iván é uma personagem simbólica à qual se lhe agregaram elementos que o superam como individuo. Tem uma vida tão cheia de frustrações e contradições que transpassa o verossímil. Eu precisava desse ajuste para que essa única personagem significasse o que pode haver sido a frustração de um pensamento, de uma vocação dos ideais de uma pessoa em Cuba.

    –  Iván, ou Padura, sente compaixão por Mercader?

    – Sente-se tentado à compaixão. E é possível que a sinta, mas não estou seguro. Esse foi um matiz que discutí muito comigo mesmo e com os amigos que sempre leem meus livros. No fundo, Mercader também foi uma vítima, mas foi um homem que obedeceu e nessa obediência chegou à perversão ética mais elementar. Não lhe serviu de nada, porque o destinaram ao ostracismo, primeiro em Moscou e logo em Cuba, vivendo sob outra identidade. Quiçá isso promova a compaixão, mas não tenho a resposta ainda.

    – Me permito uma crítica: os espiões russos, a NKVD, parecem tirados de um filme de Hollywood.

    –  O espiões são parecidos em todo o mundo. É um trabalho sujo, no qual você tem que mentir, usar os outros, essa essência é comum. Mas não nego que possa haver uma influência de John LeCarré. Seus espiões, homens infelizes e incompletos, me fascinam.

       Houve um Trotsky na revolução cubana?

    –  Não creio. A culpa da virada política de Cuba, para muitos, foi da política norteamericana. Naqueles anos, os Estados Unidos estavam acostumados a governar a América Latina duma maneira e a revolução rompeu os esquemas. Nessa época, o Che Guevara começa a fazer, a partir de seus cargos de poder, determinadas leituras e declarações que, vistas em perspectiva, resultam antissoviéticas. Se houve um assomo de Trotsky em Cuba, esse foi o argentino. Se conta que o Che teve uma relação muito próxima com o grupo de trotskistas cubanos originários. No principio da revolução, o projeto socialista do governo cubano não estaba definido. Mas ali havia, sim, um grupo de revolucionários trotskista, com os quais o Che se relacionava. Houve um momento em que o Che saiu de Cuba e, quando regressou, havíam afastado de seus postos muitos desses trotskistas. E, graças ao Che, muitos recuperaram seus postos. Isto quer dizer que havia um conhecimento e uma simpatia com o pensamento trotskista.

    –  Havana, Cuba, é um ímã para o mundo. É vantajoso escrever a partir de lá?

    –  Sempre a cultura cubana foi maior do que a geografía da ilha. Escrever desde Havana dá certa vantagem. Como Buenos Aires, tem uma tradição cultural reconhecida.

    –  O que resgataria de sua experiência para o futuro da vida socialista?

    –  Há uma experiência que considero fundamental. É a de poder realizar a liberdade individual. O indivíduo que não pode exercitar sua própria liberdade não pode construir uma sociedade livre. É preciso resolver os problemas individuais para logo resolver os coletivos. Um dos problemas do socialismo é que se fez ao revés. Se você diz a um crente que ele tem que deixar de crêr, para essa pessoa, este mundo já não é o melhor.

    Fonte: Clarin, 08/05/13

    Tradução: Sergio Granja

     

    Participação extraordinária na Feira do Livro de Buenos Aires

    Buenos Aires, 14 mai. (Prensa Latina) – A Feira Internacional do Livro de Buenos Aires atraiu um 1,12 milhão de pessoas, que foram a seus pavilhões no recinto La Rural, informaram seus organizadores no encerramento deste megaevento.

    A edição 39 desta Feira, a maior de seu tipo no mundo hispânico, foi encerrada ontem à noite com chave de ouro, apresentando uma programação variada no bairro Palermo, no centro. Hoje circulam estatísticas admiráveis sobre seu desenvolvimento.

    De acordo com os organizadores, reunidos pela Fundação El Libro, participaram ao redor de 1.600 delegações de escolas, assistiram delegações de 20 países e de 18 províncias argentinas.

    Nos 45 mil metros quadrados que ocupou, foram abertos espaços dedicados aos leitores, crianças e jovens, profissionais, educadores, editores, livreiros e público curioso em geral.

