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  • A destruição do mundo do trabalho

    A destruição do mundo do trabalho

    A destruição do mundo do trabalho

    A era do capitalismo digital-financeiro implica a completa possibilidade da substituição do trabalhador vivo pela máquina

    Por José Micaelson Lacerda Morais*

    Texto publicado originalmente no blog A Terra é redonda

    O capitalismo digital-financeiro-de-vigilância impacta o mundo do trabalho de três formas, a saber: (1) reorganização da força de trabalho através da inclusão de uma nova categoria (trabalhadores de aplicativos) que está à margem de qualquer direito trabalhista; (2) como consequência do primeiro, estabelece novas relações de trabalho com grau de exploração maior que o próprio trabalho assalariado; e (3) aumenta o sedimento mais baixo da superpopulação relativa que habita o pauperismo, mesmo para os mais aptos ao trabalho, lançados de forma definitiva à informalidade pelas novas tecnologias e pelo novo padrão de automação da indústria 4.0 (que tanto poupam força de trabalho quanto usam de forma crescente robôs para executar as mais diversas atividades antes realizadas por humanos).

    Nesse contexto, não está em questão somente a desvalorização da capacidade de trabalho de um grande conjunto de atividades humanas, tampouco apenas a substituição parcial da força de trabalho pela máquina. A era do capitalismo digital-financeiro implica a completa possibilidade da substituição do trabalhador vivo pela máquina, consequentemente, uma completa destruição do mundo do trabalho como o conhecemos. O aspecto mais intrigante desse processo é que ele pode não enredar a destruição do processo de acumulação de capital. Tal é sua contradição (acumulação desvinculada do processo de trabalho propriamente dito)! Ao invés desse processo representar a completa destruição do capitalismo, parece prover novos meios ao movimento da acumulação, através do que denominamos de autonomização da autodeterminação do capital (assunto discutido em outro artigo, “O super capitalismo”, também publicado neste site). De forma geral, denominamos de autonomização da autodeterminação do capital o processo que resulta da interação entre financeirização e digitalização da economia, do qual se origina uma nova lógica de acumulação, que abre novas fronteiras para a continuidade do capitalismo, enquanto modo de produção dominante.

    Alguns exemplos do ex-mundo do trabalho. O McDonald’s, a gigante do fast-food, começou a testar um dispositivo de inteligência artificial (IA) em 10 restaurantes na cidade de Chicago, nos EUA, que substitui atendentes humanos do drive-thru por bots. Outro exemplo, ainda no setor de alimentação, mostra que tal substituição está acontecendo não só no setor de atendimento, mas também na própria produção. O Brooklyn Dumpling Shop é um fast-food que abriu as portas recentemente (2021), no Brooklyn,e opera de forma automática, com contato humano zero. O cliente não encontra ninguém ao entrar na loja, o pedido e o pagamento são realizados por meio de um totem, a comida é totalmente feita por uma máquina chamada “monstro”, capaz de produzir 30 mil unidades por hora, depois colocada em um armário que o cliente libera com um código de barras (UOL, 03/06/2021).

    Outra reportagem, também do UOL, de 30/04/2021, traz como título “Sem pedreiro: casal vai viver na 1ª casa feita por impressora 3D na Europa”. A primeira casa europeia produzida quase que inteiramente em 3D, fica no sul da Holanda, em Eindhoven, e foi construída com 24 peças de concreto impressas por uma máquina, dispensando pedreiros e um conjunto de materiais e estruturas, antes necessárias para a construção convencional de uma casa.

    Enquanto isso, na Grande São Paulo:

    “Formado em marketing, Claudio Francisco de Carvalho Junior, 37, faz entregas por aplicativo na cidade de São Paulo há um ano. Ele atua em uma área nobre do centro expandido da capital — passando pela Paulista, Aclimação, Bom Retiro, Barra Funda, Perdizes e Pompeia […] No início da pandemia de covid-19, Carvalho encontrou no delivery uma oportunidade para se manter. Hoje, conta que as dificuldades são muitas, desde situações delicadas no trânsito, a pressão para a entrega rápida, passando por uma remuneração que chega perto da dignidade só se as jornadas passarem de 12 horas diárias […]Os motoboys David, 27, e Francisco, 31, […] viraram entregadores de comida por causa da pandemia […]

    Sem rumo e sem dinheiro, compraram suas motos, baixaram um aplicativo de delivery e, desde então, saem da zona leste da cidade todos os dias em direção ao centro da capital […]

    Os entregadores de aplicativos não são contratados formalmente. Por isso, não recebem benefícios como vale-refeição ou plano de saúde […]Segundo estimativa do Sindmoto (Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Moto-Taxistas do Estado de São Paulo):

    • A cidade de São Paulo tem em torno de 320 mil motociclistas.

    • No estado, são 650 mil.

    A entidade calcula que houve aumento de 20% a 25% no número de motociclistas que passaram a atuar profissionalmente com entregas e outros serviços neste ano, na comparação com 2020” (UOL, 06/2021).

    A realização de tarefas por máquinas e algoritmos vai mais além. A Amazon, por exemplo, vem substituindo o seu setor de RH por robôs, “[…] não apenas para gerenciar funcionários em seus depósitos, mas para supervisionar motoristas contratados, empresas de entrega independentes e até mesmo o desempenho de seus funcionários de escritório” (O GLOBO, 28/06/2021). O curioso é que a matéria da qual foi extraída esta citação tem como título “‘Fui despedido por um robô’: como a Amazon deixa máquinas decidirem destino dos trabalhadores”. Ela conta a história de Stephen Normandin que foi demitido via um e-mail automático.

    “O veterano do Exército de 63 anos ficou pasmo. Ele havia sido despedido por uma máquina. Normandin diz que a Amazon o puniu por coisas além de seu controle que o impediram de concluir suas entregas, como complexos de apartamentos fechados com chave. ‘Eu sou o tipo de cara da velha escola e dou 100% de mim em cada trabalho’, disse ele. ‘Isso realmente me chateou porque estamos falando sobre minha reputação. Eles dizem que eu não fiz o trabalho, quando sei muito bem que fiz’. Na Amazon, as máquinas costumam ser o chefe — contratando, avaliando e demitindo milhões de pessoas com pouca ou nenhuma supervisão humana” (O GLOBO, 28/06/2021).

    Além das linhas de produção dos setores mais dinâmicos da economia mundial, muitas outras atividades já se tornaram praticamente robotizadas, tais como atendimento de call center, consultores financeiros, de vendas e de marketing, até lojas comerciais, como a Amazon Go. Esta última utiliza uma tecnologia denominada de Just Walk Out Shopping, mesmo tipo de tecnologias usada em carros autônomos.

    Sobre os escombros do mundo do trabalho se ergue um capitalismo imparável e ao mesmo tempo autodestrutivo. No entanto, esta autodestruição pode não implicar, necessariamente, sua substituição por outra forma de organização social. Pode, sim, no limite significar a própria aniquilação da vida humana na terra.

    No limite, ainda, parece mesmo que estamos construindo um mundo pelas máquinas e para as máquinas. Até parece, também, que nós humanos e a natureza de forma geral somos apenas inputs agora necessários, mas que seremos ao seu tempo elementos descartáveis desse processo. No intermédio, estamos caminhando para tornar real uma obra de ficção apocalíptica. Entre tantas outras, lembramos de Elysium, um longa-metragem de 2013, do diretor Neill Blomkamp. Apesar de constituir apenas uma obra de entretenimento à moda hollywoodiana, talvez tenha capturado o sentido e a direção que pode tomar a sociedade do capital. Nele, a terra do século XXII não passará de um grande lixão, ainda miseravelmente habitável pelos tantos que foram deixados para trás. Uma seleta parte da humanidade irá viver em abundância, paz e beleza, em um satélite artificial, totalmente robotizado, criado para ser um verdadeiro paraíso.

    Pelo poder alcançado pelo capital com o capitalismo digital-financeiro-de-vigilância, talvez nunca passemos da pré-história humana, no sentido humanista do próprio Marx. A transformação da ciência não só em mercadoria, mas em capital, conferiu a este um poder praticamente sem limites.

    Desde que o gênero homo começou a sua aventura, há cerca de 2,2 milhões de anos, a humanidade não deu um passo sequer em direção a ela mesma. O capital representa nesse processo o ápice de uma construção social totalmente negada por nós, enquanto seres racionais, mas mesmo assim erguida através do roubo de milhares de vida no decorrer do tempo histórico. Todo trabalho acumulado, toda tecnologia desenvolvida, todas as mercadorias produzidas, não foram suficientes para nos mostrar que cada vida importa, nessa nossa curta existência coletiva terrena. De que importa o grau de educação, de saúde, as grandes cidades, a quantidade e a diversidade de produtos, a sofisticação tecnológica que alcançamos, se não nos tratamos como iguais? Se não nos respeitamos como iguais! Se não repartimos os frutos do trabalho social como iguais! Se destruímos com tanta avidez o meio que preserva nossa própria existência!

    Nesse sentido, a nossa capacidade de raciocínio, de planejar, projetar e executar, parece que não serviu para eliminar a violência como forma animal da nossa existência, tão somente serviu para executá-la com requintes de crueldade cada vez mais sofisticados. Movidos por motivos de crença, raça, poder, misoginia, xenofobia, riqueza, ciência, etc., promoveram-se as mais horríveis e grandiosas violências, como as cruzadas, o escravismo capitalista, o nazismo, o neoliberalismo, etc., etc., etc.

    O século XX apresenta-se emblemático para a humanidade. Pois, em apenas um século, criamos a capacidade de destruir milhares de anos da existência humana e de sua história. O anúncio foi feito, em 1945, com a explosão da bomba nuclear em Hiroshima. Por sua vez, a guerra fria fez proliferar armas nucleares como cogumelos. A economia e a ciência promoveram uma devastação contínua na terra, nos rios, oceanos, modificando a própria biosfera do planeta. A mundialização do capital, sua digitalização, e a forma política criada para sua gestão ‒ o neoliberalismo, fizeram as democracias derretem tal como açúcar na água, completou a transformação da política em negócio, por sinal muito lucrativo, separando-a de vez da sociedade. Não há desenvolvimento descontrolado das ciências e das técnicas. Pelo contrário, as ciências e as técnicas se tornaram formas capitais da acumulação pela acumulação, autonomizando completamente o capital dos conteúdos da vida. A regressão política e social a qual estamos imersos talvez tenha um significado maior; da criação mesmo de uma nova sociedade. Não de liberdade, igualdade e justiça para toda a humanidade, talvez tão somente para o pequeno grupo que conseguir deixar o planeta terra antes do seu esgotamento total.

