Impeachment: o povo é quem mais ordena?
Mais do que debater impeachment como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o urgente desafio é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema-direita, acelere essa questão
Chico Alencar [1]
“Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um de seu bem particular”
Frei Vicente do Salvador, ‘História do Brazil’, 1630
Quantas vezes você já sonhou com o impeachment de Bolsonaro, mesmo estando ele no primeiro semestre de seu mandato presidencial? Desde o afastamento de Fernando Collor, em 1992, esse tipo de procedimento institucional entrou em nosso campo de cogitações. A palavrinha de difícil escrita e pronúncia ficou popularizada a ponto de se inventar até o verbo “impichar”.
A expressão impeachment não existe na nossa Constituição. Mas “impedimento” tem, na Carta Magna, nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais: mediante acusação e processo, os governantes – presidentes, governadores e prefeitos – podem ser afastados de seus cargos, perdendo os mandatos.
O artigo 51 da Constituição, no seu inciso I, diz que compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente da República, o Vice e os Ministros de Estado. Cabe ao Senado processar e julgar, nos crimes de responsabilidade.
E assim já foi feito, concluída a transição (tutelada pelo alto) da ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964 para a Nova República. Os presidentes eleitos Fernando Collor e Dilma Roussef foram destituídos de seus cargos. As circunstâncias e forças políticas que viabilizaram suas derrubadas foram bem distintas. Pode-se dizer, grosso modo, que uma cassação teve viés progressista, a de Collor. Outra, conservador e direitista – a de Dilma, em 2016.
Portanto, o instituto do impeachment não é necessariamente negativo ou positivo, embora sempre de caráter eminentemente político. Impeachment acontece dentro das circunstâncias históricas e da correlação de forças. Abre espaço de disputa aguda, em processo de meses – diferentemente de um golpe de estado, manu militare.
Maioria rara
É fato que raramente se tem, nos parlamentos do Brasil, uma maioria sólida, que garanta as políticas de governo. É verdade que os conservadores, os neoliberais, têm mais facilidade (por terem menos escrúpulos) para montar sua base de sustentação, com base no toma lá dá cá, nos acordos fisiológicos em torno de cargos e liberação de emendas. É incontestável que as maiorias sociais estão subrepresentadas nos legislativos, e não formam maiorias políticas. No Congresso Nacional, as bancadas predominantes são as da bala, dos bancos, da bíblia fundamentalista, do agronegócio, das empreiteiras, da mídia grande e das mineradoras. Do poder econômico monopolista, em síntese.
Mas governar com um programa democrático-popular que mereceu o voto da população, sem fazer concessões rebaixadas, que firam princípios, não é impossível, não dá obrigatoriamente em impeachment. Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo (1989-1992), e Olívio Dutra (1999-2002) e Tarso Genro (2011-2014), no governo do Rio Grande do Sul, não tinham maioria nas respectivas Casas Legislativas e cumpriram seus mandatos até o fim. Sim, sofreram tentativas de destituição, mas a mobilização popular foi decisiva para a continuidade de seus governos.
Cerco popular
Recordo das articulações da bancada malufista para asfixiar e derrubar Erundina. O cerco popular à Câmara de Vereadores da maior cidade do país, com 15 mil manifestantes em apoio ao seu governo, quebrou o que era dado como certo.
“Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Já se disse que quando se alia com a direita e o fisiologismo esses é que acabam governando.
Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário. Essa proposta, que existe como lei em alguns países, já foi apresentada no Congresso Nacional, mas nunca prosperou. Isso revela as limitações do nosso sistema jurídico-político, controlado pelas elites que não aceitam o empoderamento popular.
A Constituição da República Bolivariana da Venezuela é uma das que abriga essa possibilidade. Ela foi praticada lá em 2004, pela revogação do mandato do então presidente Hugo Chávez. Este venceu o pleito, permanecendo no governo, com mais de 58% dos votos (que, aliás, lá são voluntários).
A melhor forma para fazer uma mudança substantiva no nosso sistema político, a fim de torná-lo mais democrático, transparente e representativo, seria através de uma Assembleia Constituinte exclusiva e especificamente convocada para este fim.
Mais do que debater impeachment como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o urgente desafio é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema-direita, acelere essa questão?
Espírito de submissão
Nossa tradição cultural e política não ajuda, como lembra o jurista Fábio Konder Comparato em artigo intitulado ‘Sobre a mudança do regime político no Brasil’ ( no livro A OAB e a Reforma Política Democrática, Brasília, 2014): “A estrutura de poder, própria do capitalismo escravista aqui instalado durante quase quatro séculos, marcou fundamente nossa mentalidade e nossos costumes políticos. Ela forjou, sobretudo no seio da multidão dos pobres de todo gênero – os nascidos ‘para mandados e não para mandar’, conforme a saborosa expressão camoniana – um espírito de submissão incompatível com a vivência democrática”.
No bojo dos processos de impeachment e dos chamados “crimes de responsabilidade”, que fustigam prefeitos, governadores e presidentes, está sempre presente esse ‘pão dormido’ da política nacional, a corrupção. Ela é sistêmica, larvar e mais que dos governos ou mal chamados ‘políticos’: é visceral do Estado brasileiro, enraizada em nossa cultura. Denunciá-la e combatê-la, nessa perspectiva, tem a ver com a premente ética da política, mais do que a propalada ética na política. É a ética da política que garante a qualidade das instituições republicanas na possibilitação dos interesses das maiorias, com transparência e sob controle popular. É ela, massificada como valor, que barrará tentativas manipuladas de “golpes parlamentares”, via impeachments.
Em meio a tantas sombras, nota-se um crescimento da consciência política e um reavivamento da organização e lutas populares. Isso pode nos garantir algumas vitórias, ao menos barrando retrocessos. Há braços!
[1] Chico Alencar é professor de História (UFRJ), escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)