por Marcelo Biar*
Eis aí, em Manaus, uma nova velha rebelião. Nova em Manaus, e velha no Brasil. Repetitiva, arriscaria dizer. Uma rebelião de classe, ainda que sem consciência. Há algo que unifica a história do Carandiru (SP), Pedrinhas (MA) e COMPAJ (AM). São presídios brasileiros e cumprem, ou cumpriram, a mesma função. A de aglutinar excluídos. Na verdade, os presídios são locais que recebem os indesejados a ordem dominante, quando em excesso. Quando extrapolam o quantitativo conveniente e controlável. É assim hoje em dia e também desde o século XIX quando recebia em sua absoluta maioria, escravos indisciplinados. Pois é, pena de privação de liberdade para quem não a tinha. Reclusão e castigo a quem ameaçava a ordem. No Rio de Janeiro, entre 1810 e 1821, tivemos o total de 4776 presos. Destes, 3182 eram escravos, 944 libertos (negros ex escravos) e 20 homens livres**. Neste período, seja pela questão étnica ou pela condição jurídica (escravo ou homem livre) ficava muito fácil identificar quem devia ser reprimido no Brasil. Hoje, reconfigurada a questão étnica e, transformada a questão jurídica em questão de classe, seguimos com a mesma prática. A mesma lógica. O encarceramento do excluído.
Mas não se trata apenas de encarcerar. Na verdade é necessário demarcar este grupo como sendo aquele que erra, para que o projeto de dominação e exploração brasileiro tenha êxito. É preciso, portanto, ter uma prática penal que demarque o indivíduo que delinquiu como impróprio para o convívio social, não apenas no período previsto pela pena, mas por todo o sempre. E, considerando que como preso não temos um sujeito social aleatório que cometeu um delito, mas sim um perfil social muito claramente definido, pode-se, assim, atestar a todos, a incivilidade da classe subalterna. Pronto, a classe social que se apodera do aparato jurídico e repressivo legitimador da ordem classista, criminaliza a existência do grupo social por ela explorado. Transforma o estar à margem em ser criminoso. Ou seja, criminaliza toda identidade do subalterno, justificando e absolvendo a relação de produção que o subalternizou. Absolvendo a si própria da expropriação e naturalizando a diferença de classe.
Completa este quadro o uso que a classe dominante faz do oprimido que, à margem da sociedade, do emprego formal, da condição cidadã e tudo mais, acaba por se ocupar de atividades criminosas que acumulam capital para seu opressor. O tráfico de drogas é um exemplo. A etapa conhecida, temida e criminalizada desta atividade econômica tão contemporânea quanto concentradora de renda é, justamente, a fase varejista que é executada por este subalterno. Este que morre, é preso e não acumula capital. Este que vive e sofre uma peculiar expropriação do grande capital.
O presídio é um setor importante desta lógica expropriadora. É o local, inclusive, de onde o Estado organiza, fomenta e regula o crime a partir da concentração daqueles que o cometeram, e da “faccionalização” deste. Não por acaso as facções criminosas conhecidas e desenvolvidas nas últimas décadas foram criadas dentro dos presídios com clara intervenção e/ou mediação de agentes do estado.
O Estado centauro, aquele que possui parte do corpo voltado para a ausência do Estado (em questões sociais) e outra parte para a grande presença (em questões repressivas), assim chamado pelo sociólogo francês, Loicq Wacquant***, tem seu coração no presídio. Nesta lógica neoliberal, em que quanto maior a ausência do estado no campo social, maior, por consequência, no campo repressivo, o aparato vem se sofisticando. Criaram as SEAPs (secretarias de estado de administração penitenciária), o FUNPEN (Fundo Penitenciário) e uma parafernalha tecnológica como detectores de metal etc. Isto que parece investimento de Estado na questão da segurança é especialização e financiamento de um processo de dominação. As SEAPs são a afirmação do encarceramento como fim, já que de todo amplo espectro da execução penal concentra como seu único foco, a privação de liberdade. Não entende esta como um aspecto de todo um contexto que deve ser abrangido que envolve, dentre outras coisas, a reconfiguração de identidade daquele que delinquiu e a mediação com a sociedade e suas relações para que este sujeito se integre de forma construtiva na mesma. É a afirmação da clausura. Por sua vez, o FUNPEN é o órgão que financia tal prática. Criado em 1994, tem se esmerado em financiar ampliações e construções de cadeias. Ampliação deste sistema.
Neste Brasil que já é o quarto país em população carcerária, Carandiru, Pedrinhas e o recente episódio em Manaus (COMPAJ), são tão somente acidentes de percurso. O problema não são as rebeliões, mas sim o próprio sistema. Mas as rebeliões, contraditoriamente, ao invés de denunciar a falência deste sistema, reforçam no imaginário coletivo a indesejabilidade do preso, e consequentemente do seu grupo social, ratificam a repressão e, pasmem, afirmam a eficiência do Estado que, como se não lhe coubesse responsabilidade no processo de rebelião, aparece com soluções repressivas que nada diferem de suas ações anteriores, mas que parecem redentoras ante grande parte da população amedrontada pelos “perigosos”.
A foto, amplamente divulgada, dos rebelados de Manaus com armamento pesado no interior do presídio, assusta tanto e a tantos que impede que se pense na falência da instituição que, antes mesmo de ser queimada por estes, já se apresenta secularmente apodrecida. A mesma foto dá vida a notícia de que o governo Temer liberará R$1,2 bilhões para o FUNPEN. Divulgada dias antes da rebelião sem maiores repercussões, esta notícia reciclada pela rebelião dá pungência a ação repressora. Reafirma a necessidade de tal prática. Revigora um governo ilegítimo e gestor das relações que implodiram.
