Categoria: Economia e Infra-Estrutura

  • Curso de Agroecologia e Ecossocialismo em São Carlos-SP

    Curso de Agroecologia e Ecossocialismo em São Carlos-SP

    Qual a importância da agroecologia dentro dos ambientes urbanos? Como podemos repensar a relação campo-cidade dentro de um horizonte ecossocialista?

    É com enorme prazer que o Núcleo do Seteorial Ecossocialista do PSOL São Carlos, em parceria com o Setorial Estadual e a Fundação Lauro Campos, convida a todxs para um curso livre e gratuito sobre “Agroecologia e Ecossocialismo”, que buscará refletir coletivamente sobre essas e outras questões.

    Será todo um dia de programação com debates sobre a questão agrária brasileira e sobre os desafios agroecológicos numa perspectiva anticapitalista. Além disso, faremos atividades práticas de cultivo da terra, assistiremos ao filme ‘Sem Clima’, e celebraremos em grande estilo!

    O curso pretende criar um espaço de troca de saberes entre educadorxs, pesquisadorxs, comunicadorxs e ativistas, de dentro e de fora do PSOL. Esperamos que o encontro possa resultar em novas alianças e repertórios, capazes de fortalecer as atividades profissionais e militantes de cada umx. Por isso, valorizaremos muito os momentos de diálogo.

    O curso possui 40 vagas. Todxs receberão um caderno de formação com textos selecionados pela organização.

    Programação completa:

    9h – 9h30: Recepção / café / credenciamento (Restaurante VivaVeg – R. Nove de Julho, 1704 – Centro – São Carlos)

    9h30 – 10h: Falas de boas vindas:

    10h – 12h30: Mesa “Agroecologia, Ecossocialismo e a Questão Agrária no Brasil”

    Joana Ortega: Introdução a agroecologia, e apresentação das Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA)
    Denise Vasquez: Ecossocialismo e o Setorial Ecossocialista do PSOL SP
    Waldemir Soares: a questão agrária no Brasil e os atuais conflitos rurais
    Junior e/ou Patrícia (MST Ribeirão): luta pela terra e luta pela vida, o papel da agroecologia nos movimentos sociais

    12h30 – 14h: Almoço vegano no VivaVeg (Feijoada Vegana)

    14h – 14h30: Ida para atividade prática (CSA São Carlos).
    – Organização de carros na finalização da mesa da manhã. Caronas solidárias saindo do VivaVeg.

    14h30 às 15h: conversa com Dina sobre sítio, CSA e agroecologia

    15h – 17h30: Prática de manejo agrícola no Sítio Centenário

    19h – 21h: Exibição e bate papo filme ‘Sem Clima’, com a presença de membro da equipe do “De Olho nos Ruralistas”, na Veracidade (Rua Dona Ana Prado, 501).

    21h – 00h: Celebração na Veracidade (fazer xixi no mato, usar o banheiro seco, trazer caneca, e cuidar do espaço). Vamos passar chapéu. Vai ter chopp artesanal local. Open de guaca-mole: traga seu pão 😀

    INSCRIÇÕES

    As inscrições são gratuitas e serão confirmadas por ordem de envio. Então corra para fazer a sua! Teremos apenas 40 vagas, então caso você confirme sua participação NÃO DEIXE DE COMPARECER, ou estará tirando a vaga de outra pessoa interessada.

    Se precisar de hospedagem na cidade, fale conosco!

    Se quiser organizar um curso dessa na sua cidade, bora!

    Link para formulário de inscrição: https://goo.gl/N2n3FE

     

     

  • Porquê o sistema ainda vencerá

    Porquê o sistema ainda vencerá

    Brexit, vitória de Trump, movimentos populistas na Europa: o Ocidente está protestando, à direita e à esquerda, contra as ortodoxias neoliberais e globalistas dos últimos 40 anos.

    por Perry Anderson*

    O termo “movimentos antissistêmicos” era comumente usado há 25 anos (1) para caracterizar forças de esquerda em revolta contra o capitalismo. Hoje, ainda que não tenha perdido relevância no Ocidente, seu significado mudou. Os movimentos de revolta que se multiplicaram ao longo da última década já não se rebelam contra o capitalismo, mas o neoliberalismo – fluxos financeiros desregulamentados, serviços privatizados e crescente desigualdade social, variante específica do reinado do capital estabelecido na Europa e na América desde os anos 80. A ordem econômica e política resultante foi aceita de maneira quase indistinguível por governos de centro-direita e centro-esquerda, de acordo com o princípio central de la pensée unique, a sentença de Margaret Thatcher de que “não há alternativa”. Dois tipos de movimento estão agora dispostos contra este sistema; a ordem estabelecida estigmatiza-os, à esquerda e à direita, com a ameaça do populismo.

    Não é por acaso que esses movimentos surgiram primeiro na Europa que nos EUA. Sessenta anos depois do Tratado de Roma, a razão é clara. O mercado comum de 1957, resultado da comunidade do carvão e do aço do Plano Schuman – concebido tanto para evitar qualquer reversão de um século nas hostilidades franco-germânicas quanto para consolidar o crescimento econômico pós-guerra na Europa ocidental – foi o produto de um período de pleno emprego e aumento dos rendimentos populares, o enraizamento da democracia representativa e o desenvolvimento dos sistemas de bem-estar social.  Seus arranjos comerciais incidiram pouco na soberania dos Estados-nação que o compunham, os quais foram fortalecidos ao invés de enfraquecidos. Os orçamentos e as taxas de câmbio foram determinados internamente, pelos parlamentos responsáveis perante os eleitores nacionais, nos quais políticas politicamente contrastantes foram vigorosamente debatidas. As tentativas da Comissão em Bruxelas de formar um grupo foram acentuadamente rejeitadas por Paris. Não só a França sob Charles de Gaulle, mas, na sua forma mais silenciosa, a Alemanha Ocidental sob Konrad Adenauer perseguiu políticas externas independentes dos EUA e capazes de desafiá-los.

    O fim dos trinta anos gloriosos trouxe uma grande mudança nessa construção. A partir de meados da década de 1970, o mundo capitalista avançado entrou em uma longa desaceleração, analisada pelo historiador americano Robert Brenner (2): taxas de crescimento menores e aumentos mais lentos da produtividade, década a década, menos emprego e maior desigualdade, pontuadas por recessões acentuadas. A partir da década de 1980, começando no Reino Unido e nos EUA, e gradualmente se espalhando para a Europa, as direções políticas foram revertidas: os sistemas de assistência social foram reduzidos, as indústrias e serviços públicos foram privatizados e os mercados financeiros desregulamentados. O neoliberalismo havia chegado. Na Europa, isso veio ao longo do tempo para assumir uma forma institucional excepcionalmente rígida: o número de Estados membros daquilo que se tornou a União Europeia multiplicou-se por quatro, incorporando uma vasta zona de baixos salários do Leste europeu.

    Austeridade draconiana

    Da união monetária (1990) para o Pacto de Estabilidade (1997), depois o Ato do Mercado Único (1991), os poderes dos parlamentos nacionais são anulados numa estrutura supranacional de autoridade burocrática protegida da vontade popular, tal como o economista ultraliberal Friedrich Hayek profetizou. Com este mecanismo, a austeridade draconiana poderia ser imposta sobre os eleitores desamparados, sob a direção conjunta da Comissão e de uma Alemanha reunificada, agora o estado mais poderoso da União, onde os principais pensadores abertamente anunciam sua vocação para a hegemonia continental. Externamente, durante o mesmo período, a UE e seus membros deixaram de desempenharam qualquer papel significativo no mundo, em desacordo com as diretivas vindas dos EUA, fazendo com que o avanço das políticas da “neo-guerra fria” em relação à Rússia fosse estabelecido pelos EUA e pago pela Europa.

    Assim, não é de surpreender que as castas cada vez mais oligárquicas da UE, desafiando a vontade popular em sucessivos referendos e incorporando diktats nas constituições, deveriam gerar muitos movimentos de protesto contra elas. Qual é o panorama dessas forças? No núcleo pré-ampliação da UE, a Europa ocidental da Guerre Fria (a topografia da Europa ocidental é tão diferente que se pode ser abandonada para propósitos presentes) , os movimentos de direita dominam a oposição ao sistema na França (Front National), na Holanda (Partido para a Liberdade, PVV), na Áustria (Partido Liberdade da Áustria), na Suécia (Democratas Suecos), na Dinamarca (Partido do Povo Dinamarquês), na Finlândia (Os Verdadeiros Finlandeses), na Alemanha (Alternativa para a Alemanha, AfD) e na Grã-Bretanha (UKIP).

    Na Espanha, Grécia e Irlanda, movimentos de esquerda têm predominado: Podemos, Syriza e Sinn Fein. A exclusividade é a Itália que tem tanto um forte movimento antissistêmico de direita na Lega e um movimento ainda maior na divisão direita/esquerda do Movimento 5 Estrelas (M5S); sua retórica extra-parlamentar sobre impostos e imigração o coloca à direita, em contraste com sua atuação parlamentar à esquerda, de oposição consistente às medidas neoliberais do governo de Matteo Renzi (particularmente sobre educação e desregulamentação do mercado laboral), e seu papel central na derrota da tentativa de Renzi de enfraquecer a constituição democrática da Itália (3). A isso pode ser adicionado o Momentum, que emergiu na Grão-Bretanha por trás do inesperada eleição de Jeremy Corbyn para a direção do Labour Party. Todos os movimentos de direita, à exceção do AfD, precedem o crash de 2008; alguns têm histórias que remontam a década de 1970 ou datas mais antigas. A decolagem do Syriza e o nascimento do M5S, Podemos e Momentum são resultados diretos da crise financeira global.

    O fato central é o maior peso global dos movimentos de direita em relação aos de esquerda, tanto em número de países onde eles chegaram ao governo quanto em força eleitoral. Ambos são reações à estrutura do sistema neoliberal, que encontra sua expressão mais marcante e mais concentrada na atual UE, com sua ordem fundada na redução e privatização dos serviços públicos; a revogação do controle democático e da representação; e desregulamentação dos fatores de produção. Todos os três elementos estão presente em nível nacional na Europa, como em qualquer outro lugar, mas são de um grau maior de intensidade no nível da UE, tal como atestam a tortura da Grécia, o atropelamento dos referendos e a escalada do tráfico humano.  Na arena política, eles são as questões primordiais de interesse popular, dirigindo protestos contra o sistema em relação à austeridade, soberania e imigração. Os movimentos antissistêmicos são diferenciados pelo peso atribuído a cada um – a qual cor na paleta neoliberal eles direcionam a maior hostilidade.

    Movimentos de direita predominam sobre os de esquerda porque desde cedo fizeram a questão imigratória um assunto de sua propriedade, apostando nas reações xenófobas e racistas para ganhar mais apoio entre os setores mais vulnerável da população. Com a exceção dos movimentos na Holanda e na Alemanha, que acreditam no liberalismo econômico, eles são tipicamente ligados (na França, Dinamarca, Suécia e Finlândia) não à denúncia, mas à defesa do estado de bem-estar social, ao mesmo tempo que reclamam que a chegada de imigrantes minam este estado. Mas seria errado atribuir toda sua vantagem a essa carta; em exemplos importantes – a Front National (FN) na França é o mais significativo –  eles também têm uma vantagem sobre outras frentes.

    A união monetária é o exemplo mais óbvia. A moeda única e o banco central, concebido em Maastricht, fizeram a imposição da austeridade e da negação da soberania popular num único sistem. Movimentos de esquerda deveriam atacar isso tão veementemente quanto qualquer movimento de direita, se não mais. Mas as soluções que eles propõem são menos radicais. À direita, a FN e a Lega possuem remédios claros para as tensões da moeda única e para a imigração: sair do euro e parar os fluxos migratórios. À esquerda, com exceções isoladas, nunca se fizeram exigências tão inequívocas. No máximo, os substitutos são ajustes técnicos na moeda única, complicados para ter maior apelo popular e vagas alusões embaraçosas às cotas; nem chega perto de ser tão inteligível para os eleitores como as proposições diretas da direita.

    O desafio da crescente imigração

    A imigração e a união monetária criaram dificuldades especiais para a esquerda por razões históricas. O tratado de Roma foi fundado sobre a promessa de livre movimentação de capitais, commodities e mão-de-obra dentro de um mercado comum europeu. Enquanto a Comunidade Europeia estava confinada aos países da Europa ocidental, os fatores de produção onde a mobilidade mais importava foram o capital e as commodities: a imigração pelas fronteiras dentro da comunidade era geralmente bastante modesta. Mas, no final da década de 1960, o trabalho imigrante de ex-colônias africanas, asiáticas e caribenhas, e de regiões semi-coloniais do ex-Império Otomano, já foi significativo em números. A extensão da UE para a Europa oriental aumentou então consideravelmente a imigração dentro do bloco. Finalmente, as aventuras neo-imperais nas ex-colônias mediterrâneas – a blitz militar na Líbia e a propaganda na guerra civil na Síria – levaram grandes ondas de refugiados para a Europa, juntamente com o terror de retaliação por parte de militantes da região onde o Ocidente permanece acampado como senhor supremo, som suas bases, bombardeiros e forças especiais.