    Contou com 460 expositores distribuídos em sete pavilhões e cerca de mil atividades culturais foram realizados em 10 salas.

    Além disso, 450 mil internautas visitaram o recinto da Feira, que contou adicionalmente com 90 mil amigos no Facebook e 20 mil seguidores no Twitter, divulgaram nesta terça-feira os responsáveis pelo departamento digital.

    Aproximadamente 500 autores participaram do megaevento, destacando-se entre eles o representante da Teologia da Libertação, Leonardo Boff.

    Também estiveram outros como Florencia Bonelli, Claudio María Domínguez, Nik, Arturo Pérez-Reverte, Verónica de Andrés, Florencia Andrés, John Katzenbach, Silvia Freire, Gabriel Rolón e Felipe Pigna.

    Participaram ainda María Isabel Sánchez, Javier Cerca, Marcos Aguinis, Claudia Gray, Rosa Montero, Luis Pescetti e Leonardo Padura, entre outros.

    Por iniciativa do Coletivo Imaginário, da Rede Solidária e da Fundação El Libro – e graças à colaboração do público – foram doados 29 mil livros novos e usados que serão distribuídos a seis bibliotecas, dois jardins de infância, dois colégios primários e um secundário de La Plata.

    Isso tudo apesar dessa cidade ter sido severamente prejudicada por uma tempestade sem precedentes no começo de abril que provocou inundações avassaladoras.

  • O escravismo entre o passado e o futuro

    O escravismo entre o passado e o futuro

    O filme “O som ao redor”, de Kléber Mendonça Filho, expõe a incompreensão do Brasil sobre si mesmo e sobre as raízes históricas da violência que atravessa nossa vida urbana.

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    Recife, berço da bárbara civilização brasileira. Num bairro que sintetiza o Brasil, ilhas de luxo em meio ao oceano de favelas. Empregadas domésticas, mulheres negras, lavam as roupas, passam o café na hora certa, são pontuais na faxina. A riqueza hereditária acolhe as novas gerações de patrões. Enquanto cada um cumpre suas funções cotidianas, entre ordens, favores e gestos cordiais, há uma tensão subterrânea que cresce, um susto que está por vir. Por isso, mais câmeras de segurança, alarmes, medo, grades elétricas, luzes automáticas, sensores de movimento, mais tecnologia antipânico e novos guardas noturnos particulares.

    No primeiro longa-metragem de Kléber Mendonça Filho, o bairro de Setúbal é o protagonista. Cresceu rápido, vertical e paranoico. Foi habitado pela típica classe média alta conservadora e por uma aristocracia rural que se reinventou na cidade. Francisco é o proprietário de quase todos os imóveis de alto padrão da região. Melhor dizendo: senhor Francisco. Ele é também proprietário de um engenho decadente no interior, onde passa a maior parte do tempo. Seu neto, João, trabalha como corretor dos apartamentos do avô, odeia o que faz e está empolgado por causa do novo romance com Sofia, que também já morou no bairro. Maria, a empregada doméstica que serve a casa de João, viu o menino nascer. Ele é gentil, íntimo e preocupado. Brinca com as netas da empregada, é cuidadoso com a filha, também empregada, que às vezes vai substituir a mãe. É como se fossem “da família”. A pobreza, como a riqueza, também é hereditária. João é decididamente cordial. Aliás, é um exemplar do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda no século XXI, que trata as relações de exploração por meio do afeto. Ele é o eixo do filme, nos conduz pelas cenas e nos apresenta o bairro e seus ruídos.

    A chegada de uma equipe de três guardas noturnos, contratados para proteger a rua entre 7 da noite e 7 da manhã, é o mote da história. Clodoaldo, o chefe dos guardas, é misterioso e sagaz. Sua simpatia oblíqua gera certa desconfiança. Conforme o tempo passa, cresce a sensação de que algo terrível está prestes a acontecer. O outro neto do senhor Francisco é Dinho, que apesar da farta herança é um ladrão de toca-discos de carros. Seu Francisco já havia alertado: o neto era problema familiar, nada de Clodoaldo se meter. Mas, após um telefonema suspeito, Dinho se indispõe com os guardas e os ameaça com a eficaz postura de “filho do dono”, tão típica da cultura escravista, do sentimento hereditário de patronagem. A tensão cresce. Os tambores surdos e intercalados por largos silêncios aprofundam a atmosfera de mistério. É o som ao redor, africano, aquele que não ousamos escutar.