Não se trata, por ora, de discutir se a gestão dos presídios é pública, terceirizada ou privada. Trata-se de negar a ação gestora opressora. O laboratório de negação de direitos e estigmatização que é o presídio contemporâneo. Esta instituição que, não por acaso, surge na afirmação da sociedade burguesa, é um importante mecanismo da dominação de classe. Atua no consenso e na coerção. Na repressão e na construção de subjetividades que legitimam a desigualdade. Tanto quanto podemos dizer que a prisão é um elemento de opressão de classe, podemos afirmar que qualquer um que anseie o fim da desigualdade social, da opressão classista, que não repense a instituição de privação de liberdade estará operando de forma inócua. Assim, seja em Manaus ou na Lava Jato, na prisão de um ladrão de celular ou do Eduardo Cunha, temos que ter cuidado para não alimentar o monstro que quer nos engolir. A prática de violações aos direitos do cidadão é um projeto de poder, seja na sociedade livre, no trato do judiciário, ou na prisão. Quando comemoramos tal prática com aqueles que não simpatizamos reforçamos uma lógica de opressões com a qual, salvo engano, também não simpatizamos. (Espero que não!). O sistema não pode receber o respaldo de quem deseja sua derrocada. Milhares de presos, no Rio de Janeiro, tem o acesso a água limitado a 3 vezes ao dia com duração de 20 minutos e defecam em buracos no chão. Os chamados “buraco do boi”. Quando alguém comemora a chegada de Sérgio Cabral a uma destas prisões, percebendo ou não, aceita tal situação. E pior, a cada ex governador a ter seu direito violado, a despeito de sua indigna conduta na vida pública, milhares de oprimidos seguirão sendo desrespeitados em sua dignidade. Quando se comemora uma ação arbitrária do juiz Sérgio Moro com um réu da Lava Jato, repito, a despeito de sua indigna conduta, milhares de populares sofrerão, ou continuarão a sofrer, tais arbitrariedades. Enfim, não se vence um sistema comemorando suas ações. Não se rompe a exploração de classes fortalecendo seus mecanismos.
Termino recordando uma cena do filme 400 contra 1, baseado no livro homônimo de William de Souza (o Professor, fundador do Comando Vermelho), em que presos comuns ao verem sendo retirados do presídio da Ilha Grande os presos políticos, gritam que estava havendo um engano. Dizem que proletários ali, são eles. Sem entrar no mérito de quem representa o proletariado naquela circunstância, é preciso que se deixe claro que o sistema penitenciário brasileiro e o judiciário com sua prática autoritária, são um projeto classista de dominação e opressão. Em Manaus ou em qualquer lugar, o preso, a despeito do delito cometido, é sim um preso político. Um preso de classe. O desrespeito aos direitos humanos, na cadeia, assim como a arbitrariedade da justiça que fere, por muitas vezes, o próprio direito de defesa e a presunção de inocência, também é um projeto de dominação classista. Não perceber ou não denunciar isto é, portanto, consciente ou não, uma prática reacionária que sustenta esta sociedade desigual.
Manaus, Pedrinhas ou Carandiru, são panelas de pressão. Todas apitam ou explodem. Mas o que devemos discutir não é isto, mas sim a panela em si!
*Marcelo Biar é professor de História com mestrado em Serviço Social e doutorado em História, pela UERJ. De 2007 a 2011 trabalhou como diretor de escola e professor no Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu_ RJ) e é autor dp livro ARQUITETURA DA DOMINAÇÃO: O RIO DE JANEIRO, SUAS PRISÕES E SEUS PRESOS, Editora Revan.
** Este estudo pode ser encontrado no artigo ENTRE DOIS CATIVEIROS: ESCRAVIDÃO URBANA E SISTEMA PRISIONAL NO RIO DE JANEIRO 1790-1821, de Carlos Eduardo M. de Araújo, do livro HISTÓRIA DAS PRISÕES NO BRASIL, Editora Rocco.
*** Loiq Wacquant é um sociólogo francês, autor de AS DUAS FACES DO GUETO e AS PRISÕES DA MISÉRIA.
Às vezes as fotografias enganam. Esta, por exemplo. Representa o gesto de rebeldia de John Carlos e de Tommie Smith no dia em que ganharam medalhas pelos 200 metros nas Olimpíadas de Verão de 1968, na Cidade do México e é certo que me enganou a mim durante muito tempo.
Sempre vi a fotografia como uma imagem poderosa de dois negros descalços, com as cabeças curvadas, de punhos erguidos com luvas negras, enquanto tocava o hino nacional dos Estados Unidos. Era um forte gesto simbólico, tomando posição pelos direitos civis afro-americanos num ano de tragédias que incluíram as mortes de Martin Luther King e de Bobby Kennedy.
É uma foto histórica de dois homens de cor. Por este motivo, nunca prestei realmente atenção ao outro homem, branco como eu, imóvel, no segundo degrau do pódio de metal. Considerava-o como uma presença casual, um extra no momento de Carlos e de Smith, ou mesmo uma espécie de intruso. Com efeito, pensava mesmo que aquele sujeito – que parecia ser apenas um rival inglês – representava na sua gelada imobilidade a vontade de resistir à mudança que Smith e Carlos invocavam no seu protesto silencioso. Mas estava errado.