    Tudo isso acendeu a xenofobia: os movimentos anti-sistêmicos da direita se alimentaram dela, e os movimentos da esquerda a combateram, leais à causa de um internacionalismo humano. Os mesmos apegos subjacentes levaram a maioria da esquerda a resistir a qualquer pensamento de acabar com a união monetária, como uma regressão a um nacionalismo responsável pelas catástrofes passadas da Europa. O ideal da unidade europeia permanece para eles um valor cardinal. Mas a atual Europa de integração neoliberal é mais coerente do que qualquer uma das alternativas hesitantes que até agora propuseram. Austeridade, oligarquia e mobilidade dos fatores de produção formam um sistema interligado. A mobilidade dos fatores não pode ser separada da oligarquia: historicamente, nenhum eleitorado europeu foi consultado sobre a chegada ou a escalada do trabalho estrangeiro; isso sempre ocorreu por detrás de suas costas. A negação da democracia, que se tornou a estrutura da UE, excluiu desde o início qualquer posição na composição da sua população. A rejeição desta Europa por movimentos da direita é politicamente mais consistente do que a rejeição pela esquerda, outra razão para a vantagem da direita.

    Níveis recordes de descontentamento dos eleitores

    A chegada do M5S, Syriza, Podemos e AfD marcou um salto no descontentamento popular na Europa. As pesquisas agora registram níveis recordes de insatisfação com a UE. Mas, à direita ou à esquerda, o peso eleitoral dos movimentos anti-sistêmicos permanece limitado. Nas últimas eleições europeias, os três resultados mais bem sucedidos para a direita – UKIP, FN e Partido Popular Dinamarquês – foram cerca de 25% dos votos. Nas eleições nacionais, o valor médio na Europa Ocidental para todas as forças de direita e esquerda combinadas é de cerca de 15%. Essa percentagem do eleitorado representa pouca ameaça ao sistema; 25% pode representar uma dor de cabeça, mas o ‘perigo populista’ do alarme midiático permanece até hoje muito modesto. Os únicos casos em que um movimento anti-sistêmico chegou ao poder, ou parecia que poderia fazê-lo, são aqueles em que um deliberado super-ganho de assentos, através de um prêmio eleitoral destinado a favorecer o establishment, teve um efeito reverso; ou como na Grécia ou na Itália, esses movimentos arriscaram-se a participar desse jogo.

    Na realidade, há uma grande diferença entre o grau de desilusão popular com a UE neoliberal do presente – no último verão, maiorias na França e na Espanha expressaram sua aversão a ela, e mesmo na Alemanha, apenas a metade dos questionados apresentam uma visão positiva sobre o bloco – e a extensão do apoio às forças que se posicionam contra ela. A indignação e o desgosto com o que se transformou a UE é comum, mas há algum tempo o determinante fundamental dos padrões eleitorais na Europa tem sido e continua a ser o medo. O status quo sócio-econômico é amplamente detestado. Mas é regularmente ratificado nos pleitos com a reeleição dos partidos responsáveis por essa situação, por temores de que perturbar o status e alarmar os mercados traria ainda mais miséria. A moeda comum não acelerou o crescimento na Europa e ingligiu graves dificuldades aos países do sul. Mas a perspectiva de uma saída aterroriza mesmo aqueles que sabem até agora o quanto eles sofreram com isso. O medo supera a raiva. Daí a aquiescência do eleitorado grego na capitulação do Syriza em Bruxelas, os reves do Podemos na Espanha, as dificuldades do Parti de Gauche na França. O sentido subjacente é o mesmo em todo lugar. O sistema está mal. Afrontá-lo é arriscar-se a uma represália.

    O que, então, explica o Brexit? Imigração massiva é outro temor em toda a UE, e foi explorado no Reino Unido na campanha pelo Leave, no qual Nigel Farage foi um porta-voz e organizador hábil, juntamente com os proeminentes Conservadores. Mas a xenofobia por si só não é suficiente para compensar o medo de crise econômico. Na Inglaterra, como em toda a parte, a aversão aos imigrantes tem crescido à medida que governos sucessivos mentiram sobre as escalas da imigração. Mas se o referendo sobre a UE tivesse apenas sido uma disputa entre esses medos, como o establishment político pretendia que fosse, o Remain teria vencido indubitavelmente por uma margem considerável, como ocorreu em 2014 com o referendo sobre a independência escocesa.

    Havia outros fatores. Depois de Maastricht, a classe política britânica recusou a camisa de força do euro, apenas para perseguir um neoliberalismo nativo mais drástico do que qualquer outro do continente: primeiramente, a arrogância financeirizada do New Labour, mergulhando a Inglaterra numa crise bancária antes de qualquer outro país europeu e, depois, um governo Liberal-Conservador com uma austeridade mais drástica do que qualquer outra gerada sem constrangimento externo da Europa. Economicamente, os resultados dessa combinação são peculiares. Nenhum outro país europeu ficou tão polarizado por regiões, entre uma metrópole cheia de bolhas e bolsões de alta renda em Londres e no sudeste, e um norte e nordeste desindustrializado e empobrecido onde os eleitores sentiram que tinham pouco a perder se optassem pelo Leave (crucialmente, uma perspectiva mais abstrata que abandonar o euro), seja lá o que acontesse com a City e os investimentos estrangeiros. O medo contou menos que o desespero.

    Politicamente, também, nenhum outro país europeu tem tão flagrantemente manipulado um sistema eleitoral: UKIP foi o maior partido britânico individual em Estrasburgo sob representação proporcional em 2014, mas um ano depois, com 13% dos votos, ganhou apenas uma cadeira simples no Westminster, enquanto o Partido Nacional Escocês (SNP), com menos de 5% dos votos, ficou com 55 assentos. Sob os regimes intercambiáveis dos Trabalhistas e dos Conservadores, produzidos por esse sistema, os eleitores da base da pirâmide desertaram das urnas. Mas de repente concedida, uma vez, uma real escolha num referendo nacional, eles retornaramo com força para proferir seu veredito sobre as desolações de Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron.

    Finalmente, e de forma decisiva, veio a diferenção histórica separando o Reino Unido do continente. Por séculos, o país não foi somente um império que abteu qualquer rival europeu culturalmente, mas ao contrário da França, Alemanha, Itália ou a maioria do restante do continente, não sofreu derrota, invasão ou ocupação em qualquer guerra mundial. Logo, a expropriação dos poderes locais por uma burocracia na Bélgica causou mais atritos que em qualquer outro lugar: por que deveria uma estado que por duas vezes rejeitou o poder de Berlim se submeter a uma intromissão de Bruxelas ou Luxemburgo? Questões de identidade poderiam superar as questões de interesse mais facilmente que no resto da UE. Assim, a fórmula normal – medo de uma represália econômica supera o medo de uma imigração massiva – falhou, deformada por uma combinação de desespero econômico e amor-próprio nacional.

    O pulo dos EUA no escuro

    Essas eram também as condições nas quais um candidato presidencial dos Republicanos dos EUA de antecedentes e temperamento inéditos – abominável para opinião bipartidária mainstream, sem qualquer disposição de se conformar com códigos aceitos de conduta civil e política, odiados por muitos de seu atual eleitorado – poderia apelar para os suficientemente desconsiderados trabalhadores brancos do cinturão da ferrugem a fim de vencer a eleição. Como na Grã-Bretanha, o desespero superou a apreensão em regiões proletárias desindustrializadas. Aí também, muito mais crua e abertamente, num país com uma história mais profunda de racismo nativo, imigrantes foram denunciados e barreiras, físicas e processuais, foram demandadas. Sobretudo, o império não era uma memória distante do passado mas um atributo vívido do presente e uma reclamação natural ao futuro, mas tinha sido descartado por aqueles no poder em nome de uma globalização que significou ruína e humilhação para seu país. O slogan de Donald Trump foi “Fazer a América Grande Novamente” – próspero ao descartar os fetiches do livre movimento de mercadorias e de trabalho, e vitorioso em ignorar os obstáculos e as crenças do multiletarismo: ele não estava errado ao proclamar que seu triunfo foi um grande Brexit. Foi muito mais que uma revolta espetacular, uma vez que não ficou confinado a uma questão única (para a maioria do povo, simbólica), e esteva desprovida de qualquer respeitabilidade do establishment ou bênção editorial.

    A vitória de Trump colocou a elite política europeia, centro-direita e centro-esquerda unidos, em uma consternação ultrajada. Quebrar as convenções estabelecidas sobre imigração é ruim o suficiente. A UE pode ter tido poucos escrúpulos na transferência de refugiados para a Turquia de Recep Tayep Erdogan, com suas dezenas de milhares de prisioneiros, tortura policial e suspensão do que se passa dentro do Estado Democrático de Direito; ou na colocação de arames farpados na fronteira norte da Grécia para manter os imigrantes trancados nas ilhas do Egeu. Mas a UE, respeitando seu decoro democraico, nunca glorificou suas exclusões. A falta de inibição de Trump nesses assuntos não afeta diretamente a UE. A sua rejeição à ideologia do livre trânsito de fatores de produção, seu aparentemente desrespeito desaberto pela OTAN e seus comentários sobre uma atitude menos beligerante com a Rússia são o que causa uma preocupação muito mais séria. Se qualquer um daqueles elementos é mais do que um gesto que logo será esquecido, como muitas das suas promessas domésticas, permanece algo a ser comprovado. Mas sua eleição cristalizou uma diferença significativa entre um número de movimentos antissistêmicos de direita ou de centro ambíguo e partidos da esquerda do establishment, rosa ou verde. Na França e Itália, movimentos de direita têm consistentemente se oposto às políticas de uma “nova guerra fria” e às aventuras militares aplaudidas pelos partidos de esquerda, incluindo a blitz na Líbia e as sanções à Rússia.

    O referendo britânico e a eleição dos EUA foram convulsões antissistêmicos da direita, embora flanqueadas por surtos antissistêmicss de esquerda (o movimento de Bernie Sanders nos EUA e o fenômeno Corbyn no Reino Unido), menores em escala, quando não menos esperados. Quais serão as consequências de Trump ou do Brexit é algo que permanece indeterminado, embora sem dúvida mais limitado que predições correntes. A ordem estabelecida está longe de ser batida em qualquer país e, como a Grécia mostrou, é capaz de absolver e neutralizar revoltas de qualquer direção com velocidade impressionante. Entre os anticorpos já gerados estão os simulacros yuppie dos avanços populistas (Albert Rivera, Emmanuel Macron na França), atacando os bloqueios e corrupções do presente, e prometendo uma política mais limpa e mais dinâmica do futuro, para além dos partidos decadentes.

    Para as movimentos antissistêmicos do esquerda em Europa, a lição dos anos recentes é clara. Se eles não quiserem ser ultrapassados pelos movimentos de direita, não podem ser menos radicais no ataque ao sistema e devem ser mais coerentes em sua oposição. Isso significa enfrentar a probabilidade da UE estar agora tão firmemente no caminho da dependência, enquanto uma construção neoliberal, que reformá-la não é algo mais seriamente concebível.  Teria de ser desfeita antes que qualquer coisa melhor fosse construída, seja rompendo com a atual UE, seja reconstruindo a Europa em outros marcos, lançando Maastricht às chamas. A menos que haja uma crise econômica muito mais profunda, é pouco provável qualquer uma das alternativas.

    * Perry Anderson leciona história na UCLA e publicou recentemente The H-Word: Peripetia of Hegemony, ed.Verso, Londres, 2017.

     

     

    NOTAS

    (1) Por Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e outros.

    (2) Robert Brenner, The Economics of Global Turbulence: the Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long Downturn 1945-2005, Verso, New York, 2006.

    (3) Raffaele Laudani, ‘Renzi’s fall and Di Battista’s rise’, Le Monde diplomatique, Edição Inglesa, January 2017.

    Fonte: Le Monde Diplomatique Inglesa (https://mondediplo.com/2017/03/02brexit)

    Tradução do original (em inglês) para o português: Charles Rosa – Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos

  • ‘Governo arruinou a Petrobras; Brasil já perdeu janela aberta pelo Pré-Sal pra se alavancar’

    ‘Governo arruinou a Petrobras; Brasil já perdeu janela aberta pelo Pré-Sal pra se alavancar’

    PetrobrasO Brasil continua paralisado em meio à briga de clãs que disputam o poder central. Um show de retóricas, seja à esquerda ou à direita do espectro político, na defesa de pontos de vista cujas grandes diferenças jamais ficam claras. A questão do petróleo e em especial do Pré-Sal não escapa à lógica, mas será que os projetos governistas e oposicionistas sobre sua exploração econômica são tão diferentes? Foi sobre isso que conversamos com o cientista político e consultor em economia Pergentino Mendes de Almeida.