    Como o saudoso Raul Seixas cantava em “ouro de tolo”, “eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”. Eu existo, penso, escrevo e denuncio sobre a nossa condição. E mesmo me sentido abraçado pelo vazio, pois se você não conseguir uma “reserva” nunca que poderá jantar no restaurante do meio científico, eu continuo.

    Todavia, esperar que o “capital” altere sua consciência e sua fome de lucro (que capitalistas, de forma geral, percebam de alguma forma que cada vida importa), parece ser o mesmo que acreditar que a história humana não tenha sido construída sobre a exploração, a expropriação do trabalho e de seus frutos, de muitos por poucos. Nesse sentido, o capitalismo não seria, como pensava Marx, um ponto de inflexão dessa trajetória, mas o coroamento da única forma de sociabilidade possível ao longo de toda história humana, baseada justamente na exploração, expropriação e predação.

    Gostaria de terminar esse artigo de forma otimista. Todavia, parece não existir mais forças humanas e sociais suficientes para frear o poder destrutivo do capital, tão brutal quanto o da própria natureza. As leis de movimento do capital adquiriram tanta inércia que não há mais nada que possa se opor a sua velocidade e trajetória. No limite, a destruição da humanidade. No intermédio, duas formas de sociedade fisicamente separadas. Uma rica e tecnologicamente sofisticada (quem sabe em outro planeta), outra miserável, ambientalmente destruída e vivendo das sobras e descartes tecnológicos da primeira. Eis, aí, o nosso “admirável mundo novo” a caminho da realidade. O capitalismo pode não ser o fim da história, mas pode muito bem ser a história do fim. Ver nossas alternativas de enfrentamento se tornando cada vez exíguas é muito desalentador, mas enquanto houver vida devemos seguir lutando. Todavia, o exclusivismo científico (segregação de pesquisadores por grupo de pesquisa, instituição, região) e a soberba acadêmica (a ciência acima da sociedade e do seu cotidiano) somente adicionam um grau a mais nesse desalento.

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    Trecho do livro O capitalismo e a revolução do valor: apogeu e aniquilação. São Paulo, Amazon (Independently Published), 2021.

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    *José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA.

    Referências

    MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

    O GLOBO. ‘Fui despedido por um robô’: como a Amazon deixa máquinas decidirem destino dos trabalhadores. Publicado em 28/06/2021). Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/fui-despedido-por-um-robo-como-amazon-deixa-maquinas-decidirem-destino-dos-trabalhadores-25079925. Acessado em 15/07/2021.

    UOL. “Almoçar é uma raridade”. Reportagem de Leonardo Martins e Maria Tereza Cruz (Texto) e Tommaso Protti (Fotos). Publicado em 06/2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/desigualdade-na-pandemia—na-rua-e-com-fome/#cover. Acessado em15/07/2021.

    UOL. “Robô ‘monstro’ produz 500 refeições por minuto em novo fast-food de NY”. Publicado em 03/06/2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2021/06/03/novo-fast-food-automatico-produz-500-dumplings-por-minuto-sem-funcionarios.htm?cmpid=copiaecola. Acessado em 15/07/2021.

    UOL. “Sem pedreiro: casal vai viver na 1ª casa feita por impressora 3D na Europa”. Publicado em 30/04/2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/30/sem-pedreiro-casal-vai-viver-em-casa-totalmente-feita-por-impressora-3d.htm?cmpid=copiaecola. Acessado em 15/07/2021.

  • ENTREVISTA – Paulo Buss – “O fim da Unasul impede a formação de uma frente continental contra a pandemia”

    ENTREVISTA – Paulo Buss – “O fim da Unasul impede a formação de uma frente continental contra a pandemia”

    “O fim da Unasul impede a formação de uma frente continental contra a pandemia”

    Por Gilberto Maringoni

    Para Paulo Buss, ex-presidente da Fiocruz e um dos principais sanitaristas brasileiros, um sistema de saúde pública articulado internacionalmente seria decisivo para um combate mais eficiente à Covid-19. Em suas palavras, “O Brasil está sendo salvo por dois institutos públicos de 120 anos de idade: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan. Isso porque são dois institutos do SUS, e não agem pela lógica do mercado”. Na entrevista a seguir, ele fala de como o combate à doença poderia ser mais eficiente.

    A pandemia da Covid-19 poderia ter sido evitada? E o desenrolar poderia ter sido diferente no Brasil?

    Os profissionais que trabalham com doenças infecciosas e epidemiologia já sabiam que a emergência de uma pandemia nessas condições era algo previsível. Nos anos precedentes, aconteceram epidemias de influenza, de Sars-Cov e de MERS [síndromes respiratórias variantes anteriores ao coronavírus, identificadas entre 2002-12]. O surto de Ebola aconteceu em 2015 e foi contido a tempo, pois eclodiu em um lugar em que o transporte é muito precário. Apesar disso, houve casos nos EUA e na Europa. Mas ele despertou tremendo susto e houve uma reação importante, que pouca gente conhece, por parte das Nações Unidas. Foi um grupo de trabalho dirigido pela doutora Amina J. Mohammed, em que se desenvolveu um relatório com uma série de medidas sugeridas, mas nenhuma foi adotada. O mundo continuou fazendo de conta que aquele relatório era só mais uma peça das muitas da ONU. Já o Sars-Cov-2 – o novo coronavírus – aconteceu na China, em uma região altamente populosa, com um transporte abundante, pela infraestrutura negocial da região, e rapidamente se difundiu. Então, podemos dizer que seria evitável. Reduzir o impacto e a difusão também seria possível. Mas, para isso, deveria ter havido resposta e responsabilidade por parte dos dirigentes, que não fizeram o dever de casa proposto por aquele grupo de trabalho.

    De março de 2020, quando a OMS classificou a Covid-19 como pandemia, até dezembro, não havia vacina. Teria sido possível conter a doença com lockdowns e outras medidas não medicamentosas nesse período?

    Houve um desdém por parte das principais autoridades dos países afetados após a ocorrência na China. Os governos da Itália e do Reino Unido minimizaram o problema. Não queriam impacto sobre a economia. A China fez aquele estardalhaço de fechar tudo, mas os países acreditaram não ter sido aquilo que gerou a contenção, e sim a própria história natural da doença. Se tivessem tomado as medidas de contenção tal como a China, que tem uma experiência grande com esse tipo de doença, teriam reduzido não só o número de casos nesses países, como também dado tempo de organizar a resposta dos sistemas de saúde. O grande problema é que a massa de pessoas que passa a ter necessidade de cuidados médicos ultrapassa e muito qualquer capacidade instalada. O ex-ministro da Saúde do Brasil, Luiz Henrique Mandetta, alertou isso o tempo inteiro. Ele estava muito bem assessorado por profissionais competentes da área de vigilância, e que foram catapultados porque o mandatário maior da nação fez ouvidos moucos e operou exatamente como as lideranças da Europa que negligenciaram a questão. Mas lá, rapidamente voltaram atrás. No Brasil, infelizmente, foi o contrário. Continua a negligência e, como estava incomodando, Mandetta foi demitido.

    Parece claro que uma pandemia como esta só pode ser combatida por meio de políticas públicas. Qual tem sido o papel do Estado e da saúde pública nos principais países?

    Quando os casos começaram a se distribuir, a OMS convocou um grupo de especialistas imediatamente. Esses técnicos muito precocemente disseram que se deveria utilizar com rigor o regulamento sanitário internacional, fazendo isolamento, identificação de casos, fechando alguns lugares etc. E houve claramente um rechaço a isso porque os governantes sabem que a iniciativa privada não quer nunca reduzir os lucros. A própria arrecadação pública, que seria reduzida, fez com que os governos ficassem muito resistentes. Faltou esse reconhecimento do papel de autoridade sanitária internacional para a OMS. E esse é um defeito que continua. Foram apresentados três relatórios na Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2021. Um da comissão independente, liderada pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, Helen Clark, e a ex-presidenta da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf; outro do Comitê de Emergências da OMS; e o terceiro do comitê que analisa o funcionamento do regulamento sanitário internacional. Os três foram unânimes em dizer que a OMS atuou dentro dos limites, com razoável grau de acurácia, mas que seriam necessárias mudanças. Uma delas é a tensão entre a recomendação frente a uma pandemia e a soberania dos países. Essa tensão, que é do multilateralismo, não é específica da saúde. E os países, mais uma vez, decidiram agir por conta própria, sempre pensando nos atores econômicos e políticos internos.

    Um grande problema da América Latina foi a eliminação da cooperação em saúde que a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) promovia. Em abril de 2019, Jair Bolsonaro (Brasil), Sebastián Piñera (Chile), Mauricio Macri (Argentina) e Iván Duque (Colômbia) deram um tiro de misericórdia na Unasul. Se tivéssemos o conselho de ministros da época da entidade, poderíamos ter feito uma frente ampla contra a doença

    Muitas pessoas têm feito um paralelo com uma pandemia de 100 anos atrás, a da gripe espanhola, apesar das estatísticas muito precárias da época. Existe algum ensinamento que possamos tirar daquela situação?

    Antes de mais nada, é preciso lembrar que o mundo estava saindo da I Guerra Mundial naquele momento. Apesar das contradições a respeito, os movimentos de tropas foram responsáveis por imensas ondas de contaminação. Se estivessem vivendo um momento de paz, muito provavelmente a pandemia não teria sido tão intensa. Penso que a mudança demográfica, tecnológica, e de capacidade de mobilidade faz com que tenhamos poucas lições dessa pandemia de influenza, ocorrida de 1918 a 1920. Naquele momento, não tínhamos nem antibiótico, que só apareceu na década de 1940. A tecnologia era muito primitiva. A saúde pública se originou com a Revolução Industrial [na segunda metade do século XVIII, na Grã-Bretanha] e as práticas estatais apareceram com a Lei dos Pobres [de 1601, também na Grã-Bretanha], ocasião em que o então líder da saúde na Inglaterra disse: “não sei se são pobres porque são doentes ou se são doentes porque são pobres”. Mas não havia uma autoridade sanitária mundial. A Liga das Nações surgiu depois da I Guerra [em 1919], e logo se criou um comitê de saúde, que foi o anteprojeto de OMS, surgido em 1948.