Graças a um velho artigo de Gianni Mura, hoje descobri a verdade: aquele branco na fotografia é, talvez, o terceiro herói daquela noite de 1968. Chamava-se Peter Norman, era um australiano que tinha chegado às finais dos 200 metros depois de ter corrido uns extraordinários 20.22 nas semi-finais. Só os dois americanos Tommie Smith“O Jacto” e John Carlos tinham feito melhor: 20.14 e 20.12, respectivamente.
Parecia como se a vitória tivesse de ser decidida entre os dois americanos. Norman era um velocista que parecia estar a ter uns bons momentos. John Carlos, anos mais tarde, disse que lhe perguntaram o que tinha acontecido àquele baixote branco de 5’6” de altura e que corria tão rápido quanto ele e Smith, ambos mais altos do que 6’2”.
Chega a hora das finais e o outsider Peter Norman faz a corrida de uma vida, de novo melhorando os seus tempos. Termina a corrida a 20.06, a sua melhor marca de sempre, um recorde australiano que ainda continua de pé, 47 anos depois.
Mas esse recorde não foi suficiente, porque Tommie Smith era verdadeiramente “O Jacto” e respondeu ao recorde australiano de Norman com um recorde mundial. Em suma, foi uma grande corrida.
Contudo, essa corrida nunca seria tão memorável como aquilo que se seguiu na cerimónia de entrega das medalhas.
Não demorou muito depois da corrida para se compreender que algo de grande, sem precedentes, estava prestes a acontecer no pódio de metal. Smith e Carlos decidiram que queriam mostrar a todo o mundo como era a sua luta pelos direitos humanos e a palavra espalhou-se entre os atletas.
Norman era um branco natural da Austrália, um país que tinha leis de apartheid rigorosas, quase tão rígidas como as da África do Sul. Havia tensão e protestos nas ruas da Austrália na sequência de pesadas restrições a imigração não-branca e a leis discriminatórias contra os aborígenes, algumas das quais consistiam em adopções forçadas de crianças nativas a famílias brancas.
Os dois americanos tinham perguntado a Norman se ele acreditava nos direitos humanos. Norman disse que sim. Perguntaram-lhe se acreditava em Deus e ele, que tinha estado no Exército da Salvação, disse que acreditava firmemente em Deus. “Sabíamos que aquilo que iamos fazer era de longe maior que qualquer feito atlético e ele disse: “Estou com vocês” recorda John Carlos, “Esperava ver receio nos olhos de Norman, mas em vez disso vimos amor.”
Smith e Carlos tinham decidido levantar-se no estádio usando o emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, um movimento de atletas que apoiava a luta pela igualdade.
Iriam receber as suas medalhas, descalços, representando a pobreza vivida pelos negros. Iriam calçar as famosas luvas pretas, símbolo da causa dos Panteras Negras. Mas antes de subirem ao pódio perceberam que só tinham um par de luvas. “Calce cada um uma luva” sugeriu Norman. Smith e Carlos aceitaram o conselho.
Mas então, Norman fez ainda mais. “Acredito naquilo que vocês acreditam. Têm um desses para mim?” perguntou ele apontando para o emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos no peito dos outros. “Desse modo, posso mostrar o meu apoio à vossa causa.” Smith admitiu que ficou atónito e que pensou: “Quem é este fulano branco australiano? Ganhou uma medalha de prata, não lhe chega recebê-la e pronto?”
Smith respondeu que não, também porque não queria deixar de usá-lo. Aconteceu que com eles estava um remador americano branco, Paul Hoffman activista do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos. Depois de ouvir tudo aquilo, pensou “se um branco australiano me viesse pedir um emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, por Deus, claro que lho daria!” Hoffman não hesitou “Dei-lhe o único que tinha, o meu”.
Os três avançaram pelo campo e subiram ao pódio: o resto é história, preservada pelo poder da fotografia. “Eu não podia ver o que estava a acontecer,” conta Norman, “[mas] tinha sabido que eles tinham levado avante os seus planos quando uma voz na multidão cantou o hino americano, mas depois se calou. O estádio emudeceu”.
O chefe da delegação Americana jurou que estes atletas iriam pagar enquanto vivessem por esse gesto, um gesto que ele pensava não tinha nada a ver com o desporto. Smith e Carlos foram imediatamente suspensos da equipa olímpica americana e expulsos da aldeia olímpica, enquanto que o remador Hoffman foi acusado de conspiração.
Uma vez em casa, os dois homens mais rápidos do mundo enfrentaram pesadas consequências e ameaças de morte.
Mas, no fim, o tempo provou que eles tinham tido razão e tornaram-se campeões na luta pelos direitos humanos. Com a sua imagem restabelecida, colaboraram com a equipa americana de atletismo, tendo sido erigida uma estátua deles na San Jose State University. Peter Norman não está nesta estátua. A sua ausência do pódio parece o epitáfio de um herói em quem ninguém nunca reparou. Um atleta esquecido, apagado da história mesmo na Austrália, o seu país.
Quatro anos mais tarde, nas Olimpíadas de Verão de 1972, em Munique, na Alemanha, Norman não fez parte da equipa de velocistas australianos, apesar de se ter qualificado treze vezes para os 200 metros e cinco vezes para os 100 metros.
Norman deixou o atletismo de competição depois deste desapontamento, continuando a correr ao nível amador.