    Em uma das poucas casas restantes no bairro mora Bia, com o marido e dois filhos. Aparentam ser o núcleo mais modesto da rua – ou melhor, o menos aristocrático, já que aulas de chinês particular para crianças é um luxo nada corriqueiro. Atormentada pelos latidos noturnos do cachorro do vizinho, Bia estende sua insônia madrugada adentro, entre um e outro baseado comprado do vendedor de água. Através da noite, observa as pegadas furtivas de um vulto em cima do telhado da frente. Enquanto isso, sua filha sonha com uma multidão de ladrões que invade o quintal. Acorda assustada.

    A relação entre patrões e empregados está sempre em evidência, dos esporros às gentilezas. Na reunião de condomínio do edifício onde vive João, a maioria defende a demissão, por justa causa, do porteiro sonolento que trabalha para eles há quase vinte anos. A atitude é do tipo “cansei”: “Cansei de ver a minha Vejachegar sem plástico em casa, é revoltante”, afirma uma moradora. O filho pequeno de um condômino gravou um vídeo do porteiro dormindo em serviço. “Só pode ser provocação”, dizem. João defende a permanência do empregado e fica isolado. Os demais alegam que seria muito caro pagar os direitos. Antes da votação, ele prefere sair para encontrar-se com Sofia. A cordialidade de João é ingênua. Trata os empregados que o rodeiam com carinho e, diante de uma injustiça, desabafa meia dúzia de palavras rudes e se retira.

    Quando João e Sofia decidem visitar seu Francisco no engenho, encontram um cenário de ruínas do antigo complexo açucareiro: um cinema antigo, máquinas invadidas pelo mato, a casa-grande, a senzala e os passos do andar de cima. Revisitam o passado imperial. E no meio de um refrescante banho de cachoeira compartilhado pelos três, embaixo de uma densa massa de água que cai pesada e gélida sobre seus ombros, vem a cena-chave do filme: num piscar de olhos, a água se transforma em sangue, vermelho vívido. São poucos fotogramas. João é encharcado pelo sangue que construiu a riqueza do avô. É uma pista para explicar a violência latente da vida contemporânea. O escravismo está entre o passado e o futuro.

    Essa cena faz emergir, em frações de segundo, a história subterrânea que sustenta a história visível. É a mensagem forte do filme. Que o clima de medo, de catástrofe iminente, de terrível ameaça, não precisou de uma gota de sangue para se expandir. Precisou de uma cachoeira. Sobre os jovens ombros de João, pesa o passado de seu avô, com seus capatazes e latifúndios. A chave explicativa da violência contemporânea não seria nem a maldade nem o imediatismo. Seria sim uma violência histórica e estrutural, que permeia o cotidiano brasileiro e já está completamente naturalizada. A paranoia securitária que vivemos é diretamente proporcional à incompreensão das elites nacionais sobre as raízes históricas da violência. Mais que isso: a incapacidade crônica dessas elites de enxergar a reprodução da cultura escravista através dos séculos e as manifestações novas por ela assumidas no presente.

    Não façamos tábula rasa da história. O escravismo brasileiro como sistema econômico acabou há mais de um século. Mas o som ao redor não deixa dúvidas: o escravismo como fenômeno cultural está vivo, renovado pelos hábitos modernos das elites brasileiras. O racismo é disfarçado. Que as empregadas domésticas sejam, no filme, como na realidade, predominantemente negras, não deve ser coincidência. O comportamento autoritário-patronal se expande para muito além da casa-grande. A cordialidade, face fundamental da exploração social, também se sofisticou. Permite que sejamos cada vez mais flexíveis no ato da violência cotidiana. Permite que nossa cultura escravista se adapte às aparências do politicamente correto. Que o intimismo alivie a culpa inconsciente dos herdeiros da aristocracia, dos novos senhores de engenho das cidades.

