Categoria: Habitação e Saneamento

  • Síntese dos debates do Ciclo “Se a Cidade fosse Nossa”

    Síntese dos debates do Ciclo “Se a Cidade fosse Nossa”

         A fundação Lauro Campos, em parceria com diretórios estaduais e municipais do PSOL, realizou uma série de eventos buscando contribuir com a discussão programática do partido e ajudar na apresentação de propostas visando as eleições municipais de 2016.

         Foram dez atividades realizadas em oito cidades brasileiras, que contou com a participação de pesquisadores, estudiosos e militantes dos eixos temáticos escolhidos para o aprofundamento da discussão. Rio de Janeiro, Curitiba, Nova Iguaçu, Fortaleza, Salvador, Recife, Belém e São Paulo sediaram atividades.  

         Confira a síntese de cada discussão realizada pelo Ciclo “Se a Cidade fosse Nossa”:

     

     

     

    Cidades do negócio vs. cidades rebeldes

    Local: Rio de Janeiro – RJ

    Participantes: David Harvey (geógrafo), Juliano Medeiros (presidente da FLC) e Edmilson Rodrigues (deputado federal – PA)

         Tivemos a oportunidade de apoiar o diretório carioca do partido, recebendo o  professor David Harvey, figura destacada do pensamento marxista e mais importante  geógrafo da atualidade. Em duas conferências mais uma aula pública, mostrou como a cidade é o espaço privilegiado de reprodução ampliada do capital, e destacou como os movimentos sociais estão procurando outras formas de organização e articulação para enfrentar a cidade dos negócios.

         O capitalismo em crise tenta resolver seus problemas através do avanço sobre as cidades para transformá-las em ativos financeiros. É a lógica de que a cidade não deve servir para as pessoas, mas para os negócios.

         Há uma enorme irracionalidade do capitalismo e na política. Como lembrou, em tom de brincadeira:  “dizem que nós, marxistas, somos insanos. Insanos são os capitalistas, que defendem esse modelo de cidade feita para especular, e não um modelo decente para as pessoas morarem com dignidade”.

         E continuou: “a solução não é abandonar o processo político, mas reconstruir o sistema. Precisamos de uma revolução política. Nos dizem que a única solução para as nossas dificuldades é mais capitalismo. A verdadeira resposta é nada de capitalismo. Na esquerda, a base tem que ser popular e estar no centro do processo político.”

     

    Tema 1: Saúde

    Local: Curitiba – PR

    Participantes: Bernardo Pilotto (setorial de saúde do PSOL), Lidia Cardieri (socióloga) e Melissa Pereira (Fiocruz)

         A saúde é um dos principais problemas dos municípios e dos cidadãos. A constituição federal estabelece que é competência do município a atenção básica e os serviços locais (em parceria com o estado e a união), o estabelecimento de uma política municipal de saúde, que invista ao menos 15% do orçamento local, e os laboratórios de exames e hemocentros. É muita coisa e os recursos são poucos.

         As restrições financeiras e as imposições da lei de responsabilidade fiscal têm trazido dificuldades adicionais. As administrações em geral, independente da orientação ideológica do partido, tem apostado em formatos de terceirização de serviços e de gestão, precarizando as condições de trabalho e retirando o caráter público do serviço. Para o PSOL, a ideia é fortalecer o SUS e a saúde pública, gratuita e de qualidade, bem como apostar na valorização do profissional, sabendo que sua dedicação e competência podem fazer a diferença.

         Como ressaltou Bernardo Pilotto, “é muito importante que o PSOL construa programas de governo na área de saúde antenados com as lutas de nosso povo nessa área, defendendo a ampliação e desprivatização do SUS. Na gestão municipal, é possível fazer muitas políticas de prevenção e promoção da saúde e é nessa área que devemos ter foco.” A própria melhora das condições de vida da população, com investimentos em saneamento básico, melhorias no transporte público e mais opções de lazer podem ser encarados como política de prevenção.

         Além disso, destacamos um assunto dentro da atenção básica: a saúde mental (junto da política de drogas), onde o município tem papel proeminente. Trata-se de debate com crescente relevância da sociedade e que traz a discussão sobre cuidado e o acolhimento. Aqui, o PSOL reafirma seu compromisso com a luta antimanicomial e com as práticas de redução de danos enquanto diretrizes para nossas políticas locais, focando sua atenção no estabelecimento e qualificação dos CAPS.

    Propostas

    • Ampliar os serviços do SUS e combater a privatização da saúde buscando rever os contratos de serviços e gestão
    • Melhorar as condições de trabalho e salários dos servidores
    • Foco na saúde básica, com fortalecimento das equipes de saúde da família
    • Políticas de prevenção e de informação
    • Construção, ampliação e melhorias dos CAPSs
    • Políticas sobre drogas de inclusão social e redução de danos.

     

    Tema 2: Segurança e direitos humanos

    Local: Curitiba – PR

    Participantes: Juninho (presidente do PSOL-SP e membro do Círculo Palmarino) e Orlando Zaccone (delegado e membro da Leap – Law Enforcement Against Prohibition).

         O desafio para o PSOL é estabelecer uma política de governo baseada no mais amplo respeito aos direitos humanos e no combate à todas as formas de opressão. Essas questões, como apontado pelo Juninho, estão relacionadas à questões estruturais que marcam a sociedade brasileira: a profunda desigualdade social, a cidadania restrita e a violência como forma de controle: “a manutenção desses privilégios de acumulação de riqueza e essa cidadania restrita se mantém através da violência”.

         Essa formação social leva a uma atuação do estado  baseada no controle social, dentro da lógica do combate ao inimigo, do punitivismo penal, da gentrificação e da exclusão social. Ressaltou Orlando Zaccone: “então, a questão da cidadania que o Juninho trouxe mostra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não contemplou essa distinção entre cidadão humano e não cidadão inimigo. O inimigo hoje não é o cidadão, ele é construído dessa forma, pelo discurso: ´direitos humanos para humanos direitos´. E esse nosso cidadão é construído como inimigo, e diversas fatores vão ser contemplados nessa não cidadania, nessa construção de inimigo. E o tráfico de drogas hoje é a grande construção que se faz dessa figura mítica do inimigo que perde toda proteção do ambiente social”.

         A política de segurança do PSOL precisa encarar a discussão da segurança e da violência como produto da desigualdade social: “a violência não será combatida com mais aparato e com mais violência, mas sim a partir de uma dinâmica de desenvolvimento real, de distribuição de riqueza, de desenvolvimento social”, reforçou Juninho.

    Propostas:

    • Políticas de proteção aos direitos humanos e combate às opressões
    • Pelo fim do caráter atual “militarizado” das Guardas Civis Metropolitanas e reforço da atuação comunitária
    • Foco em políticas de revitalização dos espaços e de combate à desigualdade

     

    Tema 3: Poder local nas periferias e no interior

    Local: Nova Iguaçu – RJ

    Participantes: Carlos Vainer (urbanista), Sandra Quintela, Glauber Braga (deputado federal – RJ), José Cláudio Souza Alves (sociólogo/UFRRJ), Josemar Carvalho (geógrafo/São Gonçalo-RJ), Leci Carvalho (pedagoga e presidenta do PSOL-Nova Iguaçu,), Cid Benjamin (jornalista) e Álvaro Neiva (presidente do diretório estadual do Rio de Janeiro)

         As políticas públicas não podem se resumir às capitais. Mesmo quando pensamos nelas, é decisivo incorporar as regiões metropolitanas no debate, porque para as pessoas as fronteiras entre os municípios muitas vezes representam impedimentos e dificuldades. Para Carlos Vainer é preciso superar as divisões baseadas em municípios, muitas vezes incorporadas pelos próprios partidos que têm viés contra-hegemônico. “Sou a favor do comitê metropolitano. Nós queremos os impostos da Barra da Tijuca sendo aplicados em Nilópolis (…) O poder é a capacidade de articular escalas, sejam elas globais, nacionais ou locais”, afirmou Vainer.

         O programa do PSOL é construído em parceria com os movimentos sociais. Sandra Quintela, economista do PACS (Políticas Alternativa para o Cone Sul), lembrando seus vínculos com a Baixada, citou exemplos de embates como os comitês em Nova Iguaçu contra a ALCA, pescadores da Zona Oeste do Rio contra a TKCSA, Comitês Populares denunciando as políticas de exclusão relacionada à Copa e às Olimpíadas. Para Sandra, “o debate sobre poder local não pode abrir mão de fazer as disputas de classe, afinal, o capital é global”.

         Fechando a primeira parte do debate, o deputado federal Glauber Braga (PSOL/Nova Friburgo-RJ) falou sobre as relações entre institucionalidade e resistência nas ruas.  “Somos o partido que toda sexta-feira está em praça pública no Centro do Rio. Temos que construir os programas e prestar contas nas praças, não para negar o poder representativo que hoje existe, mas por entender que ele não dá conta de um projeto de ruptura”, afirmou Glauber.

       Na parte da tarde o debate contou com a participação dos professores José Cláudio Souza Alves (sociólogo/UFRRJ), Josemar Carvalho (geógrafo/São Gonçalo), e Leci Carvalho (pedagoga e presidenta do PSOL-Nova Iguaçu,); do jornalista Cid Benjamin.e do presidente estadual do PSOL-RJ, Álvaro Neiva. Em pauta, as particularidades da militância na Baixada e na periferia em geral, os problemas na segurança e no serviço público e os desafios da luta institucional, entre outros temas.

    Propostas:

    • Políticas integradas para Região Metropolitana – mobilidade urbana, segurança pública, saneamento básico, saúde etc
    • Criação de comitês metropolitanos e de laços entre os governos e os cidadãos dessas regiões

     

    Tema 4: Cidades Negras

    Local: Salvador-BA

    Participantes: Samuel Vida (UFBA), Linesh Ramos (professora) e Dennis Oliveira (USP)

         Para o PSOL o racismo é parte estrutural da formação social do país e da luta de classes. Como destacou o professor Dennis de Oliveira,  o “racismo é a ideologia que vai definir quem tem e quem não tem patrimônio e renda; o racismo que define quem é e quem não é cidadão e é o racismo que define quem é o autor e quem é a vítima da violência. Ele vai ser o elemento que vai justificar essa clivagem que acontece pela lógica do Estado brasileiro”.

         Do ponto de vista da gestão do Estado e das políticas públicas, enfrentar o tema do racismo institucional é decisivo para uma gestão que quer combater o racismo estrutural. Para Samuel Vida, “falar de racismo institucional é tentar entender como esses mecanismos operam de formas distintas e com várias roupagens, podendo ocorrer, inclusive, em espaços governados e administrados por pessoas negras”.

         Da mesma forma, destacamos a importância de abordar esse tema de forma intersetorial, com conexões com a questão das mulheres em especial: “o empoderamento das mulheres negras é fundamental à luta democrática. O racismo atua no sentido de manter a faxina ética. Não existe socialismo e liberdade se não tivermos o fim do racismo”, afirmou Linesh Ramos.

         Para o PSOL a temática do combate ao racismo não pode se resumir às ações de uma pasta específica, devendo estar presente em todas as ações institucionais e políticas públicas, além das políticas específicas.

    Propostas:

    • combate ao racismo institucional
    • combate à violência contra o jovem periférico
    • combate à violência contra a mulher negra

     

    Tema 5: Comunicação

    Local: Fortaleza-CE

    Participantes: Aldenor Jr. (ex secretário de comunicação de Belém), Roger Pires (coletivo Nigéria) e Helena Martins (coletivo Intervozes)

         Segundo a Unesco “todas as pessoas têm o direito de produzir, receber e fazer circular informações”. Essa concepção é mais do que garantir a liberdade de expressão, é pensar em formas e políticas que garantam a todas as pessoas o direito de acessar, produzir e difundir informações e cultura. Esse direito, no entanto, é negado pelo alto grau de concentração da propriedade dos meios de comunicação, inclusive em âmbito municipal (donos de rádios e jornais locais são ligados ao poder econômico).

         Junto dos movimentos sociais, é preciso pensar outras formas de comunicação e de identidade visual. Para Roger Pires, a comunicação no âmbito municipal reflete a segregação existente na própria cidade: a representação dos centros é hegemônica, enquanto que as periferias não se apresentam representadas nos grandes veículos: “qual é o Ceará que nós vemos na televisão?”, questionou.

         Mais do que as políticas específicas de comunicação, é preciso ter uma linha de atuação militante, que contribua para a organização popular e faça o enfrentamento com o pensamento e as forças hegemônicas, na direção da ampliação da participação popular. Assim, a comunicação precisa ser feita “a partir do olhar ‘dos de baixo’, como uma ferramenta para educar, para organizar e para politizar o povo”.

    Propostas:

    • wi fi livre e incentivo à produção popular
    • incentivo à distribuição e circulação da produção popular
    • incentivo à comunicação popular, jornais de bairro, rádios comunitárias, produção local
    • comunicação militante com engajamento social

     

    Tema 6: Meio ambiente

    Local: Fortaleza – CE

    Participantes: Márcio Astrini (Greenpeace) e Alexandre Araújo (PBMC – Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas)

         Pensar em outro modelo de desenvolvimento, sustentável e que respeite todas as formas de vida. O Ecossocialismo, ou qualquer outro nome que se queira dar para uma alternativa para além do capitalismo, precisa ser um projeto que supere o capital em dois aspectos: o da desigualdade social e o do colapso ambiental que promove.

          É importante romper com a dicotomia Homem versus Natureza, e compreender que a humanidade é parte integrante da natureza. O planeta Terra deve ser visto como um único organismo com um metabolismo próprio. Entretanto, a ação do homem no planeta, forçada pela atual forma de exploração devastadora, acaba por desequilibrar este metabolismo, comprometendo a sobrevivência de todas as espécies.