Na sua Austrália branqueada, resistindo à mudança, ele foi tratado como um estranho, a sua família foi proscrita e incapaz de arranjar trabalho. Trabalhou uns tempos como professor de ginástica, continuando a lutar contra as desigualdades como sindicalista e trabalhando ocasionalmente num talho. Devido a um ferimento, Norman contraiu gangrena que levou a problemas de depressão e alcoolismo.
Como John Carlos disse “Se nós fomos espancados, Peter enfrentou um país inteiro e sofreu sozinho.” Durante anos, Norman só teve uma oportunidade de se salvar: foi convidado a condenar o gesto dos seus colegas atletas John Carlos e Tommie Smith em troca de um perdão do sistema que o ostracizou.
Um perdão que lhe teria permitido arranjar um emprego estável no Comité Olímpico Australiano e fazer parte da organização dos Jogos Olímpicos de Sydney 2000. Norman nunca cedeu e nunca condenou a escolha dos dois americanos.
Ele foi o maior velocista australiano da história e o detentor do recorde dos 200 metros, contudo nem sequer foi convidado para as Olimpíadas de Sydney. Foi o Comité Olímpico americano, quando soube da notícia, que lhe pediu que se juntasse ao seu grupo e o convidou para a festa de aniversário do campeão olímpico Michael Johnson para quem, Peter Norman era um exemplo e um herói.
Norman morreu repentinamente de ataque cardíaco em 2006 sem que o seu país alguma vez lhe tivesse pedido desculpa pela maneira como o tratara. No seu funeral, Tommie Smith e John Carlos, amigos de Norman desde aquele momento em 1968, e que o tinham como herói carregaram o seu caixão.
“Peter foi um soldado solitário. Escolheu, conscientemente, ser um cordeiro do sacrifício em nome dos direitos humanos. Não há mais ninguém senão ele que a Austrália devia honrar, reconhecer e apreciar” disse John Carlos.
“Ele pagou o preço com a sua escolha,” explicou Tommie Smith. “ Não foi apenas um simples gesto para nos ajudar, foi a SUA luta. Foi um branco, um homem branco australiano entre dois homens de cor, levantando-se no momento da vitória, todos em nome da mesma coisa.”
Só em 2012 o Parlamento australiano aprovou uma moção pedindo formalmente desculpa a Peter Norman e dedicando-lhe um lugar na história com esta declaração:
Esta Câmara “reconhece os extraordinários êxitos atléticos do falecido Peter Norman que ganhou a medalha de prata na corrida de 200 metros nas Olimpíadas da Cidade do México de 1968 num tempo de 20.06 segundos, que ainda se mantém como recorde australiano.”
“Reconhece a coragem de Peter Norman, ao ostentar no pódio um emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, em solidariedade com os atletas afro-americanos Tommie Smith e John Carlos, que fizeram a saudação do “poder negro”.”
“Pede desculpa a Peter Norman pelo mal feito pela Austrália em não o mandar às Olimpíadas de Munique de 1972, apesar de repetidamente se ter qualificado e tardiamente reconhece o poderoso papel desempenhado por Peter Norman na prossecução da igualdade racial.”
Contudo, as palavras que melhor nos lembram Peter Norman são simplesmente as suas próprias palavras ao descreverem os motivos do seu gesto, no documentário “Salute” escrito, dirigido e produzido pelo seu sobrinho Matt.
“Não podia ver por que razão um negro não podia beber a mesma água de uma fonte, apanhar o mesmo autocarro ou ir à mesma escola que um branco. Havia uma injustiça social contra a qual nada podia fazer a partir de onde estava, mas que detestava. Foi dito que ter partilhado a minha medalha de prata com aquele incidente no estrado da vitória diminuiu o meu desempenho. Pelo contrário. Tenho de confessar que fiquei muito orgulhoso por fazer parte dele.”
Quando mesmo hoje parece que a luta pelos direitos humanos e pela igualdade nunca acaba e que vidas inocentes são sacrificadas, temos de recordar as pessoas que fizeram sacrifícios como Peter Norman e tentar seguir o seu exemplo. A igualdade e a justiça não são lutas de uma única comunidade, mas de todos.
Assim, este Outubro quando estiver em San Jose, vou visitar a estátua do Poder Negro Olímpico no campus de San Jose State University e aquele degrau vazio no pódio recordar-me-á um herói esquecido, mas verdadeiramente corajoso, Peter Norman.
Artigo de Riccardo Gazzaniga publicado no seu blogue.
Tradução de Almerinda Bento para esquerda.net
Um dos casos mais emblemáticos dentre todas as prisões políticas presenciadas pela sociedade brasileira a partir das manifestações de junho de 2013 é o de Rafael Braga, preso no Rio de Janeiro por portar um frasco de pinho sol enquanto vagava pelas ruas da cidade em um dos dias de manifestação popular. Talvez o único preso sem vinculo político com os protestos, Rafael recebeu a maior condenação, 5 anos de reclusão. Agora que seu caso chegou ao STF, entrevistamos João Henrique Tristão, advogado da ONG Defensores dos Direitos Humanos, que defende Rafael.
“Malgrado à atitude policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima do material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre”, explicou Tristão.
Em sua visão, o caso de Rafael Braga simboliza bem como o Estado brasileiro “adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer preço visa a manutenção do status quo”, o que explica como as reivindicações de caráter social que marcaram diversos protestos são bloqueadas por todas as instâncias de poder constituído.
“Constatamos, a partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras”, criticou.