    “Tivemos uma janela de, teoricamente, usar o Pré-Sal para alavancar (desculpem o palavrão!) este país e lançá-lo para uma posição firme, independente, com indústria própria, agricultura robusta e diminuição da desigualdade social. Teria de ter sido um empreendimento iniciado rapidamente, com união nacional, entusiasmo e exaltação da confiança pública no país. Não foi”, criticou Pergentino. Mediante as atuais circunstâncias do país e também da Petrobras, o consultor considera apropriado o PLS 131 do senador tucano José Serra, que basicamente significa acelerar a venda do petróleo, mesmo em meio à baixa de seu preço.

    A seguir, o entrevistado deixa claro que considera o gerenciamento dessa riqueza uma repetição da lógica colonial, a exemplo da era açucareira do Nordeste, e que no fim das contas tudo dependerá de como se resolverão as contendas do momento. “Precisamos desenvolver a tecnologia adequada, e isso a Petrobrás pode fazer: ela tem engenheiros competentes e capazes. Mas aí entra a política. Onde está o dinheiro? E mais: seria possível desenvolver tecnologias inovadoras num ramo isolado como o petróleo, sem uma política industrial e megaeconômica, diversificada, de longo prazo? Corremos o risco, se fôssemos nos basear na economia do petróleo e do Pré-Sal apenas, de termos de pagar para produzir e exportar petróleo”.

    Pergentino considera ainda ilusória a promessa de financiamento da educação a partir da renda do pré-sal. “As coisas ficam mais bonitinhas de se olhar, mas o contingenciamento de verbas e a margem para pagamento dos juros aos bancos e para a manutenção das nossas reservas cambiais são esquecidos. E é precisamente aí que estão as prioridades escolhidas pelo governo brasileiro. Ou melhor, pela banca internacional, já que são eles que mandam aqui. O Brasil vem depois, colhe as sobras, que sempre são poucas para as necessidades. O dinheiro do Pré-Sal, se houvesse, vai sumir nesse sorvedouro. A prioridade são os juros bancários. Afinal, isto é o Capitalismo Financeiro”.

    A entrevista completa com Pergentino Mendes de Almeida pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como enxerga a aprovação no Senado do PLS 131, de iniciativa de José Serra, que visa desobrigar a participação de ao menos 30% da Petrobrás em todos os consórcios de blocos do Pré-Sal?

    Pergentino Mendes de Almeida: Se é para se explorarem as reservas do Pré-Sal, a justificativa apresentada pelo Senador José Serra ao seu PLS 131 parece-me oportuna. Por que deixar essa riqueza enterrada? Não faz sentido, o Capital vai nos asfixiar em CO2 se puder. O PL 131 é a última chance de conseguir alguma vantagem para o Brasil. Quero deixar claro logo de início que tenho pontos de vistas mais ou menos divergentes dos que norteiam o centro, a direita e a nossa pseudo-esquerda, populista e fascistóide. Para simplificar: a pergunta é de simples resposta, se vale a pena aproveitar recursos que temos (claro que sim!), mas a resposta contém detalhes onde reside o diabo.

    Tivemos uma janela de, teoricamente, usar o Pré-Sal para alavancar (desculpem o palavrão!) este país e lançá-lo para uma posição firme, independente, com indústria própria, agricultura robusta e diminuição da desigualdade social. Teria de ter sido um empreendimento iniciado rapidamente, com união nacional, entusiasmo e exaltação da confiança pública no país. Não foi. O resto do mundo está trabalhando para a implantação inevitável de tecnologias alternativas mais sofisticadas, a fim de reduzir as emissões de CO2, com a inevitável e paulatina perda da importância do petróleo. Agora está ficando tarde, temo.

    É hora de recuperarmos a Economia e a Petrobras para que esta tenha capacidade de atuar com eficácia. O problema é que eles podem ir adiante, antes de resolvermos os problemas legais da regulamentação do Pré-Sal e de recebermos as sondas e plataformas encomendadas e por encomendar. No mundo todo, para todos os países, os atrasos na entrega desses equipamentos são normais, de cinco a oito anos, às vezes mais de dez anos. O pré-sal, conforme as previsões iniciais, poderia constituir uma alavancagem para o desenvolvimento nacional e as finanças públicas. Mas a coisas me parecem mais complicadas do que vemos, hoje, a partir de nossa perspectiva míope.

    A era do petróleo atingiu seu pico. De hoje em diante, a longo prazo, tende a decair. Quando jovem, participei da campanha “O Petróleo é nosso”. Isso quer dizer monopólio da Petrobrás. Getúlio Vargas foi suicidado por causa disso e da Vale do Rio Doce. O que aconteceu desde então, em que pé estamos depois de vários mandatos de um partido que se diz de esquerda, mas que não passa de um populista a serviço da banca? A Petrobrás está arruinada. A Vale só deu lucro depois de entregue à iniciativa privada e o governo contribuiu para isso. O resgate do Pré-Sal exige mais dinheiro do que tem a Petrobrás e uma política macroeconômica mais bem azeitada, a longo prazo. A Petrobrás está arruinada. Ela publica que está “vendendo ativos para poder investir”. Para mim, isso quer dizer que ela está desinvestindo, em vez de investir.

    Mas o tema tem sido tratado de uma maneira tão ufanista que me faz duvidar do muito que se disse a respeito. A questão virou um tema político, no sentido mais rasteiro do termo, e isso me deixa meio cético com relação a todas as expectativas oficiais. O mais sensato diagnóstico a respeito, durante as discussões no Senado, enquanto os governadores e prefeitos se reuniam para pressionar a seu favor a distribuição e o adiantamento dos royalties, foi uma tirada do Lula: “a pescaria nem começou, mas a turma já tá brigando pelo pirão”.

    Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos favoráveis ao projeto, levando em conta o atual momento de baixa internacional dos preços do petróleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: O mercado é volátil, ele sobe e desce. Parece que a coisa tende a ficar inviável para nós. Eis uma situação que me deixa confuso: já li, em fontes diversas, citações (rumores?), de que o preço mínimo do barril de petróleo para viabilizar o Pré-Sal seria de 80 dólares (quando estava a 120), ou 60, ou 40 dólares, como agora. O preço do barril no mercado atingiu a casa dos 30 dólares. É previsível que haverá períodos de baixa (prejuízo) e alta (lucros), mas onde fica o nosso ponto de equilíbrio?

    Lembremo-nos de que estamos falando em águas profundas, mais profundas do que as empresas de petróleo estão habituadas a explorar, e a distâncias maiores da costa, maiores distâncias do que os poços do Caribe ou do Alaska, exemplos de catástrofes ambientais nas mãos de respeitabilíssimas megaempresas do ramo, Exxon e BP. Isso significa maiores custos, seguros muito mais caros, recursos provavelmente mais caros, em termos de equipamento e logística – e mais tempo.

    Precisamos desenvolver a tecnologia adequada, e isso a Petrobrás pode fazer: ela tem engenheiros competentes e capazes. Mas aí entra a política. Onde está o dinheiro? E mais: seria possível desenvolver tecnologias inovadoras num ramo isolado como o petróleo, sem uma política industrial e megaeconômica, diversificada, de longo prazo, adequada ao crescimento harmônico de toda a economia? O que os governos do PT fizeram até agora foi distribuir recursos públicos para os pobres comerem, e isso pode ser louvável; porém, o mais importante seria estimular a produção e o investimento – ou seja, o emprego e a diversificação e fortalecimento de nossa economia. Comida você come e descarrega o que sobrou dela. Emprego é um pouco melhor. Pelo menos você conta com algum rendimento do mês seguinte, depois de gastar o salário deste mês.

    O PT fez o contrário. Tornou o dólar atrativo para especular e comprar empresas nacionais, alienou nossa indústria e concedeu créditos e isenções fiscais aos bancos e à indústria automobilística, para facilitar a remessa de lucros destinados a aliviar os coitados dos países ricos, quando entraram em recessão. Estamos cada vez mais especializados em exportar commodities e destruir o meio ambiente. Enquanto isso, nossa indústria está se desmoronando. Caminhamos para a mesma situação do Brasil-Colônia, nos tempos da cana-de-açúcar do Nordeste.

    Naquela época, os brasileiros (brancos lusos) eram o povo mais rico da Terra em termos de patrimônio per capita. Os escravos e índios eram parte de seu ativo, não eram gente. Corremos o risco, a longo prazo, se fôssemos nos basear na economia do petróleo e do Pré-Sal apenas, de termos de pagar para produzir e exportar petróleo. O que, aliás, já ocorre quando vendemos gasolina abaixo do preço do mercado e do barril de petróleo bruto. A doença venezuelo-holandesa já começou antes da pescaria.

    Correio da Cidadania: E o que pensa dos argumentos que dizem se tratar de um crime contra o futuro do financiamento da educação, afirmando que se trata de uma perda de 25 bilhões de reais/ano?

    Pergentino Mendes de Almeida: Considerando tudo o que eu disse antes, você pode imaginar a importância que atribuo à Educação. Dez vezes mais do que hoje atribuímos à superior, dez vezes o valor da superior para o médio e dez vezes mais para o ensino básico. É uma pirâmide de carências proporcional à pirâmide de distribuição de renda. Diz-se que o rendimento do Pré-Sal seria destinado à Educação. Isso não me comove. O sistema das finanças públicas tem por valor absoluto a ideia de que todo o dinheiro do Estado fica unificado no Tesouro, afinal, é tudo dinheiro do governo. Juntando tudo num só cofre, nas mãos dos nossos políticos, eles vão falar de superávit primário, não do nominal.

    As coisas ficam mais bonitinhas de se olhar, mas o contingenciamento de verbas e a margem para pagamento dos juros aos bancos e para a manutenção das nossas reservas cambiais são esquecidos. E é precisamente aí, nos juros, nos interesses dos bancos e dos especuladores que estão as prioridades escolhidas pelo governo brasileiro. Ou melhor, pela banca internacional, já que são eles que mandam aqui. O Brasil vem depois, colhe as sobras, que sempre são poucas para as necessidades.

    Por que cada parcela do orçamento, reservada para uma finalidade social considerada importante, não compõe um fundo específico que deve gerar dividendos e prestar contas, por exemplo, aos trabalhadores, no caso do FGTS, às escolas e professores nos fundos para Educação e assim por diante? Eu sei que estou falando besteira, não sou economista nem contador, portanto, tenho o direito de dizê-las. Mas mesmo que eu tivesse, ou tenha razão, os políticos e os tecnocratas rejeitariam a proposta. O dinheiro do Pré-Sal, se houvesse, vai sumir nesse sorvedouro. A prioridade são os juros bancários. Afinal, isto é o Capitalismo Financeiro.

    Correio da Cidadania: A propósito, como enxerga a atual crise financeira da Petrobrás, permeada por casos de corrupção de grande monta em diversas diretorias e setores da empresa? Nesse sentido, a empresa teria perdido de fato a capacidade de exploração do petróleo, como, por exemplo, na própria camada do Pré-Sal, justificando um projeto como o do senador Serra?

    Pergentino Mendes de Almeida: Catastrófica. Há século e meio um ditado do bom senso nunca foi desmentido: o primeiro melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada; o segundo melhor negócio é uma empresa de petróleo mal administrada. Pois o PT conseguiu desmontar a nossa maior empresa e desmentir a sabedoria secular desse ditado. É uma proeza e tanto! É claro que, nesta altura dos acontecimentos, tanto faz. A situação até que justifica o PLS 131 do senador José Serra. A Petrobras precisa se recuperar e deixar de ser um peso morto na exploração do Pré-Sal, pois não tem substância financeira para arcar com 30% de todos os investimentos necessários.

    Além disso, ela tem, a meu ver, outras prioridades a atender. Como é que ela se pode propor, na sua propaganda institucional, a ser uma empresa de energia, quando não tem alcance para salvar sequer o petróleo que já tem e as refinarias que já comprou? De quais energias estamos falando? Eu acredito no corpo técnico da Petrobras, mas não na sua administração.

    Correio da Cidadania: Qual é a seu ver o sentido maior, hoje, de exploração do Pré-Sal, considerando a conjuntura atual nacional e também a internacional?

    Pergentino Mendes de Almeida: É ganhar uns trocados ou uma pequena fortuna – se tudo correr bem. Mas já sabemos que nem tudo está correndo bem para nós aqui e para o mundo em geral. E nem uma pequena fortuna, com as atuais políticas, iria melhorar as condições sociais do povo brasileiro. Poderia valer a pena se tudo tivesse sido planejado a longo prazo, dentro de um pensamento holístico, e começado há uns dez anos. Agora passou a janela. Mais uma vez.