         A tarefa que cabe é a de adequar a exploração do planeta com as reais necessidades da humanidade, o que é incompatível com o atual sistema capitalista, uma vez que a superexploração dos recursos naturais, com o aumento da produção de dejetos, contaminação do meio-ambiente e destruição de biomas, se torna cada vez mais aceleradas na busca da produção de capital e sua consequente hiperconcentração. É mais do que urgente se buscar soluções de baixo custo e alta rentabilidade para o conjunto da sociedade, na construção de uma cadeia produtiva baseada na economia criativa e solidária.

    Propostas:

    • Eficiência no gerenciamento dos dejetos
    • Estímulo a soluções criativas de produção com baixo impacto ambiental e alto retorno social
    • Vigilância rigorosa do uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos
    • Incentivo a nova matrizes energéticas, como o programa de instalação de placas solares em equipamentos públicos
    • Estímulo à criação de cadeias de produção e circulação de mercadorias, orientadas pela perspectiva da economia solidária

     

    Tema 7: Moradia e mobilidade

    Local: Recife-PE

    Participantes: Lucio Gregori (ex-secretário governo municipal de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina), Socorro Leite (ONG Habitat), Leonardo Cisneros (Ocupe Estelita) e Vitor Guimarães (MTST)

         A cidade tem sido alvo do capital para se tornar espaço de valorização, produzindo desigualdades e exclusão social. O direito à cidade foi abordado em torno dos temas da moradia e da mobilidade urbana.

         Socorro Leite, diretora executiva da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, destacou  que “o direito à moradia não está à frente da política pública”. Apresentou também uma série de propostas para a inversão das prioridades nesse tema, como a ocupação de imóveis ociosos, recursos locais para moradia, planejamento para a cidade, proteção nas ZEIS, regularização da posse, diversificação soluções habitacionais e, em especial, a participação popular.


         Já Vitor Guimarães, da coordenação nacional do MTST, destacou que “não existe programa habitacional, existe um projeto econômico, pois a crise urbana é um projeto político. Quem é dono da terra é dono da cidade. O Minha Casa Minha Vida não questiona a especulação imobiliária”. Concluiu chamando à luta e à organização popular, destacando que um programa de esquerda deve enfrentar a questão do valor da terra, ampliar e regulamentar o estatuto das cidades e estabelecer comitês democráticos de mediação de conflitos.


         Para falar de mobilidade, o engenheiro Lucio Gregori, que foi secretário de transporte da gestão Luiza Erundina na cidade de São Paulo, apontou que “a luta de classes é no chão das cidades, mais que nas fábricas”. Lembrando que a mobilidade é questão transversal, destacou também a participação popular e concluiu dizendo que “se a cidade fosse nossa a mobilidade seria de todos”.


        Por fim, Leonardo Cisneros, Professor UFRPE e ativista dos Direitos Urbanos – Recife e do Ocupe Estelita, lembrou que “mobilidade é problema político, cujas soluções expressam visões sobre o modelo de cidade. É a democracia direta do capital, que articula investimentos públicos com os interesses privados”. Assim, a questão da transparência e das prioridades é central, garantindo ao povo a capacidade de decidir e não apenas participar de conferências e consultas esvaziadas de poder.

    Propostas:

    • inversão das prioridades. Ocupação de imóveis ociosos, recursos locais para moradia, planejamento para a cidade, proteção nas ZEIS, regularização da posse, diversificação soluções habitacionais e, em especial, a participação popular.
    • enfrentar a questão do valor da terra, ampliar e regulamentar o estatuto das cidades e estabelecer comitês democráticos de mediação de conflitos.
    • transparência e das prioridades é central, garantindo ao povo a capacidade de decidir e não apenas participar de conferências e consultas esvaziadas de poder

     

    Tema 8: Participação popular

    Local: Belém-PA

    Participantes:  Edmilson Rodrigues (deputado federal-PA), Juliano Ximenes (urbanista) e Jurandir Novaes (urbanista)

         A radicalização da democracia, a participação da sociedade e a construção do poder popular são as principais marcas da proposta de governo do PSOL, ao lado da ideia de inversão de prioridades. Somente  com o povo tendo voz ativa nas decisões do governo é que seus interesses serão atendidos. A crise política e o governo golpista de Michel Temer reforçam essa importância, propondo um formato de governo totalmente oposto ao ministério de homens brancos e ricos de Temer.


         Juliano Ximenes falou sobre a importância de se instituir um ativismo comunitário no Brasil como uma medida para melhorar os mecanismos de controle político utilizados pela população. “Tais processos conferem força e diminuem os conflitos da população. O ativismo é um processo necessário e deve estar integrado às políticas para democratizá-las plenamente”, enfatizou. Já Jurandir Novaes complementou a contribuição do arquiteto, Juliano Ximenes, ao dizer que “a participação popular é uma decisão política, que serve para romper a lógica da dominação sobre o povo”.

         Edmilson Rodrigues finalizou o debate, destacando que a falta da participação popular é um dos fatores que contribuiu para o aprofundamento da crise vivida no Brasil e sofrida pela população. “A participação do povo na gestão é o instrumento que deve ser usado para que superemos as crises e para que possamos caminhar rumo a um futuro democrático, sem diferenças na sociedade e que tenha a população como foco”, concluiu.

    Propostas:

    • Ampliar e reforçar as formas de participação popular, através de conselhos, conferências e mecanismos de participação direta nas decisões, bem como reforçar mecanismos de controle social dos gastos e contratos.
    • Descentralizar o governo e estabelecer mecanismos de protagonismo local e popular.

     

    Tema 9: Educação.

    Local: São Paulo-SP

    Participantes: Luiz Araújo (professor UNB e presidente nacional do PSOL), Lisete Arelaro (professora da Faculdade de Educação da USP) e Sylvie Klein (pesquisadora), com comentários de Paula Coradi (professora)

         Para o PSOL, é central a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade para todas e todos. A efetivação desse direito depende das prioridades e opções do governo. Luiz Araújo, professor da UNB e presidente nacional do PSOL, contou que no governo de Belém, quando foi secretário de Educação, “o Edmilson reuniu lá no palácio do governo a equipe que trabalhava comigo na secretaria e fez a seguinte pergunta: de tudo que vocês estão fazendo ou estão planejando fazer, o que a direita não faria?”.

         Para a esquerda socialista são três tarefas: a) garantir o acesso universal aos direitos sociais, o que envolve a inversão de prioridades e a “disputa do fundo público com outras prioridades”; b) fazer uma disputa de valores pela herança imaterial de concepções, o que implica em “empoderar a população”; e c) radicalizar a participação popular , “abrir os dados e discutir a sua composição e capacitar a população a discutir isso e decidir de forma inclusive diferente”.

         Já a professora Lisete Arelaro, professora da Faculdade de Educação da USP, começou lembrando que “nós estamos em tese numa democracia, e efetivamente a gestão democrática foi para as cucuias”. E que a preocupação com os números de matriculados precisa ser balizada pela qualidade. E como faz pra melhorar a qualidade? “Querido, se tiver uma jornada digna para o professor e ele ganhar um salário minimamente decente, surpresa, dá certo a escola, em geral”.

         Sobre a educação de jovens e adultos e a alfabetização no país, Lisete lembrou da enorme dívida social, do alto número de analfabetos e de adultos que não passaram do ensino fundamental ou médio: “ Porque ele pensa: eu trabalho nove horas, 14h eu estou aqui, duas horas para voltar, se eu ainda for estudar três horas e meia, quatro, tem que valer muito à pena”.

          Finalizando o debate, a pesquisadora Sylvie Klein falou sobre educação infantil, que é uma das responsabilidades dos municípios. Para ela, “a creche e a educação infantil, é um direito das crianças, é um direito que as crianças têm de estarem num espaço público, que as crianças têm de estarem num espaço coletivo, um espaço entre pares, que ela saia daquele núcleo que é caminhar, que é o espaço do privado, para estar nesse lugar”. Aqui, o desafio é o acesso com qualidade: “Se é direito das crianças, de todas as crianças, ela é um dever do estado, e aí o estado tem que se responsabilizar por esse atendimento. E o que a gente tem visto é uma desresponsabilização do estado via política de conveniamento”.

    Propostas:

    • Fim das matrículas da educação infantil nas entidades conveniadas e progressiva retomada da prefeitura
    • Limite de alunos por sala de aula definido por critérios pedagógicos
    • Ampliação dos programas de alfabetização de Jovens e Adultos
    • Valorização do professor e ampliação dos mecanismos de participação social nas escolas
  • “Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab”

    “Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab”

    viaduto-alcantara-machadoA população de rua da cidade de São Paulo está estimada em cerca de 16 mil pessoas, segundo dados da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). A metade vive na região central da cidade, especialmente na Sé. Há inúmeros debates em torno deste tema e nos atentamos ao que acontece especificamente na Avenida Radial Leste, debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado. Buscando novos paradigmas no atendimento e fortalecimento da população em situação de rua, trabalhadores sociais da prefeitura se uniram para formar o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais).

    A ideia não agradou muito ao poder público e mesmo a socialmente elogiada gestão Haddad se zangou. Por três vezes tentou desalojar as tendas e, agora, ameaça conseguir – além de demitir os trabalhadores ligados ao Catso. Marcamos presença no ato de rua que o coletivo chamou no último dia 26 de novembro, quinta-feira, em frente à prefeitura de São Paulo e entrevistamos a trabalhadora social Pamela Maria para um entendimento maior da questão.

    “A única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é gentil, entre aspas, que é como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos, do qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto, mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto”, afirmou.

    O fechamento do espaço estava marcado para o último dia 4 de dezembro. Na tarde do dia 7, entramos em contato novamente com Pamela Maria para atualizar a entrevista. O Catso, juntamente com o Padre Júlio Lancelotti da Pastoral do Povo de Rua, acionou o Ministério Público contra o fechamento da tenda. Nada aconteceu e as tendas foram oficialmente fechadas. Se na Tenda Bresser a prefeitura retirou todos os móveis na última sexta-feira, a Tenda Alcântara segue ocupada pelos trabalhadores sociais e pela população de rua em resistência às políticas da prefeitura.

    “A proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico, o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo: não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes”.

    Confira abaixo a entrevista com Pamela Maria, do Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais.

    Correio da Cidadania: Como começou o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais) e o que tem desenvolvido debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado, na Radial Leste, junto à população de rua?

    Pâmela Maria: Fazemos um trabalho de quase dois anos com a população de rua. Essencialmente, temos duas frentes no coletivo. Uma com os trabalhadores sociais, que são precarizados. Fazemos essa discussão com todas as frentes que trabalham com a população de rua e também com outras esferas do serviço social.

    A outra frente é diretamente com a população de rua, que é na verdade onde mais nos dedicamos. O objetivo é dar voz ao povo de rua, criar um espaço onde seja possível se organizar horizontalmente, buscando a autonomia desta população para que ela tenha suas demandas colocadas em pauta por eles mesmos. A assistência social tem a característica de fazer propostas de cima para baixo e isso nunca é questionado, muito menos pela população rua.

    Por isso, temos a questão de trazer a população de rua para os ambientes onde eles não seriam bem vistos e quistos, que são as reuniões e os outros espaços do poder público, no caso da prefeitura, subprefeitura e assim por diante. Nós os levamos lá para que falem da vida deles, ao invés de serem representados.

    Correio da Cidadania: Qual tem sido o resultado dessa ação prática e como os moradores de rua tem recebido o trabalho?

    Pamela Maria: Temos uma caminhada com várias vitórias. Por mais que sejamos um coletivo de apenas dois anos, já conseguimos libertar homens que foram presos em albergues e revogar três fechamentos das tendas Alcântara Machado e Bresser – essa é a quarta vez que estão tentando.

    Na minha visão pessoal, mesmo estando há pouco tempo no Catso, sinto que a população de rua vê o próprio exemplo de estarmos na rua com eles, que estamos juntos. Que eles podem contar com a gente, que se agora o fechamento vier a acontecer mesmo, vamos estar lá, de peito aberto, se tiver repressão ou se não tiver, independentemente disso. Vendo-nos, eles vão nos conhecendo, nós vamos nos organizando juntos e eles nos veem como amigos.

    Correio da Cidadania: Como é organizado o dia-a-dia nas tendas? Que diferenças há entre o que o Catso propõe em relação ao que acontecia anteriormente?

    Pamela Maria: A Tenda Alcântara desde o princípio tinha pessoas que depois vieram a formar o Catso. Desde o começo tínhamos a proposta da horizontalidade e das assembleias abertas. Todas as decisões que são feitas na Alcântara – onde estou mais presente – referentes a horários de banho, abertura, fechamento, televisão, é tudo decidido em assembleia, todas as regras são decididas em assembleia, e nós buscamos entre os trabalhadores que a horizontalidade seja praticada em todos os níveis. Todo mundo tem voz, todo mundo decide, todos podem falar burocraticamente com o poder público. Tem também uma questão: todo mundo lava banheiro e faz absolutamente todas as coisas que precisam ser feitas no espaço.

    Buscamos terminar com o vínculo assistencialista e colocar a população como um agente. É como se nós não estivéssemos empregados, estamos juntos com eles em todas as decisões. No começo, a polícia não deixava montar nem barracas de lona por lá. A postura dos trabalhadores sempre foi de acompanhar as abordagens, bater de frente – muitas vezes fisicamente – com o rapa, para impedir que eles fizessem esse tipo de ação. Com o tempo, ao sentir-se segura, a população de rua começou a fazer suas malocas de madeira.