A entrevista com João Henrique Tristão, realizada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Além dos ativistas de diversos locais processados pelas instituições de Estado após as históricas manifestações de junho de 2013, chamou atenção o caso de Rafael Braga, preso por portar pinho sol próximo a uma manifestação no Rio de Janeiro. O que você tem a contar do caso e o que espera do STF, que agora tem o processo em mãos?
João Henrique Tristão: O caso do Rafael Braga é um dos que revelam de forma patente a seletividade sob a qual atua o sistema penal e como é a política criminal, em especial o judiciário, o Ministério Público e todas as agências de poder constituídas. O Rafael, como todos sabem, é um jovem negro, pobre, que na época de sua prisão estava em situação de rua. Foi preso num dos dias das manifestações das jornadas de junho, próximo da avenida Presidente Vargas e da Central do Brasil, perto de onde se recolhia. Portava materiais de limpeza, pinho sol e outro desinfetante, e foi pinçado pela polícia que patrulhava a região. Pegaram-no e aduziram que estava causando tumultuando, conduzindo-o à delegacia de forma arbitrária. Posteriormente, segundo o próprio Rafael Braga relatou, apareceu um material já manejado, depois de sua prisão, que foi introduzido no sentido de qualificar aquilo como possível artefato explosivo, tudo à sua revelia.
Malgrado a atitude policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob tal manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima deste material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo, digamos assim. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. Por isso, foi processado pelo artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, que se refere à posse de material explosivo, e condenado a 5 anos de reclusão, de forma totalmente arbitrária e insensível por parte da justiça. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre.
A pena, na época, foi majorada porque o juiz considerou que ele, por estar próximo a lugar de manifestação e concentração de gente, colocou em perigo a vida de muitas pessoas. Uma evidente incongruência, porque o próprio laudo atesta o mínimo de potencialidade do material. Tal aspecto foi objeto dos nossos recursos, mas a 3a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) negou nossa apelação, reduzindo a pena em somente quatro meses, ficando em 4 anos e 8 meses.
Entramos com recursos no STJ e STF. Todavia, é evidente que por má vontade política com o caso e todas as circunstâncias correlatas nosso recurso não foi admitido na 3a. Vice-presidência do TJ-RJ. Por isso, entramos com medidas cabíveis no STJ superar tal apreciação. Não conseguimos êxito e agora recorremos à última instância do judiciário, o STF. Atualmente, o ministro Luiz Fux é relator de um agravo que visa superar esse óbice da apreciação do recurso, para assim reconhecerem e apreciarem o mérito da causa do Rafael Braga.
Correio da Cidadania: Entre os que realmente participavam de atos políticos, há vários outros processados, como um militante da Federação Anarquista Gaúcha e outros 23 cariocas, a exemplo de Sininho, Igor Mendes e Eloisa Samy. Há também casos como o do fotógrafo paulista Sergio Silva, cegado de um olho por bala de borracha, cujo inquérito que investigava abuso policial acabou de ser arquivado. O que esses casos todos refletem pra você, a respeito da democracia brasileira?
João Henrique Tristão: Atualmente, vivemos uma conjuntura política muito obscura, à luz do que deveria ser um estado democrático de direito. Constatamos, a partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras.
Isso mostra a clara tentativa estatal de sufocar e inibir quaisquer atitudes de reivindicação por parte da população. É lamentável, mas infelizmente se adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer preço visa a manutenção do status quo. Seja através da criminalização de movimentos sociais, seja de qualquer outra forma pela qual o Estado possa manter as coisas como estão.
Minha visão política do contexto é exatamente essa. Sobre os 23 ativistas cariocas processados também posso falar, pois o DDH atua no caso. É um processo estapafúrdio. O MP elaborou tudo na base de ilações e conjecturas, no sentido de que haveria vínculo estável e permanente entre todos os ativistas, o que sabemos não ser verdade. É uma clara tentativa de criminalizar movimentos sociais. Basta olhar a conjuntura, a forma de atuação do Estado e a truculência da polícia pra vermos como é clara a tentativa de sufocar qualquer suspiro em prol de um país melhor e mais justo.
Correio da Cidadania: Muitos desses protestos tiveram relação direta com a contestação aos megaeventos esportivos e seus gastos bilionários. Como fica o Rio de Janeiro em meio a isso, que, além da Copa do Mundo, encerrada há um ano, ainda tem uma Olimpíada pela frente? Como você analisa a propalada ideia do ‘legado’?
João Henrique Tristão: Sobre a Copa do Mundo se seguiu a lógica capitalista, que nos “contemplou” com a vinda dos megaeventos. Assim, não se pode falar muito de legado, ao menos a partir do momento em que se investiu e concederam isenções bilionárias a uma entidade privada que agora é alvo de investigações de corrupção, em detrimento de serviços básicos como saúde e educação, que vivem em petição de miséria, no Rio e nacionalmente.
Valorizou-se um evento concebido para uma determinada classe, a dominante, poder acompanhar e usufruir de perto o suposto legado. Isso à margem da maioria esmagadora da população, que vive sem acesso a serviços básicos e muitas vezes em situação deplorável.
No meu entendimento não se pode falar de quaisquer legados, nem mesmo a reforma do Maracanã. Tudo foi feito em detrimento da melhoria de outros serviços, algo ainda mais nefasto, e não trouxe nenhuma benesse para a população. Em relação às Olimpíadas, creio que seguimos a mesma lógica, com seletividade de público e somente pessoas de melhores condições tendo acesso aos eventos.