    A América Latina ainda é o covidário global, como se tem falado há alguns meses?

    Sim, embora já se veja na África em um crescimento de casos muito preocupante, além do sudeste da Ásia. Já se sabe que essas curvas ascendentes estão relacionadas ao Ocidente rico, com a liberação precoce das atividades. Nesses outros países, que têm economias mais atrasadas – com menor mobilidade urbana, como é o caso da África –, a taxa de contato se reduz e o progresso da pandemia é mais lento, mas o crescimento de casos é inexorável, pois a pobreza dá outra sustentação para a expansão.

    Na Argentina, houve uma tentativa de lockdown na grande Buenos Aires, mas a taxa de vacinação não estava alta. Com isso, vimos uma alta de infecção nos últimos meses. O que contribuiu para o alastramento do vírus ali?

    A explicação dos especialistas locais é de que, no início da pandemia, houve uma séria intervenção estatal para o lockdown. Mas, quando o vírus começou a ter fôlego para circular, eles reabriram. Foi uma abertura precoce. Isso, associado a uma baixa taxa de imunização, facilitou muito. A abertura aconteceu porque parecia que o comportamento do vírus não seria como nos outros países, mas o resultado foi desastroso.

    Em Cuba, também houve um controle inicial pelo lockdown. O que contribuiu para a alta recente de casos ali? Seria a volta do turismo no início do ano?

    Sim, abriram a economia desesperadamente no verão. E os turistas, ao mesmo tempo em que poderiam estar levando a doença, poderiam também se contaminar. Por conta do bloqueio, acabou faltando seringa e agulha, entre outras coisas. E olhe que Cuba tem uma medicina de muito boa qualidade. Uma enfermagem muito boa, a mortalidade infantil muito baixa, mas a pandemia chegou por esse caminho.

    No Brasil, o governo federal tem jogado a responsabilidade para os estados. Mas é possível existir uma política nos entes subnacionais diferente da nacional? Nessas condições, seria possível fazer algo como uma contrapolítica sanitária?

    As afirmações do governo federal são falaciosas. Por exemplo, quem regula a mobilidade por meio das viagens interestaduais, dos aviões, são autoridades federais, como a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Um governo estadual pode ter feito uma política melhor do que outro, e muito melhor do que o governo federal, mas não foram realizadas ações controladas a partir de Brasília. O resultado é que a mobilidade continuou farta e fácil, particularmente nas rodovias federais e nas atividades dos caminhoneiros, que deveriam ter sido fortemente estimulados a adotar medidas sanitárias. Um exemplo bem-sucedido foi o do Maranhão. Mesmo quando detectaram casos da variante indiana por lá, atuaram com extrema habilidade e, de fato, tiveram uma das melhores performances a favor da saúde. Em compensação, há exemplos muito ruins, como o Rio de Janeiro, com uma péssima gestão da pandemia, com um governador e um secretário de saúde negociando por baixo do pano, e ao mesmo tempo construindo estruturas completamente inadequadas, apenas para inglês ver. Como consequência, a letalidade é muito alta no Rio.

    Como o senhor avalia a política implementada pelo governador de São Paulo, João Doria?

    Gosto muito de algumas pessoas que compõem a equipe. Por exemplo, levou João Gabbardo, que estava no Ministério na gestão Mandetta. O próprio grupo de gestão da crise funcionou razoavelmente, embora São Paulo não mostre um desempenho muito melhor do que os outros estados, permanecendo na média em termos de denominador. Mas ali temos o principal aeroporto internacional do país.

    Se os países da Europa tivessem tomado as medidas de contenção tal como a China, que tem uma experiência grande com esse tipo de doença, teriam reduzido não só o número de casos nesses países, como também dado tempo de organizar a resposta dos sistemas de saúde. O grande problema é que a massa de pessoas que passa a ter necessidade de cuidados médicos ultrapassa e muito qualquer capacidade instalada

    Se o senhor se tornasse Ministro da Saúde, quais seriam as primeiras medidas que tomaria hoje?

    A coisa mais importante é o fortalecimento da rede de atenção primária, qualificando e dando condições de trabalho aos profissionais. Estamos com uma rede de mais de 50 mil equipes de saúde da família, que é quase inigualável no mundo, mas que tem um subfinanciamento muito grande. Precisamos de um verdadeiro abastecimento de mão de obra, com presença de enfermagem, médicos, agentes comunitários etc. Isso se perdeu. Algo bem feito nos governos do PT, até à época do ex-ministro José Gomes Temporão, foi a enorme valorização da saúde da família. Mas atenção primária não é atenção imediata. Teríamos que, imediatamente, promover uma valorização no sentido de adequar os profissionais de saúde e os materiais. Se existe uma distribuição bem feita da rede, com regras bem definidas e indicadores de alerta, nós rapidamente detectaríamos onde a circulação de um vírus está mais intensa. E isso não é só para enfrentar a pandemia.

    Podemos ver no horizonte um mundo pós-pandemia na nossa região?

    Um grande problema da América Latina foi a eliminação da cooperação em saúde que a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) promovia. Em abril de 2019, Jair Bolsonaro (Brasil), Sebastián Piñera (Chile), Mauricio Macri (Argentina) e Iván Duque (Colômbia) deram um tiro de misericórdia na Unasul. Com isso, desmoronou todo o processo de cooperação. Além disso, o vírus não tem fronteira, a circulação é intensa entre esses países, e nós estamos até hoje sem um mecanismo de coordenação. A mesma coisa valeria para a aquisição de vacinas. Se tivéssemos o conselho de ministros da época da Unasul, poderíamos ter feito uma frente ampla de compra. Teríamos 12 países negociando fortemente com a indústria farmacêutica, segurando os pagamentos e recebendo imunizantes para toda a região. O Brasil está sendo salvo por dois institutos públicos de 120 anos de idade: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan. Isso porque são dois institutos do SUS e não agem pela lógica do mercado. Mas, apesar disso, o governo federal brasileiro não liderou as ações adequadamente, e todas as estruturas interestaduais continuaram na mesma operação antipopulação e pró-enfermidade.

    Uma vida voltada à Saúde Pública

    Paulo Buss é médico, doutor emtomada Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, instituição que presidiu entre 2001-08. Foi secretário executivo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (1979-83) e presidente da Federação Mundial de Saúde Pública (2008-10). Representou o Brasil no Comitê Executivo da Organização Mundial da Saúde (2008-2011) e participou da direção de outros organismos de saúde internacionais. É autor e organizador de diversos livros, entre eles Diplomacia da Saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho (juntamente com Luiz Eduardo Fonseca), disponível para baixar na página da Fiocruz.

  • Qual é a frente necessária para derrotar Bolsonaro?

    Qual é a frente necessária para derrotar Bolsonaro?

    Qual é a frente necessária para derrotar Bolsonaro?

    Quatro dirigentes do partido expõem suas concepções táticas para deter o avanço da extremo direita

    [1] É tempo de fortalecer o partido!

    Este é tempo de partido,
    tempo de homens partidos.
    …Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
    As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.
    Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.

    Carlos Drummond de Andrade

    No Brasil, é possível e imprescindível termos uma candidatura de esquerda radical. Essa candidatura deve apresentar um programa que diga ao povo que os bancos são nossos maiores inimigos, e não que vão ganhar muito com nosso governo. É necessário dizer que o latifúndio e o agronegócio não são heróis, mas os responsáveis pela fome e preços altos dos alimentos, por isso é preciso fazer a reforma agrária. É importante afirmar que qualquer projeto de país que deseje o mínimo de autonomia tem que partir de uma anulação das medidas encaminhadas pelos golpistas, como as privatizações de empresas estratégicas, teto de gastos, reformas da Previdência, Trabalhista, entre outras

    Berna Menezes

    O senso comum e com uma boa dose de razão diz: todos juntos contra Bolsonaro. É natural! Quando vemos desfilando pela grande imprensa e redes sociais as declarações de Bolsonaro, Guedes, Damares, os finados Salles e Weintraub, imaginamos que abriram as portas do inferno. Se olharmos em volta, mais de meio milhão de mortos pelo descaso e irresponsabilidade de Bolsonaro, metade da população em insegurança alimentar e o retorno da fome, milhões de desempregados e subempregados, famílias inteiras morando nas ruas, falência de pequenos agricultores, extermínio da juventude negra nas periferias e dos povos indígenas, fim dos direitos trabalhistas, incêndios florestais ameaçando biomas e espécies, constatamos: é a barbárie! Mas como nossa guerreira Rosa Luxemburgo dizia: Isso de entregar-se por inteiro às misérias de cada dia que passa é coisa inconcebível e intolerável para mim… precisamente um lutador é quem mais tem que esforçar-se para ver as coisas de cima, caso não queira encarrar a cada passo todas as mesquinharias e misérias…, sempre e quando, naturalmente, se trate de um lutador de verdade…

    Espaço amplo

    Por isso, defendemos a mais diversa unidade de ação, como um espaço mais amplo possível, inclusive policlassista, contra Bolsonaro. Portanto, nessa frente social, cabe todo mundo: Globo, CNBB, Maia, Ciro, Requião, PSDB, FHC. Como a frente construída contra a ditadura militar, no movimento pelas “Diretas Já!”, que foi dirigida pelo PMDB. Naquele momento, isso não significou como consequência uma frente eleitoral do PT com o PMDB. Ao contrário, reafirmamos o PT, como partido de classe e seu programa, apoiado na mobilização cotidiana, que se expressou de forma contundente durante o processo constituinte e nas eleições de 1989.

    Pode-se argumentar que a correlação de forças era outra, mas até isso é discutível. A ditadura caiu pela mobilização do povo, mas a transição foi conservadora, pactuada entre os setores da elite brasileira. Por isso, diferentemente da Argentina, a caserna ficou intacta e pode retornar ao poder como se nada tivesse acontecido.