    A ocupação Alcântara Machado aconteceu logo após uma ação da polícia na qual levaram todas as coisas embora e derrubaram todos os barracos. Daí o pessoal tocou fogo nos restos dos barracos e logo ocupou uma academia que tinha na frente da tenda, no próprio viaduto. Ali, fizeram uma cozinha comunitária, foram montando e se organizando. No viaduto Bresser, a comunidade surgiu de forma mais orgânica. Eles chegaram, montaram as malocas de lona, foram ficando, melhorando o espaço e aos poucos substituíram a lona pela madeira.

    Correio da Cidadania: Passamos pela gestão Gilberto Kassab, um completo desastre sob os aspectos sociais e, de 2012 para cá, houve a mudança para o prefeito Fernando Haddad. Para muita gente, significava uma mudança de postura. Até que ponto tal mudança aconteceu, ou não?

    Pamela Maria: vemos que a única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é “gentil”, entre aspas, como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos (de auxílio a dependentes químicos na chamada Cracolândia, centro de São Paulo), o qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto.

    Mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto. Criou a IOPE, que é uma polícia de elite da GCM – antes desarmada e hoje armada. Portanto, não dá para dizer que só o Kassab é o grande higienista enquanto na gestão Haddad as coisas estão se intensificando. Se você perguntar para qualquer morador de rua, eles estão apanhando da GCM hoje da mesma forma como apanhavam antes e as expulsões continuam iguais.

    Correio da Cidadania: E em relação aos trabalhadores sociais, como está funcionando a perseguição?

    Pamela Maria: Eles nos perseguem e tentam cercear os nossos espaços. Não fomos convidados inclusive para coisas que são técnicas e fazem parte do serviço social. Em reunião, mudaram todas as regras internas do pernoite e de como seria a divisão dos albergues: as Tendas Bresser e Alcântara Machado não foram convidadas para participar da reunião – que é técnica e na qual deveríamos estar – e com isso temos um boicote cada vez maior em relação às vagas de albergue.

    Como diz uma companheira, “temos trabalhado com a arma na boca”. A ONG não faz nada. Já procuramos o sindicato algumas vezes para tentar pressionar e nunca se posicionou. Além disso, a prefeitura está sempre lá ameaçando novos fechamentos, já mandou embora várias pessoas de outros serviços que tentavam colaborar conosco e nós somos ameaçados o tempo todo de demissão, coisa que já houve. Gerentes de outros espaços que souberam de trabalhadores ligados ao Catso os demitiram ou transferiram para outros lugares, a fim de perderem o contato conosco. Isso sem contar as ameaças verbais.

    Trabalhadores ligados ao Catso também já foram fechados em salas com supervisores da assistência para receber “broncas”, porque o que eles querem é nos coagir em relação a essa luta. Tanto que o fechamento das tendas é mais um modo de coação, já tentaram três vezes, não conseguiram e agora vieram com toda a força para acabar com esse tipo de mobilização, onde a população de rua tem voz junto aos trabalhadores.

    Correio da Cidadania: Como você explica a manifestação do dia 26/11 e como está sendo articulada a resposta do coletivo e da população de rua para reverter a repressão e os retrocessos aqui discutidos?

    Pamela Maria: Estamos de aviso prévio e a data de fechamento das tendas era 4 de dezembro. O ato contra o fechamento das tendas e a remoção das malocas foi em 6 de dezembro. É o que soubemos por fontes. Nesse dia, chegariam o “rapa” e a polícia para remover as comunidades Alcântara Machado e Bresser. Logo, o protesto foi para visibilizar o não fechamento das tendas e a não remoção das comunidades dos viadutos.

    Sem querer ser pessimista, mas acho que isso não vai acontecer. O Haddad já deixou bem claro que já conhece o coletivo e não quer nos deixar lá. É uma contradição, pois trabalhamos para a prefeitura, em um serviço que é dela, e a própria prefeitura é contra o nosso trabalho e critica as nossas ações. Portanto, é bem claro para nós que ele não vai voltar atrás. Talvez com uma pressão maior, com muito esforço, talvez seja possível. Mas eu, particularmente, estou bem pessimista.

    Falta diálogo. O pessoal da rua não quer o auxílio aluguel, que é a principal proposta da prefeitura, que prevê o oferecimento de R$1200 a cada três meses, ou seja, com 400 reais por mês. Todos sabemos que é impossível de se viver em São Paulo, não se aluga nada, muito menos quem tem trabalho, creche e escola das crianças mais próximos do centro.

    É isso: a proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo, não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes.

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

  • Tragédia da mineradora em MG: a promiscuidade entre poderes político e econômico no Brasil

    Tragédia da mineradora em MG: a promiscuidade entre poderes político e econômico no Brasil

    Lama da SAMARCO
    Lama da SAMARCO

    Acabamos de testemunhar aquele que talvez seja o maior desastre ambiental da história do Brasil. A população de Bento Rodrigues e Mariana (centro do estado das sugestivas Minas Gerais) está sem água e boa parte desabrigada. Isso sem contar os danos ambientais, calculados em mais um século em termos de recuperação do ecossistema do Rio Doce. Para oferecer uma visão técnica e amplificada da desgraça, entrevistamos a coordenadora do Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará, Simone Pereira.

    “Tenho quase que plena certeza que esse evento não foi natural. O próprio Ministério Público de Minas Gerais está dizendo que não foi um acidente, mas negligência. Havia, sim, indícios de que esse desastre poderia acontecer. E a empresa não tomou as providências”, afirmou.

    Para ela, dois fatos foram cruciais no desenrolar da tragédia: a falta de monitoramento das bacias de rejeitos, o que inclui a falta de tratamento adequado aos rejeitos não inertes e tóxicos, e a não existência de mecanismos de monitoramento autônomos em relação à empresa, fruto da histórica relação de promiscuidade entre poder público e poder econômico no Brasil.

    “Será que abrir para o mercado privado a exploração minerária influi no aumento da produção e diminuição do cuidado ambiental? Devido à questão do lucro isso pode acontecer. A empresa não quer gastar muito dinheiro com questões ambientais. Para o capital, a questão ambiental é secundária. o problema vem, basicamente, de dois fatores: falta de monitoramento e falta de fiscalização. Se houvesse abertura para o monitoramento dos rejeitos tóxicos, além do que a própria empresa faz, e se as SEMAs por todo o Brasil fizessem de fato a fiscalização que deveriam, nada disso teria acontecido”, criticou.

    Para a especialista, é importante que empreendimentos do porte da Vale, da Samarco e também da Belo Sun (ao lado da hidrelétrica de Belo Monte) precisam ser discutidos com a sociedade antes de postos em prática. Ela defende que a comunidade afetada deve decidir a presença, ou não, de empreendimentos como este. Aliás, sua descrição do que acontece na mineração de ouro em Belo Monte já nos obriga a atentar para futuros e similares desastres.

    “Aqui, é o paraíso para quem não quer cumprir a lei. Temos muitas leis e elas são muito avançadas. O problema é como elas são aplicadas e muitas vezes ignoradas, por conta dessa influência do poder econômico no poder público”.

    A entrevista completa com Simone Pereira pode ser lida na íntegra a seguir.

    Correio da Cidadania: Como você mesma defende, existe uma relação entre a mineração e as bacias onde depositam seus rejeitos com os desastres da barragem de Mariana (MG) que inundou com lama tóxica uma série de cidades próximas do curso do Rio Doce. Pode nos explicar, em linhas gerais, como se dá esse processo, do que é formada essa lama tóxica e se há alguma relação também com a mineração no Rio Xingu, tema abordado por você?

    Simone Pereira: Eu me referi à implantação dessas bacias na Volta Grande do rio Xingu, que é o empreendimento chamado Belo Sun, no qual uma mineradora canadense vai usar cianeto na exploração do ouro na região. Há a possibilidade de um desastre similar acontecer lá também. No estado do Pará, em todo o seu território, há uma intensa atividade de mineração. É o segundo em exploração mineral do país, atrás apenas de Minas Gerais. Temos aqui a maior mina de ferro do mundo, a de Carajás, onde existem várias barragens como esta que rompeu em Mariana. É uma preocupação constante.

    A política de depositar os resíduos em bacias já está estabelecida no mundo inteiro e não é um privilégio do Brasil. A prática está difundida no mundo todo por ser a forma mais simples e barata de as empresas disporem dos rejeitos que produzem na atividade minerária. Qual é o problema? O problema é que, quando se processa o minério com explosões, trituração, aplicação de processos físicos e químicos, acabam liberadas no ambiente as substâncias ligadas à rocha, como por exemplo os metais tóxicos e outros elementos que acabam por ser perigosos para os seres vivos e meio ambiente. Não vemos as Secretarias Estaduais de Meio Ambiente (SEMAs) fazerem um monitoramento adequado da parte estrutural das bacias e muito menos um efetivo controle do que se produz em termos de rejeitos tóxicos. Se exige, quando muito, é automonitoramento das empresas.

    Hoje, o que as pessoas mais perguntam é: qual a composição da lama que desceu como um tsunami pelo vale e acabou chegando ao Rio Doce, invadiu cidades e destruiu tudo? A resposta é: não sabemos. As mineradoras não permitem que os institutos, as universidades ou qualquer outro tipo de entidade façam um monitoramento à parte ao que ela própria é obrigada a apresentar para as SEMAs. Sabemos, por notícias vinculadas, que a análise do rio está apresentando resultados elevados para elementos tóxicos, como cádmio, chumbo, mercúrio etc.

    Geralmente, as SEMAs não cobram o efetivo cumprimento da lei, que garante que as substâncias tóxicas não cheguem aos rios em valores acima do permitido pela legislação e fiquem retidas nas bacias. Nenhuma bacia comporta o volume de chuvas, principalmente na época do inverno, e tais produtos acabam descartados no rio mais próximo. Somado a isso, as empresas não dão informações sobre o tratamento que o material recebe.

    Aqui e ali vejo tratamentos para controlar níveis de pH ou para diminuir a turbidez, mas desconheço no Brasil qualquer mineradora que faça tratamento nos afluentes para a retirada dos produtos tóxicos. Já visitei algumas empresas que lidam com tal tipo de atividade e não encontrei em nenhuma delas laboratórios químico-ambientais para fazer tais análises. Geralmente, contratam algum laboratório de fora para fazer o automonitoramento, que é uma prerrogativa da lei. A própria empresa pode contratar outra empresa para fazer o controle. Na minha opinião é um erro, mas é a lei e eles podem fazer assim.

    Portanto, o problema vem, basicamente, de dois fatores: falta de monitoramento e falta de fiscalização. Se houvesse abertura para o monitoramento dos rejeitos tóxicos, além do que a própria empresa faz, e se as SEMAs por todo o Brasil fizessem de fato a fiscalização que deveriam, nada disso teria acontecido.

    Correio da Cidadania: Como enxergou, estruturalmente, a tragédia do rompimento da barragem que armazenava rejeitos oriundos da exploração de minério de ferro pela empresa Samarco, na cidade de Mariana (MG)?

    Simone Pereira: As barragens nada mais são do que uma grande vala cavada no solo, não muito fundo por conta do lençol freático, e que aos poucos se acrescentam nas laterais até atingirem um máximo de altura de talude. As barragens têm, aqui no estado do Pará, em torno de 2 e 3 metros de profundidade. Algumas empresas, que produzem rejeitos tóxicos, fazem o revestimento destas bacias porque se não os efluente com produtos perigosos podem infiltrar no solo e chegar ao lençol freático. Pelo que vi em Bento Rodrigues, não houve qualquer tipo de impermeabilização de bacia e o rejeito foi depositado diretamente no solo.

    O que temos em Mariana e em outros locais é uma barragem feita com o próprio material geológico, como rochas e britas. Não é uma construção de alvenaria. É uma barragem para cima. O talude é a altura da barragem. Assim, quando a barragem começa a saturar, eles aumentam o talude, e são feitas emendas à barragem original. O problema é que a cada tonelada de minério processado, são produzidas outras toneladas de rejeitos. Esse material não é de interesse para a empresa e fica depositado na bacia. Podemos imaginar que são necessárias bacias e mais bacias para que seja possível continuar o processamento do minério.

    Quando uma bacia se esgota e não pode mais receber rejeitos, eles simplesmente cessam a operação naquela bacia, colocam solo por cima, revegetam e partem para outra bacia. Mas os produtos tóxicos ficam ali para sempre. É preciso entender que o minério quando está no solo, na crosta terrestre, está imóvel. Costumamos dizer que está imobilizado e não representa risco, porque está geralmente protegido pelos óxidos e hidróxidos, que são ligações fortes que não deixam esse metal sair das proteções e se tornar disponível para o ambiente.

    Quando se começa a trabalhar o minério, a primeira coisa que acontece são explosões. Em outras palavras, para retirar o minério da crosta colocam-se dinamites e explodem. Esse material particulado gerado pelas explosões – pode ser inalado por uma pessoa – contém elementos tóxicos. E muitas vezes acontecem processos de intoxicação por inalação nas comunidades próximas à mina.

    À medida que você explode a rocha e começa a abrir a mina, que geralmente tem quilômetros de profundidade, e vai sendo aberta em níveis diferentes até o fundo, de onde é extraído o minério, a rocha é exposta às intempéries, como a chuva que produz a descarga ácida de minas (DAM), que contém ácidos fortes e solubiliza os elementos antes imóveis na rocha. Este minério, quando transportado do fundo da mina para o processador, onde será britado, lavado, centrifugado, vai sofrer processos de aquecimento, às vezes processos químicos etc. Produz rejeitos sólidos e efluentes ricos em elementos tóxicos que ficarão como uma herança maldita.

    O ferro produzido, por exemplo, não sai da mina na forma como é exportado. Uma mina de ferro para ser viável precisa ter um minério com teor acima de 60% de ferro. Mas e os outros 40%? São rejeitos, argila, escória e todo esse material que vemos por aí, além de uma pequena percentagem de elementos tóxicos que em pequenas quantidades podem causar problemas de saúde sérios na população e danos ao meio ambiente. Se uma empresa, ao liberar efluente de bacia de rejeito contendo, por exemplo, chumbo, arsênio, cádmio e mercúrio (esses dois últimos se bioacumulam), no rio e as pessoas consumirem essa água, em 30 anos aquela pequena quantidade de metais acaba bioacumulando-se no corpo e causa problema de intoxicação.

    À medida que todo o rejeito não é utilizado pela mineradora, logo é descartado. Há dois tipos de materiais classificado nos rejeitos: um se chama pilha de estéril, composta de material inerte, onde não tem produção de material tóxico na parcela do que é descartado; a outra parcela é a pilha de rejeitos, que, no caso de Bento Rodrigues, foi classificada como classe 2, ou seja, é um material considerado não perigoso, porém não inerte. Isso significa que o material continua reagindo, se combinando, formando novos compostos e podendo ser perigoso para a população e ao meio ambiente, em algum nível, caso venha a ser liberado, como aconteceu.

    Eu não conheço e nunca analisei o material de Minas Gerais, são informações da própria mineradora e de artigos que tenho lido depois da tragédia em Mariana, onde dizem que aquele material é classificado como classe 2, de resíduos não inertes. Isso já basta para eu afirmar que podem apresentar riscos.

    Se não bastasse, a presença da lama, a própria argila, constituída de materiais comuns como os silicatos, seria suficiente para mudar completamente a qualidade dos ecossistemas locais. Minha pergunta é: a empresa vai remediar todos os ecossistemas atingidos pelo rejeito? É preciso retirar a lama e recuperar o ambiente. Mas será que de fato vai acontecer? No Brasil, não vejo acontecer.

    Temos problemas semelhantes aqui no Pará, houve em 2007, no município de Barcarena, o rompimento de uma barragem de rejeitos que deixou o Rio Pará branco, com rejeito ácido de caulim de uma empresa produtora de pigmentos. Até hoje o fundo do rio continua cheio de rejeito. Será mesmo que vão limpar a sujeira de Minas Gerais? Ainda mais agora que a lama está chegando no Espírito Santo? Como é que vão recuperar tudo? E o rio? E as pessoas que estão perdendo seu modo de vida e sua saúde?

    Correio da Cidadania: Agora vemos que as consequências adquirem amplitude quase inimaginável, com os rejeitos e a lama tóxica, como dito, chegando ao litoral e podendo se estender por uma vasta parte da costa brasileira. O que dizer diante disso? O acidente da barragem da Samarco se equipara, como alguns já dizem, a acontecimentos como o vazamento de petróleo no golfo do México ou o vazamento dos rejeitos nucleares da usina japonesa de Fukushima, entre outros episódios?

    Simone Pereira: Eu não compararia isto a Chernobyl ou Fukushima, por não se tratar de um evento envolvendo produtos radioativos. Nós temos visto a natureza sendo agredida por diversas vezes, como na Hungria, onde houve também um rompimento de uma barragem de lama vermelha – lá, eles estão conseguindo recuperar. A empresa foi autuada para fazer a recuperação e aos poucos vai se fazendo. Acontece que a dimensão de Mariana é algo muito maior do que na Hungria. Mesmo com a lama vermelha da Hungria sendo composta de um material ainda mais perigoso que a de Mariana, as dimensões do desastre foram menores. De toda forma, eu não faria tais analogias, que muita gente vem fazendo. O importante é sabermos que em Mariana houve um grande evento.

    No Brasil, é o maior acidente ambiental do qual já tive notícia. Já tivemos acidentes muito graves de derramamento de óleo, a exemplo da Repar no Paraná, quando houve um derramamento de óleo no rio. Foi um grande evento, até atingiu outros estados, e a Petrobrás chegou a ser multada em 200 milhões quando isso aconteceu – foi a maior multa ambiental, até então, da história do Brasil. No entanto, tais eventos ajudaram a trazer novas tecnologias de tratamento de solo e a própria Petrobrás esteve desenvolvendo técnicas para recuperar o meio ambiente.

    Eu não sei se em Mariana vamos ter uma ação igual. Já vemos o prefeito dizer que o Ministério Público não pode fechar a mineradora, porque a economia da cidade depende disso, ou seja, dos royalties e do que arrecada em torno da atividade da mineradora. A medida que a mineradora não é acionada ou o acontecimento for passando despercebido da opinião pública, ela continua agindo da mesma forma com a qual agia até então, e é lógico que os problemas poderão ocorrer novamente. E não é só a barragem de Bento Rodrigues que está nessa situação. Temos lido notícias que falam de outras barragens que correm o mesmo risco.

    Portanto, acho que agora a produção tem de ser interrompida. Não tem como eles continuarem a colocar material dentro de uma barragem que já corre risco de se romper, seria uma irresponsabilidade. O Ministério Público agiu certo em interromper a produção, mas a gente tem a consciência de que a mineradora não vai acabar, não vai mudar suas práticas e as coisas continuam sempre do jeito que já conhecemos. Essa é a situação de Mariana e todas as cidades onde funcionam mineradoras que operam com barragens na região.

    As barragens não são de fato monitoradas como deveriam e, outra coisa, não se ouviu falar em Mariana em plano de contingência. Bento Rodrigues foi massacrada e sequer teve o tempo de correr. As pessoas foram pegas na sua rotina, no seu lazer, e não havia uma sirene sequer para avisar. Nunca se treinou a cidade para um evento como esse. Simplesmente não havia um plano de contingência para que as pessoas pudessem sair rapidamente de suas casas e evitar que as mortes ocorressem.

    Correio da Cidadania: As privatizações e aberturas ao mercado, no sentido de se explorar riquezas minerais diversas sem grandes fiscalizações, têm qual grau de influência na tragédia?

    Simone Pereira: Não acredito que as privatizações tenham influenciado de alguma forma na prática, que considero delituosa, de se colocar rejeito sem qualquer cuidado e monitoramento. Essa prática acontece há décadas. Temos exemplos antigos no Amapá, temos outras explorações minerárias aqui no estado do Pará, assim como em Minas Gerais, que já vêm de muito tempo. Não foi o fato de privatizar uma empresa que acabou por mudar a prática que já era consolidada no Brasil e no mundo inteiro. Não vejo qualquer relação entre a privatização e a prática de depositar rejeitos em bacias.

    Mas entra outra questão: será que abrir para o mercado privado a exploração minerária influencia no aumento da produção e diminuição do cuidado ambiental? Devido à questão do lucro, isso pode acontecer. A empresa, quando se instala, não quer gastar muito dinheiro com questões ambientais. Para o capital, a questão ambiental é secundária. O importante é o lucro. Se a empresa tem o lucro estabelecido, tudo bem. Se por ano a empresa consegue um lucro líquido de 200 milhões de reais, por que não reserva uma parcela para aplicar em tecnologia, preservação ambiental e desenvolvimento de pesquisas no tratamento dos rejeitos, na recuperação da água? Pois se gasta água demais neste tipo de operação e hoje em dia é essencial reutilizar aquilo que se gasta muito. Se a mineradora não vê e não tem o interesse de anexar ao seu produto um selo verde de exploração sustentável, ela simplesmente vira as costas para tudo e só pensa no lucro. O lucro é o principal.

    O fato de a exploração mineral ser aberta para qualquer empresa do Brasil e do mundo demonstra ser necessário um diálogo e uma participação da população da região no processo. É preciso consultar as pessoas sobre a instalação de bacias de rejeitos. Há um atropelo nas audiências públicas, não há uma discussão aprofundada com a mídia como estamos fazendo agora, é preciso chamar os técnicos e os analistas e explicar os fatos: desde a composição química dos rejeitos, até as medidas que a empresa vai tomar para tratar o rejeito e retirar os elementos tóxicos. Não existe isso porque a empresa só visa lucro.

    Aplicar em práticas sustentáveis significa gastar dinheiro, e gastar dinheiro não representa um atrativo para as empresas no sentido de resolver problemas graves que temos aqui – e tais práticas vêm de décadas. Por que não se trata o rejeito, não se retiram produtos que às vezes nem se sabe que estão lá?

    Há produtos que talvez possam até ser comercializados. O que para nós é rejeito, na China pode ser um minério importante. Há nos rejeitos produtos altamente valorizados no mercado exterior. A geoquímica brasileira é riquíssima. Temos, por exemplo, o disprósio, que é jogado fora como rejeito. O disprósio é um minério supervalorizado no exterior, é dele que fazem foguetes, satélites, e aqui é jogado no lixo. Não temos nem a tecnologia para fazer sua extração. É preciso uma mudança de paradigma.

    Existem empresas estrangeiras que em seu país de origem seguem todas as normas ambientais, porque senão pagam multas astronômicas e podem até fechar. Mas quando chegam aqui no Brasil não mostram a mesma conduta. Elas sabem que aqui as leis não são cumpridas. Sabem que aqui o poder político anda de mão dada com o poder econômico. É comum vermos falas como a do prefeito de Mariana, que estava desesperado pelo fato de o município ficar sem verba, e ele não está errado. A cidade precisa de renda.

    O fato de a empresa pagar os royalties para a cidade, a meu ver, pode ser uma maneira de afrouxar a fiscalização. O poder político acaba sendo cooptado a fazer coisas erradas junto com as mineradoras e não vê que pode acabar prejudicando a população, que a prática pode causar danos ambientais etc. Na medida em que o poder político e o poder econômico vão se associando, quem vai sofrer é o meio ambiente e a população. Há um relaxamento da lei, da fiscalização e o caos pode ser instalado no país inteiro devido ao descaso.

    Aqui, é o paraíso para quem não quer cumprir a lei. Temos muitas leis e elas são muito avançadas. O problema é como elas são aplicadas, e em alguns casos ignoradas, por conta da influência do poder econômico no poder público.

    Correio da Cidadania: Como você avalia a abordagem que fala em “acidente”, “desastre natural”?

    Simone Pereira: Tenho quase a plena certeza de que o evento não foi natural. Eles estão alegando que houve tremores antes, o que poderia ter causado o rompimento da barragem. O Ministério Público de Minas Gerais já havia acionado a empresa para fazer a recuperação da barragem, que estava com problemas muito antes de tudo acontecer. Assim, já havia um procedimento do MP, anterior a qualquer coisa, que obrigava a empresa a fazer a recuperação da bacia. O fato de não terem tomado a medida correta para parar a produção e tomar as medidas exigidas pelo Ministério Público leva a crer que simplesmente ignoraram o procedimento. E aconteceu o que aconteceu.

    O próprio MP está dizendo que não foi acidente, mas negligência. Agora, a minha opinião: eu não estava lá, não fiz vistoria e não sei o que de fato aconteceu, de modo que não posso afirmar “sim” ou “não”, estou dizendo apenas pelo que tenho lido e o Ministério Público divulgado sobre o fato de acionar a empresa para resolver o problema. Havia, sim, indícios de que o desastre poderia acontecer. E a empresa não tomou as providências.

    Correio da Cidadania: Há denúncias de acobertamento de responsabilidade da Samarco. Você vê um movimento nesse sentido, inclusive da parte da imprensa?

    Simone Pereira: Antes da internet e das redes sociais, as pessoas acreditavam no que a imprensa divulgava. Era muito comum sermos influenciados por grandes meios de comunicações, grandes redes de televisão, jornais e revistas, porque aquilo era dado como verdadeiro. Com o passar dos anos e com as redes sociais no mundo, a informação verdadeira passou a ser pública. Há uma parte da mídia que serve aos poderes econômicos e políticos. Isso nós sabemos, não sei se é o caso de Mariana. Não tenho dados para te fazer tal afirmativa.

    A minha interpretação é de que a grande imprensa brasileira não é isenta. Aqui ou ali, a imprensa acaba se influenciando por questões políticas, econômicas e tem certa tendenciosidade ou a acobertar ou a omitir ou a minimizar certos acontecimentos, que para a população são graves, mas no final acabam minimizados. Após passar um ou dois dias na mídia, o interesse de publicar determinado assunto cai, sai de pauta, vai para o esquecimento. Estamos vendo isso em relação à Mariana. Já não se fala tanto sobre o assunto como nos primeiros dias após o rompimento das barragens, daqui a alguns dias não se falará mais nada sobre o assunto e a população vai ficar lá, sem apoio, com o meio ambiente irremediavelmente destruído e sem solução.

    Esse é o grande problema. A mídia quando se interessa por um assunto, é por muito pouco tempo. Ela não vai a fundo, não divulga, por exemplo, os nomes de quem de fato são os responsáveis. A gente não sabe como funcionam os processos. Para onde foi o processo? Quantas pessoas foram presas? Não vemos nada na mídia. Você já viu o diretor de alguma indústria protagonista de desastre ambiental ir para a cadeia? Esses processos simplesmente não andam. Não seguem até o final, quando muito se faz um TAC (termo de ajustamento de conduta).

    Seria interessante se a mídia cobrasse de fato as devidas responsabilidades, se ficasse em cima, fosse a fundo, mostrasse realmente o drama das pessoas, porque as vidas dessas pessoas mudaram da noite para o dia. A mídia simplesmente tira do ar e não fala mais. Como se aquele evento acontecesse durante uma semana e depois estivesse resolvido. Tivemos aqui no Pará o afundamento de um barco com 5 mil bois no início do mês de outubro e os bois continuam lá dentro do navio, ninguém tirou. Ainda existem milhares de litros de óleo dentro do barco, que também podem vazar a qualquer momento e ninguém fala mais. Esse é o problema da mídia. Para a população afetada, ela não está sendo útil como as redes sociais.

    Correio da Cidadania: De tempos em tempos, vemos a reforma do Código da Mineração aparecer nos corredores políticos. No atual contexto, o que pensa de tal possibilidade?

    Simone Pereira: Quanto a esse assunto não posso te dar informação, porque não é uma área na qual eu seja especialista. Tais questões políticas sempre vão acontecer. Sempre existirão grupos dentro do Congresso que tentarão formar lobbies para que as práticas nocivas ao meio ambiente sejam favorecidas. Em qualquer área: mineradoras, indústrias, agronegócio, enfim, sempre haverá pessoas querendo mudar leis e códigos já estabelecidos para se beneficiarem.

    Correio da Cidadania: Como está o Brasil no aspecto da proteção legislativa e também da apropriação da renda auferida na mineração?

    Simone Pereira: Aqui no Brasil, alguns municípios recebem royalties da mineração. Parauapebas, o município que recebe os royalties da mineração de ferro no Pará, é a cidade com a segunda arrecadação no estado, só perde para a capital Belém. Imagina um município que recebe 600 milhões de reais por ano. Esse dinheiro deveria ser aplicado no próprio município, correto? Você chega lá na cidade de Parauapebas e não vê esgoto na cidade, não tem tratamento. As escolas também não são lá essas coisas. E pra onde vai o dinheiro todo? Eis a pergunta. Há outros exemplos de municípios que recebem royalties ou impostos e continuam muito pobres.

    Se as empresas pagam tal quantia ao município, porque não vemos o dinheiro aplicado por lá? Para onde vai? Portanto, o município arca com todos os problemas ambientais e sociais que a exploração traz e no final não recebe muita coisa em troca. Ou seja, os lucros não são revertidos para a população na forma de melhorias da saúde, educação, saneamento básico e assim por diante. O poder político acaba dando diversos benefícios para as mineradoras e indústrias e não os vemos voltarem para a população e nem o meio ambiente. Vai beneficiar a quem?

    Sempre dão como desculpa a geração de empregos. Veja bem: a empresa se instala em uma região pobre, com índices de IDH baixos. Não há uma população especializada para trabalhar nas empresas que pretendem se instalar. O que deveriam fazer? Antes da implantação, deviam colocar escolas técnicas, formar pessoal, fazer parcerias com as universidades para ter gente de nível superior trabalhando na indústria. Mas não. Isso custa dinheiro, leva tempo. E o que fazem? Contratam pessoal de fora, já pronto, porque assim não gastam recursos com a formação. A grande parte dos diretores, supervisores, gerentes, pessoal de nível superior, técnicos especializados etc. é de fora, não são moradores dos locais onde se dão as explorações dos recursos.

    Não há um trabalho de base, uma prévia instalação, nem um preparativo para o lugar suportar o impacto do empreendimento. Não há nada. Olhe para Bento Rodrigues. Era uma comunidade rural. De repente chega uma mineradora daquele porte e se instala. Será que a maioria dos moradores locais largou suas vidas simples e foi trabalhar na mineradora ou continuou com sua vida do campo? O que será que mudou na vida da população local com a implantação da mineradora ali? Quais benefícios a mineradora trouxe? Por que não perguntam para a população se ela queria a mineradora ali?

    O problema é a população não ser ouvida. As audiências públicas, quando ocorrem, são feitas de maneira velada, sem publicidade. Poucas pessoas vão e as que vão já estão cooptadas a responderem aquilo que eles querem ouvir. Já vi acontecer muitas vezes. Eu espero que o que aconteceu em Bento Rodrigues seja tomado como exemplo para o país inteiro, que as práticas sejam mudadas e que desastres como estes não venham mais a acontecer no Brasil.

    Correio da Cidadania: Finalmente, aproveitamos para falar de um empreendimento citado no início e localizado no estado em que você trabalha e vive. Na Volta Grande do Xingu, como você avalia os impactos dos grandes empreendimentos da região: a hidrelétrica Belo Monte, já em operação, e a mineradora de ouro da empresa canadense Belo Sun, em vias de implantação? Podem apresentar problemas semelhantes ao que pudemos observar em Minas Gerais?

    Simone Pereira: Eu posso falar da Belo Sun. A hidrelétrica de Belo Monte é um empreendimento que já está em andamento e tem um aspecto bem diferente daquele da exploração de ouro. Logicamente, todo empreendimento tem fases e nós participamos de várias discussões sobre Belo Monte. Não somos contra a hidrelétrica. Particularmente, acho que o Brasil necessita das hidrelétricas. A região amazônica tem vocação para uso da hidroeletricidade. O problema é que deve ser feito com o mínimo de impacto possível e cumprindo-se as condicionantes estabelecidas para poder beneficiar a população e impactar o menos possível o meio ambiente. Mas, de fato, quando as empresas começam a não cumprir aquilo que prometem a coisa fica difícil.

    Outro aspecto é que a hidrelétrica implantada na região amazônica deveria trazer de alguma forma benefícios para a população. Se nós, amazônidas, arcamos com a implantação da hidrelétrica e os seus impactos ambientais e socioeconômicos, esperamos que ela seja bem vinda. Mas quais os benefícios que a população daqui da Amazônia vai ter com a implantação de uma hidrelétrica? A nossa conta de energia é a maior do país. Se nós produzimos energia elétrica aqui na Amazônia, por que nossa conta é a mais alta do país? Por que não se faz uma reforma tributária para aquela energia exportada a outros estados voltar como isenção de impostos? Nós pagamos mais de 30% de impostos – só impostos estaduais. Portanto, ainda podemos entrar no assunto de “bandeira tarifaria”, pois quando o sul está passando por seca, somos nós que pagamos pelo acionamento das termelétricas.

    Quanto a Belo Sun, é um problema que está nas mãos do Ministério Público Federal. O órgão já foi acionado, já foi feita a denúncia, já se embargou em parte a liberação da licença para o início da operação das mineradoras, mas também já conseguiram derrubar a liminar do MP Federal e está em curso a implantação da mineradora.

    O problema da Volta Grande é que eles vão usar cianetação para poder processar o ouro. Esse processo de cianetação é usado em várias mineradoras, mas por ter registrado vários acidentes ambientais ao redor do mundo está sendo banido. O cianeto está sendo substituído por outras substâncias na exploração do ouro. Existe um movimento para poder banir o cianeto da exploração do ouro. O problema é que até agora não foi encontrado um outro produto que o substitua tão bem, e ele será usado nas bacias de rejeitos da Belo Sun na Volta Grande do Rio Xingu.

    O cianeto vai ser controlado, a menos que haja problemas em alguma válvula que porventura ocasione o seu derramamento no rio, mas o grande problema, e não falado, é o que vão fazer com os elementos tóxicos que estão no solo junto com o ouro e estarão em contato com o ambiente – assim como eu expliquei no início da entrevista a partir da mineração do ferro.

    Acontece que a mineração do ouro ainda contém arsênio, que é ligado ao ouro geoquimicamente, e teremos mercúrio, chumbo, cádmio e assim por diante. E em todo o projeto, que eu tive a oportunidade de ler da primeira à última página, não há qualquer referência acerca do tratamento desses metais tóxicos.

    Continua a mesma prática. Ou seja, vão pegar o minério, explodir, triturar, tratar quimicamente com cianeto, complexificar os elementos químicos, separar o lodo e o que sobrar vai ser colocado em bacias de sedimentação. Logicamente, o efluente gerado por tal prática acaba sendo rico em cianeto e metais tóxicos. O problema é que o tratamento do afluente dará conta apenas do cianeto. Vão tratar o cianeto com ácido que, ao reagir, quebra-o e produz nitrogênio e gás carbônico. Portanto, à medida que você usa esse ácido torna o rejeito mais ácido, o que biodisponibiliza os elementos tóxicos de uma maneira ainda mais eficiente para o ambiente. É preocupante, já que não dizem como vão tratar esses metais.

    O que mais preocupa é que vão tirá-los dos efluentes, mas existe a possibilidade de jogarem no Rio Xingu. Isso está cantado, com todas as letras. Não se fala no texto do projeto sobre proteção ao Rio Xingu e as comunidades indígenas que vivem próximas do empreendimento e utilizam a água do rio para o seu consumo cotidiano. Elas não têm água tratada, nem mineral, e usam a água do rio. Assim, se os metais pesados forem jogados, logicamente vão afetar as comunidades indígenas. E não só elas, mas também diversas cidades ao longo do curso do rio.

    Correio da Cidadania: Em suma, continua tudo armado para novas tragédias ambientais no Brasil.

    Simone Pereira: Minha análise é baseada no próprio projeto, que eles disponibilizaram na página da Secretaria de Meio Ambiente. Não há qualquer referência ao tratamento dos metais pesados, assim como em Minas Gerais e em outros empreendimentos daqui do Pará.

    Existe uma legislação que obriga as indústrias e as empresas a fazerem controles de efluentes. Não pode jogar metal tóxico no rio, há um limite máximo permitido. Só que como não é feita a fiscalização, não há a exigência do controle de todos aqueles metais. As SEMAs acabam fazendo exigências de coisas que não têm nada a ver, como pH e turbidez. E os metais continuam sendo jogados no rio. Lá tem essa particularidade. Eu fiz análise do Rio Xingu naquela área e já há um aumento de arsênio, até seis vezes maior do que o limite permitido. Isso ocorre porque ali já existe uma exploração de ouro feita artesanalmente por pequenos garimpeiros, que usam mercúrio na atividade de extração do ouro.

    Se com a atividade artesanal já há um aumento do arsênio, imagina como este componente vai aumentar quando vier a mineradora em esquema industrial. Com a previsão de várias toneladas de ouro por ano a serem produzidas, teremos também muitas toneladas de arsênio no meio ambiente. E não há qualquer tipo de referência ao tratamento deste material no projeto da Belo Sun.

    Raphael Sanz e Gabriel Brito são jornalistas do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, terça-feira, 17 de novembro de 2015

  • Do privado ao Comum, práticas de uma reforma urbana radical

    Do privado ao Comum, práticas de uma reforma urbana radical

    Entrevista especial com Joviano Gabriel Maia Mayer

    “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades”, frisa o advogado.

    foto1Ao contrário do que se supõe à primeira vista, maioria não se opõe à minoria (há aqui apenas uma diferença de grau). Maioria se opõe à Multidão, no sentido de totalidade das singularidades. No espaço urbano, as disputas biopolíticas que se dão nas cidades tensionam um modo de ser análogo a uma espécie de fábrica pós-fordista que produz uma única coisa de inúmeras formas: o Comum. “Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade. Assim, é nessa fábrica pós-fordista, esparramada pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva se conforma cada vez mais como uma intelectualidade da multidão”, explica Joviano Gabriel Maia Mayer, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

    “Se, por um lado, o poder instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio do medo e das paixões tristes, por outro, os(as) ativistas de todo o mundo reconhecem a dimensão política da felicidade e das paixões alegres para potencializar as resistências e agregar mais pessoas”, provoca o entrevistado. Ele coloca que o binômio Estado-Iniciativa Privada só é capaz de oferecer políticas públicas verticalizadas e rígidas, como o Minha Casa Minha Vida. “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades”, completa.

    Joviano Gabriel Maia Mayer possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG. Atualmente é sócio fundador do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular.

    Mayer esteve no IHU nesta quarta-feira, 07-10, ministrando a conferência Por uma teoria e uma prática radical de reforma urbana: o caso BH em comum, que integra o evento 2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, que segue com suas atividades até o dia 05-11-2015. A próxima atividade será a conferência Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, com o professor Mário Leal Lahorgue, que ocorrerá no dia 22-10-2015, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas aqui.

    Confira a entrevista:

    IHU On-Line – De que maneira as cidades se constituem enquanto espaços de produção do Comum?

    foto2Joviano Gabriel Maia Mayer – As apostas lançadas no tabuleiro da política que tomam o comum enquanto horizonte de enfrentamento ao capital e construção de novos modos de existir se amparam fundamentalmente na produção social contemporânea, nos marcos do capitalismo pós-fordista neoliberal que toma as cidades como lócus (e objeto) privilegiado à acumulação de riqueza. Por outro lado, o que caracteriza o capitalismo pós-fordista do nosso tempo é uma estrutura produtiva dinâmica e flexível, disseminada em rede e fundada sobre a cooperação das singularidades, em que a produção imaterial tende progressivamente a suplantar a hegemonia da produção industrial: ideias, informações, conhecimentos, formas de comunicação, relações sociais, etc., como “fonte primordial de riqueza”, tendo a produção de subjetividade a primazia sobre qualquer outro produto. Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade. Assim, é nessa fábrica pós-fordista, esparramada pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva se conforma cada vez mais como uma intelectualidade da multidão.

    Metrópole biopolítica

    O que seriam os piquetes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST nas principais avenidas de São Paulo se não a investida política em face da produção/circulação de mercadorias materiais/imateriais nessa gigantesca fábrica biopolítica? Como diz Peter Pelbart, [1] vivemos num “momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer na sua máxima força de afetação, e de maneira imanente, dado o novo contexto produtivo e biopolítico atual” (PELBART, 2011:29). Posto isso, fica mais claro como rastrear e cartografar a produção do comum no âmbito da metrópole biopolítica almeja alcançar pistas, possíveis indicações de como, “no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade, surgem novas modalidades de agregar, de trabalhar, de criar sentido, de inventar dispositivos de valorização e de autovalorização” (PELBART, 2011:23), fora do comando exercido pelo Estado-capital e de modo antagônico aos valores capitalísticos por ele encampados e disseminados na conformação das subjetividades, seja na escola, seja via concessões públicas do espectro rádio-televisivo ou via dispositivos móveis parcelados em 24 meses no cartão de crédito.