Pior: temos casos de remoções drásticas de populações que vivem há muito tempo no entorno de alguns palcos desses grandes eventos. Podemos citar a Vila Autódromo, marco de resistência de moradores pobres à beira de um dos locais onde teremos Olimpíada, em constante ameaça de remoções ilegais e arbitrárias da prefeitura. Não consigo constatar nenhum legado para a população.
Correio da Cidadania: Você acha que as instituições brasileiras absorveram algum recado deixado pelas ruas nesses últimos dois anos?
João Henrique Tristão: Infelizmente, acho que as oligarquias midiáticas, os grandes conglomerados corporativos de mídia, foram atores no processo, de maneira que alienaram e deturparam muitos acontecimentos e fatos, tanto das manifestações de junho como nas que se seguiram depois.
Creio que grande parte da população ainda não compreendeu a real essência do que tudo aquilo representou. Hoje vivemos uma conjuntura política conservadora no Congresso Nacional. Quero muito acreditar que nada tenha sido em vão, que muitas pessoas possam ter sido tocadas no sentido de que o poder realmente emana do povo, que o próprio poder constituinte originário nos outorga isso.
Malgrado todos os percalços, deturpados e dissimulados pela grande mídia, quero acreditar que muitas pessoas possam ter se sensibilizado e constatado algo positivo, em termos de sentimentos de protestos e mudança. Quero acreditar que muitas pessoas tenham se sensibilizado e desenvolvido uma nova concepção política dos fatos.
Correio da Cidadania: Como relaciona tudo o que foi aqui conversado com esse ano político, marcado por cortes do orçamento social, desemprego e greves? Acredita que estamos próximos de reviver manifestações similares às de 2013?
João Henrique Tristão: Infelizmente, tenho uma análise política bem específica. Consiste no fato de que vivemos um momento político bastante singular, pois elegemos uma composição ultraconservadora para o Congresso Nacional. Além disso, tivemos as notícias de corrupção envolvendo membros do governo atual. Tudo isso gerou um oportunismo político muito bem manipulado pela grande mídia, que acabou difundindo um sentimento em diversas pessoas – não aquelas que se revoltaram em 2013, mas talvez um pouco também. Tivemos em 2015 protesto mais conservador, que visa principalmente sua própria autotutela, sua própria manutenção. Em março, tal sentimento foi capitaneado pela população de média e alta classe média.
Creio que, analisando a conjuntura e o fenômeno, as manifestações deste ano não podem ser confundidas com aquelas que ficaram marcadas como jornadas de junho. Tem muito oportunismo envolvido e uma classe média manipulada de modo a servir a senhores políticos e senhores do próprio capital, pra tentar desvirtuar a linha de protesto inicialmente adotada, que clamava muito mais por aspectos sociais do que pela própria manutenção de tudo, como vimos em março desse ano, em protestos travestidos de revolta contra a corrupção, algo totalmente genérico e sem pauta.
Evidentemente, a conjuntura atual do país potencializou e de certa forma viabilizou a deturpação do que efetivamente ocorre, aliado, volto a ressaltar, a um oportunismo político muito forte e uma manipulação por parte das grandes oligarquias midiáticas.
Quanto à possibilidade de vermos retornar as pautas das jornadas de junho, espero muito que aconteça. Espero que os atos em prol das pautas realmente necessárias ao país – ou seja, sociais – voltem com força total, como naqueles dias de 2013.
Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas
Fonte: Correio da Cidadania, domingo, 12 de julho de 2015
Documento assinado por 80 entidades de camponeses, povos indígenas e tradicionais encaminhado ao governo critica 17 pontos de projeto de lei, entre eles a impossibilidade de negar acesso a seus conhecimentos e restrições à repartição de benefícios. ISA também apoia iniciativa
Um conjunto inédito de 80 movimentos sociais, organizações e redes da sociedade civil de todo Brasil, entre eles o ISA, divulgou, na sexta (27/2), uma carta condenando duramente o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 02/2015 e a atuação do governo federal nas negociações sobre a proposta.
Aprovado na Câmara no dia 10/2, o PLC tramita no Senado em regime de urgência e pretende facilitar o acesso de pesquisadores e indústrias aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e à agrobiodiversidade.
A carta foi entregue ao secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Francisco Gaetani. Representantes de agricultores familiares, povos indígenas e tradicionais exigiram que sejam ouvidos sobre o PL, que ele seja modificado e que seja retirado o regime de urgência.
“Denunciamos o amplo favorecimento dos setores farmacêutico, de cosméticos e do agronegócio (principalmente sementeiros), a ponto de ameaçar a biodiversidade, os conhecimentos tradicionais associados e programas estruturantes para a segurança e soberania alimentares”, afirma o texto entregue ao MMA.
Assinam o documento o ISA, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coordenação Nacional Quilombola (Conaq), o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Via Campesina e Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS). No dia 20/2, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) também publicou uma nota em que critica o PL .
“Nós fomos alijados do processo. Ao pretender regulamentar o acesso ao patrimônio genético, a proposta acaba por legalizar a biopirataria”, criticou Marciano Toledo da Silva, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
“Ou o governo nos respeita enquanto povos, enquanto essa diversidade que o Brasil tem, ou nós paramos o Brasil em defesa dos nossos direitos. Esse governo não terá paz enquanto nossos direitos não forem respeitados”, advertiu Puyr Tembé, da Apib.