    A Era do Petróleo e da produção abundante de CO2 para gerar energia chegou ao pico e tende a retrair-se. Não acho que a extração de petróleo vai acabar de vez, ele ainda será necessário para as indústrias de corantes, plásticos, cosméticos, perfumaria e medicamentos. Mas deverá ser suplantada por um conjunto de fontes alternativas de energia para transporte, iluminação, comunicações etc. Quem não ficou rico com o petróleo até agora não fica mais, principalmente com a complexidade e custos crescentes da tecnologia necessária. Uma coisa é certa e aceita, ainda que entre quatro paredes, pelas empresas exploradoras do petróleo: o futuro exige a redução de emissões de CO2 , custe o que custar. E ponto. O que elas podem fazer é ganhar um tempinho.

    As grandes multinacionais do petróleo sabem disso e preparam-se para uma nova fase de geração de energia. A Shell, os Emirados, a Arábia Saudita investem pesado em pesquisa de fontes alternativas. Talvez a Shell seja a organização com resultados mais avançados – no nível experimental. Ok, suponha então que você é a Shell e dispõe do conhecimento e da tecnologia necessários para mudar tudo. Agora pense: por que lançar uma inovação tecnológica neste momento, solução que está pronta e segura na sua prateleira (onde entram as leis de patentes, a batalha crítica na ONU e OMC!), quando ela irá desmantelar todo o seu sistema altamente lucrativo, que funciona de modo eficiente há mais de um século? Por que desperdiçar a rede de distribuição, caminhões-tanque, torres de petróleo, tanques de armazenamento, gasodutos, contratos com distribuidores e fornecedores, valor da marca, além das relações com os produtores, que custaram guerras históricas e invasões para se consolidarem, enquanto todo esse aparato continua rendendo lucros?

    Note, o investimento feito desde o século 19 pela Shell, Exxon, BP e todas as outras já foi amortizado há muitas décadas, agora é só usufruir. Nenhum investidor é suicida (isto é, do ponto de vista da economia capitalista) para abandonar o jogo enquanto está ganhando.

    Ou seja, o Brasil não apenas deixou sua maior empresa ser engolida por interesses particulares, como ainda perde o bonde da inovação tecnológica em que a própria Petrobrás poderia ser líder.

    Agora surgem ameaças de cantos inesperados, que não faziam parte do jogo. Carros sem motorista, movidos a energia elétrica: o Modelo Google já funciona em algumas cidades nos Estados Unidos. A Ford negocia um acordo com o Google para eventual produção em massa. A GM se adiantou e acabou de lançar um modelo inteiramente elétrico, possante e com autonomia de 300 km com uma só carga elétrica. A Toyota já vende o seu híbrido elétrico no mercado. A Nissan começou agora.

    As novas gerações não estão mais dando o mesmo valor à posse de um reluzente carro como nós sempre demos. Por que não alugar um veículo elétrico apropriado à sua viagem, pagando só pelas horas de utilização, como você hoje faz com as bicicletas do Itaú? Na França e nos Estados Unidos (se não me engano, também no Japão) a experiência está em curso. E está dando certo.

    Por falar em energia atômica, ninguém sabe que os Estados Unidos estão desenvolvendo usinas atômicas de IV Geração, capazes de superar em custos, benefícios, eficiência, facilidade de instalação, mobilidade (sim, mobilidade!) tudo o que chamamos hoje de usinas nucleares. De acordo com um depoimento do Departamento de Energia ao Senado norte-americano, o que se procura é criar um sistema tal que torne obsoletas todas as demais formas de obtenção de energia por meio de uma nova tecnologia nuclear avançada.

    Essa nova tecnologia oferece a segurança que as atuais usinas não oferecem, são menores e fáceis de transportar e montar, e produzirão energia mais barata in loco. Mas serão de domínio norte-americano. O objetivo declarado nesse depoimento é transformar os Estados Unidos num monopólio mundial de energia. Isso introduz uma outra variável geopolítica importante: a esfera jurídica e a tendência à globalização, com poucas, enormes e diversificadas corporações ditando suas políticas internacionais em todas as áreas de atividade, na indústria, no comércio, nos serviços, nas políticas nacionais subordinadas a elas.

    Daqui a vinte, trinta anos, o mundo não será o mesmo. Que fique claro: quase todas as alternativas de geração de energia mencionadas acima têm seus problemas, inclusive ambientais, mas estes são solucionáveis pela tecnologia. Juntas, darão conta do recado. Existe um potencial nelas que não é abertamente reconhecido. Alguns cientistas acreditam que a energia eólica, a solar e a das marés poderiam eventualmente satisfazer, conjuntamente, todas as necessidades globais de energia. Nem todos concordam, mas o ponto que quero salientar é que nesse campo existem mais coisas entre o céu e a terra do que as grandes corporações deixam entrever.

    O ponto a salientar é que pouco provavelmente uma só delas venha a substituir o petróleo ou o gás natural, próximo protagonista de nossa história. O que podemos esperar é a adoção de um mix de tecnologias de produção de energia, do qual o petróleo ainda participará, em proporções decrescentes. A única “surpresa” que pode salvar o planeta em um cenário diferente é a invenção de uma tecnologia que permita controlar a fusão nuclear. Pode acontecer amanhã, na semana que vem ou daqui a dez anos, ou nunca. Mas existem investimentos não desprezíveis tentando descobrir a fonte praticamente infinita e limpa de energia.

    Em qualquer caso, o problema de transmissão tornar-se-á numa questão estratégica de repercussões mundiais. Acho que aqui também deverá ocorrer uma verdadeira revolução tecnológica. Compondo esse problema logístico já existe um outro ainda pior. O volume de CO2 na atmosfera hoje já é suficiente para gerar enormes desafios e perigos futuros. Não há mais como evitá-los. Agora é tarde. Teremos de desenvolver sistemas viáveis de sequestro e captura de carbono do ar.

    Correio da Cidadania: O que pensa, nesse sentido, dos argumentos mais radicados no ambientalismo, que condenam de lado a lado as fórmulas propostas para a extração do óleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: Não os conheço todos, mas não vejo como estancar, neste século, a extração de petróleo. Quero dizer, na prática.

    Correio da Cidadania: E o que comenta sobre os argumentos de corte geopolítico que condenam o projeto?

    Pergentino Mendes de Almeida: Também não os conheço bem. Não sei que alternativas são propostas. Mas qualquer alternativa deverá ser realista: vivemos no mundo da especulação do capitalismo financeiro, que é uma espécie de “socialismo” a favor do capital. Nenhum país rico, nenhuma economia evoluída na Europa, América, Ásia, foi capaz de desenvolver o seu sistema capitalista sem forte e constante apoio dos governos. Isso vale para todas as potências ditas liberais, inclusive os Estados Unidos. O que desejo salientar é que o problema é muito mais complexo sob todos os ângulos: geopolítico, econômico, financeiro, técnico etc. Não se pode buscar uma resposta simples.

    Acredito que o problema reside exatamente aí: há uma falta de visão de conjunto a longo prazo, para beneficio de toda a sociedade e para a modernização, diversificação e ampliação de nossa indústria, que, infelizmente, está sendo sucateada e vendida ao capital estrangeiro. Não é à toa que nem se menciona mais o termo clássico da Economia, “Produto Nacional Bruto”; fala-se em “Produto Interno Bruto”. As vendas de Volkswagen no Brasil contam como nosso produto interno, mas são produto nacional da Alemanha. A Toyota do Brasil é um ativo do Japão, não do Brasil, e daí por diante.

    Correio da Cidadania: Qual deveria ser, em sua visão, a relação do Brasil e seus governos com essa riqueza finita? Qual seria o modelo ideal de gestão do petróleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: Primeiro, quero dizer que não considero, na prática, o petróleo uma riqueza finita. Sempre que aumenta o preço do barril de petróleo, o volume das reservas mundiais certificadas aumenta também. Estão sempre um pouco acima da curva de consumo. O que vai limitar a indústria do petróleo é a necessidade de reduzir o volume de CO2 na atmosfera, além do fato de que as fontes alternativas de energia em desenvolvimento hoje podem ser mais eficientes do que o petróleo.

    A vantagem do petróleo é que ele sempre foi barato; antes da crise dos anos 1970, da organização da OPEP, o preço do barril variava pouco acima de um dólar – o mesmo barril que hoje está perto dos 30 dólares e que deveria subir para 100 dólares a fim de compensar o Pré-Sal e várias outras fontes alternativas de energia. Por outro lado, considere que estamos falando numa economia fortemente sustentada. Mas estamos falando de uma economia sobre quatro rodas, com motor a explosão, movido a combustível fóssil. Isso é uma tecnologia relativamente rudimentar. Um motor a combustão interna com gasolina utiliza pouco mais de 10%, 15% da energia contida na gasolina queimada. O que significa que quase 80% do consumo de gasolina é um subproduto indesejável: calor (que precisa ser arrefecido no radiador) e poluição. No futuro isso deve mudar contra o petróleo, como aconteceu com as fontes de energia, ainda existentes, mas já superadas: a lenha e depois o carvão.

    Quanto a um modelo ideal de gestão do petróleo, não podemos considerá-lo isoladamente de todo o resto que mencionei aqui. Temos de pensar a longo prazo. Um século é pouco para planejarmos e as incertezas são inúmeras. O Brasil deveria explorar todos os seus recursos para gerar uma economia autônoma e diversificada. Deveria usar tudo o que tem para incrementar a indústria de base, a indústria pesada, os portos, as estradas, os estaleiros, o saneamento, a criação de empregos úteis. E isso num tempo em que tudo é robotizado e a mão de obra participa cada vez menos do produto gerado.

    Temos de gerar empregos e adotar métodos modernos de produção, o que parece contraditório. Alguns países conseguiram isso. Ou melhor, praticamente todos os países ditos desenvolvidos passaram por esse teste, mas só conseguiram superá-lo pela presença ativa do Estado. É o que chamo de “socialismo” a favor do Capital, principalmente o financeiro. Como fazê-lo de modo decente é o nosso problema. O Pré-Sal pode ajudar ou não (espero que sim).

    Meu ideal seria o governo investir pesadamente na criação de polos de excelência onde ainda podem existir bolsões de oportunidade para atender as necessidades do futuro, que serão diferentes das da nossa história. Seria necessário concatenar e concentrar nossos recursos, esses sim, finitos demais, para investir no aproveitamento de oportunidades que arrastassem consigo os setores industrial, agrícola, comercial. Ainda que, a exemplo dos países liberais, tivéssemos de passar por um período protecionista – digamos, para que não me apedrejem, protecionista “contido”, racional, consentido e planejado. Mas não para beneficiar os amigos do Rei.

    Correio da Cidadania: Considera que ao tentar acelerar a venda do petróleo o Brasil também perde no sentido de se preparar para promover e financiar outras formas de geração de energia, limpas e renováveis?

    Pergentino Mendes de Almeida: Acho que sim, e essa é a arapuca em que costumamos sempre cair. Foi assim no tempo do Brasil-Colônia, com o açúcar; e depois o café e o algodão, até o Juscelino fatiar o que o Getúlio havia preparado, para entregar ao capital estrangeiro. Quem sabe é exatamente nessa área, a das energias limpas e renováveis, que reside uma dessas oportunidades de darmos um salto para a frente – que os norte-americanos chamariam de “leapfrog”. Temos de ser ambiciosos e acreditar, é necessária uma revolução cultural aqui, no bom sentido.

    Tome a energia eólica. O Norte e o Nordeste do Brasil estão na faixa mundial das monções – ou seja, uma energia constante, inesgotável e infalível, enquanto o planeta girar. Podemos exportar energia para outros continentes, como se considera hoje um projeto de exploração da energia solar do Saara para o Norte da África e toda a bacia das nações mediterrâneas e centrais da Europa. E o Sol, que castiga o nosso sertão? E as possíveis oportunidades tecnológicas que podem ser criadas a partir daí?

    Hoje exportamos doutores para as grandes universidades mundiais, que podem se dar ao luxo de escolher os melhores para retê-los, em benefício dos seus países. Depois nos vendem suas conquistas. E a Educação? E a Saúde? Os desafios são enormes, na proporção do nosso atraso, mas não custariam mais do que nos custam a inércia histórica, a burocracia, a dívida nacional subordinada ao Capital Financeiro e a corrupção, combinadas.

    Correio da Cidadania: O que a aprovação do PLS 131 significa frente ao atual momento político, econômico, social e ambiental do país, de modo mais geral?

    Pergentino Mendes de Almeida: Não sei. Depende do que se pode fazer com ele. Seria muito mais proveitoso, como sugeri acima, numa gestão eficiente a longo prazo, que tivesse atuado com agilidade há dez anos. Mas isso não aconteceu e não vejo qual a eficiência com que podemos contar dos nossos políticos e governo atuais. Se der uns trocados, como mencionei acima, nas mãos de quem ficariam e para quê? A bola de cristal agora precisa ser sintonizada na política, assim rasteira, e na Política, com P maiúsculo.