    Desse modo, já não cabem formulações e projeções utópicas, ou seja, prescindimos de construtos imaginativos apartados da realidade para nos fazer caminhar rumo à sociedade pós-capitalista, visto que o comum se confirma no horizonte da metrópole biopolítica exatamente porque o presente traz consigo uma produção que é comum; em outras palavras, não se trata de utopia, porque a aposta em torno do comum parte do campo de imanência, da dimensão constituinte da produção biopolítica. De igual modo, a felicidade capaz de nos mover é mais aquela que hoje experienciamos nas resistências positivas, mais do que qualquer outra situada no lugar da utopia, ou melhor, no não-lugar. Basta observar as formas de produção, organização e expressão dos movimentos multitudinários na atualidade para perceber a importância dada à busca da felicidade e à experimentação de outros modos de vida no seio das lutas. Se, por um lado, o poder instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio do medo e das paixões tristes, por outro, os(as) ativistas de todo o mundo reconhecem a dimensão política da felicidade e das paixões alegres para potencializar as resistências e agregar mais pessoas.

    IHU On-Line – Como os movimentos de resistência da Multidão tensionam a lógica hegemônica de pensar o espaço urbano?


    Joviano Gabriel Maia Mayer –
    Mais do que a lógica hegemônica de pensar o espaço urbano, os movimentos multitudinários tensionam a própria lógica de produzir o espaço urbano. As resistências positivas, espaços performáticos de combatividade, afetividade e subjetividade, tomaram de assalto as metrópoles como territórios privilegiados de disputa, sobretudo no tocante ao enfrentamento a grandes projetos urbanos ancorados no paradigma da cidade-empresa do planejamento estratégico e das parcerias público-privadas. Nos marcos do neoliberalismo, cada vez mais as resistências se expressam como a defesa de bens comuns frente ao avanço da acumulação por espoliação (HARVEY, 2005), perpetrada ora pelo Estado, ora diretamente pelo capital, mas quase sempre pelo Estado-capital, unidos em simbiose para a captura do comum. Por outro lado, as ações dos movimentos de resistência da multidão potencializam na cidade a conformação de contrapoderes, redes e conexões subversivas, baseadas na comunicação, cooperação e criatividade, em contraposição à cidade neoliberal das parcerias público-privadas. Do Parque Gezi [2] na Turquia, ao parque Augusta [3] em São Paulo; da praça Tahrir [4] no Egito à Puerta del Sol [5] em Madrid, do cais do porto Estelita [6] no Recife à praça de concreto transformada em “Praia da Estação” [7], em Belo Horizonte, em todos esses processos é possível captar um desejo compartilhado de democracia real frente à investida do Estado-capital a despeito dos interesses da coletividade.

    Democracia Real

    Democracia real que se contrapõe à “democracia direta do capital” característica do paradigma da cidade-empresa. Ademais, a própria complexidade do urbano, enquanto sede privilegiada do poder político e econômico, onde se concentra tudo aquilo que faz a sociedade contemporânea em todos os domínios, especialmente nas metrópoles, cobra a cooperação transdisciplinar como mecanismo indispensável à compreensão dos fenômenos socioespaciais interligados com sua dimensão subjetiva. A “lógica do caos” que acompanha aquilo que Guattari (1992) denominou “cidade subjetiva” exige o uso de métodos de pesquisa que assumam o desafio da complexidade urbana, como é o caso da copesquisa cartográfica, método assumido pelo grupo de pesquisa Indisciplinar UFMG, do qual faço parte.

    As lutas multitudinárias nos inspiram a pensar como a inteligência coletiva, ou melhor, como a inteligência de enxame da multidão “pode inventar e construir uma sociedade na qual quem governe seja a sociedade em rede, a riqueza coletiva da cooperação, a potência do comum” (HERREROS e RODRÍGUEZ, 2012:113). Noutros termos, as práticas, estratégias e objetivos das lutas dos movimentos da multidão, embora diferentes, são capazes de se conectar, se combinar e, quiçá, constituir ações e projetos plurais compartilhados. Na atualidade ganha destaque o desejo ambicioso da multidão metropolitana de produção e defesa do comum urbano, partindo da expressão das múltiplas singularidades, sob as bases da democracia real, para além da gestão democrática da cidade concernente às intervenções no espaço. A cidade-empresa do paradigma neoliberal de planejamento estratégico é, por sua vez, a expressão mais bem acabada da ofensiva público-privada contra o comum. Talvez por isso o direito ao comum seja, em última instância, um possível horizonte de convergência das forças vivas que enfrentam o Estado-capital na metrópole biopolítica. Acrescente-se ainda que o comum enquanto princípio político, ao ser criticamente confrontado com a realidade das resistências, das organizações e movimentos, pode contribuir para dar sentido, orientar as práticas de produção, gestão e deliberação, além de potencializar e conectar em rede uma pluralidade de lutas e práticas alternativas antagônicas à cidade-empresa.

    IHU On-Line – De que forma os processos históricos, a partir do século XVIII, foram transformando as cidades, que eram espaços de refúgio e liberdade, em ambientes de acumulação capitalista?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – O capitalismo se formou fora dos muros das cidades. Cabe aqui um breve retrospecto. De fato, a cidade criou as condições de expansão da grande indústria, concentrando a mão de obra, o mercado consumidor, os capitais acumulados, a infraestrutura e o poder político. Simultaneamente, a grande indústria levou ao crescimento da cidade, revolucionando a organização do espaço em nível planetário. A natureza, antes dominante, passou a ser dominada por meio de técnicas cada vez mais sofisticadas. Entretanto, até a conquista do poder político pela burguesia revolucionária europeia, durante séculos a cidade foi o refúgio contra a opressão feudal, o destino prioritário daqueles que buscavam a felicidade, a liberdade e a justiça (PAULA, 2006).

    A partir do século XVIII, a cidade se tornou espaço privilegiado da reprodução do capital, abrigando a grande indústria em prejuízo das corporações de ofício. Durante esse percurso a própria estrutura urbana passou a ser produzida e reproduzida sob a lógica da acumulação capitalista, manifestando a cidade não apenas como espaço de reprodução do capital, mas também como objeto desta reprodução, determinada, em grande medida, pela expansão do capital imobiliário, elevado à condição de importante indutor do crescimento econômico. A cidade, gradativamente, reproduziu as contradições sistêmicas da nova ordem social, mercantilizou-se para ser vendida aos pedaços, um produto e não mais uma obra genuinamente humana. O privado se revoltou contra o público, e a festa, antes na rua, espaço comum, torna-se fechada, privada.

    A cidade se tornou assim, ao longo do desenvolvimento do capitalismo, um grande negócio, mais do que isso, tornou-se a nova fábrica do capitalismo contemporâneo, “a usina de geração do mundo, fabrica mundi, usina biopolítica de que precisa o capitalismo para vitalizar-se” (CAVA, 2015), plataforma fundamental de acumulação do capital global, espaço privilegiado de controle político, econômico, cultural, etc.

    IHU On-Line – De que maneira o espaço urbano se transformou em um grande laboratório das forças sociais? Quais são as potencialidades desses movimentos de resistência?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – A cidade, especialmente na sua forma metropolitana, agregou no tempo e no espaço as condições objetivas e subjetivas para a libertação da multidão frente ao domínio capitalista imperial. No final do século XIX, Engels [8] já afirmava que somente o proletariado “criado pela indústria moderna e concentrado nas grandes cidades, libertado de todas as cadeias tradicionais, inclusive das que o ligavam à terra, é capaz de realizar a grande revolução social” (ENGELS, 1988). Nesse sentido, a nostalgia romântica da volta ao campo do velho e bom camponês, agora incorporado ao espaço urbano e quebrado em seus tradicionais valores, representaria “atrasar o relógio da história” (idem).

    O mesmo raciocínio agora vale para a multidão ante o proletariado descrito por Engels, pois a biopotência criativa da multidão, na qual reside a possibilidade da produção do comum, não deixa margem a nenhum tipo de nostalgia ou utopia com relação às ilhas isoladas pelo oceano. Com todos os seus graves problemas, contradições e mazelas, é a cidade que oferece as maiores possibilidades emancipatórias, pois, dentre outras inúmeras razões, concentra no mesmo território, conectados em redes comunicativas e colaborativas cada vez mais amplas, os(as) agentes da transformação — trabalhadoras, trabalhadores, e todos os que vivem sob o domínio do capital —, o fluxo de informações, a produção artístico-cultural, os avanços tecnológicos, os encontros afetivos, a produção de subjetividade, o poder político, etc. Desse modo, avançar na construção e no compartilhamento dos princípios que orientam as práticas dos movimentos de resistência é importante na medida em que “podem criar o andaime sobre o qual, no caso de uma ruptura social radical, uma nova sociedade possa ser construída” (HARDT e NEGRI, 2014:138).

    IHU On-Line – Como o conceito capitalista de pensar o espaço urbano se converte em atomicismo e em uma espécie de antiurbanismo?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – É interessante notar como a configuração da cidade, em princípio, indica a organização da população em torno de uma vida comunitária — casas próximas umas das outras, espaços de convivência, equipamentos sociais compartilhados, sistema público de comunicação e transporte. Entretanto, o que sobressai, contemporaneamente, é o espaço esmigalhado vendido aos pedaços, a segregação social e racial, o isolamento e o atomicismo. Como dito anteriormente, o capitalismo corrompeu a cidade, fez do solo uma mercadoria valiosa e escassa, protegida pelo instituto sagrado da propriedade imóvel e, paralelamente, criou uma ideologia antiurbana capaz de fazer ruir sua construção como espaço da liberdade, do encontro e da solidariedade. No quadro urbano na atualidade, a exploração direta do(as) trabalhadores(as) se multiplica por meio de uma exploração indireta (LEFEBVRE, 2001) que se estende ao conjunto da vida cotidiana. Esta superexploração é evidenciada, por exemplo, no tempo livre do(a) trabalhador(a) gasto na autoconstrução de sua moradia, nas horas sacrificadas no longo percurso diário entre a casa e o emprego ou, ainda, na carga do trabalho doméstico invisível e não remunerado desempenhado pelas mulheres, indispensável para a reprodução da força de trabalho.

    Obscurantismo

    Em paralelo, como veementemente criticou Henri Lefebvre, [9] o urbanismo mais oculta do que revela, produz representações ideológicas e institucionais que não dão conta da realidade urbana, com suas problemáticas e práticas, de modo que “a ciência do fenômeno urbano só pode resultar da convergência de todas as ciências” (LEFEBVRE, 2008). Atualmente, entretanto, já não basta mobilizar todas as ciências já que a compreensão da realidade urbana também cobra outros saberes que não gozam necessariamente do estatuto científico.

    Multiplicidade de olhares

    Evidentemente, a investigação/intervenção sobre o território na metrópole demanda uma multiplicidade infindável de olhares, saberes e formas de expressão: da arquiteta à performer, da produtora cultural à advogada, da liderança comunitária à artista plástica, da cientista política ao morador em situação de rua. Ora, quem melhor para dizer sobre as opressões relacionadas aos processos segregatórios das cidades do que os(as) moradores(as) em situação de rua que trazem nos corpos as marcas da violência cotidiana? Quem melhor para falar sobre autoconstrução do que os(as) pobres urbanos que autoconstruíram suas casas nas favelas e ocupações, os(as) quais cunharam na história de produção das grandes cidades brasileiras essa forma autogestionada de apropriação espacial? É preciso extravasar os campos disciplinares formalmente reconhecidos pelo paradigma científico moderno, agenciando horizontalmente saberes científicos em sentido estrito com outros saberes, narrativas e formas de apreensão da realidade, subvertendo o lugar de enunciação para desafiar o pensamento ideológico hegemônico sobre o território.

    IHU On-Line – Atualmente, quais são as principais contradições do espaço urbano?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – Como dito, a afirmação do capitalismo financeiro global é acompanhada pela acentuação da centralização do capital na metrópole, impondo a ela uma determinada configuração espacial. Tal característica faz da metrópole, como condição geral de produção, o cenário peculiar das contradições próprias do capitalismo: centro e periferia, luxo e miséria, moderno e antigo, legal e ilegal, acessibilidade e exclusão, tudo isso “convivendo” no mesmo espaço metropolitano, forma estendida como condição planetária geral. A própria natureza desses antagonismos da vida metropolitana é essencial para explicar a emergência dos movimentos sociais urbanos em embate com o Estado-capital, provedor das condições necessárias à reprodução dos(as) trabalhadores(as) na cidade. Inegavelmente as manifestações de junho de 2013 no Brasil colocaram, aos movimentos sociais e aos partidos ditos de esquerda, a necessidade de aprofundar a compreensão dos mecanismos de produção e reprodução do espaço urbano, bem como a atuação dos agentes políticos e financeiros nesse campo. As rebeliões deflagradas, sobretudo pela multidão metropolitana, tiveram como pano de fundo a agudização da crise urbana, no entanto as forças políticas da chamada esquerda instituída ainda estão longe de compreender as complexidades próprias do fenômeno urbano fora do prisma estreito da contradição capital-trabalho. Também é evidente que compreender as contradições próprias da lógica de apropriação do espaço, sob os marcos do neoliberalismo, do planejamento estratégico e da cidade-empresa, é pressuposto para a compreensão da crise urbana, razão última das jornadas de junho de 2013, expressa no agravamento da mobilidade urbana e da questão habitacional, pautas centrais na atualidade.

    IHU On-Line – Quais são os principais desafios do movimento urbano na busca pelo comum?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – As transformações experimentadas no mundo do trabalho e as novas configurações da classe trabalhadora que emergiram da crise do fordismo colocaram desafios enormes às esquerdas tradicionais e especialmente à organização sindical que não está preparada para se opor de maneira ampla e contundente aos processos de acumulação por espoliação, sem contar que o neoliberalismo teve como um dos escopos principais o enfraquecimento das formas tradicionais de organização e luta do trabalho. Se, como diz Harvey, [10] na atualidade a acumulação por espoliação de fato está no primeiro plano da acumulação capitalista global, inegavelmente as lutas contra o saqueio neoliberal das nossas vidas, bens e formas de existência também ocupam hoje o primeiro plano das resistências contra o Estado-capital e, como as vidas são muitas, as lutas também são múltiplas.

    Ademais, como os métodos e as formas organizativas do mundo do trabalho são diretamente vinculados a um modo específico de viver e sentir a vida, cabe considerar as mutações operadas no mundo do trabalho que expressam, em síntese, a passagem do conceito de operário-massa para a noção de operário-social, o que se dá especialmente a partir da crise do fordismo e da emergência do chamado capitalismo cognitivo e imaterial que confere primazia à produção de subjetividades. Ocorre que a produção de subjetividade operada e determinada pelo poder instituído sempre deixa margem às resistências pela via de “dispositivos irresistíveis” (NEGRI, 2004). Entretanto, demorou muito para que as forças tradicionais de esquerda começassem a perceber o papel da subjetividade, tanto no domínio biopolítico exercido pelo Império, quanto na arena das resistências empreendidas contra o Estado-capital, as quais frequentemente trazem consigo a afirmação constituinte de outras formas de vida e relações pós-capitalistas. Se, de um lado, nos marcos do capitalismo cognitivo e imaterial, a produção de subjetividade ganha progressivamente importância na extração de mais valor (valores subjetivos agregados ao produto), por outro, a produção de novas subjetividades também se torna central para se vislumbrar qualquer ruptura com o domínio imperial e com o controle biopolítico exercido pelo Estado-capital. Porém, como diz Lazzarato, [11] estamos num momento em que “os métodos para a produção de subjetividade que brotaram do leninismo (o partido, a concepção da classe operária como vanguarda, o ‘revolucionário profissional’) não são mais relevantes para as composições de classes atuais” (LAZZARATO, 2014:19). Isso graças à perda de centralidade do proletariado (representado por um partido de vanguarda) como o sujeito revolucionário por excelência, especialmente em face da crise do fordismo e a nova configuração do trabalho imaterial que modificou profundamente a natureza e a composição da classe trabalhadora mundial.

    Horizontalidade

    Há muitos outros desafios para além daqueles inerentes às mudanças operadas no mundo do trabalho. Dentre eles a construção de processos autônomos e horizontais de produção coletiva, formação política e ação direta que canalizem as insatisfações dos(as) citadinos(as) e que expressem a construção do comum em oposição ao Estado-capital. Porém, lamentavelmente, as forças políticas construídas pela esquerda brasileira no último quarto do século passado, especialmente os partidos políticos e as centrais sindicais, mostraram-se inadequados como ferramentas políticas aptas a dar vazão à força multitudinária que eclodiu nas ruas em junho. As rebeliões urbanas de 2013 colocam às organizações tradicionais de esquerda a necessidade de rever velhas práticas políticas, reformular concepções tidas como verdades absolutas e ter humildade para se colocar lado a lado, horizontalmente, com a multidão que abalou as estruturas do poder instituído. Quem sabe assim, partindo da compreensão de que essa multidão metropolitana (que não se reduz à classe operária e seus aparelhos de representação) pode se revelar como potência constituinte frente ao poder instituído quando seus múltiplos desejos se confluem, essa velha esquerda possa contribuir na edificação de uma alternativa que confronte o controle biopolítico do Estado-capital a partir da produção do comum. Nas maiores metrópoles brasileiras atualmente, grandes projetos urbanos concebidos via parceria público-privada à revelia da população chamam a atenção como importantes trincheiras de organização multitudinária, mobilização política, constituição do comum e produção de novas subjetividades. Não somente pela amplitude desses projetos que muitas vezes afetam a vida de parte considerável da população, mas também por serem a expressão mais bem acabada da lógica de gerenciamento empresarial do espaço urbano.

    IHU On-Line – Frente os desafios habitacionais de nosso tempo, que estratégias são mais condizentes com a constituição do poder popular? Por que as ocupações se constituem em uma forma não somente de luta por moradia, mas também política?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – No Brasil, a questão habitacional é uma das principais questões modernas não resolvidas pela modernidade, o que ainda torna a luta pela moradia central na atuação dos movimentos urbanos, os quais recorrentemente utilizam as ocupações de imóveis ociosos como mecanismo legítimo de pressão política e efetivação do direito de morar. A legitimidade da retomada organizada ou espontânea de vazios urbanos inutilizados encontra guarida no próprio ordenamento jurídico nacional, sobretudo na função social da propriedade urbana, cumulada com o princípio democrático que pressupõe o direito de lutar pela efetivação dos direitos e o direito constitucional à moradia adequada que também goza de proteção no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é país signatário.

    Para além do objetivo imediato de conquista da moradia, a retomada de vazios urbanos pelos sem-teto implica a experimentação de novas formas de apropriação do espaço, nas quais princípios como a cooperação, o coletivismo ou a democracia real ganham conteúdo subversivo sob certas condições. É nesse domínio que a multidão (também) se revela como contrapoder: resistência, insurgência e poder constituinte, conjuntamente articulados, dinamicamente imbricados, ora mais, ora menos. Essas três dimensões do contrapoder, organicamente coadunadas, também podem ser identificadas na luta das ocupações de sem-teto. Resistência contra o desalojamento, liminarmente concedido, tão logo divulgada e denunciada a violação coletiva da cerca que protegia a ilegalidade do descumprimento da função social. Poder insurgente, por sua vez, consubstanciado na quebra do estatuto de propriedade como instituição protegida pelo Estado (constituído). Força constituinte conformada pela multidão na defesa e construção do comum urbano, cuja potência pode criar territorialidades contra-hegemônicas, novas sociabilidades, modos de vida, experimentações e narrativas insurgentes, em que pese o poder simbólico e material da cidade-empresa. Especialmente na última década e, ainda com maior intensidade, após as jornadas de junho de 2013, as ocupações organizadas por movimentos sociais se multiplicam nas metrópoles brasileiras, não raro garantindo o assentamento de milhares de famílias pobres que não podem aceder à aquisição da moradia, como é o caso de Belo Horizonte, em que grandes ocupações têm possibilitado moradia digna a milhares de famílias, a exemplo das ocupações da Izidora, [12] Dandara [13] etc.

    IHU On-Line – Que novas formas de convivência e, portanto, biopolíticas emergem com as ocupações nas Metrópoles?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – Nos territórios recuperados pelos sem-teto, a multidão se explicita como carne no fazer comum, organismo multiforme no qual não é possível diferenciar propriamente o corpóreo e o intelectual, a práxis e a teoria, a experiência concreta e o projeto encarnado. Enquanto o Estado e a iniciativa privada só têm o Minha Casa Minha Vida a oferecer, verticalmente, como política habitacional, com unidades rígidas, projetos padronizados e conflitantes com as culturas construtivas dos(as) pobres urbanos, as ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades. A autoconstrução nas ocupações urbanas é uma modalidade aberta de produção habitacional que respeita as práticas culturais e as singularidades dos pobres urbanos. Cabe lembrar que as ocupações e outras práticas de autoconstrução de moradias fazem parte da história de formação, expansão e esgarçamento das grandes cidades brasileiras, não há qualquer novidade em pobres ocupando imóveis ociosos para autoconstruir suas moradias e experimentar nos territórios aí constituídos formas de vida, produção, convivência e sociabilidade singulares. Como frequentemente afirmam os movimentos, a luta das ocupações de moradia não se reduz apenas à defesa do direito à moradia, não raro ainda confundido com o direito de propriedade, mas também dizem respeito ao direito à cidade.
    “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras”

    Resistência

    Isso também implica a defesa pelas famílias sem teto do seu modo de viver e ocupar o espaço na cidade, com autonomia para determinar, por exemplo, a tipologia e o tempo de construção da moradia, tempo quase sempre estendido e condicionado às condições econômicas de cada família, mas por outro lado sem o risco de retomada compulsória pela instituição financeira credora ao longo das décadas do financiamento imobiliário contratado. Nas ocupações, o risco do despejo por parte do Estado, por sua vez, é contornado pela fé coletiva no êxito da resistência organizada em rede para a defesa do território comum. Em Belo Horizonte, desde 2008, nenhuma ocupação urbana organizada pelos movimentos foi despejada! Dentre os desafios colocados aos movimentos urbanos e às novas ocupações de sem teto, destacamos a necessidade de se superar o limite estreito da propriedade privada dentro das próprias ocupações, com a demarcação de lotes individuais, para experimentar formas coletivas inovadoras de apropriação espacial, bem como avançar na dimensão constituinte da resistência, com a produção de equipamentos e práticas coletivas (econômicas, políticas e culturais) que aprofundem a produção de novas subjetividades nessas ocupações. Para tanto, talvez o primeiro passo seja conceber tais ocupações como espaços comuns de resistência biopotente e exercício democrático na metrópole contemporânea, sujeitos indispensáveis à construção de uma nova sociabilidade urbana.

    *Esta entrevista foi publicada originalmente na Revista IHU On-Line, Nº. 474, de 05/10/2015

    Notas:

    [1] Peter Pal Pelbart: graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, e em Filosofia pela Sorbonne, em Paris, é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP com a dissertação Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão (2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2009). Cursou doutorado na USP e é livre docente pela PUCSP. Entre outras obras, é autor de Vida capital. Ensaios de biopolítica (São Paulo: Iluminuras, 2003) e O tempo não reconciliado (São Paulo: Perspectiva, 1998). Leciona na PUCSP. (Nota da IHU On-Line)

    [2] Parque Taksim Gezi: é um parque urbano situado na Praça Taksim, no distrito de Beyoğlu, em Istambul, na Turquia. É um dos parques de menor tamanho da cidade. Em maio de 2013, o anúncio governamental de um plano que pretende demolir o parque para dar lugar à reconstrução do histórico Quartel Militar Taksim (demolido em 1940) e, também, à construção de um centro comercial, desencadeou uma onda de protestos na Turquia. (Nota da IHU On-Line)

    [3] Parque Augusta: é uma área de 24 mil metros quadrados, delimitada pelas Ruas Augusta, Marquês de Paranaguá, Caio Prado, no centro da Cidade De São Paulo. É uma propriedade privada, mas com áreas registradas em cartório como públicas – 80% dela não pode, por lei, ser alterada – e que uma parcela significativa da população paulistana quer ver transformada em parque público sem edificações em seu interior. (Nota da IHU On-Line)

    [4] Praça Tahrir cujo equivalente latino é “Praça da Libertação”): é a maior praça pública no centro de Cairo, Egito. Originalmente chamada Praça de Ismail, em honra a Ismail Paxá, vice-rei (quediva) do Egito no século XIX, que comissionou o projeto arquitetônico do novo distrito central da capital egípcia na década de 1860. Depois da Revolução Egípcia de 1952, quando o Egito deixou de ser uma monarquia constitucional e tornou-se uma república, a praça passou a se chamar midan al-tahrir, praça da libertação. (Nota da IHU On-Line)

    [5] Puerta del Sol: é um dos locais mais famosos e concorridos da cidade espanhola de Madrid. É neste local que se encontra desde 1950, o quilómetro zero das estradas espanholas.Em 2011 a praça foi ocupada por integrantes do Movimento 15M que protestavam por uma democracia mais participativa na Espanha. (Nota da IHU On-Line)

    [6] Ocupe Estelita: é um movimento social que se contrapõe à construação de 12 torres de uso residencial e comercial no Cais José Estelita, em Recife, Pernambunco. O local o abrigava o pátio ferroviário onde foi inaugurada a segunda linha ferroviária urbana do Brasil, em 1859, por Dom Pedro. (Nota da IHU On-Line)

    [7] Praia da Estação: trata-se de um movimento que surgiu em 2010 como uma reação a um decreto da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, um dos pontos turísticos mais antigos da capital mineira. (Nota da IHU On-Line)

    [8] Friedrich Engels (1820-1895): filósofo alemão que, junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo científico ou comunismo. Ele foi co-autor de diversas obras com Marx, e entre as mais conhecidas destacam-se o Manifesto Comunista e O Capital. Grande companheiro intelectual de Karl Marx, escreveu livros de profunda análise social. (Nota da IHU On-Line)

    [9] Henri Lefebvre (1901—1991): foi um filósofo marxista e sociólogo francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, onde se graduou em 1920. (Nota da IHU On-Line)

    [10] David Harvey (1935): é um geógrafo marxista britânico, formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana. (Nota da IHU On-Line)

    [11] Maurizio Lazzarato: Sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. É um dos fundadores da revista Multitudes. O IHU já publicou uma série de textos e entrevistas com Maurizio Lazzarato entre elas: O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte. Entrevista com Maurizio Lazzarato publicada na IHU On-Line, edição 468, de 29-06-2015, disponível em http://bit.ly/1WmGF9v; Subverter a máquina da dívida infinita. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 02-06-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1N0i2JB; “Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo”. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 05-01-2011, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejolW; “Os críticos do Bolsa Família deveriam ler Foucault…” Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 15-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GLy9d9; Capitalismo cognitivo e trabalho imaterial. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejOsv; As Revoluções do Capitalismo. Um novo livro de Maurizio Lazzarato. Reportagem publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GXuMlq. (Nota da IHU On-Line)

    [12] Resiste Izidora: batizada de Izidora, a ocupação mineira é formada por 3 vilas interligadas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) e tem cerca de 20 mil pessoas a mais que a paulista, quase todas morando em casas de alvenaria. A enorme área da Mata do Izidoro, na região norte da capital mineira. (Nota da IHU On-Line)

    [13] Ocupação Dandara: ocupação urbana na região norte de BH- MG que conta com mais de 1000 famílias organizadas há mais de 5 anos na luta por uma vida mais digna. (Nota da IHU On-Line)

    Referências

    CAVA, Bruno. Metrópole como usina biopolítica. O trabalho da metrópole: transformações biopolíticas e a virada do comum na conjuntura brasileira. In Revista on line do Instituto Humanitas Unisinos. Ano XV, nº. 464, 2015. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php… d=5909&secao=464. Acesso em 04 de julho de 2015.

    ENGELS, Friederich. A questão da habitação. São Paulo: Acadêmica, 1988.

    HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração – Isso não é um manifesto. São Paulo: n-1 edições, 2014.

    HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 2ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

    HERREROS, Tomás; e RODRÍGUEZ, Adriá. Revolução 2.0: direitos emergentes e reinvenção da democracia. In: Revolução 2.0 e a crise do capitalismo global. COCCO, Giuseppe e ALBAGLI, Sarita (Org.). Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2012.

    LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo, Editora n-1, 2014.

    LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. 2ª ed., Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.

    LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

    NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da multidão. In revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Comunicação, nº. 19-20, 2004.

    PAULA, João Antônio de. As cidades e A cidade e a universidade. In: As cidades da cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

    PELBART, P. P. Vida capital. Ensaios de biopolítica. Ed. Iluminuras: São Paulo, 1ª Ed., 2ª reimpr., 2011.

    Fonte: IHU, quinta-feira, 8 de outubro de 2015

  • Guilherme Boulos: “Não há saída mágica, é preciso retomar as ruas e o trabalho de base”

    Guilherme Boulos: “Não há saída mágica, é preciso retomar as ruas e o trabalho de base”

    Guilherme Boulos
    Guilherme Boulos

    Há um dilema na esquerda brasileira em meio a uma conjuntura negativa em todos os âmbitos. Em meio ao desmoronamento do projeto de poder lulista, que aglutinou durante décadas amplos setores da esquerda, vemos o avanço do capitalismo financeiro sobre os direitos trabalhistas, expresso também pela atual investida contra a previdência, o seguro-desemprego e a institucionalizada lei das terceirizações sem limites.

    “O caminho para a retomada de um novo ciclo de mobilizações é o aprofundamento e a radicalização do trabalho de base. É o que nós acreditamos e vemos a Frente Povo Sem Medo como um instrumento para atingir esse objetivo”, afirma Guilherme Boulos, em entrevista concedida ao Correio da Cidadania. Para ele, é preciso se defender do avanço conservador, mas também criticar e se opor às políticas de austeridade.

    Nesse sentido, diversos esforços têm sido feitos. No âmbito do lulismo, foi formada a Frente Brasil Popular, com a militância governista à frente e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como grande figura, ladeado por nomes como João Pedro Stédile, líder do MST. É inevitável associá-la à disputa presidencial de 2018. Apesar disso, vê-se um esforço por parte da militância em barrar retrocessos sociais promovidos pelo líderes do Congresso.

    “A saída para a crise não pode ser a proposta pela direita. Tampouco são essas políticas de austeridade, que põem a conta nas costas dos trabalhadores. Precisamos de uma saída à esquerda, taxar os ricos e fazer o enfrentamento necessário para que tenhamos um projeto popular”, afirmou.

    Guilherme Boulos, além de ressaltar a urgência de se promover o trabalho de base, faz uma breve análise sobre sua decadência como prática da esquerda e dos movimentos sociais, apesar de sua importância para uma retomada das ruas. “O preço de ter deixado o trabalho de base para centrar-se na disputa institucional foi altíssimo para a esquerda brasileira. E não tem espaço vazio na política. Esse espaço foi ocupado, hoje, principalmente pelas igrejas pentecostais e neopentecostais. Elas fazem trabalho de base”, pontuou.

    Confira abaixo a entrevista completa.

    Correio da Cidadania: É possível defender reformas com viés popular e ao mesmo tempo demonstrar apoio, ainda que crítico, ao governo federal e sua série de políticas de austeridade?

    Guilherme Boulos: A nossa postura não é de apoio ao governo. É uma postura de defesa das reformas populares e de crítica às políticas de austeridade. Isso precisa ficar claro. Por outro lado, nós não nos misturamos com aqueles que defendem a derrubada do governo, acabando por construir uma saída ainda mais à direita do que a colocada hoje no país. Nós não acreditamos que a construção com o Michel Temer e o PSDB possa ser boa para os brasileiros. Por outro lado, isso não nos faz defender o governo. É importante dizer isso. Se transformarem a discussão em “pão-pão, queijo-queijo” não conseguimos fazer uma discussão séria. O cenário é complexo e precisamos de posições que o respondam.

    O que estamos construindo na Frente Povo Sem Medo (e também reflete a posição do MTST), é a necessidade de um enfrentamento às políticas de austeridade do governo. Ao mesmo tempo, fazer enfrentamento a essa ofensiva conservadora que ocorre no país e não tem só o governo como parte, mas também setores da direita histórica brasileira, encastelados no parlamento.

    Uma elite típica da Casa Grande, que promove um discurso e uma prática nesse sentido. E, claro, defendemos uma saída à esquerda, com reformas populares. A saída para a crise não pode ser a proposta pela direita. Tampouco são as políticas de austeridade, que põem a conta nas costas dos trabalhadores. Precisamos de uma saída à esquerda, taxar os ricos e fazer o enfrentamento necessário para que tenhamos um projeto popular em pauta.

    Correio da Cidadania: Qual sua perspectiva, através da Frente Povo Sem Medo, para chegarmos ao ponto de taxar as grandes fortunas e, enfim, termos uma resposta com corte popular à conjuntura?

    Guilherme Boulos: Precisamos retomar as ruas. Programa revolucionário nunca fez revolução. Não adianta ter as melhores ideias e os melhores programas se não tiver força social. Não vai ter gente na rua para defendê-los. Isso é esquecido por uma parte da esquerda que fica em uma coisa quase masturbatória em torno de programas que não acumulam força e não geram impacto social.

    A proposta da Frente Povo Sem Medo é reconstruir um ciclo de mobilização social no Brasil. Construir uma capacidade de mobilização que implica trabalho de base, ou seja, a retomada do trabalho de base dos movimentos sociais e a construção de uma agenda de amplas mobilizações. Acreditamos que isso trará condições para estabelecer de forma séria um projeto de reformas populares e de saída da crise “pela esquerda”.

    Correio da Cidadania: Há outros movimentos que fazem uma leitura parecida, por exemplo, a CUFA (Central Única das Favelas) que coloca que a esquerda, seja ela partidária ou de movimentos da sociedade civil em geral, se ausentou completamente nas últimas décadas das periferias e esse espaço foi ocupado por outros setores, como por exemplo as igrejas neopentecostais. E, por falar sobre redes e ruas, como você avalia que a esquerda possa retomar esse espaço de protagonismo na disputa política pelas periferias?

    Guilherme Boulos: Isso é essencial. O trabalho que a esquerda brasileira desenvolveu nos anos 80, por exemplo, com o sindicalismo enraizado, uma série de iniciativas comunitárias, como as Comunidades Eclesiais de Base que desenvolveram um método bastante utilizado na base, foi sendo paulatinamente substituído por uma estratégia parlamentar institucional. A questão não era mais formar núcleos nas comunidades. A questão era formar comitês eleitorais, eleger uma bancada parlamentar maior, prefeitos, governadores e chegar à presidência da República. Chegou-se lá. E todo o processo, ao contrário do discurso de que “faríamos isso para mudar o sistema político”, acabou absorvido pelo sistema político.

    O preço de ter deixado o trabalho de base para centrar-se na disputa institucional foi altíssimo para a esquerda brasileira. E não tem espaço vazio. Como se mencionou, tal espaço foi ocupado, principalmente, pelas igrejas pentecostais e neopentecostais, porque elas fazem trabalho de base. O que a esquerda deixou de fazer, elas fazem. Às vezes o pessoal se impressiona: “poxa, que coisa incrível, eles colocam um milhão na rua, o que está acontecendo?” Eles fazem o feijão com arroz que a esquerda e os movimentos sociais já fizeram e deixaram de fazer. Temos que retomar isso. Às vezes o pessoal acredita em saídas mágicas. Não há saída mágica para a construção social.

    Temos novas condições, como as redes sociais, campo de uma disputa que também precisa ser travada. Não podemos ter uma visão conservadora quanto a isso, uma visão “brucutu” sobre as redes, mas ao mesmo tempo não podemos continuar mistificando quais são as saídas. É preciso fazer trabalho de base, nosso feijão com arroz. É preciso subir o morro, sujar o pé com barro, gastar tempo, estar com as pessoas, ao lado delas.

    Se a esquerda não retomar isso, a ofensiva conservadora só vai crescer no nosso país. O caminho para a retomada de um novo ciclo de mobilizações é o aprofundamento e a radicalização do trabalho de base. É nisso que nós acreditamos e vemos a Frente Povo Sem Medo como um instrumento para atingir tal objetivo.

    Correio da Cidadania: Tendo em vista esse dilema, entre um projeto institucional e a proposta de retomar o trabalho de base, conceitos que naturalmente se chocam, como é possível construir uma alternativa de esquerda e, ao mesmo tempo, manter um diálogo próximo com os setores que abandonaram o trabalho de base em troca da institucionalidade?

    Guilherme Boulos: Uma parte da esquerda comete o erro de achar que dialogar é contaminar, que não se pode dialogar e compor um espaço com quem se diverge, porque seria uma traição, uma contaminação, ou seja, é uma ideia muito purista. Nós temos na esquerda um purismo muito danoso. É meio que o discurso do ovo de ouro, não é? O ovo de ouro é uma coisa brilhante, bonita, mas não serve para nada. Ter um discurso puro, reto, perfeito, não dialogar com as contradições, não dialogar com quem tem base social, me desculpe, podem dizer o que quiserem, mas a CUT é a maior central sindical do Brasil, onde está a maior parte dos sindicatos do país. Achar que vamos construir espaços de unidade, de mobilização social, sem dialogar com a CUT, é uma ilusão. Eu não acredito nisso. Posso não concordar com tudo o que a CUT diz, mas nem por isso eu não posso sentar e discutir com ela.

    O que define uma alternativa é o tom que ela vai ter. Se há um acordo, do ponto de vista de enfrentar a ofensiva conservadora e as políticas de austeridade do atual governo, de manter uma independência firme e de construção de saídas populares para a crise, essa é a plataforma. Se fulano ou cicrano estão ali ou não, não somos nós quem vamos definir. Unidade se faz dessa forma, não é só com quem a gente concorda. Isso não é unidade, é identidade. Quem não tem capacidade de tolerar e dialogar com quem pensa diferente não vai construir nada de relevante no país.

    Correio da Cidadania: Diante de toda essa conjuntura, como fica a questão da moradia? As políticas públicas e os setores da sociedade organizados em torno de tal demanda?

    Guilherme Boulos: Junto com os servidores públicos, a moradia foi o setor mais atacado pelo ajuste fiscal. O Minha Casa Minha Vida foi paralisado. Este ano não houve contratações para o programa. Só um, o empreendimento Copa do Povo, do MTST. Enfim, praticamente foram zeradas as contratações no país todo, em nome de políticas que fazem os trabalhadores pagarem pela crise.

    Temos críticas ao programa Minha Casa Minha Vida. Vemos vários limites nele. Mas a alternativa não é acabar com esse programa e deixar o país sem política habitacional. O MTST tem feito vários enfrentamentos: semana passada, ocupamos sedes do Ministério da Fazendo no país todo, em Brasília, em São Paulo e em outras capitais, para exigir a retomada dos investimentos em habitação popular. A política do governo, de ajuste fiscal, é um tiro no pé. Em todos os sentidos. A questão da construção de habitações não é só deixar de atender a uma demanda social, mas tem a ver com emprego, ou seja, acaba deixando de movimentar a economia.

    O ajuste, quando aumenta juros, corta investimentos e gera recessão na economia, diminui também a arrecadação e pode gerar um novo desajuste fiscal. Essa política que está sendo aplicada é inconsequente, inaceitável e precisa ser enfrentada nas ruas. O MTST tem feito isso, a Frente Povo Sem Medo o fará após sua formalização e, retomando a pergunta, eu digo que a moradia foi o direito social, talvez, mais afetado pelo ajuste fiscal. Junto, claro, com os servidores públicos, tanto que fizemos uma luta conjunta no último dia 23.

    Além disso, vemos uma série de ataques aos trabalhadores através da diminuição do seguro desemprego, pensões etc. Agora estão falando em mexer na previdência, na aposentadoria, um absurdo que precisa ser enfrentado, venha de onde venha. Se fosse um governo do PSDB nós enfrentaríamos na rua. Não é porque o governo que está fazendo isso é do PT que nós não vamos para a rua enfrentar.

    Raphael Sanz e Felipe Bianchi são jornalistas

    Esta entrevista foi feita em parceria com o Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé.

    Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 03 de outubro de 2015