Bastidores
Na reunião, Gaetani voltou a admitir que o projeto tem problemas e que, em sua discussão, não houve participação de representantes de agricultores familiares, povos indígenas e tradicionais “na intensidade demandada”. Ele avaliou que houve desrespeito aos trâmites normais do projeto na Câmara – não foi criada uma comissão para analisá-lo nem designado oficialmente um relator – e atribuiu a isso a redução do espaço de debate sobre a proposta. Gaetani informou que o regime de urgência foi imposto pelo Palácio do Planalto, e não pelo MMA, a partir de uma “demanda do setor privado”.
A reunião foi a última de uma série realizada pelo MMA, ao longo da semana, com os representantes dessas populações sob a justificativa de ouvi-las sobre a regulamentação do PL.
Nos bastidores, o governo trabalha para aprová-lo o mais rápido possível e sem alterações, conforme pedido feito pela ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, ao presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), também na semana passada. Se for aprovado sem mudanças, o projeto segue diretamente à sanção presidencial. Caso sejam feitas modificações, ele volta à Câmara.
Na reunião na sexta, Gaetani negou a articulação e comentou que haveria espaço para “aprimoramentos” na proposta. “Os senadores têm toda a liberdade para discutir alterações”, disse. O secretário reconheceu fragilidades na articulação política do governo na tramitação na Câmara e que o Planalto ainda não definiu uma estratégia política de atuação no Senado. “Ainda não sabemos como abordar os parlamentares”, afirmou.
Protocolo de Nagoya
Dois pontos principais do texto preocupam o MMA: a possibilidade de que o Ministério da Agricultura e não apenas o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) tenha poder fiscalizatório sobre o patrimônio genético; e a possível incompatibilidade do PL com o Protocolo de Nagoya, tratado internacional que rege o assunto ainda não ratificado pelo Brasil.
Numa coletiva no final da tarde de sexta, Gaetani sugeriu que um dispositivo do projeto de fato pode contradizer o protocolo. De acordo com a redação aprovada na Câmara, empresas que desenvolveram produtos com base no patrimônio genético antes da entrada em vigor da nova lei estariam isentas da repartição de benefícios prevista em acordos internacionais dos quais o Brasil seja parte. Na interpretação do MMA, essa isenção deveria valer apenas para produtos da agricultura e alimentação.
O Brasil foi um dos principais apoiadores do Protocolo. Aprovar uma lei que o contradiz significaria ampliar o constrangimento diplomático já existente sobre o tema.
Esse ponto transformou-se numa bandeira dos ruralistas na Câmara sob a justificativa de evitar que produtores rurais fossem obrigados à pagar royaltie sobre variedades de soja e milho, por exemplo, desenvolvidos em outros países. Com o forte lobby da indústria farmacêutica e de cosméticos, no entanto, a redação final acabou mantendo essa isenção para o uso de todo tipo de conhecimento tradicional.
Original: Instituto Socioambiental – ISA, 03-03-2015
Fonte: IHU, 05/03/2015
CARTA CIRCULAR ABERTA
Brasília, 27 de fevereiro de 2015
.
POVOS INDÍGENAS, POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AGRICULTORES FAMILIARES REPUDIAM PROJETO DE LEI QUE VENDE E DESTRÓI A BIODIVERSIDADE NACIONAL
Os Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e os Agricultores Familiares do Brasil, representados por suas entidades e organizações parceiras
abaixo assinadas, vêm expor o seu posicionamento sobre o Projeto de Lei n.º 7.735/2014 (atual PLC n.º 02/2015), que pretende regulamentar o acesso e a expl
oração econômica da biodiversidade e da agrobiodiversidade brasileiras, bem como dos conhecimentos tradicionais associados. De início, registramos que os Povos e Comunidades acima mencionados estão plenamente cientes da atual ofensiva verificada no Brasil contra seus direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal, pela legislação ordinária e por Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, contexto no qual se insere o PL n.º 7.735/2014, apresentado ao Congresso Nacional pelo governo federal em regime de urgência.
Em razão desse cenário, que ameaça a própria existência dos Povos e Comunidades Tradicionais, informamos que as entidades representativas encontram-se unidas e mobilizadas com a determinação de lutar conjuntamente na defesa de seus direitos historicamente conquistados, os quais constituem a base da soberania e democracia constitucional do País.
Especificamente em relação ao PL n.º 7.735/2014, que pretende anular e restringir
nossos direitos, repudiamos a decisão deliberada do Poder Executivo de nos excluir do processo de sua elaboração, sem qualquer debate ou consulta, em violação à Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), à Convenção da Diversidade Biológica (CDB), ao Tratado Internacional dos Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura/FAO (TIRFAA) e à Constituição Federal.
Em contraste a isso, denunciamos o amplo favorecimento dos setores farmacêutico, de cosméticos e do agronegócio (principalmente sementeiros), a ponto de ameaçar a biodiversidade, os conhecimentos tradicionais associados e programas estruturantes para a segurança e soberania alimentares, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com a possibilidade inclusive de legalização da biopirataria.
Tal cenário, reconhecido pelo próprio Governo, resultou em grave desequilíbrio no conteúdo do Projeto de Lei em questão. Além de anistiar as irregularidades e violações históricas e excluir qualquer fiscalização do Poder Público sobre as atividades de acesso e exploração econômica, o PL n.º 7.735/2014 viola direitos já consagrados na legislação brasileira, o que pode ser claramente verificado nos seguintes pontos principais:
(1) Em relação ao acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais:
a) Deixa de prever e inviabiliza a negativa de consentimento prévio dos povos e comunidades tradicionais;
b) Flexibiliza a comprovação do consentimento livre, prévio e informado, em detrimento da proteção de conhecimentos coletivos;
c) Dispensa o consentimento livre, prévio e informado, para o acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado relacionado à alimentação e agricultura; e
d) Permite que empresas nacionais e internacionais acessem e explorem, sem controle e fiscalização, o patrimônio genético brasileiro e os conhecimentos tradicionais associados, permitindo, por exemplo, o acesso de empresas estrangeiras a bancos de sementes.