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 30/03/2016

  • Bolsos cheios com a indústria armamentista

    Bolsos cheios com a indústria armamentista

    ArmasEUAA indústria e a comercialização de armas volta a ser um dos negócios mais rentáveis e prometedores, depois de deixar atrás a leve queda de 2012, quando houve um retrocesso de 91% na despesa militar mundial.

    Um recente relatório do Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (Sipri) indica que o comércio mundial de armas convencionais aumentou 14% entre 2011 e 2015 em relação aos cinco anos anteriores e que os Estados Unidos reafirmaram sua supremacia como principal exportador mundial.

    O texto também informa sobre o aumento das compras na Ásia, Oceania e no Oriente Médio, com a Índia, a Arábia Saudita e a China como maiores importadores nos últimos cinco anos.

    “Com o aumento dos conflitos e tensões regionais, os Estados Unidos mantêm sua condição de provedor líder de armas no nível global com uma margem clara”, afirmou a diretora do programa de despesa militar da instituição sueca, Aude Fleurant.

    Nesse sentido, apontou que o país do norte forneceu armas a pelo menos 96 países nos últimos cinco anos, com a Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos como principais destinatários.

    Northrop Grumman, BAE Systems, Raytheon, Boeing Defense, Almaz Antei, Airbus e outros grandes fabricantes de armas registram novos recordes de vendas, enquanto continuam as fusões e aquisições que dão lugar a impérios cada vez mais influentes no topo de órgãos internacionais, governos, bancos e meios de comunicação de todo o mundo.

    As vitórias da indústria da guerra são um segredo a poucas vozes. Mas, em que baseia seu triunfo?

    O setor de armas é especial e se rege por normas diferentes às das demais indústrias. Os fabricantes de armas são entidades privadas – ainda que algumas contam com participação estatal – que comercializam quase toda sua produção com governos do mundo inteiro.

    Essas corporações atuam de mãos dadas com o Estado ao desenhar, produzir e exportar, já que o orçamento público financia a maioria dos projetos de inovação militar que criam tecnologias cada vez mais mortais.

    É um negócio redondo no qual o dinheiro público serve, ao mesmo tempo, para financiar o desenho e a compra de aviões, fragatas, fuzis e tanques.

    “A indústria pede reiteradamente o apoio governamental para poder vender fora”, reconhece Eva Cervera, diretora do Grupo Edefa, o maior meio de comunicação em idioma espanhol especializado em Defesa.

    Por exemplo, a estadunidense Lockheed Martin, maior fabricante mundial de armamento, movimenta a cada ano mais de 34 bilhões de euros, cifra superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de 97 países e cinco vezes o orçamento das Nações Unidas para missões de paz.

    Neste negócio próspero, também se destaca o fato de inclusive países com grandes problemas econômicos investirem em armas, como é o caso da Grécia.

    Pouco antes de receber o primeiro resgate em 2010, o governo alemão ativou uma linha de financiamento especial para que as autoridades gregas pudessem pagar seus pedidos de armamento ‘made in Germany.

    A Alemanha, um dos países que mais pressão exerceu para que Atenas aplicasse duros cortes e medidas de austeridade, é o principal provedor de armas com destino ao país heleno, que dedica quatro porcento de seu PIB a objetivos militares.

    Outro detalhe significativo é a relação entre indústria armamentista e política: Nos Estados Unidos, as doações feitas por empresas militares a campanhas eleitorais são vitais para chegar à Casa Branca.

    Em 2013, os fabricantes de armas desembolsaram mais de 137 milhões de dólares para cair na graça dos congressistas estadunidenses, segundo o Centro para Políticas Responsáveis, com sede em Washington.

    A indústria da morte, como é qualificada por diversas organizações não governamentais (ONGs), também tira proveito dos milionários projetos de reconstrução pós-guerra, por isso algumas consultoras já preveem novos conflitos relacionados à mudança climática e à escassez de água e alimentos, e um suposto recorde nas vendas militares durante 2016.

    DADOS E OPINIÕES PREOCUPANTES

    Small Arms Survey, uma organização suíça que é referência internacional de grande destaque neste terreno, propõe que o mercado legal entre os Estados e o crime muitas vezes são as duas caras de uma mesma moeda, ao encobrir as vendas para grupos insurgentes ou proporcionando armas a regimes que violam claramente os direitos humanos.

    A Organização das Nações Unidas estima em mais de 400 bilhões de dólares o impacto econômico devido a mortes causadas por armas em todo o mundo.

    Sobre este tema, afirma que o armamento convencional de todo tipo (desde munição até tanques) move por ano cifras superiores a 85 bilhões de dólares no comércio entre países.

    Dessa quantidade, Small Arms Survey calcula em algo mais de 10 bilhões de dólares anuais o valor do comércio de armas pequenas e seus diversos componentes. A principal rubrica de despesas é destinada a munições, que representam um volume de cerca de 4,27 bilhões.

    Essa entidade também aponta que os cinco principais exportadores de armas leves são Estados Unidos, Itália, Alemanha, Brasil e Áustria. Cada um destes países exporta pelo menos 100 milhões de dólares anuais.

    Os principais importadores são Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Austrália, França e Reino Unido, de acordo com informações do Escritório de Assuntos de Desarmamento das Nações Unidas, que estima que entre 40 e 60% do comércio de armas pequenas no mundo é ilícito.

    ESFORÇOS INFRUTÍFEROS

    Em abril de 2013, a Assembleia Geral da ONU aprovou o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA) com 154 votos a favor, três contra e 23 abstenções, que entrou em vigor no final de dezembro de 2014.

    De todos os países assinantes, até o momento só foi ratificado por 64, entre os quais não consta os Estados Unidos, país responsável por um terço das exportações militares mundiais e que conta com 88 armas por 100 cada habitantes.

    O acordo estabelece uma série de mecanismos para controlar o comércio. Por exemplo, as nações vendedoras revisarão todos os contratos de armamento para garantir que as armas não sejam destinadas a países submetidos a embargos ou que violam direitos humanos.

    Seu objetivo é conseguir um melhor monitoramento do destino de todo material militar, procura delimitar claramente as condições para outorgar licenças de exportação e garantir que as armas não sejam utilizadas contra a população civil.

    Importantes vozes o criticam por representar um lobby armamentista, enquanto outras consideram que pode limitar a política exterior da Casa Branca.

    A aprovação deste tratado foi uma longa batalha da sociedade civil e de diversas ONGs, como a Oxfam Internacional, que vem lutando por mais de uma década para que a comunidade internacional controle esse comércio.

    Mas, serve para que? Quando no Oriente Médio, por exemplo, certos Estados armam outros e grupos rebeldes cometem atrocidades contra a população civil?

    “Pela primeira vez, existe um instrumento internacional que é juridicamente vinculante e que obriga os países exportadores de armas a realizar uma avaliação antes de autorizar as vendas. E terão que respeitar os critérios fixados pelo TCA”, afirma Marc Finaud, especialista em desarmamento do Centro de Política de Segurança que promove a paz, a segurança e o desarmamento.

    Os critérios plasmados no TCA se sustentam no direito internacional humanitário, na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

    Não obstante, o objetivo de responsabilizar os agentes pelo comércio ilegal e impedir a venda de armas destinadas a grupos terroristas e ao crime organizado tem sido infrutífero até o momento.

    Por armas, o TCA entende que pistolas são iguais a mísseis, lança-mísseis, naves de guerra, tanques, peças de artilharia de grande calibre, aviões de combate, entre outros.

    Seu texto proíbe claramente que os governos utilizem qualquer armamento para levar a cabo genocídios, crimes de guerra ou contra a humanidade, e desses o mundo está cheio. A não ser que proliferem no futuro as zonas de paz, como a região da América Latina e Caribe se proclamou na II Cúpula de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), realizada em Havana em 2014.

    Cira Rodríguez César é chefe da Redação de Economia de Prensa Latina

  • “Todos os argumentos em favor da reforma da previdência visam sua privatização e financeirização”

    “Todos os argumentos em favor da reforma da previdência visam sua privatização e financeirização”

    Denise Gentil, doutora em economia pela UFRJ
    Denise Gentil, doutora em economia pela UFRJ

    A pauta política do ano começa a esquentar e um dos principais tópicos em discussão é a Reforma da Previdência, sempre bombardeada pelos setores corporativos como deficitária – sob benção do próprio governo. Para discutir mais esse tema repleto de informações dadas pela metade, entrevistamos Denise Gentil, economista e pesquisadora, que acabou de concluir sua tese de doutorado sobre o que considera o falso déficit da Previdência.

    “A reforma é uma completa insensatez. O gasto com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas”, afirmou, em tom introdutório.

    A seguir, Denise mostra em números como a seguridade social brasileira tem contas sustentáveis, mas, como em qualquer setor da economia, está colocada a serviço da manutenção das margens de lucro do empresariado, o que obviamente se oculta dos debates midiáticos.

    “São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público. Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita que não são computadas nesse cálculo, como a COFINS, a CSLL e a receita de loterias. Quando todas as receitas são computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015”, expôs.

    Além de desconstruir a argumentação “liberal-privatizante”, como denomina a proposta, Denise Gentil propõe outros pontos de vista em questões como idade mínima de aposentadora e a própria noção de solidariedade da seguridade social, além de defender fórmulas variadas para a aposentadoria dos trabalhadores de diversas regiões e características do país.

    A entrevista completa com Denise Gentil pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Como enxerga a volta da proposta de Reforma da Previdência neste início de ano, em meio a uma grave crise econômica?

    Denise Gentil: É uma completa insensatez. O gasto com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas.

    O governo Dilma, no entanto, mudou completamente o rumo da política macroeconômica e tem enfrentado muito mal a crise externa. A economia brasileira tem sido desativada de seus mecanismos de crescimento de forma programada. Houve redução do crédito, queda brutal do investimento público, elevação da taxa de juros, menor aporte de recurso para as estatais (principalmente Petrobrás), redução inclusive do gasto social, enfim, um pacote recessivo que reforça as consequências nefastas da crise mundial.

    Para culminar, o governo, na angústia de ser solícito e atender às pressões do sistema financeiro, achando que, com isso, vai se equilibrar minimamente no jogo de poder onde tem perdido sistematicamente, lança como estratégia política a Reforma da Previdência. Considero um suicídio político. O governo atira contra sua base eleitoral correndo o risco de perder apoio onde ainda lhe resta algum.

    Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos dominantes em favor dessa reforma previdenciária?

    Denise Gentil: São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público. O orçamento público se transformou num instrumento a serviço dos interesses do sistema financeiro. Temos a mais elevada taxa de juros do mundo e a dívida pública é o mecanismo mais brutal de apropriação privada dos recursos públicos. Em lugar nenhum há uma transferência tão violentamente explícita de renda aos bancos, fundos de investimento e fundos de pensão como no Brasil.

    É um escândalo que nosso país tenha gasto R$501 bilhões com juros no ano de 2015, justamente num ano em que o orçamento público deveria estar a serviço da recuperação da economia. São 8,5% do PIB destinados a uma classe de rentistas que apenas acumula riqueza sem nada devolver à sociedade. Não investe, consome pouco e remete renda ao exterior.

    Mas os bancos não querem apenas os juros da dívida. Na área da saúde, o sucateamento do SUS empurra as pessoas para os planos de saúde privados ofertados também pelos bancos. Na área de educação, o patrocínio do governo às empresas privadas é de enorme generosidade. Agora, como se ainda não fosse o suficiente, a base da proposta de Reforma da Previdência visa dificultar o acesso a direitos sociais e comprimir o valor dos benefícios. O governo alardeia que a previdência pública não tem sustentação financeira. Usa a mídia para divulgar amplamente essa idéia como se fosse uma verdade inabalável. O resultado é que está empurrando as pessoas para os planos de previdência privada complementar o que os bancos oferecem. É mais do mesmo.

    É um amplo processo orquestrado de privatização, que o governo Dilma está levando adiante de forma muito mais radical. É preciso entender a reforma da previdência não como uma necessidade conjuntural de ajuste fiscal ou de enfrentamento de uma trajetória demográfica, mas antes como um projeto do mundo das finanças. O ajuste fiscal é apenas um pretexto para justificar os interesses ocultos por trás desse grande acordo entre Estado e o poder financeiro.

    Correio da Cidadania: O que você comenta a respeito da ideia do “déficit da previdência”, tão propalada pelos veículos de comunicação?

    Denise Gentil: Tenho defendido a ideia de que o cálculo do déficit previdenciário não é correto, porque não está de acordo com os preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de seguridade social. O cálculo do resultado previdenciário que tem sido oficialmente divulgado pelo governo leva em consideração apenas a receita de contribuição previdenciária ao INSS dos empregados, empregadores e contribuintes individuais, diminuindo dessa única fonte de receita o valor dos gastos com benefícios previdenciários. O resultado dá em déficit.

    Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos de prognósticos (loterias). O artigo 195 da Constituição Federal assegura que essas receitas financiam a Previdência, a Saúde e a Assistência Social, mas não são levadas em consideração. Quando todas as receitas de contribuições sociais são computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015.

    A pesquisa que realizei leva em conta todos os gastos com benefícios, com pessoal e custeio dos ministérios (Saúde, Assistência Social e Previdência). Essa informação favorável não é repassada para a população, que fica com a noção de que o sistema previdenciário brasileiro enfrenta uma crise de grandes proporções e necessita de reforma urgentemente. O cálculo é propositalmente feito para difundir um suposto déficit e gerar o descrédito do sistema público de Previdência para se conseguir a aprovação de reformas que reduzem benefícios.

    Essas ideias foram tão reiteradamente repetidas que o cidadão comum, as pessoas do meio acadêmico, os homens de negócios e a burocracia do governo passaram a incorporá-las como se fossem verdades definitivas. A ANFIP faz estudos anuais, com elevado grau de detalhamento, divulgando o resultado superavitário da Seguridade Social há mais de vinte anos. Nunca vi uma matéria na televisão que propagasse os estudos da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) que, aliás, são de alto nível.

    Há um outro ponto que gostaria de destacar. O governo Dilma privilegiou desonerações tributárias em larga escala como um dos eixos principais de estímulo ao crescimento e, em menor escala, à recuperação da indústria, a despeito da conhecida limitação desse instrumento para tal fim. A renúncia de receitas em 2014 alcançou a cifra de R$253 bilhões ou 5% do PIB, dos quais R$136 bilhões (2,6% do PIB) pertenciam à Seguridade Social.

    Em 2015, a desoneração total chegou a R$282 bilhões e representou um valor maior do que a soma de tudo o que foi gasto, em 2014, em Saúde (R$93 bilhões), Educação (R$93,9 bilhões), Assistência Social (R$71 bilhões), Transporte (R$13,8 bilhões) e Ciência e Tecnologia (R$6,1 bilhões) pelo governo federal. Em 2015, do total do valor das renúncias de receitas tributárias, 55% pertenciam à Seguridade Social, isto é, R$157,6 bilhões.

    Não é aceitável que o governo conceda esse patamar estratosférico de desonerações e agora proponha cortar gastos. Não é minimamente razoável que o governo force o entendimento de que faltam recursos para manter o sistema de proteção social quando abre mão de montantes gigantescos de receita a favor da margem de lucro das empresas.

    Correio da Cidadania: O que pensa da proposta de idade mínima pra aposentadoria? Qual fórmula te parece mais justa nesse sentido?

    Denise Gentil: Não sou favorável ao estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição. Quem se aposenta nessas condições normalmente começou a trabalhar muito cedo e, no caso dos que têm menor renda, sacrifica seus estudos e sua escolaridade fica prejudicada. Por isso tais pessoas ganham salários menores, têm saúde mais precária e vivem menos. Estabelecer uma idade mais elevada para a aposentadoria seria punitivo para os que começaram a trabalhar muito cedo.

    Normalmente, as pessoas que se aposentam por tempo de contribuição formam dois tipos de grupo. Alguns acabam voltando a trabalhar depois de aposentados e, portanto, voltam a contribuir para o INSS; estes, não são um peso para o orçamento da União, pelo contrário, gerarão mais arrecadação do que será gasto com suas aposentadorias. Outros que se aposentam mais cedo, por tempo de contribuição, o fazem compulsoriamente, porque não conseguem manter seus empregos, na maioria das vezes por defasagem entre os avanços tecnológicos e sua formação ultrapassada, ou por problemas de saúde devido ao aparecimento de doenças crônicas que certos ofícios normalmente ocasionam, ou ainda por desemprego causado por períodos recessivos. Estes aposentados já são punidos (com redução do valor da aposentadoria) pelo fator previdenciário.

    As perdas de renda são grandes principalmente para as mulheres. Tratar a todos com se fossem iguais, como se o mercado de trabalho fosse homogêneo e como se tudo ocorresse da mesma forma na região Norte e Sudeste, é injusto. Mas o fundamental em tudo isso é que forçar a aposentadoria para uma idade mais alta não implica necessariamente em manter o trabalhador contribuindo para a previdência, porque poucos vão conseguir ter um posto de trabalho com o avanço da idade. Pode, ao contrário, significar que eles perderão a condição de segurados, principalmente em recessões prolongadas.

    Correio da Cidadania: Você acredita na necessidade de alguma reforma da Previdência? De que tipo?

    Denise Gentil: A reforma realmente necessária teria que permitir a aposentadoria de trabalhadores urbanos mais pobres e informais com regras semelhantes às dos rurais. Aqueles que não conseguiram um emprego formal no meio urbano durante sua vida ativa deveriam se aposentar com um salário mínimo, comprovando o tempo de trabalho. A reforma deveria ser inclusiva, criando mecanismos de proteção mais amplos e não afastando as pessoas da previdência pública com regras duras e renda baixa para os aposentados.

    Deveríamos caminhar no rumo de um sistema previdenciário para todos, inclusive para os que não contribuíram, mas trabalharam a vida toda. Estes necessitam da aposentadoria na velhice e poderiam receber o piso básico simplesmente porque são cidadãos brasileiros e não podem ser desamparados. Se não contribuíram diretamente para a previdência, pagaram impostos indiretamente, principalmente aqueles embutidos nos preços.

    Nós precisamos de uma reforma edificante, que traga mecanismos compensatórios para a exclusão do mercado de trabalho, que discuta uma agenda positiva com a sociedade, que proponha laços de solidariedades entre as gerações e entre as classes e que fortaleça a cidadania.

    Correio da Cidadania: Quais seriam as principais consequências na vida da população, caso se aprove a reforma agora discussão?

    Denise Gentil: Ainda não se sabe exatamente a amplitude que essa reforma terá. Quando o debate começa no fórum da previdência e as propostas vão surgindo, as coisas vão ficando perigosas porque as disputas se acirram e a atuação dos lobbies fica muito mais forte. Haverá também a enorme pressão política dos meios de comunicação. As forças conservadoras da burocracia do governo emergem, trazendo propostas de reforma draconianas. O desfecho é pouco previsível. Para a classe trabalhadora isso é um pesadelo, um tormento que se repete incessantemente.

    O resultado que se quer alcançar com reformas de corte liberal-privatizante é a redução da renda das aposentadorias, do piso e do teto, e ao mesmo tempo elevar o grau de dificuldade para as pessoas conseguirem se aposentar para que elas passem o menor tempo possível recebendo uma renda do governo. Quanto menor o período de aposentadoria, isto é, quanto mais próximo do fim da vida, melhor. Essa é a estratégia. Com benefícios menores, as pessoas que tiverem condições de pagar serão empurradas para os planos de previdência complementar num banco privado, porque a renda que receberão do sistema público não garantirá a sobrevivência em condições semelhantes às da fase ativa.

    A previdência pública tende a se responsabilizar apenas por um piso básico de valor mínimo para atender precariamente os mais pobres. Assim, a tendência é de transferir a responsabilidade da renda futura para os indivíduos e famílias, retirando cada vez mais o amparo do Estado. O sistema previdenciário vai ampliar as assimetrias e exclusões existentes no mercado de trabalho e a pobreza entre os idosos voltará a crescer. O governo Dilma não consegue sustentar os avanços sociais conquistados na primeira década deste século. A impressão que se tem é que tudo não para de desmoronar.

    Correio da Cidadania: Em sua visão, quais seriam os resultados macroeconômicos da reforma previdenciária, tal como proposta?

    Denise Gentil: O resultado político é desastroso, mas já que a pergunta é sobre o efeito macroeconômico, talvez seja melhor começar por aí. O resultado econômico de se fazer redução de gasto público, aliás, de qualquer tipo de gasto, sempre será um menor crescimento. E crescimento mais baixo significa queda da taxa de emprego, dos lucros e salários e, por tudo isso, menor será a arrecadação de tributos. Fazer ajuste fiscal agrava o resultado fiscal. Reduzir gasto social é condenar a economia à recessão, particularmente em momentos de crise externa.

    O governo diz que a redução do gasto previdenciário vai abrir espaço para o investimento público. Isso é uma grande bobagem. Redução de gasto em governos muito conservadores, como é o caso do governo Dilma, sempre significará elevação de superávit primário e não maior investimento. Além disso, um governo que realmente deseje realizar investimentos de grande porte não usa a arrecadação dos tributos para esse fim, porque nunca seriam suficientes. Para se fazer investimentos expressivos o governo tem de tomar empréstimos, lançar títulos públicos no mercado, emitir moeda e, sobretudo, fazer grandes acordos para coordenar um bloco de interesses, nacionais e internacionais, numa determinada direção.

    Essa fórmula é mais velha que a roda no mundo das finanças públicas. Só tem dinheiro para fazer investimentos de grande impacto quem tem um projeto de inserção internacional. País nenhum na história do capitalismo mundial cresceu economizando migalhas de seus recursos internos, mas realizando grandes projetos estratégicos que implicam em elevar a dívida pública. Portanto, não será “economizando” com gastos sociais que o governo arranjará uma fonte de recursos para ampliar os investimentos.

    Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader é economista e editora do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

  • Piketty: Sanders desafia a Era da Desigualdade

    Piketty: Sanders desafia a Era da Desigualdade

    Crescimento, nos EUA, do candidato que quer redistribuir riqueza terá repercussão global: ele mostra que é possível reagir à aristocracia financeira

    Houve, nos EUA, uma tradição hoje ignorada: impostos progressivos, com alíquotas de até 91% para os mais ricos. Ao evocá-la, num país em crise, Sanders atrai cada vez mais apoio
    Houve, nos EUA, uma tradição hoje ignorada: impostos progressivos, com alíquotas de até 91% para os mais ricos. Ao evocá-la, num país em crise, Sanders atrai cada vez mais apoio

    Como podemos interpretar o incrível sucesso do candidato “socialista” Bernie Sanders nas primárias dos EUA? O senador de Vermont está agora à frente de Hillary Clinton entre eleitores de tendência democrata com menos de 50 anos de idade, e é apenas graças à geração mais velha que Clinton consegue manter-se à frente nas pesquisas.

    Sanders pode não vencer a competição, por estar enfrentando a máquina dos Clinton, assim como o conservadorismo da velha mídia. Mas já foi demonstrado que um outro Sanders – possivelmente mais jovem e menos branco – poderia num futuro próximo vencer as eleições presidenciais e mudar a fisionomia do país. Em vários aspectos, estamos testemunhando o fim do ciclo político-ideológico iniciado com a vitória de Ronald Reagan nas eleições de 1980.

    Vamos dar uma olhada pra trás, por um instante. Dos anos 1930 aos 1970, os Estados Unidos estiveram na vanguarda de uma série de ambiciosas políticas com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais. Em parte para evitar qualquer semelhança com a Velha Europa, vista então como extremamente desigual e contrária ao espírito democrático norte-americano, o país inventou no entre-guerras uma tributação altamente progressiva sobre a renda e o patrimônio, e instituiu níveis de progressividade nunca utilizados no outro lado do Atlântico. De 1930 a 1980 – durante meio século – o percentual para a tributação da renda mais alta dos EUA (acima de 1 milhão de dólares anuais) era em média de 82%. Chegou a 91% entre os anos 1940 e 1960 (de Roosevelt a Kennedy); e era ainda de 70% quando da eleição de Reagan, em 1980.

    Essa política não afetou, de forma alguma, o forte crescimento da economia norte-americana do pós-guerra. Certamente, porque não faz muito sentido pagar a super gestores 10 milhões de dólares, quando US$ 1 milhão dá conta. Os impostos sobre patrimônio eram igualmente progressivos. As alíquotas chegaram a 70% a 80% sobre as maiores fortunas durante décadas (elas quase nunca excederam 30% a 40%, na Alemanha ou na França) e reduziram enormemente a concentração do capital norte-americano, sem a destruição e as guerras que a Europa teve de enfrentar.

    A restauração de um capitalismo mítico

    Nos anos 1930, muito antes dos países da Europa, os EUA instituíram um salário mínimo federal. No fim dos anos 1960 valia 10 dólares a hora (no valor do dólar em 2016), de longe o mais alto naqueles tempos.

    Tudo isso foi obtido quase sem desemprego, pois tanto o nível de produtividade quanto o sistema educacional possibilitavam. Esse é também o período em que os EUA finalmente colocam um fim na antidemocrática discriminação racial legal ainda em vigor no Sul, e lançam novas políticas sociais.

    Toda essa mudança detonou uma oposição musculosa, particularmente entre as elites financeiras e os setores reacionários do eleitorado branco. Humilhados no Vietnã, os EUA dos anos 1970 estavam mais preocupados com o fato de que os derrotados da Segunda Guerra Mundial (liderados pela Alemanha e pelo Japão) ganhavam terreno em alta velocidade. Os EUA sofreram inclusive com crise do petróleo, a inflação e a sub-indexação das tabelas dos impostos. Surfando nas ondas de todas essas frustrações, Reagan foi eleito em 1980 com um programa cujo objetivo era restaurar o capitalismo mítico existente no passado.

    O ápice deste novo programa foi a reforma fiscal de 1986, que pôs fim a meio século de um sistema de impostos progressivos e reduziu a 28% a alíquota sobre as rendas mais altas.

    Os democratas nunca desafiaram de fato essa escolha, nos anos dos governos Clinton (1992-2000) e Obama (2008-2016), que estabilizaram a alíquota de impostos em cerca de 40% (duas vezes mais baixa do que o nível médio no período 1930-1980). Isso detonou uma explosão de desigualdade, ao lado de salários incrivelmente altos para aqueles que podiam consegui-los, e uma estagnação da renda para a maioria dos norte-americanos. Tudo isso foi acompanhado de baixo crescimento (num nível ainda pouco mais alto que o da Europa, lembremos, pois o Velho Mundo encontrava-se atolado em outros problemas).

    Uma possível agenda progressista

    Reagan decidiu também congelar o valor do salário mínimo federal, que desde 1980 foi sendo lenta, porém seguramente corroído pela inflação (pouco mais de 7 dólares por hora em 2016, contra perto de 11 dólares em 1969). Também nesse caso, esse novo regime político-ideológico foi apenas mitigado nos anos Clinton e Obama.

    O sucesso de Sanders, hoje, mostra que a maioria dos norte-americanos está cansada do aumento da desigualdade e dessas falsas mudanças políticas, e pretende reviver tanto uma agenda progressista quanto a tradição norte-americana de igualitarismo. Hillary Clinton, que posicionou-se à esquerda de Barack Obama em 2008, em questões como seguro de saúde, aparece agora como defensora do status quo, como apenas mais uma herdeira do regime politico de Reagan-Clinton-Obama.

    Sanders deixa claro que deseja restaurar a progressividade dos impostos e aumentar o salário mínimo (para 15 dólares por hora). A isso acrescenta assistência de saúde e educação universitária gratuitas, num país onde a desigualdade no acesso à educação alcançou níveis sem precedentes, e destacando assim o abismo permanente que separa as vidas da maioria dos norte-americanos dos tranquilizadores discursos meritocráticos pronunciados pelos vencedores do sistema.

    Enquanto isso, o Partido Republicano afunda-se num discurso hiper-nacionalista, anti-imigrante e anti-Islã (ainda que o Islã não seja uma grande força religiosa no país) e o enaltecimento sem limites da fortuna acumulada pelos brancos ultra-ricos. Os juízes nomeados sob Reagan e Bush derrubaram qualquer limitação legal da influência do dinheiro privado na política, o que dificulta muito a tarefa de candidatos como Sanders.

    Contudo, outras formas de mobilização política e crowdfunding podem prevalecer e empurrar os Estados Unidos para um novo ciclo político. Estamos longe das tétricas profecias sobre o fim da história.

    Tradução: Inês Castilho

    Fonte: Outras Palavras, 17/02/2016

    pikettyThomas Piketty (Clichy, 7 de maio de 1971) é um economista francês que se tornou figura de destaque no meio acadêmico internacional com seu livro “O Capital no século XXI” (2013), no qual defende, através da análise de dados estatísticos, que o capitalismo possui uma tendência inerente de concentração de riqueza nas mãos de poucos. Sua obra mostra que, nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico. Segundo Piketty, tal tendência é uma ameaça à democracia e deve ser combatida através da taxação de fortunas.

  • Economia: por que perdura risco do colapso global

    Economia: por que perdura risco do colapso global

    Desde 2008, nenhuma das políticas “contra a crise” ousou questionar papel dos bancos e aristocracia financeira. Reforçados, eles ameaçam provocar novos desastres. Há alternativas Imagem: M.C. Escher
    Desde 2008, nenhuma das políticas “contra a crise” ousou questionar papel dos bancos e aristocracia financeira. Reforçados, eles ameaçam provocar novos desastres. Há alternativas
    Imagem: M.C. Escher

    Sete anos depois de irromper a crise financeira global, em 2008, a economia mundial continuou a tropeçar, em 2015. Conforme o relatório da ONU Situação e Perspectivas da Economia Mundial 2016 , a taxa média de crescimento nas economias desenvolvidas teve queda de mais de 54% desde a crise. Cerca de 44 milhões de pessoas estão desempregadas em países desenvolvidos, algo como 12 milhões a mais do que em 2007, enquanto a inflação alcançou seu nível mais baixo desde o início da crise.

    Mais preocupante, as taxas de crescimento dos países avançados também tornaram-se mais voláteis. Isso é surpreendente, porque, como economias desenvolvidas, com contas de capital totalmente abertas, elas deveriam ter-se beneficiado do livre fluxo de capital e participação internacional nos riscos – e portanto, experimentado pequena volatilidade macroeconômica. Além disso, os investimentos sociais, incluindo os auxílios aos desempregados, deveriam ter permitido às famílias estabilizar seu consumo.

    Mas as políticas dominantes durante o período pós-crise – redução de impostos e flexibilização quantitativa (quantitative easing, ou QE, na sigla em inglês) [1] pelos principais bancos centrais – ofereceu pouco apoio para estimular o consumo das famílias, os investimentos, e o crescimento. Ao contrário, estas medidas tenderam a tornar as coisas piores.

    Nos Estados Unidos, a flexibilização quantitativa não estimulou o consumo e o investimento, em parte porque o volume maior de liquidez adicional retornava aos cofres dos bancos centrais em forma de excesso de reservas. A Lei de Desregulamentação dos Serviços Financeiros de 2006, que autorizou o Federal Reserve (banco central norte-americano) a pagar juros sobre as reservas necessárias e em excesso, prejudicou, assim, o principal objetivo do QE.

    Em 2008, com o setor financeiro dos EUA à beira do colapso, a Lei de Estabilização Econômica Emergencial ampliou, para três anos, o prazo para que o Tesouro pagasse juros sobre suas reservas. Como resultado, o excesso de reservas controladas pelo Fed disparou, de uma média de 200 bilhões de dólares no período de 2000 a 2008 para 1,6 trilhões durante 2009-2015. As instituições financeiras preferiram manter seu dinheiro com o banco central (Federal Reserve, ou Fed, nos EUA), ao invés de emprestá-lo para a economia real. Lucraram perto de 30 bilhões de dólares – completamente livres de riscos – durante os últimos cinco anos.

    Equivale a um subsídio generoso – e bem escondido – do Fed ao setor financeiro. Em consequência da alta da taxa de juros norte-americanos, no mês passado, o subsídio irá aumentar cerca de 13 bilhões de dólares, este ano.

    Incentivos perversos são apenas uma das razões por que os esperados benefícios de baixas taxas de juros não se materializaram. Dado que o QE conseguiu manter as taxas de juros próximas de zero por quase sete anos, isso deveria ter encorajado os governos nos países desenvolvidos a emprestar e investir em infra-estrutura, educação e área social. O aumento das transferências sociais durante o póscrise teria impulsionado a demanda agregada e sustentado os padrões de consumo.

    Ademais, o relatório da ONU mostra claramente que, por todo o mundo desenvolvido, o investimento privado não cresceu como se esperava, diante das taxas de juros ultra baixas. Em 17 das 20 maiores economias desenvolvidas, o crescimento dos investimentos permaneceu mais baixo durante o período pós 2008 do que nos anos anteriores à crise; cinco delas viveram um declínio do investimento durante 2010-2015.

    Globalmente, os títulos da dívida emitidos por corporações não-financeiras – supostamente para realizar investimentos fixos – aumentou significativamente durante o mesmo período. Consistente com outras evidências, isso implica que várias corporações não-financeiras tomaram emprestado, aproveitando-se das taxas de juros baixas. Mas, ao invés de investir, usaram o dinheiro para comprar de volta suas próprias ações ou adquirir outros ativos financeiros. Assim, o QE estimulou aumentos acentuados na alavancagem, capitalização do mercado e lucratividade do setor financeiro.

    Mas, de novo, nada disso foi de muita ajuda para a economia real. Claramente, manter as taxas de juros próximo de zero não necessariamente leva a níveis mais altos de crédito ou investimento. Quando é dada aos bancos liberdade de escolher, eles escolhem lucro sem risco ou até mesmo especulação financeira, em vez de empréstimos que dariam suporte ao objetivo mais amplo de crescimento da economia.

    Por contraste, quando o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional emprestam dinheiro barato aos países em desenvolvimento, impõem condições sobre o que pode ser feito com os recursos. Para alcançar o efeito desejado, o QE teria de ter sido acompanhado não apenas de esforços oficiais para restaurar canais de empréstimo prejudicados (especialmente aqueles dirigidos a empreendimentos pequenos e médios), mas também por metas específicas de empréstimos para os bancos. Ao invés de incentivar de forma eficaz os bancos a não emprestar, o Fed deveria estar penalizando os bancos por manter reservas em excesso.

    Se as taxas de juros ultra baixas ofereceram poucos benefícios para os países desenvolvidos, eles impuseram custos significativos às economias emergentes e em desenvolvimento. Uma consequência acidental, mas não inesperada, da flexibilização da política monetária tem sido o forte aumento nos fluxos de capital transfronteiriços. O fluxo total de capital para países em desenvolvimento aumentou de cerca de 20 bilhões de dólares em 2008 para 600 bilhões em 2010.

    Diversos países emergentes tiveram dificuldades para gerir a repentina explosão de fluxo de capital. Parte muito pequena dele foi para investimentos fixos. Na verdade, o crescimento dos investimentos nos países em desenvolvimento desacelerou significativamente durante o período pós crise. Neste ano, espera-se que o conjunto dos países em desenvolvimento registrem seu primeiro ano de fuga de capital líquido – um total de 615 bilhões de dólares – desde 2006.

    Nem a política monetária, nem o setor financeiro estão fazendo o que devem. Parece que a enchente de liquidez foi destinada, desproporcionalmente, à criação de riqueza financeira e a inflar bolhas de ativos, em vez de fortalecer a economia real. Apesar das fortes quedas nos preços das ações em todo o mundo, permanece alta a capitalização do mercado, em percentual do PIB mundial. O risco de outra crise financeira não pode ser ignorado.

    Outras políticas, de sentido oposto, poderiam restaurar um crescimento sustentável e inclusivo. Para começar, é preciso reescrever as regras da economia de mercado para assegurar maior igualdade, buscar mais planejamento de longo prazo, e colocar rédeas no mercado financeiro, com regulação efetiva e estruturas adequadas de incentivo.

    Mas também será necessário um grande aumento do investimento público em infra-estrutura, educação e tecnologia. Este terá de ser financiado, ao menos em parte, pela criação de impostos ambientais — inclusive sobre a emissão de carbono — e de impostos sobre o monopólio e outras rendas não ligadas à produção — que se disseminaram na economia de mercado e contribuem enormemente com a desigualdade e o crescimento fraco.

    [1] Trata-se de um processo de injeção maciça de dinheiro nas economias dos EUA e União Europeia, por iniciativa coordenada de seus governos e bancos centrais. Estes liquidaram antecipadamente grandes quantidades de recursos públicos — ou seja, pagaram em dinheiro aos aplicadores –, num esforço para combater a recessão pós-2008 ampliando o estoque de moeda disponível. No entanto, como explica Stiglitz a seguir, fizeram-no beneficiando os extratos mais ricos. Tais grupos, ao invés de movimentar a economia, ampliando o consumo ou investimento, utilizaram os recursos para novas aplicações financeiras ou aquisição de empresas já existentes — inclusive no exterior. O quantitative easing favoreceu, entre outros processos, a ultra-valorização do real brasileiro, entre 2009 e 2014. [Nota da Tradução]

    Tradução: Inês Castilho
    Fonte: Outras Palavras, 14/02/2016

    Joseph Stiglitz

    Joseph Stiglitz

    Joseph Eugene Stiglitz (Gary, 9 de Fevereiro de 1943) é um economista estadunidense.  Foi presidente do Conselho de Assessores Econômicos (Council of Economic Advisers) no governo do Presidente Bill Clinton (1995-1997), Vice-Presidente Sênior para Políticas de Desenvolvimento do Banco Mundial, onde se tornou o seu economista chefe.

    Stiglitz, recebeu, juntamente com A. Michael Spence e George A. Akerlof, o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel, também designado por “Prêmio Nobel de Economia”, em 2001, “por criar os fundamentos da teoria dos mercados com informações assimétricas”.

    Stiglitz defende a nacionalização dos bancos americanos e é membro da Comissão Socialista Internacional de Questões Financeiras Globais.

    Stiglitz formou-se no Amherst College (B.A., 1964), em Amherst, Massachusetts, e no Massachusetts Institute of Technology (Ph.D., 1967), em Cambridge, Massachusets. O estilo acadêmico característico do MIT – modelos simples e concretos, que objectivam responder questões econômicas relevantes – agradou a Stiglitz e muito contribuiu para o desenvolvimento do seu trabalho posterior. Foi agraciado pela Fullbright Comission com uma bolsa de estudos para Cambridge, onde estudou de 1965 a 1966. Stiglitz lecionou em várias importantes universidades americanas, dentre elas Yale, Harvard e Stanford. Em 2001 Stiglitz tornou-se professor de economia, administração de empresas e negócios internacionais na Columbia University em Nova York.

  • Paraísos fiscais, uma prática crescente

    Paraísos fiscais, uma prática crescente

    paraíso-fiscalOs paraísos fiscais, mais que notícias, é possível afirmar que sejam uma soma de números e nomes que refletem uma prática muito conhecida e frequente entre os milionários e as transnacionais.
     
    Os referidos territórios, 73 ao redor de todo o mundo, dispõem de sistemas tributários que favorecem, de maneira especial, seus não residentes, tanto pessoas físicas como entidades jurídicas.
     
    Segredos e negócios ocultos de políticos, enganadores e grandes fortunas de todo o planeta aparecem em arquivos que proporcionam dados e provas, e ilustram perfeitamente como o segredo financeiro internacional se estendeu progressivamente com os famosos paraísos fiscais.
     
    Este mecanismo entrou em jogo em meados do século passado no jargão financeiro, e permite que os ricos e influentes possam evadir impostos, ao mesmo tempo em que em ocasiões chegam inclusive a gerar ou amparar situações de corrupção castigadas pela lei.
     
    Movimentos de grandes quantidades de capitais, empresas e particulares envolvidos (incluídas personalidades internacionais), são denunciados todos os anos com a aparência de uma hecatombe financeira.
     
    São conhecidos como zonas cujos sistemas tributários favorecem seus usuários pela isenção parcial ou total do pagamento de impostos, e leis ou normas que não permitem a troca de informação para propósitos fiscais com outros países.
     
    Evidentemente, os pobres são os mais vulneráveis ante estas evasões que impossibilitam a arrecadação de impostos, dinheiro que poderia ser utilizado para fins sociais e para o crescimento e desenvolvimento econômico das nações mais atrasadas.
     
    Em 2015, a quantidade de dinheiro ocultado nesses nichos ascendeu a 7,6 trilhões de dólares, cifra superior ao Produto Interno Bruto da Alemanha e do Reino Unidos juntos, montantes resguardados em esconderijos estratégicos por uma minoria privilegiada.
     
    De acordo com dados recentes da organização não governamental Oxfam Intermón, nove em cada 10 empresas multinacionais têm presença em paraísos fiscais.
     
    Um relatório sobre o tema reúne uma análise das 200 maiores empresas do mundo e das sócias estratégicas do Fórum Econômico Mundial.
     
    Segundo a prestigiosa ONG, calcula-se que o investimento empresarial em paraísos fiscais multiplicou por quatro entre 2000 e 2014 e calcula-se que o dinheiro ocultado neles não parará de crescer.
     
    Esclarece, ainda, que do total estimado depositado em paraísos fiscais, 2,6 trilhões de dólares pertencem a países europeus, enquanto 1,2 trilhões correspondem aos Estados Unidos, um fenômeno muito associado à desigualdade reinante no mundo.
     
    Neste sentido, a Oxfam assegura que “em 2015, só 62 pessoas possuíam a mesma riqueza que a metade mais pobre da humanidade. A riqueza em suas mãos aumentou em 44% em cinco anos e são todos clientes de paraísos fiscais”.
     
    E acrescenta: “a riqueza nas mãos da metade mais pobre da população reduziu-se em mais de um trilhão de dólares no mesmo período, uma queda de 41%”
     
    No recém celebrado Fórum Econômico Mundial de Davos, Oxfam aspirou a que este fosse um tema da agenda, mas nada mais longe do ocorrido ali, pois a elite endinheirada mundial não se ocupou do assunto.
     
    A esperança era obter dos líderes mundiais o compromisso de uma estratégia que acabasse com os paraísos fiscais, cuja existência sustentam os pobres, já que com a evasão fiscal, os governos não conseguem arrecadar um tributo ótimo das transnacionais e dos multimilionários para destinar à despesa pública tendo em vista os setores mais desfavorecidos.
    POR QUE OS PARAÍSOS FISCAIS?
     
    Tais lugares, famosos também como territórios offshore, podem ser desfrutados tanto por pessoas físicas como jurídicas. As primeiras, por exemplo, artistas, esportistas, famosos gozam das mordomias financeiras residindo no país escolhido como paraíso.
     
    Nestes lugares evitam-se as cargas fiscais, mas também podem se planificar heranças e legados, já que as figuras jurídicas se aproveitam da não fixação do imposto de bens obtidos por companhias, da liberdade de movimentos de capitais e dos dividendos que recebem das filiais.
     
    Daí seus nefastos efeitos para os setores mais despossuídos já que só as elites endinheiradas podem eludir suas obrigações impositivas e sempre encontram a maneira de obter vantagens competitivas.
     
    Ademais, o segredo bancário facilita a ocultação de dinheiro procedente de atos corruptos, de venda ilegal ou outros delitos. E, evidentemente, estas ações contribuem para aumentar a crise financeira, destruir empregos e ao atraso produtivo.
     
    Ter o dinheiro fora não é ilegal, o irregular é fazê-lo para evadir impostos e, sobretudo, a origem ilícita desse capital.
     
    Tais lugares têm características específicas que permitem sua identificação: possuem escassos ou nulos convênios com outros países em matéria tributária, oferecem a empresas e cidadãos proteção do segredo bancário e comercial e não possuem normas de controle de movimentos de capitais (origem ou destino).
     
    Ademais têm um sistema que permite a convivência de um regime tributário para os nacionais e outro para os estrangeiros, e desfrutam de uma infraestrutura jurídica, contábil e promotora que permite a liberdade de movimento de pessoas e bens.
    OS PARAÍSOS FISCAIS QUE OCULTAM TRILHÕES
    Paraísos (ou parasitas?) fiscais

    Paraísos (ou parasitas?) fiscais

    O mapa dos paraísos fiscais foi em 2015 mais colorido que nos anos anteriores, pela entrada de mais países na lista desses nichos. Tal relação está integrada por:

     
    Bermudas, Bahamas, Ilhas Turcas e Caicos, Jamaica, Ilhas Anguila, Antiga e Barbudas, Antilhas Neerlandesas, Aruba, Barbados, Dominica, Ilhas Virgens Britânicas e Ilhas Virgens dos Estados Unidos.
     
    Também estão as Ilhas Cayman, Granada, Monserrat, San Vicente e Granadinas, San Cristóbal y Nieves, Santa Luzia, Trinidad e Tobago, Belize, Panamá e Maldivas.
     
    Na Europa, estão reconhecidos como tal Andorra, Chipre, Gibraltar, Malta, Mônaco, Liechtenstein, Luxemburgo, San Mauricio, Ilhas Jersey e Ilhas Man.
     
    Seguem-se Emirados Árabes, Seychelles, Omã, Bahrein, Mauricio, Hong Kong, Macau, Brunei, Singapura, Ilhas Salomão, Niue, Vanuatu, Nauru, Ilhas Fiji, Ilhas Marshall e Libéria.
     
    A mencionada malha de paraísos fiscais e a indústria da evasão e fuga fiscal constituem o melhor exemplo da degradação e contaminação de um sistema econômico em benefício dos interesses dos poderosos, e com uma influência negativa para as economias emergentes.
    Cira Rodríguez César é chefa da Redação de Economia de Prensa Latina
  • O preço do petróleo e a recessão mundial

    O preço do petróleo e a recessão mundial

    Por que é que o baixo preço do petróleo é uma má notícia para a economia global?

    Nos Estados Unidos, a queda do preço do petróleo está a provocar um colapso na economia das regiões onde se desenvolveu o malogrado boom da extração de petróleo de xisto com a tecnologia da fratura hidráulica – Foto wikimedia
    Nos Estados Unidos, a queda do preço do petróleo está a provocar um colapso na economia das regiões onde se desenvolveu o malogrado boom da extração de petróleo de xisto com a tecnologia da fratura hidráulica – Foto wikimedia

    A queda do preço do petróleo devia ser uma boa notícia para a economia mundial. Afinal, os baixos preços do petróleo beneficiam os consumidores diretos: por exemplo, o setor dos transportes e a indústria petroquímica. E esse impacto positivo deveria traduzir-se numa injeção de adrenalina que traria crescimento e criação de emprego. Então, por que é que o baixo preço do petróleo é uma má notícia para a economia global?

    É verdade que a queda nos preços do crude deveria ter um efeito positivo sobre os preços de todo o tipo de bens. O petróleo é uma matéria chave que direta ou indiretamente entra na produção de quase todas as mercadorias que se produzem hoje em dia. Mas isso não quer dizer que automaticamente o efeito do colapso no preço desta matéria se traduza em reduções nos preços dos produtos finais. Tudo isso depende da importância do crude na estrutura de custos de cada produto e da estrutura de mercado em cada ramo da produção.

    Quanto à importância do petróleo na estrutura de custos há muitos mal-entendidos. Pensa-se, por exemplo, que o baixo preço do petróleo beneficia os produtores de energia elétrica. A realidade é que só 5 por cento da produção de energia elétrica no mundo é produzida pela queima de petróleo. E um dos países em que se concentra essa pequena percentagem é precisamente a Arábia Saudita, o principal causador do colapso de preços do crude. Nos Estados Unidos apenas 0,7 por cento da energia elétrica produzida provem da utilização de petróleo (enquanto 4,2 por cento são produzidas por turbinas eólicas). A redução do preço do crude não tem qualquer impacto na produção de energia elétrica.

    Por outro lado, na atualidade o preço do petróleo não está ligado aos preços do gás natural ou do carvão, que são as matérias que realmente contam no plano da produção de energia elétrica. No mundo, 23 por cento da eletricidade é produzida em centrais que queimam gás natural (nos Estados Unidos essa percentagem atinge os 28 por cento). Entre os anos 1998-2009 os preços de gás natural, carvão e petróleo estiveram estreitamente associados e moviam-se na mesma direção. Mas esse vínculo foi-se rompendo gradualmente, em parte porque o preço do gás de xisto caiu enquanto o preço do petróleo foi aumentando até 2014. O preço do carvão tem mantido uma tendência para a baixa, desde 2011, devido à concorrência de outras fontes de energia e ao persistente excesso de oferta pelos produtores na China. Isto é, os preços dos combustíveis fósseis que realmente contam em matéria de produção de energia elétrica já vêm mostrando uma tendência para a baixa desde há seis ou sete anos. Esse comportamento não tem sido suficiente para contrariar as tendências recessivas da economia mundial.

    Nos Estados Unidos, a queda do preço do petróleo está a provocar um colapso na economia das regiões onde se desenvolveu o malogrado boom da extração de petróleo de xisto com a tecnologia da fratura hidráulica. Um número importante de empresas que se financiaram em Wall Street, para desenvolver os seus agressivos planos de investimento, está hoje na bancarrota. As instalações de controlo da extração direta de petróleo de xisto caíram 70 por cento, desde que começou a queda do preço do crude há um ano e meio. E o impacto disto no setor financeiro é significativo. Por esse motivo, verifica-se uma estreita correlação entre as quedas na bolsa de valores e os anúncios sobre as reduções recorde do preço do crude. Tudo isto alimenta o debate sobre se o aumento na taxa de juro decretado pela Reserva federal foi prematuro ou não.

    Mas não são só os dependentes do fracking que estão a sofrer nos Estados Unidos. Os jazigos de gás natural proveniente do xisto na China constituem uma das maiores reservas a nível mundial. Mas o milagre da produção na China será afetado pelos baixos preços do gás natural e pelas importações provenientes dos Estados Unidos.

    Em geral, o colapso do preço do crude é visto mais como um mau sinal sobre o que vai acontecer na economia mundial. A queda acelerada do preço do petróleo no último ano coincidiu com reduções brutais nos índices das cotações bolsistas das principais praças financeiras do mundo. E aqui verifica-se algo inédito. A Arábia Saudita não pôde escolher um momento mais desfavorável para iniciar a sua guerra de preços com o fim de preservar a sua (dominante) faixa de mercado. No meio de uma recessão global, a descida nos preços do crude tem de se intensificar devido à redução na procura. Por isso hoje em dia a queda no preço do petróleo é um sinal de como a economia mundial se está a comportar mal.

    Artigo de Alejandro Nadal, publicado em La Jornada a 27 de janeiro de 2016. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net