    Mas, afinal, quem é responsável pela cachoeira de sangue? Provavelmente, quem tem medo da vingança.

    Joana Salém Vasconcelos

    Formada em História na USP e faz mestrado em Desenvolvimento Econômico na Unicamp

    Ilustração: Divulgação

  • A escrita como arma revolucionária

    A escrita como arma revolucionária

    O livro O estilo literário de Marx, do venezuelano Ludovico Silva (São Paulo: Expressão Popular, 2012), traz uma série de análises importantes para o conhecimento de elementos até hoje pouco explorados a respeito do autor de O Capital. O traço marcante do estudo está no fato de que Silva toma Marx não apenas como teórico, mas como escritor, isto é, como sujeito que imprime qualidades literárias – artísticas, estéticas – no material escrito que produz, seja ele de caráter filosófico, político ou científico-social.

    Em Marx, a palavra escrita não serve apenas para apresentar conceitos, mas, também, fundamentalmente, para provocar efeitos sobre a sensibilidade daqueles que recebem suas mensagens: quer causar espanto, estranheza, comoção, cólera, revolta, excitação. Numa palavra: quer mobilizar e canalizar as energias sensíveis da coletividade oprimida para o projeto da transformação revolucionária do mundo. É por esse motivo que, segundo Silva, o sistema científico do pensador alemão está apoiado, de forma consciente, sobre um rigoroso e muito refinado sistema expressivo.alt

    Tal sistema toma corpo através de um peculiar e inconfundível estilo literário. Silva explica o que isso quer dizer: “Literário porque, assim como a poesia abarca um espaço que vai mais além dos versos e se estende na prática a muitos tipos de linguagem, do mesmo modo a literatura, como tal, como conceito e como prática, ultrapassa as obras de ficção ou imagética e se estende por todo o largo campo da escritura. Ademais, o sistema expressivo de Marx constitui um estilo, um gênio expressivo peculiar, intransferível, com seus módulos verbais característicos, suas constantes analógicas e metafóricas, seu vocabulário, sua economia e seu ritmo prosódico. Um gênio posto intencionalmente a serviço de uma vontade de expressão que não se contenta com a boa consciência de utilizar os termos cientificamente corretos, mas que a acompanha com a consciência literária empenhada em que o correto seja, ainda, expressivo e harmônico, e disposta a conseguir, mediante todos os recursos da linguagem, que a construção lógica da ciência seja, também, a arquitetônica da ciência” (p. 11).

    Para corroborar essa tese, Silva sublinha um elemento da formação intelectual de Marx comumente esquecido por muitos de seus seguidores: sua origem no campo das letras. Antes de se tornar experimentado teórico da sociedade capitalista, o pensador alemão dedicou-se de corpo e alma à literatura: estudou línguas clássicas, pesquisou temas estéticos, realizou traduções, escreveu poemas, epigramas, narrativas e até as primeiras cenas de um drama em verso. Não realizou grandes façanhas nesses domínios, é certo, mas soube converter seus fracassos em fonte de criatividade e de vigor expressivo.

    O estudo das línguas mortas, o latim e o grego, por exemplo, serviu para dar-lhe uma profunda consciência da essência de alguns dos idiomas vivos pelos quais se expressava: sua constituição íntima, suas possibilidades criadoras, seus recursos composicionais etc. Também foi importante para despertar no filósofo o gosto pela perfeição expressiva na forma escrita, pela “impetuosidade das frases”, como afirma Silva.

    A poesia, por sua vez, ajudou-lhe a aprimorar sua prosa, visto que o exercício do verso “obriga ao aprofundamento nas qualidades plásticas e rítmicas do próprio idioma, na prosódia mesma” (p. 29). Nesse contexto, é interessante lembrar a afirmação feita pelo linguista e crítico russo Mikhail Bakhtin de que “é só na poesia que a língua revela todas as suas possibilidades. Ali as exigências que lhe são feitas são as maiores. Todos os seus aspectos são intensificados ao extremo, alcançam seus limites. É como se a poesia espremesse todos os sucos da língua que aqui se supera a si mesma” (1). Se levarmos em consideração esse fato, teremos uma boa ideia do que os exercícios literários foram capazes de proporcionar ao estilo de composição textual de Marx.

    É dessa formação intelectual sui generis que vêm os elementos característicos de sua prosa, que Silva, em seu livro, se dedica a enumerar: a arquitetônica da ciência, adialética da expressão, a grande criatividade metafórica, os espíritos concreto, polêmicoe irônico de seus escritos, tão necessários para a denúncia e o combate da realidade alienada e alienante do sistema do capital. Daí os peculiaríssimos efeitos que o estilo literário de Marx causa na sensibilidade de seus leitores: a sensação do sangue fervendo nas veias ao se ler as inflamadas páginas do Manifesto Comunista, a impressão do estranhamento que se desprende das memoráveis passagens dos Manuscritos econômico-filosóficos, a indignação e a revolta que brotam das magníficas sentenças que perpassam todo o sistema categorial de O Capital são alguns exemplos do poder evocativo dessa prosa vigorosa e inspirada.

    O resultado disso, certamente, é prenhe de consequências políticas. Porque a qualidade estética de um texto, o elemento artístico intrínseco a ele, ao tocar o leitor, provoca uma espécie de curto-circuito em suas vias perceptivas, subverte momentaneamente sua forma ordinária de experimentar o mundo e traz à luz novas maneiras de apreender o real que podem servir de combustível e faísca para futuras ações transformadoras.

    A arte, justamente, amplia para o sujeito a capacidade de sentir coisas novas. Sobre isso, escreveu o filósofo brasileiro Leandro Konder: “se não ampliamos o campo daquilo que sentimos (ou que podemos sentir), nossa capacidade intelectual fica prejudicada, nossa racionalidade se deforma. Ou o sensível e o racional se apoiam mutuamente ou ambos sofrem prejuízos” (2). Ou seja, tanto quanto o pensamento, a sensibilidade coletiva deve ser tocada se se quer auxiliar as lutas dos trabalhadores pela emancipação humana.

    Marx sabia disso. Tanto que seus livros não visam apenas transmitir o conhecimento resultante de suas incansáveis pesquisas. Querem, também, transformar algo muito sutil existente no interior de seu público leitor: a apatia em tensão crítica, a resignação em ímpeto fervilhante, a passividade em vontade de movimento. Por certo, esta é uma tarefa tão importante quanto a veiculação de conceitos úteis para o combate e a superação da sociedade do capital.

    Aqui vale lembrar o psicólogo soviético L. S. Vigotski, que acreditava que a arte exerce uma influência especial sobre a vontade e as paixões. Não para mobilizá-las, de pronto, para a ação, mas para produzir um estado de espírito que tenda para a ação futura. A reação artística é, desse modo, algo predominantemente adiado, “porque entre a sua execução e o seu efeito sempre existe um intervalo demorado”. Conforme assinala o célebre autor: “a arte introduz a ação da paixão, rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade em um sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas emoções, paixões e vícios que sem ela teriam permanecido em estado indefinido e imóvel. (…) A arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela” (3).

    O elemento estético pertencente a uma determinada elaboração textual ajuda, assim, o leitor a desidentificar-se com o seu mundo ordinário e a identificar-se com algo até então insólito. Abre para ele a possibilidade de se descentrar de sua individualidade e se sentir parte do gênero humano. A criatura solitária, acabrunhada, tímida e hesitante pode ser levada a sentir o que os gigantes são capazes de sentir. Desnecessário dizer o quanto isso tudo é fundamental para um projeto político alternativo de regulação da vida em sociedade.

    A tradução da obra de Ludovico Silva, que agora temos em mãos, é bem-vinda por permitir aos leitores brasileiros aprenderem a forma como Marx procurava fazer uso constante dessa premissa.

    Notas:

    (1)  BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. Em: Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Ed. Hucitec/UNESP, 1993, p.48.

    (2)  KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 16.

    (3)  VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998 p. 315-20, grifo nosso.

    Ficha

    Título: O estilo literário de Marx

    Autor: Ludovico Silva

    Tradutor: José Paulo Netto

    Editora: Expressão Popular

    Ano: 2012

    Páginas: 110

    Preço: R$ 15,00

    O autor: Ludovico Silva (Luis José Silva Michelena) nasceu em 1937 e faleceu em 1988, na cidade de Caracas, Venezuela. Foi escritor, filósofo, ensaísta e poeta. É considerado um dos mais importantes intelectuais venezuelanos do século XX. Sobre ele, escreveu seu tradutor brasileiro José Paulo Netto: “Ele está, para a cultura da esquerda na Venezuela nos anos 1960/1970, como Mariátegui esteve para a peruana nos anos 1920”.

    Demetrio Cherobini é doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina

    Fonte: Correio da Cidadania

  • Faleceu Antonio Tabucchi

    Faleceu Antonio Tabucchi

    Antonio Tabucchi. O escritor participou na lista do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu em 2004. Foto de uminuscula
    Antonio Tabucchi. O escritor participou na lista do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu em 2004. Foto de uminuscula

    Antonio Tabucchi morreu na manhã deste domingo em Lisboa, aos 68 anos. O escritor italiano, desde há muito ligado a Portugal, estava internado no Hospital da Cruz Vermelha, informou a viúva, Maria José de Lencastre.

    Tabucchi era natural de Vecchiano, província de Pisa, e professor de língua portuguesa na Universidade de Siena. Apaixonado por Portugal, era também tradutor e crítico da obra de Fernando Pessoa, à qual chegou nos anos 1960.

    Entre outras obras, Antonio Tabucchi escreveu uma comédia teatral sobre Pessoa. Entre os prémios que recebeu figuram o Prémio Médicis, por “Nocturno Indiano”, e o Prémio Campiello, por “Afirma Pereira” . Estava sempre na lista de candidatos ao Nobel da Literatura.

    Entre as obras adaptadas para o cinema, destaca-se “Afirma Pereira” (1995), cujo protagonista foi Marcello Mastroianni, que contracena com Mário Viegas e João Grosso, entre outros.

    Nas eleições europeias de 2004, o escritor participou na lista do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu, na sétima posição, explicando que o importante era participar, que a sua candidatura visava defender a cultura e que estaria disponível também para integrar as listas de outro partido de esquerda, desde que tivesse sido convidado para tal e que se identificasse com as opções políticas.

    Aliás, a nacionalidade portuguesa foi-lhe concedida em 2004, uma mera formalidade para quem costumava dizer que sonhava frequentemente em português.

    Entre as suas obras figuram também “Pequenos equívocos sem importância”, “Une baule pieno di gente”, “Os últimos três dias de Fernando Pessoa”, “A cabeça perdida de Damasceno Monteiro” e “Está a fazer-se cada vez mais tarde”.

    Pensador e interventivo

    Nos jornais italianos, franceses ou espanhóis, Antonio Tabucchi foi ainda um pensador do mundo que o rodeava, contra a xenofobia e o preconceito, em particular voz crítica da governação de Silvio Berlusconi.

    Em maio de 2008, no Unitá, Antonio Tabucchi mencionou os laços mafiosos de Renato Schifani, o advogado italiano que era um dos principais suportes políticos de Berlusconi. Repetia as informações que já eram conhecidas do público, precisando que o presidente do Senado italiano tinha sido absolvido apesar das suspeitas.

    Apesar destes cuidados, Schifani não hesitou em processar o escritor e o montante astronómico da indemnização pedida fez soar os alarmes da defesa da liberdade de imprensa.

    Um conjunto de intelectuais lançou então um apelo em forma de petição a favor de Antonio Tabucchi. Entre os primeiros subscritores encontravam-se os cineastas Theo Angelopoulos, Costa-Gravas, os escritores Philip Roth, Jorge Semprun e Fernando Savater. Na origem do apelo estavam dois portugueses, António Lobo Antunes e Mário Soares.

    Em abril sairá “O tempo envelhece depressa”, pela editora D. Quixote, um conjunto de contos nos quais se debruça sobre a passagem do tempo, o passado e o presente.

    Veja abaixo o final de “Afirma Pereira”, o último filme de Marcello Mastroianni, baseado no romance homólogo de Antonio Tabucchi.

     

    Fonte: Esquerda.Net, 25/03/2012