(2) No que tange à repartição de benefícios:
a) Prevê que apenas produtos acabados serão objeto de repartição de benefícios,
excluindo os produtos intermediários;
b) Restringe a repartição de benefícios aos casos em que o patrimônio genético ou
conhecimento tradicional for qualificado como elemento principal de agregação de valor ao produto;
c) Isenta de repartição de benefícios todos os inúmeros casos de acessos realizados anteriormente ao ano de 2000, e mantém explorações econômicas até hoje;
d) Condiciona a repartição de benefícios apenas aos produtos previstos em Lista
de Classificação a ser elaborada em ato conjunto por seis Ministérios;
e) Estabelece teto, ao invés de base, para o valor a ser pago a título de repartição
de benefícios;
f) Deixa a critério exclusivo das empresas nacionais e internacionais a escolha da modalidade de repartição de benefícios nos casos de acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional de origem não identificável;
g) Isenta microempresas, empresas de pequeno porte e micro empreendedores individuais de repartir benefícios; e
h) Exclui de repartição de benefícios a exploração econômica do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado relacionado à alimentação e agricultura.
(3) No que se refere às definições:
a) Substitui o termo “povos” por “população” ao tratar de povos indígenas;
b) Substitui o termo “agricultor familiar” por “agricultor tradicional”, em afronta à Lei 11.326/2006;
c) Descaracteriza a definição de “sementes crioulas” contida na Lei n.º 10.711/2003;
d) Deixa de prever que o atestado de regularidade de acesso seja prévio
e com debates participativos sobre seus termos ao início das atividades; e
e) Enfim, adotou conceitos à revelia dos detentores dos conhecimentos tradicionais.
Diante do exposto, os Povos Indígenas, os Povos e Comunidades Tradicionais e os
Agricultores Familiares do Brasil exigem o comprometimento do Governo Federal com a reversão do cenário acima denunciado, mediante a correção dos graves equívocos contidos no Projeto de Lei n.º 7.735/2014, de forma a assegurar o respeito e a efetivação dos seus direitos legal e constitucionalmente garantidos.
Declaramos que não mais admitiremos a postura antidemocrática e o engajamento político do Governo Federal, associado aos interesses empresariais e outros, em direção à expropriação da biodiversidade e da agrobiodiversidade brasileiras e dos conhecimentos tradicionais associados.
Reafirmamos, por fim, a nossa determinação de continuar unidos, mobilizados e dispostos a manter-nos em permanente luta na defesa de justiça e de nossos direitos
.
Assinam a presente carta
:
1. Amigos da Terra Brasil
2. Articulação do Semiárido–ASA Brasil
3. Articulação do Seminário–ASA Paraíba
4. Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo-APOINME
5. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil-APIB
6. Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste-ARPINSUDESTE
7. Articulação dos Povos Indígenas do Sul-ARPINSUL
8. Articulação Nacional de Agroecologia–ANA
9. Articulação Pacari
10. Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses
11. Articulação Rosalino de Povos e Comunidades Tradicionais do Norte de Minas
12. AS-PTA–Agricultura Familiar e Agroecologia
13. Associação Agroecológica TIJUPÁ
14. Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica
15. Associação Brasileira de Agroecologia
16. Associação Brasileira de Estudantes de Engenharia Florestal-ABEEF
17. Associação Brasileira de Saúde Coletiva–ABRASCO
18. Associação Cedro-Centro de Estudos e Discussões Romani
19. Associação das Mulheres Organizadas do Vale do Jequitinhonha
20. Associação das Panhadoras de Flores
21. Associação de Agricultura Biodinâmica do Sul
22. Associação de Comunidades da Diáspora Africana por Direito à Alimentação-Rede Kodya
23. Associação de Mulheres Catadoras de Mangabas
24. Associação dos Agricultores Guardiões da Agrobiodiversidade de Tenente Portela-AGABIO
25. Associação dos Retireiros do Araguaia-ARA
26. Associação dos Trabalhadores Assalariados Rurais de Minas Gerais–ADERE/MG
27. Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural–AGAPAN
28. Associação Nacional Ciganas Calins
29. Associação Nacional da Agricultura Camponesa
30. Associação Nacional da Cultura Bantu–ACBANTU
31. Associação para a Pequena Agricultura no Tocantins–APA-TO
32. Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia–AOPA;
33. Bionatur
34. Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida
35. Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas–CAA-NM
36. Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA)
37. Centro Ecológico
38. Comissão Guarany Ivyrupa
39. Comitê Chico Mendes (CCN)
40. Conselho do Povo Terena
41. Conselho dos Povos Indígenas de Mato Grosso do Sul
42. Conselho Indigenista Missionário-CIMI
43. Conselho Nacional das Populações Extrativistas-CNS
44. Cooperativa Coppabacs–AL
45. Cooperativa Grande Sertão
46. Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-COIAB
47. Coordenação Nacional Quilombola-CONAQ
48. Entidade Nacional dos Estudantes de Biologia
49. FASE–Solidariedade e Educação
50. Fórum Brasileiro de Segurança e Sobera
nia Alimentar e Nutricional
51. Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social
52. Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos