Categoria: Filosofia e Questões Teóricas

  • “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

     

         No dia 20/06 ocorreu mais uma reunião do Coletivo de Conjuntura da Fundação Lauro Campos, com mesas pela manhã e à tarde. Coordenado por Gilberto Maringoni, foi a primeira atividade realizada na nova sede da fundação após a inauguração, ocorrida na sexta-feira (17/06).

         Pela manhã, o tema foi “A politização do Judiciário”. Compuseram a mesa Eloísa Machado de Almeida (FGV-SP), Silvio Almeida (Mackenzie) e Alysson Mascaro (USP).

       A professora de direito da Fundação Getúlio Vargas, Eloísa Machado de Almeida, centrou sua fala na caracterização e atuações do Supremo Tribunal Federal para avançar no debate sobre o tema proposto, buscando uma “análise mais pragmática da politização do judiciário, que vem se acentuado nesses últimos oito meses”.

          O Supremo Tribunal Federal, como instância máxima do Poder Judiciário, tem a prerrogativa de decidir sobre o que é ou não é constitucional, inclusive negando qualquer alteração na Constituição que, por sua leitura, possa ferir seus princípios. Se isto, nos últimos anos, representou o avanço de algumas pautas, como a permissão para o aborto do feto anencéfalo, o casamento e a união estável homoafetivas, entre outras pautas (em ações denominadas como contra-majoritária – já que não passariam pelo sistema político conservador como o nosso) por outro lado, ressaltou a pesquisadora, há a necessidade de se refletir sobre essa forma de atuação do STF.

     

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    (Parcela dos participantes da reunião do Coletivo de Conjuntura)

           “Se isto pode ser visto com uma função positiva para o país, por outro lado o tribunal vem sendo usado, desde 1988, como um grande tutor do sistema político”, atestou Eloísa. Os partidos perdedores do debate político acabam levando suas questões para o Judiciário, se valendo deste para mudar a lógica das votações, mesmo em questões que pertencem exclusivamente à esfera política. “Todas as reformas políticas, por exemplo, foram corroboradas pelo Judiciário. E aqui eu posso falar de ‘verticalização’, da proibição da doação empresarial para campanhas e também a ação que permitiu a existência do PSOL, que é a ação sobre a ‘cláusula de barreira’”, e continuou “o que é relevante nesse espaço de debate da Fundação, de formação, é refletir o quanto que isso é favorável a um partido fazer, ou seja, não fazer de uma forma ingênua, porque quando você desloca o tema que originariamente deveria se dar nas arenas do sistema político para as arenas do Judiciário você está certamente alterando a lógica de se tratar determinada decisão”, o que pode acarretar num processo de deslegitimação de seu próprio espaço de atuação, que é o espaço político, como se dissesse que “eu prefiro que onze juízes decidam do que eu comprar essa briga na arena política”.

         A grande participação do Judiciário no sistema político não é uma característica brasileira, sendo comum a provocação de Cortes Constitucionais por partidos em países que possuem uma “Constituição tão audaciosa”, informou, o que muitas vezes contribui para que o sistema político, sobretudo o Poder Legislativo, caia em descrença frente ao conjunto da população: “quando analisamos os índices de confiança do Judiciário, é impressionante que a população acaba confiando mais no Judiciário do que no sistema político; o que não faz nenhum sentido, porque temos um judiciário que atua de maneira seletiva, que serve a pessoas e a grupos muito específicos, sobretudo aos interesses financeiros. E isso é um grande problema do ponto de vista democrático, porque a população confia em um Poder que é pouco transparente, seletivo e não representativo”, alertou a professora.

         Do ponto de vista da seletividade, por exemplo, Eloísa foi tachativa ao afirmar que no Brasil as violações aos Direitos Humanos só se perpetuam porque o Judiciário participa para perpetuá-las. “Nós temos ainda um país misógino, racista, que mata as pessoas, que tortura os presos porque o Judiciário é o grande poder que renova e permite que essas violações continuem. Por isso é importante pensar para que serve o Judiciário no Brasil ao invés de dotar nossas esperanças em um Poder tão seletivo e pouco transparente”.

     

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    (Renato Roseno, deputado estadual pelo PSOL-CE, faz seu questionamento à mesa)

       O debate teve sequência com a intervenção de Sílvio Almeida, professor do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama, que logo de início questionou: “quando é que o Judiciário não foi politizado?”. Só é possível começar a falar em Poder Judiciário a partir das revoluções liberais que começam a fazer a separação entre Estado e Sociedade Civil. Assim, o Judiciário “sempre foi o fiador da ordem liberal”, e para entendê-lo é fundamental compreender três aspectos: como o liberalismo e o judiciário estão conectados de uma maneira que não permite compreender um sem compreender o outro; como a atuação do Poder Judiciário e as suas mudanças devem ser compreendidas por meio das transformações das atividades econômicas historicamente; e ver que os juízes são o produto mais bem acabado daquilo que eles mesmos dizem conter: da ideologia, e da ideologia liberal, da ideologia do capital – comprometendo seu discurso de imparcialidade.

       “Não existe golpe de Estado sem a participação do Judiciário, historicamente não existe isso”, lembrou o professor: “o Poder Judiciário sempre chancelou todos os golpes de Estado que ocorreram, inclusive aqui no Brasil”.

       Citando três exemplos históricos ocorridos no Judiciário dos Estados Unidos, Sílvio de Almeida lembrou de como essas transformações foram fundamentais para garantir a estabilidade política, lembrando que por estabilidade política deve ser entendido o bom funcionamento da ordem liberal. No caso brasileiro, voltando a Era Vargas, o professor lembrou da sua medida de aposentar compulsoriamente 100 juízes, além de reduzir o poder do Supremo Tribunal Federal.

       Sobre a chamada “independência do Judiciário”, Sílvio de Almeida afirma que essa bandeira esconde a orientação de que este Poder deve ser “independente em relação ao povo, e não às outras forças que atuam fortemente sobre ele”. E, por fim, atestou que “é uma ilusão liberal acreditar no Judiciário” e, assim, é necessário avançar “num debate político que estabeleça uma conexão com as questões do povo e com os anseios populares.”

     

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     (Armando Boito, professor da Unicamp, também participou do debate)

          Encerrando a mesa da manhã, Alysson Mascaro, professor de Direito da USP, foi claro ao dizer que não é a força que garante a propriedade, mas o Direito: “o mundo do Direito é exatamente o mundo que garante o capital e a propriedade privada, e ele só serve para isto. E como só serve para isto, e isto é chocante, não pode nem sequer ser contado assim, também não pode ficar nisto que é o fundamental: ele tem que ser salpicado de coisas que pareçam ser o contrário”.

         O professor apontou o que, na visão dele, seria uma contradição da esquerda em “defender mais direitos e nenhum retrocesso”, citando as bandeiras da preservação da CLT, criada na Era Vargas, e do FGTS, instituído durante o Regime Militar. A contradição residiria no fator de que “se nós defendermos os direitos, nós somos obrigados a defender a ordem”. E continuou, referindo-se ao PSOL, pedindo para que “um partido que tem socialismo no seu nome, precisa desta reflexão de que o Direito é um horror, e não que a atual fase do Direito é um horror”; e por isso que vivemos num momento no qual devemos “dobrar a aposta em uma luta política de esquerda: nossa luta é contra o capital e contra a ordem”, e de que “não devemos sacralizar o Estado de Direito”, já que o Estado é a forma do capital.

         Encerrando, Alysson afirmou que vivemos numa sociedade na qual o direito é hiperlouvado e a política hipercombatida, porque o direito deixa de permitir a existência de uma luta aberta e passa a permitir a existência de uma luta modulada. “E isto resultou numa geração de juristas, que é a geração que temos hoje, de pessoas absurdamente mal formadas, lixos intelectuais, mas que sabem muito bem procedimentos jurídicos mas são burríssimas em termos de horizontes políticos”. E, concluindo, afirmou que nós não devemos opor ao “direito” outro “direito”, ou “ao fim de tais direito, mais direitos. Nós devemos opor o contraste: o direito é o que é por causa do capital, então a nossa luta é contra o capital”. E assim, portanto, “a nossa luta tática do presente é desmontar este horror liberal que fala que é imparcial, mas imparcial nunca foi, nunca é e nunca será. Esta é a fórmula pela qual nós temos a pedra na mão no dia de hoje”.

         Seguindo a dinâmica das reuniões do Coletivo de Conjuntura, a palavra foi aberta aos participantes. Lembramos que as sessões do Coletivo ocorrem a cada 45 dias e são abertas a todos os interessados. Em breve, a Fundação Lauro Campos disponibilizará os registros completos das atividades e, para as próximas, fará a transmissão ao vivo pela internet.

     

     

  • O pacificador

    O pacificador

    Lula discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e pela democracia em São Paulo no dia 18 de março de 2016
    Lula discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e pela democracia em São Paulo no dia 18 de março de 2016

    A convite da professora Natalia Brizuela, participei há cerca de duas semanas do lançamento do dossiê especial da revista Film Quarterly (vol. 69, no. 3) dedicado ao legado do cineasta Eduardo Coutinho. O evento ocorreu no intervalo da apresentação de dois documentários de Coutinho, Boca de Lixo (1993) e Peões (2004), no prédio recém-inaugurado do Berkeley Art Museum and Pacific Film Archive (BAMPFA). Natália pediu-me pra introduzir o filme Peões ao público presente no mais novo museu da Universidade da Califórnia em Berkeley. Rapidamente, fiz alguns comentários sobre o método etnográfico “radical” de Coutinho e sua habilidade de condensar os dilemas da visão social de mundo dos subalternos em entrevistas traspassadas por um profundo sentido de dignidade humana.

    Além disso, busquei contextualizar historicamente o tema de Peões, isto é, o filme que, rodado em 2002, ano da eleição de Lula da Silva, Coutinho dedicou à trajetória da classe operária fordista do ABCD paulista. Observei como o documentarista foi hábil em restituir a agência histórica aos próprios trabalhadores. Afinal, tendo em vista o sucesso de Lula da Silva e da burocracia sindical de São Bernardo, muitas vezes não nos lembramos que foi aquela classe operária semiqualificada retratada nas telas por meio de algumas trajetórias individuais exemplares a verdadeira protagonista do ciclo das greves de 1978, 1979 e 1980. Os peões explicam o ativismo de Lula da Silva, mas Lula da Silva não consegue explicar o ativismo dos peões.

    Lembrei ao público que após o golpe de 1964, a ditadura civil-militar interveio nos sindicatos, perseguindo as lideranças comunistas do ABCD paulista e substituindo-as por antigos pelegos diversas vezes batidos nas eleições sindicais e usualmente alinhados aos setores conservadores da igreja católica. Paulo Vidal foi o mais bem-sucedido desses pelegos. Conhecido por entregar militantes de esquerda pra polícia e ameaçar quem falasse em greve, Vidal foi o predecessor de Lula da Silva na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O “sindicalismo autêntico”, como ficou conhecida essa corrente sindical, nada mais era do que uma tentativa extemporânea de negociar com as multinacionais da região pequenas concessões materiais ao estilo do business unionism estadunidense (sindicalismo de negócios) no qual a nova burocracia de São Bernardo espelhava-se.

    Batendo de cara com o total desinteresse das empresas em negociar com os trabalhadores, afinal, o golpe de 1964 serviu exatamente pra barrar as concessões materiais ao operariado conquistadas pelas greves do período populista, e pressionados pelo aumento da mobilização das suas próprias bases, a escolha de Lula da Silva como sucessor de Paulo Vidal em 1976 marcou o momento da renovação das velhas práticas pelegas de controle da insatisfação operária pela burocracia sindical. Diante da inevitabilidade da greve, Lula da Silva soube se reinventar politicamente, passando de instrumento do assistencialismo sindical à principal liderança de um movimento operário intempestivo e, até certo ponto, imprevisível.

    No entanto, o documentário de Coutinho mostra uma dimensão ainda mais sutil dessa história. Na realidade, o filme captou a relação dialética entre a insatisfação, os desejos e as iniciativas políticas dos peões, verdadeiros sujeitos de sua própria história, e a tentativa de controlar esta agência empreendida por Lula da Silva. Recorrendo a outros filmes da época, em especial, o já clássico Linha de Montagem (1982) de Renato Tapajós, Coutinho revelou por meio de detalhes – o choro, a ansiedade, a chantagem emocional e o pedido do voto de confiança –, o nascimento de uma liderança política ainda desconfiada de sua própria força. Ao mesmo, tempo, o cineasta mostrou como nesses instantes de fragilidade de Lula da Silva, os dilemas dos próprios operários em seu “fazer-se” história condensavam-se e encontravam um sentido mais ou menos consciente.

    Sabemos que daí surgiu um líder cuja legitimidade deriva do controle da insatisfação popular por meio de negociações que lentamente garantem pequenas concessões aos trabalhadores. Uma força social reformista a afiançar o armistício entre a autonomia dos subalternos e a presunção dos dominantes. Quando isso não é possível, sua utilidade tende a declinar até o ponto em que o estabelecimento de um novo pacto volte a ser uma opção crível. No mundo do trabalho, o colapso do armistício entre as classes geralmente vem sob a forma de uma onda grevista.

    De fato, de acordo com os últimos dados do Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG-Dieese), os trabalhadores brasileiros protagonizaram em 2013 uma onda grevista inédita na história do país, somando 2.050 greves. Isto significou em crescimento de 134% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 877 greves. Este número superou o ano de 1990, configurando um novo recorde na série histórica do SAG-Dieese. Em termos de horas paradas, tivemos 111.342 horas paradas, em 2013, representando um crescimento de 28% em relação ao ano anterior. Trata-se do maior número desde o ano de 1990, quando foram registradas 117.027 horas paradas.

    Assim, o país superou o declínio grevista das últimas duas décadas e o movimento sindical readquiriu certo protagonismo político. Em várias capitais, as greves bancárias tornaram-se rotineiras. Além disso, professores, funcionários públicos, metalúrgicos, operários da construção civil, motoristas e cobradores reconciliaram-se com a mobilização sindical entre 2013 e 2015. Um notável protagonismo da esfera privada tornou-se saliente, consolidando a tendência iniciada em 2012. Proporcionalmente, as greves da esfera privada representaram 54% do total, superando as greves da esfera pública.

    No tocante às greves ocorridas na esfera privada, por exemplo, a maior parte das greves defensivas (46%) esteve diretamente associada ao descumprimento de direitos sociais e trabalhistas por parte dos empregadores. Em comparação com o ano de 2012, nota-se um importante aumento (21,6%) na proporção do número de greves relacionadas ao pagamento de salários atrasados, um indício claro da deterioração das condições gerais de reprodução do regime de acumulação. Com um crescimento de 332% em relação a 2012, em apoio à tendência identificada acima, vale destacar a verdadeira explosão de greves ocorrida no domínio que acantona com mais frequência os grupos de trabalhadores não qualificados ou semiqualificados, terceirizados, sub-remunerados, submetidos a contratos precários de trabalho e mais distantes de certos direitos trabalhistas, isto é, o setor de serviços privados.

    Além de oito greves nacionais realizadas pelos trabalhadores bancários, nota-se, também, um particular ativismo existente entre os trabalhadores em turismo, limpeza, saúde privada, segurança, educação e comunicação. No entanto, a maioria das greves foi deflagrada por trabalhadores dos transportes. Além disso, é possível notar uma tendência semelhante quando observamos os trabalhadores do serviço público. Tanto em termos de administração direta quanto em relação às empresas estatais, o aumento mais expressivo das greves deu-se nos municípios.

    Nesse sentido, a atividade sindical ampliou-se para categorias diferentes daquelas já tradicionalmente mobilizadas. Aqui também a atividade grevista avançou na direção dos grupos de trabalhadores mais precarizados do Estado. Em termos gerais, considerando tanto a esfera privada quanto a pública, é possível identificar uma expansão do movimento do centro para a periferia em uma espécie de transbordamento grevista. Além da presença cada vez mais saliente das reivindicações defensivas nas pautas sindicais, este avanço das greves para a periferia dos diferentes setores econômicos revela uma forte aproximação do precariado urbano em relação à mobilização sindical.

    Diante do atual ciclo de greves, desconfio que, entre as incontáveis explicações para a atual crise política, a mais subestimada talvez seja essa: as classes dominantes simplesmente não precisam de uma burocracia sindical incapaz de controlar suas próprias bases. Sobretudo, no momento em que o único projeto realmente crível para os dominantes consiste em restaurar a acumulação capitalista aprofundando a espoliação social por meio do ataque aos direitos dos trabalhadores. Em suma, aos olhos dos dominantes, Lula da Silva tornou-se uma liderança embaraçosa, passível de ser encarcerada por uma razão qualquer, justificável ou não.

    Mas o que a burguesia brasileira parece ter subestimado na atual crise é exatamente aquilo que Eduardo Coutinho revelou tão bem em seu filme: os dilemas do “fazer-se” história dos subalternos condensam-se num significante ambivalente. E no último dia 18 de março, Lula da Silva ressurgiu à frente de uma multidão formada por 100 mil pessoas em plena Avenida Paulista. Diante de um golpe legislativo-midiático-judiciário em curso contra sua afilhada política, ele relembrou um país dividido e conflagrado qual seu papel histórico: ser o grande pacificador da luta de classes. Será suficiente para barrar o golpe? Aposto que não. Afinal, na atual crise orgânica brasileira, soluções mediadas perderam seu lugar. O cimento ideológico da redução da pobreza não é mais eficiente diante do quadro de aumento do desemprego e aprofundamento das desigualdades entre as classes. De fato, estamos diante do retorno ruidoso da luta de classes no país.

    No entanto, tendo em vista a atual volatilidade política, Lula da Silva soube entregar sua mensagem ao país. Dentro ou fora da prisão, se o golpe da direita avançar, ele irá liderar a resistência legalista. E se as classes dominantes decidirem improvisar uma solução negociada, novamente, será ele a afiançar o pacto conservador. Apoiando-se na mobilização dos trabalhadores organizados, sobretudo, Lula da Silva é transforma-se em uma força política incontornável. E o que quer que aconteça nos próximos meses no país, será ele – e não Sérgio Moro – que estará no centro do palco pronto a se reinventar politicamente, tal como ocorreu em 1978 em São Bernardo.

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    PARA APROFUNDAR A REFLEXÃO… 5 DICAS DE LEITURA DA BOITEMPO
    A legalização da classe operária, de Bernard Edelman, uma análise didática e aprofundada sobre como a institucionalidade jurídica burguesa enquadra e cerceia a luta popular procurando domesticar ferramentas como as greves e as representações trabalhistas em sindicatos, e partidos.
    A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, o estudo desbravador de Ruy Braga que analisa as novas configurações da luta de classes no Brasil de hoje e indicava já em 2012 como a despeito da relativa “satisfação” acusada pelas eleições presidenciais e da aparente estabilidade do modo de regulação proporcionada pelo “transformismo” petista, a hegemonia lulista encontrava-se assentada em um terreno historicamente movediço.
    Hegemonia às avessas: Economia, política e cultura na era da servidão financeira, organizado por Ruy Braga, Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, volume clássico do Cenedic sobre a forma avessa de dominação que configura a era lulista, inspirado em uma releitura de Gramsci e no artigo homônimo de Chico de Oliveira. Vem aí, em 2016, o novo volume do Cenedic sobre o Brasil atual Desigual e combinado: capitalismo e Modernização Periférica no Brasil do Século XXI, coletânea organizada por André Singer e Isabel Loureiro com reflexões de Ruy Braga, Maria Elisa Cevasco,Wolfgang Leo Maar, Cibele Rizek, Ana Amélia da Silva entre outros.
    De que lado você está, de Guilherme Boulos, é um livro de intervenção de leitura obrigatória para pensar (e transformar) o Brasil de hoje, com reflexões de fôlego sobre a conjuntura nacional recente que mostra a zona cinza em que a disputa polarizada se encontra.
    Revista Margem Esquerda #22, com homenagem a Eduardo Coutinho, escrita por Felipe Bragança, além de dossiê especial dedicado aos 50 anos do Golpe.

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    Ruy Braga

    Ruy Braga

    Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

    Fonte: Blog da Boitempo, 28/03/2016

  • Castelo de cartas marcadas

    Castelo de cartas marcadas

    House_of_CardsA série House of Cards, da Netflix, é comentada por políticos e jornalistas como exemplo do tipo de política que a democracia burguesa pratica. Não com essas palavras, é claro. Mas soubemos por informantes da Casa Branca que Obama é fã da ficção televisiva. Na semana passada, o senador Aécio Neves comentou que a série é superada pela realidade brasileira, o que indica que ele também a assiste. Metade do planeta por via da Smarth TV pode acessar a história de Frank Underwood, o carreirista que chega à presidência dos EUA usando todos os tipos de expediente.

    House of Cards é uma adaptação do romance homônimo escrito pelo inglês Michael Dobbs, inspirado em Shakespeare. O bardo já nos havia prevenido que o poder é adquirido após uma luta que corrompe os oponentes até o imprevisível.

    Mas como diversão e mesmo reflexão vale a pena assistir a Kevin Spacey derrubando seus antagonistas por todos os meios, inclusive o assassinato. Ele é um MacBeth… Um Nixon… Ainda não tivemos alguém desse nível no Brasil… Felizmente…

    Flávio Braga é escritor

  • A busca de sentido

    A busca de sentido

    filho_de_SaulOs horrores dos campos de concentração nazistas colocaram o século XX ao lado da Inquisição na Idade Média e aterrorizam e envergonham a humanidade até hoje. Alguns momentos do cinema buscaram retratar a sordidez humana desses centros de extermínio, mas nenhum deles chegou perto de O filho de Saul, de  László Nemes, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.  Mas o que torna essa obra tão poderosa? Entendo que há uma evolução na linguagem cinematográfica presente neste filme. É a narrativa na primeira pessoa. Toda a cena se dá com o protagonista em PP (primeiro plano). O espectador está sempre junto a ele, vivendo o seu terrível drama. O quadro fechado nos permite ver apenas trechos de imagens dramáticas, partes de corpos amputadas, incêndios, assassinatos… Se a opção tivesse sido o PA (plano Americano) o filme seria inviável para o público médio. A trilha sonora é muito importante num filme assim. Ouvimos os gritos, as vozes desesperadas, o choro das crianças, os disparos e montamos com a nossa imaginação os horrores que não visualizamos.

    Praticamente não há diálogos no filme, apenas troca de palavras quase sem sentido, ordens, gritos. O protagonista, que trabalha ajudando a se desfazerem dos cadáveres é também um prisioneiro condenado. Ele faz isso sabendo que será morto nos próximos meses. Seus colegas planejam um levante, mas ele imagina ter encontrado o corpo do próprio filho e busca um Rabino que o ajude na cerimônia de enterro. Mas isso não é permitido. Os cadáveres são incinerados. Ele esconde o corpo do menino e continua nessa busca insana. Fica para o espectador a dúvida se, de fato, o garoto era seu filho ou sua determinação é apenas em busca de um sentido diante do absurdo real.

    Flávio Braga é escritor

  • Aprendendo a sonhar

    Aprendendo a sonhar

    O_abraço_da_serpenteO abraço da serpente, filme colombiano do diretor Ciro Guerra é uma primorosa obra de arte, mas também um estudo antropológico e uma visão histórica da colonização na América Latina.

    A base para o roteiro foram anotações de Theodor Koch- Grünberg, um etnólogo alemão que estudou os nativos do rio Xingu, Negro e Orinoco. Mas o filme, como toda obra de arte poderosa, vai muito além, podendo ser visto como um estudo da relação do homem com a natureza num plano muito mais “astral”, para usar um termo caro a geração beat.

    O “branco” colonizador que invadiu as florestas queria as riquezas naturais e, na região específica abordada, o alvo era a borracha. Os homens e mulheres quase pelados morando em ocas e se guiando pelas estrelas eram, para o colonizador, selvagens mais próximos dos animais do que de “deus”. Era preciso torná-los cristãos, nem que fosse pela força do chicote. E assim foi feito. A maioria das tribos pereceu ou se transformou.

    O filme trabalha dois momentos em paralelo: a viagem de Theodor na primeira década do século XX e, quarenta anos após, a viagem de um segundo explorador que está atrás de uma planta que ensina a sonhar. Pode-se fazer uma analogia com o Santo Daime, preparado de vegetais que foi descoberto na floresta amazônica e hoje tem seguidores aos milhares no mundo inteiro. O personagem que une os dois “brancos” é Karamakate, um xamã perdido de seu povo, que vive só.

    A obra permite um longo estudo crítico; não é o caso do presente texto, mas vale o registro de alguns momentos. O branco e o índio deslocam-se numa canoa em algum ponto perdido da selva em busca da planta e a correnteza está forte. O índio sugere que ele jogue as bagagens no rio e ele se recusa, indignado. Acaba livrando-se do peso, mas o que fica claro é o apego do “civilizado” à propriedade, as “suas coisas” como o pesquisador nomeia as malas que carrega. Outro ponto interessante é o único personagem brasileiro da narrativa, um falso Cristo explorando a boa fé dos índios.

    Imperdível, O abraço da Serpente. A trilha sonora também é espetacular. O primeiro filme colombiano que assisti e um dos melhores de minha vida!

    Flávio Braga é escritor

  • Adeus ao “macho”

    Adeus ao “macho”

    Carol_filmeDesde a segunda metade do século XX, Hollywood colocou-se como provedora do perfil moral do Ocidente. Leva à tela os comportamentos que são aceitos pela maioria de nossa classe média e burguesa. Um dos conceitos trazidos pelo cinema americano foi o perfil de macho e fêmea diante do amor e do sexo. Gays e lésbicas só existiam como estereótipos quase sempre satirizados. Isso está mudando.

    O primeiro sinal quanto ao desejo de mulheres pelo seu próprio gênero é o filme Carol, concorrente ao Oscar, do diretor Todd Haynes. O filme é baseado no livro “The Price of Salt” de Patricia Highsmith de 1952. A autora, que pessoalmente tinha preferência por mulheres casadas, é autora de livros policiais famosos e essa investida no campo da sexualidade é a sua única obra que não havia chegado às telas.

    Há ainda, A garota dinamarquesa, de Tom Hopper, que reconstitui a vida do homem que fez uma das primeiras operações para troca de sexo, na década de vinte.  Eddie Redmayne interpreta um pintor que se descobre mulher ao posar para sua esposa, também pintora.

    Até agora os gays e lésbicas eram caracterizados como efeminados (no caso dos homens) e brutos (no caso de mulheres). Algo como cães de raça ou feras no zoológico. Pairava sobre eles uma “anormalidade suportada”. É isso o que está mudando.

    O interessante vai ser observar como os conservadores de todo o mundo e especialmente os americanos vão se comportar diante dessa mudança.  Eles acabarão tendo que engolir “viados” e “sapatonas” desfilando na tela diante de seus olhares contrariados.

    Flávio Braga é escritor

  • Blue Jasmine, a tragicomédia dos trapaceiros

    Blue Jasmine, a tragicomédia dos trapaceiros

    Flavio Braga
    Flavio Braga

    A trajetória de Woody Allen, como a de Chaplin e dos irmãos Marx e outros cineastas americanos voltados para a comédia, nasceu no palco dos teatros, em stand up comedys. A chegada do cinema divulgou seus trabalhos ao resto do mundo. Mas Allen é um intelectual, e como cineasta viveu forte influência dos gênios de sua época, especialmente Bergman e Fellini. Alguns de seus primeiros filmes, classificados como homenagens a esses cineastas eram na verdade tentativas de trilhar caminhos mais complexos. Nunca fez feio, mas seu público sempre o viu como o comediante brilhante que escreve suas próprias estórias.

    A idade reduziu bastante a sua capacidade histriônica e Allen voltou a mirar em objetivos mais altos, criou obras de arte como Tiros na Broadway e Match Point onde a comédia e o drama foram se fundindo. Blue Jasmineé o ponto alto desse momento. Cate Blanchett é a ex mulher de um trapaceiro internacional, interpretado por Alec Baldwim. Inspirado em Bernard Madoff, que administrava uma pirâmide financeira bilionária, seu personagem vive como um magnata, cercado de luxo e das mais belas mulheres. Cate é sua esposa e entra em desespero quando ele lhe informa que será trocara por uma jovem mais bela. Seu impulso a faz ligar para o FBI e entregar o marido. Ele é preso e se suicida na cadeia, mas ela também perde tudo. Arrepende-se, mas é tarde. Sua única saída é ir morar com a irmã pobretona da Califórnia. Essa personagem causa ao espectador sentimentos ambíguos. Seu desprezo pelo entorno e auto-comiseração a fazem um dos personagens mais desprezíveis e frágeis da história do cinema. Cate Blanchett está magnífica no papel e o filme coloca Allen ao lado daqueles diretores que ele desejou imitar no início da carreira. Hoje ele é um deles.

    Flávio Braga é escritor

  • Marx, Gramsci e o poder: dois marxismos?

    Marx, Gramsci e o poder: dois marxismos?

    Marx estudou, ao mesmo tempo, tanto o processo de exploração quanto de dominação. Sua teoria foi, contudo, castrada e reduzida unicamente a um deles. Para alguns marxistas, bastaria mudar a propriedade jurídica das empresas para criar uma nova sociedade. A debilidade dessa concepção hoje salta à vista.1

    Uma das mais importantes obras de Marx e que mais fortemente enseja interpretações mecanicistas sobre o processo histórico, é a famosa Contribuição à Crítica da Economia Política. Em sua introdução, ele afirma que:

    Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade: estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.2

    Da leitura apressada dessa passagem, poderíamos prontamente dividir a sociedade em duas dimensões dissociadas: de um lado a economia, a “base” ou a “infraestrutura” das relações sociais; de outro, a política, a “superestrutura” que se ergue a partir das relações sociais de produção e que tem a função de assegurar sua reprodução. Marx seria, assim, apenas mais um dos pensadores cujo modelo dicotômico se baseava num “estado de natureza” (onde primavam a economia e o privado) e num “estado civil” (onde estariam a política e o público).3 Com isso, muitos críticos de Marx afirmaram inexistir em sua obra uma teoria da política e do poder.

    Bobbio, porém, contesta essa posição, ao lembrar que sua primeira obra de fôlego foi precisamente um comentário crítico à seção sobre o Estado da Filosofia do Direito de Hegel, hoje conhecida como Crítica da filosofia do direito de Hegel.4 Além disso, lembra ainda que, embora não exista uma obra de Marx que trate especificamente do Estado, tampouco podemos afirmar que seus escritos não possuam passagens esclarecedoras de seu pensamento a esse respeito.

    Partindo da crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx apresenta as linhas gerais de uma teoria do Estado com base na crítica da filosofia política hegeliana (notadamente, ao método especulativo). Como desdobramento, ele apresenta os elementos de uma teoria do Estado burguês em particular, uma teoria do Estado de transição e uma teoria da extinção do Estado.5 Nos Manuscritos Econômicos filosóficos (1844) e na Ideologia Alemã (1845) Marx retoma o tema acentuando a relação subordinada do Estado em relação ao sistema social, afirmando que “o modo de produção e a forma de relações, que se condicionam reciprocamente, são a base real do Estado. (…) Estas relações reais não são absolutamente criadas pelo poder do Estado; elas são o poder que cria o Estado”.6 (grifo nosso). Para Marx, portanto, a dependência do Estado em relação à sociedade civil manifesta-se no fato de que esta é o lugar onde se formam as classes sociais e se revelam seus antagonismos.7 Por isso sintetizaria sua visão de Estado na afirmação de que ele é “(…) a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e em que se resume toda a sociedade civil de uma época”.8

    Como vimos, Marx tem mais a dizer a respeito do que permite supor a célebre afirmação de que o Estado não passaria de um “comitê de negócios da burguesia”, formulada no Manifesto Comunista (1848).
    Para Bobbio nem Marx, nem nenhum marxista – como Lênin, por exemplo – desenvolveram algo digno de ser chamado de uma “teoria do Estado”. Todo o marxismo careceria de uma teoria propriamente política. Seu argumento poderia, no substancial, ser sintetizado nestes termos: a inexistência de uma teoria do Estado ou do poder em Marx se dá pelo interesse excludente dos teóricos marxistas em elucidar as questões imediatas relacionadas à conquista do poder; pelo caráter transitório e breve que teria o estado socialista; e pelos efeitos do que Bobbio denominara “o modo de ser marxista” no período histórico posterior à Revolução russa e, principalmente, à Segunda Guerra Mundial.9

    Outros autores, porém, consideram incorreta a abordagem de Bobbio. Isto porque, nenhum aspecto ou dimensão da realidade social pode teorizar-se à margem – ou com independência – da totalidade na qual se constitui. É impossível teorizar sobre “a política” como o fazem a ciência política e o saber convencional das ciências sociais, assumindo que ela existe numa espécie de limbo posto a salvo das realidades da vida econômica.10 Como recordava reiteradamente Antônio Gramsci, as separações precedentes somente podem ter uma função “analítica”, sendo recortes conceituais que permitam delimitar um campo de reflexão a ser explorado de um modo sistemático e rigoroso, mas que de maneira nenhuma podem ser pensados como realidades autônomas e independentes.11

    Assim, como afirma Kohán, o poder e o Estado não vêm “de fora”, “de cima” (segundo uma difundida metáfora espacial), “da superfície”, para legitimar algo já previamente formado e maduro, já produto terminado, antes que intervenham as relações de poder e atravessem tudo. Em consequência, devemos considerar que a obra de Marx nos oferece poderosas razões que não nos permitem pensar as relações de poder como uma esfera fechada ou circunscrita unicamente na “superestrutura”.12

    Daí que a fissura que muitos defendem existir entre o pensamento de Marx e Gramsci sobre o poder e o Estado nos parece falsa. Gramsci aprofunda sobre as bases do pensamento de Marx um entendimento que vai no mesmo sentido – o de totalidade. A diferença, segundo Carlos Nelson Coutinho, é que Gramsci – dando como suposto que a análise da economia já havia sido feito por Marx e Lênin – se dedicou mais fortemente a desenvolver de modo criativo os aspectos propriamente políticos da teoria marxista que haviam sido tratados superficialmente pelo economicismo da Segunda Internacional Socialista (e voltariam a sê-lo na época de Stálin).13 Desse modo, Gramsci surge como um crítico da política na exata medida em que Marx surgira, pouco menos de um século antes, como um crítico da economia, buscando desvendar as leis de funcionamento do capitalismo. Mas como destaca Coutinho, Gramsci não coloca a política acima da economia. Nas palavras do pensador brasileiro:

    Para compreender isso, entretanto, é preciso efetuar outra precisão terminológica: novamente de acordo com Marx, Gramsci não concebe a economia como sinônimo de relações técnicas de produção, como o fazem – e por isso merecem a dura crítica gramsciana – tanto Bukhárin quanto Achile Loria. Para Gramsci, a economia aparece não como a simples produção de objetos materiais, mas sim como o modo pelo qual os homens associados produzem e reproduzem suas próprias relações sociais globais.14

    No dizer de Gramsci, estrutura e superestrutura formam um “bloco histórico” onde a política é resultado do conjunto das relações sociais de produção – não como a imposição mecânica de resultados fatais – mas condicionando as alternativas que se colocam à ação do sujeito.15 Isso não significa que Gramsci não considere possível um relativo grau de autonomia das esferas da superestrutura. Daí que ele enfatiza – ao contrário do marxismo estruturalista que surgirá anos mais tarde – a possibilidade de conquista da hegemonia política por parte de uma classe antes mesmo da tomada do poder. Neste sentido Gramsci supera Marx, mas não em sentido contrário. Prova disso, é a forma como também enfatiza a perspectiva da extinção do Estado como objetivo estratégico da luta política e econômica das classes dominadas. Para ele, essa extinção significa o desaparecimento progressivo dos mecanismos de coerção e a “reabsorção da sociedade política pela sociedade civil”.16 Com isso, as funções sociais da coerção e da dominação seriam gradualmente substituídas pela hegemonia e pelo consenso, demonstrando as semelhanças e continuidades nas perspectivas que Gramsci e Marx tinham em relação ao Estado e sua extinção, ainda que o pensador alemão tenha desenvolvido muito menos a questão.

    Nicos Poulantzas, numa de suas últimas obras, apresentou como síntese de seu estudo sobre o pensamento de Gramsci a formulação de que “o Estado é a condensação material de uma correlação de forças entre classes e frações de classe, tal como se expressa, sempre de modo específico, no seio do próprio Estado”.17 Essa seria a consideração complementar, e não contraditória, de Gramsci em relação a Marx: o Estado expressa no seu interior as contradições da própria sociedade, não deixando de ser, portanto, instrumento à serviço da dominação política.

    A grande “descoberta” de Marx (e Engels) no campo da teoria política foi a afirmação do caráter de classe de todo fenômeno estatal, o que os levou a confrontar Hegel e “dessacralizar” o Estado. Porém, Marx não pode conhecer o capitalismo que se desenvolveria no Ocidente, com grandes sindicatos, partidos de massa e eleição de parlamentares pelo sufrágio universal. Por isso, Gramsci “complementa” análise de Marx ao introduzir a novidade da hegemonia – já abordada por Lenin – que recebe agora uma base material própria e um espaço autônomo e específico de manifestação: um Estado ampliado e, portanto, mais permeável aos conflitos de classe disseminados na sociedade.18

    NOTAS:

    1 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 1.

    2 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 11.

    3 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 5.

    4 BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 150.

    5 Ibid., p. 151.

    6 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Editora Centauro, 1982.

    7 BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 158.

    8 Ibid., p. 159.

    9 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 5

    10 BORON, Atílio. Teoria política marxista ou teoria marxista da política. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas.  BORON, Atilio A.; AMADEO, Javier; GONZALES, Sabrina. 2007. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/campus/marxispt/cap. 6.doc

    11 GRAMSCI, Antônio. Cuadernos de la Cárcel . México: ERA/BUAP, 1999.

    12 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, p. 29.

    13  COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 90.

    14 Ibid., p. 95.

    15 Ibid., p. 97.

    16 Ibid., p. 138.

    17 POULANTZAS, Nicos. L’Etat, le pouvoir, le socialisme. Paris: PUF, 1978, p. 147.

    18  COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 128.

  • O preço da novidade

    O preço da novidade

    mercado_de_notíciasA notícia como produto é o tema do documentário Mercado de Notícias, de Jorge Furtado. A marca do diretor está presente na inserção dos elementos históricos que constituem o jornalismo. Trechos da peça The staple of news de Ben Jonson, encenada em 1625 fazem o contraponto às entrevistas que um grupo de jornalistas concedeu individualmente ao documentarista. Os escolhidos são quase todos da grande imprensa: Bob Fernandes, Geneton Moraes, Cristiana Lobo, Jânio de Freitas, José Roberto de Toledo, Raimundo Pereira, Renata Lo Prete, Mino Carta, Luis Nassif e Maurício Dias. A seleção demonstra que Furtado pretendeu opor as mídias contra e à favor ao governo do PT. O expediente funcionou até certo ponto. Mas o que torna o filme realmente interessante é a evolução do conceito de notícia como mercadoria. O fato abordado, quase sempre filtrado pela posição da “fonte”, é refeito como notícia, elevado ao maior teor possível em sua capacidade de impacto. O resultado muitas vezes é falso e em alguns casos, ridículo. O filme destaca, entre outras, a matéria sobre a tela de Picasso numa parede do INSS. A óbvia reprodução é elevada a categoria de original de custo milionário em meia página da Folha de São Paulo. Erros desse calibre são o menor dos males que infestam o jornalismo capitalista. O viés ideológico é problema mais sério. Interesses ligados aos donos dos meios de comunicação estão acima de tudo o mais. O personagem principal da peça de Ben Jonson, encenada parcialmente no filme, chama-se Pecúnia e é representada por uma bela atriz. Irresistível, assim como na vida real.

    Flávio Braga é escritor