    Defendemos a mais diversa unidade de ação, como um espaço o mais amplo possível, inclusive policlassista, contra Bolsonaro. Nessa frente social, cabe todo mundo: Globo, CNBB, Maia, Ciro, Requião, PSDB, FHC entre outros, como a frente construída contra a ditadura militar, no movimento pelas “Diretas Já!”, que foi dirigida pelo PMDB. Já uma frente eleitoral é definida, além da correlação de forças, por um programa, que delimitará a composição da frente

    A unidade de ação se dá em torno a um ou poucos pontos e cabem todos que tenham esse mesmo objetivo: abaixo a ditadura, Diretas já! Pela Legalidade! Reformas de base já!

    Já uma frente eleitoral é definida, além da correlação de forças, por um programa, já que se pressupõe, em caso de vitória, que se governará junto e que, portanto, deve apresentar uma saída para o país em questão. Por sua vez, o programa delimitará a composição da frente. As frentes eleitorais são uma tática privilegiada para intervirmos em processos nos quais os revolucionários são ainda minoritários.

    Dois exemplos de como enfrentar a ultradireita

    Recentemente, as eleições nos EUA e na Espanha puderam revelar a complexidade da aplicação desses conceitos.

    Após a crise de 2008, ressurge em nível internacional o fenômeno da ultradireita, polarizando com saídas mais à esquerda e o fantasma do comunismo. O governo Trump foi a expressão. Contra esse governo de ultradireita, nas prévias do Partido Democrata, apresentou-se Bernie Sanders, com um programa que, para a correlação de forças gringas, tocava em pontos que iam contra a lógica do capital: sistema de saúde universal e gratuito com a eliminação dos planos privados, perdão das dívidas de financiamento estudantil e sistema de ensino superior gratuito, salário mínimo de 15 dólares/hora. Essa candidatura mobilizou um exército de milhares de jovens e atuou junto a movimentos feministas e negros, além de imigrantes latinos e indígenas que percorreram o país mobilizando eleitores e debatendo programa.

    Após a crise de 2008, ressurge em nível internacional o fenômeno da ultradireita, polarizando com saídas mais à esquerda e o fantasma do comunismo. O governo Trump foi a expressão. Contra ele se apresentou Bernie Sanders, nas prévias do Partido Democrata, com um programa que tocava em pontos que iam contra a lógica do capital

    O final, todos acompanhamos, a elite fechou posição em torno de Biden e Bernie Sanders retira a candidatura, exigindo pontos programáticos do futuro governo. Sem fazer nenhum juízo de valor sobre o processo, o concreto é que a apresentação da candidatura de Sanders, o debate programático que mobilizou uma vanguarda progressista no coração do capital, acumulou para a esquerda norte-americana. O movimento social sai fortalecido e a esquerda ressurge como força importante naquele país.

    Olhemos agora o processo do Podemos na Espanha, partido considerado o irmão do PSOL naquele país. O Podemos foi parido nas gigantescas mobilizações da Praça Porta do Sol. Em um ano, tornou-se o segundo maior partido no país. Elegeu as prefeituras das duas principais cidades, a capital do Estado espanhol, Madri, e a capital da Catalunha, Barcelona.

    Com o discurso de barrar a direita, colou-se a velha política representada pelo decadente PSOE, fazendo parte do governo nacional. Consequência, perdeu 50% dos votos do processo eleitoral anterior e este ano perdeu a prefeitura de Madri, fato que levou o principal dirigente, Pablo Iglesias, declarar que vai abandonar a política. Quem ressurgiu das cinzas? A extrema direita, Fox. Além de fortalecer o PSOE como oposição, que vem engolindo ano a ano o eleitorado do Podemos.

    Situação em nosso continente

    Na América Latina, também temos exemplos de que há espaço para derrotar a ultradireita pela esquerda. Onde não se avançou no programa e ações, retrocedeu ou perdeu. Foi assim no Equador. No México, Morena encolheu. Por outro lado, no Chile, onde as mobilizações não pararam, avançou. No Peru, ganhou um dirigente de greves de professores que ninguém acreditava.

    No Brasil, é possível e imprescindível uma candidatura de esquerda radical que apresente um programa para o povo afirmando que os bancos são nossos maiores inimigos e não que vão ganhar muito com nosso governo. É necessário dizer que o latifúndio e o agronegócio não são heróis, são responsáveis pela fome e preços altos dos alimentos, e que é preciso fazer a reforma agrária. Esse programa deve afirmar, também, que qualquer projeto de país que deseje o mínimo de autonomia tem que partir de uma anulação das medidas encaminhadas pelos golpistas, como as privatizações de empresas estratégicas, teto de gastos, reformas da Previdência, trabalhista, entre outras. Para isso, como uma das primeiras medidas, o novo governo deve encaminhar um referendo revogatório, para que abra o debate na sociedade como um gigantesco processo pedagógico de política feita pelo povo.

    Organizamos o primeiro ato contra o golpe no Rio Grande do Sul, quando sequer o PT chamava mobilização contra os golpistas, nem a direção majoritária nacional estava com essa posição, ou ainda, quando outros gritavam nas ruas “Fora Dilma”, nós já estávamos nos atos junto a ela ou nos atos do Paraná contra a prisão de Lula. Pagamos um preço alto, mas tínhamos a tranquilidade de estar do lado certo da história

    Nesse sentido, está claro, Lula não quer isso. Não quer uma frente de esquerda. Lula, mais uma vez, quer governar com a direita. Por isso, é contra a taxação das grandes fortunas, defende as estatais pero no mucho e reforma agrária nem pensar.
    Isso significa que não votaremos em Lula? Não! No segundo turno, é todo mundo contra Bolsonaro! Mas o PSOL não pode abdicar de discutir com nosso povo de que é possível uma saída. A candidatura de Glauber Braga é a possibilidade de reafirmar essa saída à esquerda para a crise.

    Antipetismo? Nem pensar! Organizamos o primeiro ato contra o golpe no Rio Grande do Sul, quando sequer o PT chamava mobilização contra os golpistas e nem a direção majoritária nacional estava com essa posição, ou ainda, quando outros gritavam nas ruas “Fora Dilma”, nós já estávamos nos atos juntos a ela ou nos atos do Paraná contra a prisão de Lula. Pagamos um preço alto, mas tínhamos a tranquilidade de estar do lado certo da História.

    Berna Menezes é da Executiva Nacional do PSOL


    [2] Da Diretas ao Fora Bolsonaro

    Tudo indica haver alguma similitude entre a campanha das Diretas, de ontem, e o Fora Bolsonaro, de hoje. Ontem, tratava-se de pôr fim a duas décadas de um regime que implantou um verdadeiro terrorismo de Estado em nosso país. Hoje, trata-se de defender o Estado de Direito Democrático e impedir que o Brasil resvale para uma abjeta ditadura, militar-miliciana, sob a liderança protofascista de Jair Bolsonaro. Como dizia Dr. Ulysses, “a única coisa que mete medo em político é povo na rua”

    Haroldo Saboia

    A convenção nacional do PMDB, no domingo 4 de dezembro de 1983, impôs severa derrota aos autênticos, aos progressistas e ao próprio Ulysses Guimarães ao eleger, com apoio do então governador de Minas, Tancredo Neves, o senador biônico paranaense Afonso Camargo para o importante cargo de Secretário Geral.

    Estava em jogo, então, a definição do PMDB, maior partido de oposição no Congresso, quanto à transição política em curso: aprovar as Diretas Já previstas pela Emenda Dante de Oliveira, participar do Colégio Eleitoral para “eleger” o sucessor do general Figueiredo ou, uma terceira hipótese, admitir um mandato-tampão em consenso com o Planalto.

    Em 25 de janeiro de 1984, quando os próprios organizadores esperavam 100 mil pessoas, São Paulo – no dia dos seus 430 anos de fundação – surpreendeu: mais de 300 mil pessoas lotaram a Praça da Sé. Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, José Richa, Mario Covas, Lula e centenas de artistas e lideranças sindicais estavam lá. Estava formada uma grande frente popular pelas Diretas Já! Da disputa institucional, a campanha ganhou as ruas fortalecida pela adesão dos movimentos sociais, sindicais e populares!

    Deputado estadual, participei dessa Convenção como Delegado do PMDB do Maranhão. Assisti ao plenário em ebulição, aplausos aos autênticos e vaias, muitas e ruidosas vaias, aos conservadores.
    A própria presença de Tancredo Neves foi objeto de apupos, e seus partidários – mesmo os antigos autênticos como o pernambucano Fernando Lira – praticamente impedidos de falar pelos militantes de esquerda (do PCdoB e de outras organizações) ainda abrigados no velho PMDB.

    O clima ao final era desolador. O deputado baiano, Chico Pinto, afastado da Secretaria Geral, e Ulysses Guimarães, mantido na Presidência de uma Executiva e de um Diretório majoritariamente conservador.
    No dia seguinte, segunda feira, ao final da manhã, fui à Presidência do PMDB encontrar com o antigo deputado maranhense Cid Carvalho, que fora colega de Câmara do Dr. Ulysses na década de 1950, cassado em 1968 com o AI-5, e de volta com a Anistia.

    Pouca gente na Casa. Não havia sessões às segundas pela manhã. Movimento menor ainda no Gabinete do derrotado da véspera, o bravo anticandidato de 1974! Em seu gabinete, um único deputado àquela hora. Logo ao chegar, mal o cumprimentei, Dr. Ulysses se dirigiu ao Cid e disse:

    – Convide o Saboia para almoçar conosco. Vamos ao Anexo IV.

    Não apenas “navegar era preciso” – como tanto gostava de repetir – era preciso também dar uma demonstração de altivez, de força, mostrar que a derrota não o abatera.

    Acompanhei, então, os dois deputados pessedistas dos anos 1950, que atravessaram os longos corredores do Salão Verde e do Anexo II até o restaurante do Anexo IV. No trajeto poucos parlamentares e jornalistas, e muitos funcionários surpresos com aquela presença tão inusitada.

    Para as ruas!

    À mesa, o até então taciturno Ulysses Guimarães se transformou:

    – É Dr. Cid, temos que ir para as ruas! Teremos diretas só se ganharmos as ruas!

    Era quase unanimidade entre os analistas políticos naquele momento de transição que, vitoriosa a Emenda Dante de Oliveira e restabelecidas as eleições diretas para Presidente da República, o nome escolhido seria o do Dr. Ulysses. Mantido o Colégio Eleitoral, emergiria com força o nome de Tancredo Neves, com bem mais trânsito juntos às lideranças do PDS que sucedeu a Arena, partido do “sim, senhor” dos anos de chumbo da ditadura.

    A campanha pelas Diretas Já tomou conta do país, mas não arrefeceu a disputa pela hegemonia do processo de transição em curso. No mesmo palanque, às vezes até mesmo com discursos mais inflamados, defensores da ida ao Colégio Eleitoral e da conversão conservadora do regime disputavam espaço com os setores mais combativos, as forças de esquerda que lideravam a oposição popular à ditadura militar

    Levar a luta pelas Diretas Já dos debates institucionais para os movimentos populares e sociais, do Congresso para as praças públicas, eis o grande desafio que se colocava ao Dr. Ulysses. E ele bem o sabia.

    Praticamente um mês depois, em 12 de janeiro de 1984, o primeiro grande comício das Diretas, em Curitiba, reunia mais de 50 mil pessoas. Fora convocado pelo governador José Richa instado pelo Dr. Ulysses. No 27 de novembro anterior, um comício convocado pelo PT (os outros partidos foram convidados apenas dois dias antes e suas principais lideranças mandaram apenas representantes) e por setores da Igreja Católica mal reuniu 15 mil pessoas no Pacaembu.

    A Frente pelas diretas

    Em 25 de janeiro, quando os próprios organizadores esperavam 100 mil pessoas, São Paulo – no dia dos seus 430 anos de fundação – surpreendeu: mais de 300 mil pessoas lotaram a Praça da Sé! (Saí do meu Maranhão para assistir de corpo presente esse momento de nossa História).

    Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, José Richa, Mario Covas, Lula, centenas de artistas e lideranças sindicais. Tancredo Neves, que esteve em Curitiba, não compareceu. Estava formada uma grande frente popular pelas Diretas Já! Da disputa institucional, a campanha ganhou as ruas fortalecida pela adesão dos movimentos sociais, sindicais e populares!

    Daí para a frente todos sabemos. Duas tiras – uma verde, outra amarela – pintadas como displicentes pichações, coloriram o Brasil inteiro…

    A campanha pelas Diretas Já tomou conta do país, mas não arrefeceu a disputa pela hegemonia do processo de transição em curso. No mesmo palanque, às vezes até mesmo com discursos mais inflamados, defensores da ida ao Colégio Eleitoral e da conversão conservadora do regime disputavam espaço com os setores mais combativos, as forças de esquerda que lideravam a oposição popular à ditadura militar.

    Similitudes ontem e hoje

    Por ironia da História, tudo indica haver alguma similitude entre a campanha das Diretas, de ontem, e o Fora Bolsonaro, de hoje.

    Ontem, tratava-se de pôr fim a duas décadas de um cruel regime que censurou, que reprimiu, que prendeu, que torturou, que matou… implantando um verdadeiro terrorismo de Estado em nosso país.

    Hoje, trata-se de defender o Estado de Direito Democrático instaurado com a Constituição de 1988 – com todas as debilidades, que conhecemos – e impedir que o Brasil resvale para uma abjeta ditadura, militar-miliciana, sob a liderança protofascista de Jair Bolsonaro.

    Ontem, setores oposicionistas se dividiam entre aqueles que queriam eleições imediatas, diretas verdadeiramente já, e outros que admitiam a transição lenta, com a ida ao Colégio Eleitoral.

    Hoje, temos certos setores que lutam pelo Fora Bolsonaro (impeachement já) por entenderem que – a depender da conjuntura – Bolsonaro pode ganhar tempo tanto para a disputa eleitoral em 2022 como para desfechar o tão almejado (e até mesmo propalado pelos apoiadores) golpe policial-militar.

    Ontem, a luta pelas Diretas Já saiu do Congresso para as ruas. Hoje, ao contrário, a luta está partindo das ruas e praças do País e acumulando forças – apesar das dificuldades impostas pela pandemia – para chegar ao Congresso e viabilizar o impeachment já

    Por outro lado, observamos outros setores que, embora acompanhem o coro do Fora Bolsonaro, não se empenham, de fato, na campanha pelo impeachement já por apostarem que o enfraquecimento de Bolsonaro é inexorável e que é preferível esperar – deitados no berço esplêndido das pesquisas – para derrotá-lo nas eleições presidenciais de 2022.

    Ontem, a luta pelas Diretas Já saiu do Congresso para as ruas.

    Hoje, ao contrário, a luta está partindo das ruas e praças do País e acumulando forças – apesar das dificuldades impostas pela pandemia – para chegar ao Congresso e viabilizar o impeachment já.

    Grito de partida

    A Frente Povo Sem Medo, a Frente Brasil Popular, centrais sindicais, partidos políticos, movimentos sociais e populares e entidades da sociedade civil deram o grito de partida e foram às ruas, cada vez mais numerosos, nos quatro cantos do Brasil em 29 de maio,19 de junho, 3 e 24 de julho. Perceberam, como lembrou Guilherme Boulos, que “quando um governo é mais letal do que o vírus, é inevitável a necessidade de sairmos para o enfrentamento”.

    Manifestações populares em centenas de cidades brasileiras; um mega pedido de impeachment de Bolsonaro, que reuniu mais de cem denúncias apresentadas à Câmara dos Deputados (23 crimes previstos em lei), entregue em 30 de junho e assinado por mais de uma dezena de partidos, de organizações de categorias profissionais, um sem-número de renomados juristas; um manifesto com centenas de economistas, empresários, banqueiros e intelectuais liberais – revelam o crescente isolamento político e social de Jair Bolsonaro e seu governo.

    Lembremos que a PEC do voto impresso na Câmara Federal esteve longe de conquistar os 308 votos necessários para a aprovação em primeiro turno, o que representou a maior derrota do governo Bolsonaro no Congresso até o momento. Fato que pode vir a confirmar a sempre lembrada assertiva de que “o Centrão nunca se vende, sempre se aluga”!

    Como dizia Dr. Ulysses, “a única coisa que mete medo em político é o povo nas ruas”. Não podemos descartar a hipótese das manifestações populares, convocadas pelas organizações do fora Bolsonaro, alcancem a amplitude e a dimensão necessárias para impor ao Legislativo a suspensão das funções presidenciais do atual presidente.

    Se ontem a não aprovação da emenda Dante de Oliveira contribuiu para que fosse configurado um caráter conservador à transição política (ida ao Colégio Eleitoral, Assembleia Constituinte não exclusiva e com a participação dos senadores biônicos de 1978); nos dias de hoje, o não afastamento imediato de Bolsonaro poderá levar o país, em 2022, a um quadro de esgarçamento social, político e institucional com desfecho imprevisível. Fora Bolsonaro! Impeachment já!

    Haroldo Saboia foi Deputado Federal Constituinte (1986-90) pelo PMDB-MA, Deputado Federal (1990-94) pelo PT-MA e membro do Diretório Nacional do PSOL.


    [3] A unidade possível

    A frente possível é uma frente das esquerdas. Ela é bastante diversa e reúne projetos distintos que vão de um tímido social-liberalismo a um programa de mudanças estruturais. Essa frente poderia redundar numa unidade eleitoral em 2022? Quem tiver a real dimensão da gravidade do momento que vivemos, lutará pela unidade até o último minuto

    Juliano Medeiros

    Durante meses as esquerdas se enredaram numa polêmica que, com o passar do tempo, mostrou-se sem sentido. De um lado, estavam os que defendiam uma “frente ampla”, leia-se, uma frente entre os todos os que estivessem dispostos a resistir aos ataques de Bolsonaro contra os direitos sociais, a democracia e a soberania nacional. Uma frente que reunisse as esquerdas e setores democráticos da centro-direita em oposição ao governo da extrema direita. De outro lado, estavam aqueles que defendiam uma frente das esquerdas, reunindo setores sociais e partidários dispostos a irem além da abstrata “defesa da democracia” e que denunciasse, ao mesmo tempo, a agenda antipopular de Guedes, Bolsonaro e do Centrão.

    A polêmica não é totalmente desprovida de sentido, ao menos teoricamente. Ambas as opções táticas têm vantagens e desvantagens. Uma frente mais ampla, como podemos supor, agregaria mais forças sociais contra o governo, alcançando setores que não simpatizam com posições de esquerda. Por outro lado, considerando as diferenças no plano econômico, exigiria um nível de ação mais rebaixado, circunscrito à defesa das liberdades democráticas e do Estado de Direito.

    Uma frente das esquerdas, por sua vez, seria politicamente mais coesa, com condições de opor-se à totalidade da agenda bolsonarista, incluindo o violento programa econômico. Por outro lado, ao restringir o diálogo aos setores progressistas da sociedade, uma frente dessa natureza teria muitas dificuldades em construir maioria social para barrar os ataques do governo.

    A velha direita e o governo

    Em que medida, então, considero que a polêmica se revelou “sem sentido”? Ora, por uma razão simples: não houve qualquer adesão significativa de setores da centro-direita à luta contra o governo Bolsonaro. No Congresso Nacional os partidos da velha direita – PSDB, DEM, MDB, PP, etc. – têm sustentado a agenda de ataques de Bolsonaro aos direitos e à soberania. Apoiaram a privatização dos Correios e da Eletrobras; viabilizaram o criminoso projeto de autonomia do Banco Central, além da legalização da grilagem e a criação de uma nova modalidade de subemprego, por meio da aprovação da MP 1045.

    O leitor, com razão, poderá contestar: mas há contradições! Sem dúvida. A extrema direita bolsonarista e a velha direita neoliberal não têm exatamente o mesmo projeto. E as diferenças se manifestam vez ou outra, especialmente diante dos arroubos autoritários de Bolsonaro e dos militares que o apoiam. Mas na agenda econômica e social, bolsonaristas e neoliberais estão em perfeita sintonia. Basta notar que Novo (86%), PSDB (87%), DEM (91%) e PL (93%) estão entre os partidos que mais votam com Bolsonaro na Câmara dos Deputados.

    Não houve qualquer adesão significativa de setores da centro-direita à luta contra o governo Bolsonaro. Apoiaram a privatização dos Correios e da Eletrobras; viabilizaram o criminoso projeto de autonomia do Banco Central, além da legalização da grilagem e a criação de uma nova modalidade de subemprego, por meio da aprovação da MP 1045

    A conclusão é simples: não há frente ampla porque não existe um “centro democrático” disposto a construí-la. Quando se trata de retirar direitos, enfraquecer a soberania nacional, precarizar as condições de trabalho e privilegiar o capital financeiro, a unidade entre o bolsonarismo e a direita neoliberal é total. As parcas exceções – como os três parlamentares de direita que assinaram o “superpedido” de impeachment – só confirmam a regra.

    O resultado é uma blindagem institucional que vai do “oposicionista” Rodrigo Maia ao “governista” Arthur Lira. Ambos, na presidência da Câmara dos Deputados, negaram-se a instalar o processo de impeachment, mesmo diante dos incontáveis crimes cometidos por Bolsonaro. Crimes que custaram a vida de milhares de brasileiras e brasileiros durante a pandemia da Covid-19.

    Portanto, a frente antibolsonarista realmente existente é uma frente das esquerdas, isto é, uma frente dos partidos, movimentos, intelectuais, artistas, influenciadores digitais, jornalistas que se identificam como progressistas e articulam ao mesmo tempo a defesa das liberdades democráticas e dos direitos sociais.

    O programa da unidade

    Essa frente tem unidade em torno de alguns pontos fundamentais. O primeiro é a necessidade de interditar imediatamente o projeto de Bolsonaro. Para tanto, reconhece a necessidade de instalar o processo de impeachment e tornar Bolsonaro inelegível, como prevê a lei. O segundo, é a necessidade de barrar a agenda bolsonarista. Ou seja, além de derrubar o governo, derrotar os projetos que avançam com apoio da direita neoliberal, pejorativamente chamada de Centrão. Terceiro, a defesa das liberdades democráticas.

    Em que pese a diferença entre projetos, em nenhum momento as esquerdas titubearam em denunciar as investidas golpistas de Bolsonaro ou de seus aliados militares. Quarto, a defesa das conquistas históricas da classe trabalhadora. Projetos como o da autonomia do Banco Central ou a privatização dos Correios contaram com a oposição da maioria dos partidos e movimentos de esquerda e centro-esquerda.

    Por tudo isso, podemos concluir que a frente possível é uma frente das esquerdas. Ela é bastante diversa e reúne projetos distintos, que vão de um tímido social-liberalismo a um programa de mudanças estruturais. Essa frente poderia redundar numa unidade eleitoral em 2022? Se considerarmos a gravidade do momento histórico que vivemos e o nível de unidade em torno de elementos programáticos mínimos, arrisco dizer que sim. Mas considerando os diferentes projetos eleitorais em curso – legítimos, a priori – é pouco provável que isso ocorra. Ainda assim, quem tiver a real dimensão da gravidade do momento que vivemos, lutará pela unidade até o último minuto.

    Juliano Medeiros é presidente nacional do PSOL e doutor em História pela UnB.


    [4] Todas as táticas para derrotar Bolsonaro e uma estratégia por um Brasil dos trabalhadores e do povo

    No Brasil atual, a tática da unidade de ação, amplamente utilizada em todas as lutas importantes ao longo da história, principalmente contra regimes e governos autoritários e ditatoriais, é fundamental para que se imponha a derrota ao governo Bolsonaro. A unidade de ação não é uma tática para as eleições, mas para a luta cotidiana. Porém, pode ser também estendida ao terreno eleitoral se, num segundo turno, por exemplo, enfrentam-se Bolsonaro e outro candidato que tenha sido seu oponente

    Roberto Robaina

    Para ir direto ao ponto, na atual situação política brasileira, há três objetivos fundamentais que devem ser postos para o movimento socialista: 1) Derrotar, pela via que seja, o presidente Jair Bolsonaro; 2) Defender as liberdades democráticas, os direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e do povo; 3) Formular, desenvolver e lutar por propostas que apontem uma saída para a crise do ponto de vista dos interesses dos explorados e oprimidos.

    Desses três objetivos não contraditórios entre si, derivam-se táticas e orientações estratégicas, cada uma delas cuja especificidade responde, na mesma ordem, aos objetivos definidos, orientações que não apenas são complementares, mas se fortalecem mutuamente e fortalecem a luta pelos três objetivos: a) A tática da unidade de ação; b) A tática da frente única; e c) A estratégia da construção de um corpo político revolucionário independente.

    Unidade de ação

    No Brasil atual, a tática da unidade de ação, amplamente utilizada em todas as lutas importantes ao longo da história, principalmente contra regimes e governos autoritários e ditatoriais, é fundamental para que se imponha a derrota ao governo Bolsonaro. A importância deriva do fato de que o projeto de Bolsonaro é contrarrevolucionário de extrema direita, cuja realização implica ataque às liberdades democráticas, à liberdade de imprensa, de organização, de reunião, e, no caso concreto brasileiro, recentemente, na deslegitimação das eleições. Esse projeto de Bolsonaro despertou a oposição em todas as classes sociais. A própria classe dominante está dividida. Basta, como exemplo, a decisão de investigar Bolsonaro, tomada pelos ministros do STF e do TSE.

    A tática da frente única não abandona os objetivos da unidade de ação, mas constrói uma delimitação superior em conteúdo e método. Busca unir os partidos que se postulam como partidos de classe, dos trabalhadores, e as organizações sociais do movimento de massas para se oporem aos ataques do fascismo

    Unir na ação concreta ao redor desse ponto programático, isto é, de defesa das liberdades democráticas e, de preferência, pela bandeira do Fora Bolsonaro, é o que definimos como aplicação da tática da unidade de ação, que passa pela realização de atos, passeatas, pronunciamentos e manifestos, com todos que compartilhem desse objetivo. A unidade de ação não é uma tática para as eleições, mas para a luta cotidiana, mas pode ser também estendida ao terreno eleitoral se, num segundo turno, por exemplo, enfrentam-se Bolsonaro e outro candidato que tenha sido seu oponente. A unidade, nesse caso, expressaria-se na defesa do voto contra Bolsonaro. A tática da unidade de ação, entretanto, está longe de esgotar a orientação do movimento socialista. Limitar-se a ela seria confiar que as classes sociais têm o mesmo interesse e que a burguesia liberal é consequente na luta contra o fascismo. Os trabalhadores devem ser conscientes de que a continuidade do poder burguês significa uma constante ameaça aos seus interesses.

    Frente única

    A tática da frente única, formalizada pela primeira vez em junho de 1921, no III Congresso da Internacional Comunista, não abandona os objetivos da unidade de ação, mas constrói uma delimitação superior em conteúdo e método. Busca unir os partidos que se postulam como partidos de classe, dos trabalhadores, e as organizações sociais do movimento de massas para se opor à ofensiva patronal, seja aos ataques do fascismo, seja aos ataques contra os direitos sociais e econômicos dos trabalhadores levados adiante pelos capitalistas e seus governos.

    Trata-se de um acordo cujo objetivo é somar forças para impor derrotas aos planos capitalistas e fortalecer bandeiras de classe dos setores explorados e oprimidos. Tal tática não esgota, tampouco, a orientação do movimento socialista. Entre as organizações e partidos que reivindicam a classe trabalhadora há programas e estratégias diferentes e até opostas. O movimento dos trabalhadores se dividiu historicamente em posições revolucionárias, cuja estratégia é a destruição do capitalismo e a construção de um estado de novo tipo, uma nova institucionalidade baseada na auto-organização do movimento de massas, e as posições reformistas, cuja estratégia é atenuar as contradições de classe, buscando melhorias para os trabalhadores, mas num regime e num modo de produção burguês. Pois a tática de frente é a busca de acordo entre forças revolucionárias e reformistas que atuam no movimento de massas.

    O movimento dos trabalhadores se dividiu historicamente em posições revolucionárias, cuja estratégia é a destruição do capitalismo e a construção de um Estado de novo tipo, uma nova institucionalidade baseada na auto-organização do movimento de massas, e as posições reformistas, cuja estratégia é atenuar as contradições de classe, num regime e num modo de produção burguês

    A importância dessa unidade para fortalecer a capacidade de luta dos trabalhadores é evidente, mas não menos evidente são os limites dessa tática, já que os reformistas são contrários a uma estratégia de ruptura com a burguesia, como concretamente os 13 anos de governos do PT demonstraram. Assim, a tática da frente única não pode implicar acordo para realizar um governo comum entre revolucionários e reformistas, pela simples razão de que os revolucionários, nesse caso, estariam abrindo mão do seu programa ao aceitarem a hegemonia de um programa que não rompe com o capitalismo.

    Capitulações e compromissos

    Ao longo da História, tivemos muitos exemplos dessa capitulação, não tendo registro de experiências opostas, em que os revolucionários tenham sido apoiados por aparatos reformistas em sua estratégia de revolução social. Se não é uma tática por um governo comum, quer dizer que tampouco é uma tática e um acordo para as eleições. Mas a frente única pode também se estender ao terreno eleitoral. Tal opção deve ser feita em pelo menos dois casos: se há real ameaça de a candidatura da extrema direita vencer a eleição e se há uma ameaça real de um candidato da burguesia liberal ser o principal opositor contra a extrema direita, em detrimento de um candidato das forças reformistas. Nesse caso, o chamado ao voto e a participação na campanha não devem implicar compromisso de governo.

    Em relação à tática da frente única, além do seu conteúdo econômico e social de classe, agrega-se um método de luta mais claro, de combate permanente, que pode e deve incluir a necessidade de impulsionar a autodefesa dos partidos e das organizações, entidades sindicais, populares, camponesas, estudantis e dos direitos civis em geral. No Brasil, aliás, essa tarefa deve ser posta na ordem do dia, o que não tem sido discutido com a urgência que merece. A discussão tem se resumido ao terreno eleitoral.

    A via eleitoral é um caminho visível para derrotar Bolsonaro. E tal acordo é simples de ser feito numa eleição em dois turnos, seja apelando para a tática de unidade de ação, seja preferencialmente pela via do apoio a um candidato que integre os partidos que construam a frente única. Mas um compromisso eleitoral está longe de garantir a eficácia da frente única. A capacidade de organização e de luta nas ruas de cada classe social é decisiva para o futuro do país

    A via eleitoral é um caminho visível para se derrotar Bolsonaro. E tal acordo é simples de ser feito numa eleição em dois turnos, seja apelando para a tática de unidade de ação, seja preferencialmente pela via do apoio a um candidato que integre os partidos que construam a frente única. Mas um compromisso eleitoral está longe de garantir a eficácia da frente única. A capacidade de organização e de luta nas ruas de cada classe social é o decisivo para o futuro do país.

    Tarefa estratégica

    Não é por acaso que a terceira tarefa é denominada estratégica. A construção de um corpo político revolucionário que impulsione a mobilização e a luta pelo poder dos trabalhadores e do povo pobre é a única saída de fundo para a crise nacional. Ou o capitalismo é derrotado ou teremos sempre as forças da barbárie ganhando terreno tendencialmente, acompanhadas pela ameaça recorrente do fascismo. A denominação mais conhecida desse corpo político é a de partido político, embora a forma partido esteja desgastada por conta da identificação quase exclusiva entre partido e eleições, tarefa fundamental, mas que não resume a atuação de um corpo revolucionário digno desse nome. Hoje, os revolucionários são uma minoria. Essa razão não nos isenta da necessidade de construir esse corpo e se apresentar de modo claro, com bandeiras próprias ao movimento de massas. Somente se postulando, desenvolvendo as táticas necessárias para fortalecer as lutas democráticas, econômicas e sociais que respondam aos interesses dos trabalhadores e dos setores oprimidos, atuando como operador dessas lutas, pode-se construir um polo consciente, capaz de agrupar as parcelas mais avançadas do povo trabalhador. Esse desafio é o que permite fortalecer as tendências da revolução e derrotar de modo definitivo a contrarrevolução e seus representantes de hoje e de amanhã.

    Roberto Robaina é Vereador em Porto Alegre e membro do Diretório Nacional do PSOL.

  • O POVO NÃO ACEITARÁ GOLPE NO BRASIL – Por Francisvaldo Mendes

    O POVO NÃO ACEITARÁ GOLPE NO BRASIL – Por Francisvaldo Mendes

    O POVO NÃO ACEITARÁ GOLPE NO BRASIL

    Por Francisvaldo Mendes – Presidente da FLCMF

    O inominável presidente da república, após derrotas consecutivas na política de morte imposta, esclarecida pela atuação da CPI da COVID e a negação do funcionamento das instituições do Estado brasileiro, recorre a tentativa de golpe. Como o desejo busca reunir os sentimentos mais autoritários e retrógados que existem em algumas pessoas da sociedade que cultivam a ideologia mais fascista no Brasil, fica cada vez mais nos limites das possibilidades. Mas o golpe, ainda bem, não passa do desejo do atraso, cultura impregnada no desnível educacional implementado por anos no Brasil.

    Não há, até o momento, quaisquer apresentações de base social e muito menos de poder superestrutural para realizar um golpe de Estado. Muito pelo contrário, há um movimento em toda a superestrutura brasileira – que nunca foi a favor dos trabalhadores – colocando a presidência em conflito com o legislativo, o judiciário e as unidades federativas e prefeituras, sem o abraço unificado e completo dos militares, que se subordinam aos poderes constituídos. Não há, por outro lado, nenhuma ação com expressão pública que apareça para além das motocicletas instituídas por poucos “endinheirados” de ultradireita, com alguns pobres desavisados. Ou seja, o Governo atual não consegue fazer com que o discurso de golpe ressoe para além do desejo anacrônico de governo autoritário que almeja em seu mandato.

    A rejeição cada dia crescente na sociedade na perspectiva de 2022 é, sem dúvida, um aspecto positivo no meio do cenário negativo de mortes, fome e opressão, que predomina no Brasil. Passamos por um quadro que pode ser desenhado como o pior da trajetória do país em um tempo tão curto, com menos de dois anos. Há sim, neste período, o impulso da pandemia inventada e imposta. Mas a junção entre a pandemia e a necropolítica faz ampliar as piores consequências da exploração amalgamada ao racismo, preconceito e autoritarismo que encarnam na presidência atual.

    Evidente que muito há o que fazer e que uma conquista que mais nos fortalece – como setor em condições de organizar uma política popular em defesa da vida, com participação dos setores organizados – clama por retirada agora do atual presidente. Mas, muito mais que isso, somos convocados para organizações, mobilizações e formações que ampliem os setores populares favoráveis à democracia e ao crescimento da qualidade de vida.

    O Brasil vem vivendo a imposição da onda mais dura da exploração, com a retirada de direitos dos trabalhadores e da sociedade, com forte influência do peso patrimonialista, patriarcal e racista que foram impostos em nossa história. Este cenário obtuso e regressivo nos impõe uma inconsistência de condições de vida em todos os aspectos. A maioria das pessoas no Brasil não possui onde trabalhar, são aterrorizadas pela fome, pela ausência de saúde, pela imposição da inexistência de condições de vida e moradia mínimas. Basta identificar os números amplamente divulgados por organismos oficiais do descaso desse desgoverno genocida.

    O IPEA já demonstrou que a quantidade de pessoas em situação de rua é muito maior que uma impressão. Principalmente, nesta fase que a política de exploração, repressão e discriminação imposta pelo governo se unifica ao transcorrer do vírus. Para além da divulgação de mais de meio milhão de mortes, que com certeza atinge as pessoas que menos possuem para comer e viver, há uma ampliação de todos os números regressivos para a vida.

    Pode-se sim afirmar que houve ampliação do número de pessoas que sofrem a imposição forçada da situação de rua, sem condições de se manterem nos aluguéis. Nessa mesma onda há também ampliação das pessoas sem comida, sem remédios, sem saneamento, sem a condição mínima para a sobrevivência, no cenário de doença e morte que predomina em escala nacional.

    O discurso anacrônico e sem sustentação, favorável a um golpe, feito pelo presidente da república e seus “ignorantes” seguidores, infelizmente é uma jornada ideológica para ampliar o número de pessoas que desesperadas aprovem a experiência mais retrógada já eleita na história do país. Na verdade, todo discurso presidencial, na maioria das vezes sem respeito e explicitamente descompromissado com qualquer colaboração para a vida das pessoas, não passa de expressão de isolamento, de desespero. Não há condições objetivas ou de sustentações subjetivas para o golpe no país, o que há é o desejo de alguns poucos em ampliar um ambiente autoritário e retrógado.

    Da nossa parte, por sua vez, com o respeito que temos com a vida e a dignidade humana, devemos apostar na organização popular e na conquista de direitos. Por isso, devemos ir às ruas no próximo dia 07 de setembro contra toda forma de golpe, que só serve para ampliar o retrocesso e a morte. Vamos atuar, mobilizar e nos levantar coletivamente pelas conquistas que virão, com nossas ações e lutas, favoráveis ao BEM VIVER e a dignidade humana!!

  • OLIMPÍADAS: DISPUTA E SOLIDARIEDADE!  – Por Francisvaldo Mendes

    OLIMPÍADAS: DISPUTA E SOLIDARIEDADE! – Por Francisvaldo Mendes

    OLIMPÍADAS: DISPUTA E SOLIDARIEDADE!  

    Por Francisvaldo Mendes

    A vida é uma constante disputa pela sobrevivência, um percurso onde predomina o medo, a destruição, a ganância, o genocídio e a expectativa do tempo de vida, ou do sentido da própria vida que faz o pessimismo predominar em cada dificuldade que a vida apresenta. Do outro lado, as pessoas também têm sentimento absolutamente distinto que ativa o companheirismo, a disposição de ajudar, a solidariedade, a torcida pelo sucesso, criando energia para a sobrevivência. Essa dicotomia é a essência da nossa condição dentro desse modelo de sociedade, sendo nas olimpíadas, principalmente em 2021, essa percepção constante,  apesar do conceito apontar para interesses do sistema capitalista como direcionam os organizadores dos jogos, à qual, devemos estar atentos e críticos, valorizando a competição harmoniosa da disputa solidária.

    A busca pelas vitórias sempre é o mote apontado nas disputas esportivas, e mensagens otimistas são passadas, com a demonstração de superação entre os competidores e muitas vezes com a colaboração coletiva. Mas, por traz das olimpíadas estão os interesses de marcas esportivas, de mega empresas e de atomização do próprio sistema capitalista. No entanto, nas olimpíadas de 2021 cuja presença do vírus que mata, a Covid-19, outras mensagens surgiram.

    Seja na apreensão de disputa sem o calor do público que participa ativamente de cada momento jogado, seja no esforço que cada atleta fez para sua participação nas olimpíadas, ou seja, no esforço pessoal que alguns atletas fizeram dentro da adversidade deste momento, muitas vezes sem nenhuma ajuda do governo de seu país.

    No Brasil, principalmente essas olimpíadas marcaram muito mais o amor dos atletas por esse país tão grande e lindo, do que pela irresponsabilidade desse governo que acabou com o ministério dos esporte: não investiu sequer em apoio mínimo aos atletas e sequer comemorou qualquer vitória dos atletas brasileiros.

    Mas indo além do esporte e pensando as influências sócio-históricas que marcam a formação social do capitalismo no Brasil, que impõe a ideologia das pessoas se enxergando como mercadoria, já nasce uma crítica no meio esportivo que visa quebrar o tabu de que os atletas não podem se manifestar politicamente como fez a norte americana, Raven Saunders, que no pódio cruzou os braços acima da cabeça, contra toda forma de opressão, demonstra que todos temos que lutar em todos os espaços que ocupamos.

    O gesto de rebeldia, deve ser reconhecido e valorizado, pois as pessoas e atletas não são mercadoria, cuja desenvoltura do raciocínio não exista, devemos sim valorizar a capacidade de desenvolvimento intelectual dos atletas que se dispõem a representar sua nação enquanto participante de um mundo desigual e desumano cuja diferença social e causada pela forma de desenvolvimento imposto pelo sistema de exploração capitalista mundial e não por religiões, credos ou as características particulares das pessoas. Somos todos seres humanos, dignos de reconhecimento e valorização do ser e da vida.

    Assim, vale destacar, o ocorrido na disputa do Salto em altura, envolvendo um atleta da Itália e do Qatar dividiram o primeiro lugar no pódio com a medalha de ouro, por decisão dos dois, ambos demonstraram que o “espírito de Ubuntu” possui marcas e sinais no mundo que atravessam todas as “nações”.

    A questão é mesmo quem ganha e quem perde no domínio intolerante e asfixiante do sistema de disputa do capital. A ideia de que para ganhar alguém precisa perder e que para dividir precisa crescer são visões que formam base ideológicas fundamentais para o capitalismo ter ao seu lado quem mais perde materialmente. E as contradições se ampliam, pois, quem ganha espaço de criação, motivação, inventividade, para fazer a vida viver é também o grupo social que sofre o maior impacto da proibição de viver e das impossibilidades dos direitos materiais. Enquanto nem a mercadoria do dinheiro está disponível para ser trocado em moradia, comida, transporte e venda de força de trabalho, o capitalismo amplia em lucros absurdos. Esse movimento cria ambientes nos quais as pessoas consideram que oprimir, dominar, controlar criam mais condições de viver. Mas não, não criam! Ao contrário, ampliam as condições de dominação dos poucos que controlam o mundo e as nações.

    Não há dúvidas, portanto, que estejam as pessoas em quaisquer locais existentes no mundo, o lugar que as divide é mesmo o do poder e do viver. Enquanto uma pequena minoria se apossa do poder e possui seus “capitães” para fazer o poder massacrar a vida e ampliar o lucro, a grande maioria vivem o impacto da exploração e diminuição do tempo de vida. Nesse mundo, onde não há a pessoa sozinha, a questão está na criação de ambientes que a convivência sejam predominantes e tenham energia para todos os locais.

    Portanto, para nós, que compomos o grupo social que precisa vender a força de trabalho para ter mercadoria que possibilite o viver, e que politicamente é quem quer um mundo democrático, justo e qualificado, só cabe divulgar os sinais de solidariedade e vitória. É uma vitória quanto o que a outra pessoa ganha chega para nós como vitória e não como derrota.

    Nessa estrada das olimpíadas, precisa-se demonstrar cada passo favorável à vida em um período no qual as políticas de diminuição de vida predominam.

    Afinal, nos tempos atuais, são impostas as mortes de mais de um milhão de pessoas no mundo, e mais de quinhentos e cinquenta mil no Brasil. Nessa condição que faz guerras aparecerem como presente o todo tempo e criando mais e mais medos diferentes para viver, cabe sim saber se aproveitar de todos os exemplos de conquistas que pulsam a vida.

    No nosso caso,  pessoas brasileiras, que vivemos a imposição de um genocida que só faz ampliar as péssimas condições materiais: sem casa para morar, sem comida para comer, sem vacina para poder ter esperança de viver. Essas condições atuais, impostas predominantemente nas políticas do Brasil, são as piores, pois forçam a ampliação do medo, o que para sucumbir com a vida é fundamental.

    E, nesse contexto lamentável das condições humanas, não podemos deixar passar momento que divulga solidariedade, companheirismo, colaboração humana e vitórias sem derrotas. As olimpíadas demonstram uma disputa para elevar as condições e não um estado de guerra para eliminações constante. Nesse momento pelo qual passamos isso é fundamental. Então nós temos que agarrar todas as vitórias simbólicas e materiais para dizer que coletivamente vamos ganhar. Para além disso podemos afirmar que nosso otimismo da vontade traz em todas as personagens das olimpíadas, da Fadinha à Rebeca, sinais de que sairemos vencedores na vida. Construindo a organização coletiva, a formação, a atuação, aprendendo com a diversidade que nos amplia, assim sempre sairemos vencedoras e vencedores no viver.

  • Forças Armadas não podem servir aos coronéis

    Forças Armadas não podem servir aos coronéis

    Forças Armadas não podem servir aos coronéis

    Por Francisvaldo Mendes

    A Constituição de 1988 assegura, já nos artigos primeiro e segundo, os seguintes termos: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.  Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

    Portanto, a carta que estabelece a organização máxima no poder intitulado ESTADO DEMODRÁTICO DE DIREITO, não inclui as Forças Armadas entre os “poderes do Estado”. Mais que isso, é uma instituição de dentro do Estado, e serve aos poderes de Estado. Não há equivalência de poder, reponsabilidade e centralidade, para o Estado brasileiro, com a Constituição existente, entre FORÇAS ARMADAS e os poderes constituídos. E, vale lembrar, que a Constituição afirma que TODO PODER EMANA DO POVO, que o exerce por meio de representantes que foram eleitos, pelo próprio povo e fazem o que está organizado na Constituição. Assim sendo, a peça da democracia é a Constituição, sendo a lei maior de uma nação.

    As chamadas FORÇAS ARMADAS, aparelhos de Estado voltados principalmente para a soberania, não podem ser reduzidos a aparelhos patrimonialistas que servem para satisfazer os interesses particulares de governantes ou “coronéis civis”. Ou seja, as Forças Armadas não são aparelhos de propriedade de militares, nem de qualquer poder de Estado exclusivo, mesmo dentre os Constituídos pela própria Carta Magna do País.

    As diretrizes das Forças Armadas, por sua vez, não podem ser manipuladas por quaisquer pessoas, somente por exercer a representação de algum dos poderes da República. Essa regra básica, que foi desrespeitada para impor e manter a Ditadura Militar, imposta no Brasil em 1964, não pode ser novamente repetida em qualquer dos formatos, aparentemente inovadores, com o advento da tecnologia da internet ou com as novas estéticas de produção e controle no capitalismo.

    Nós somos socialistas e libertários, portanto, a democratização é um processo contínuo, intenso e participativo, de empoderamento dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil, com o intuito de aglutinar um nível de consciência que acumule para a consciência de classe. Mas não estamos nesse estágio de organização e, para além disso, ainda nos é imposto um nível educacional com atraso dos conhecimentos básicos da história. Não podemos, portanto, deixar de defender a base mínima da garantia da vida pelo modelo de convivência social menos pior: O ESTADO DEMORÁTICO DE DIREITO.

    Portanto, as Forças Armadas não podem se submeter aos interesses de minorias, majoritariamente gananciosas, que querem subverter suas existências. Ao contrário, precisam cumprir o papel básico Constitucional para defender a nação e organizar a Marinha, Aeronáutica e Exército, como instrumentos para um poder soberano e independente. Assim devem se estruturar de forma mais eficiente e qualificada, através das pessoas que vendem a sua força de trabalho para o Estado, se dedicando a construção dessa instituição subordinada a Democracia com o objetivo de garantir a soberania do Brasil. A manutenção soberana precisa seguir e respeitar, pelos princípios da democracia, como consta na Constituição o pluralismo político, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

    Infelizmente, nos tempos atuais o Poder Executivo, poder com ascensão sobre as Forças Armadas, desrespeita quotidianamente a Constituição em todos os seus aspectos. A não existência da veia democrática, no presidente da república, está na forma desrespeitosa como trata as instituições do próprio Estado fazendo parecer que é “dono” de toda a corporação militar com desrespeito a dignidade humana dos próprios componentes das Forças Armadas.

    Esse comportamento precariza, o papel das Forças Armadas e deturpa a relação das instituições com a democracia, e por isso a correção de rumos deve ser perseguida na proteção da democracia brasileira e fazer valer a CONSTITUIÇÃO aprovada em 1988. Apesar de estar toda remendada, trata-se do intrometo de consenso nacional aprovado pelos poderes constituídos e que nenhum personagem desrespeitoso, inescrupuloso e desabilitado – como se assume o presidente atual – pode transgredir. Coloca-se assim a importância de constituir, respeitar e reforçar fóruns para a defesa da democracia, das leis e das instituições. Não é possível a convivência com rompantes de autoritarismo e descaso com a nação, sem investimentos em vida, nem para comida no prato, nem para vacina no braço e ainda com uma narrativa lamentável de atraso colocando em risco, para além da democracia e da Constituição, a própria vida.

    A vida de todos e todas estão sendo desrespeitada com o modelo genocida predominando pelo Poder Executivo Federal, porém as Forças Armadas precisam seguir intactas defendendo a soberania popular.

  • Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    EDITORIAL

    A revista SOCIALISMO E LIBERDADE tem desempenhado um papel fundamental no aprofundamento dos debates políticos entre os filiados do PSOL e entre entrevistas dos movimentos sociais. Com análises, formulações políticas e inspirações artísticas, chegamos a mais uma edição de número 32. A capa já diz muito, pois a necropolítica que nos é imposta já nos era forçada nos ajustes fiscais e se ampliaram com a política de morte, compulsória para a maioria, e que foi ampliada quando iniciou a pandemia.

    Os “donos do poder” conduzem, por meio da força, da ideologia das mentiras e falsidades, das imposições desavergonhadas, a falsa defesa da democracia. É imposto, para a maioria das pessoas, uma ditadura por meio das leis de exceção que segrega a sociedade em alguns privilegiados em detrimento da maioria de explorados.

    Se não bastasse o descalabro político que nos é imposto, ainda somos empurrados para uma natureza destruída em nome do lucro. Porém, não devemos desistir de preservá-la, haja vista que se ela for destruída, inclusive nós, seres humanos, que somos parte desse grande universo natural, cairemos em extinção, pois várias formas de vírus surgirão com a falta da própria natureza para controlá-los.

    A relação destrutiva com o ambiente, afeta o sistema por inteiro e a chamada “crise ecológica” é, na verdade, mais uma face da crise estrutural do capitalismo. E persistindo essa lógica de crescimento infinito da destruição, em um planeta finito, rumaremos ao colapso. A intensa destruição da terra por meio da exploração de seus elementos é percebida pelos extremos climáticos, pandemias e o processo de morte coletiva, consequências do capitalismo que massacra a maioria de pessoas.

    Neste contexto, não podemos escorregar nas ilusões das eleições. Há o desafio de apresentar um projeto político de transformação social e de construção afirmativa de uma nação sustentada para a vida com dignidade. A transformação social, por meio de lutas cotidianas contra a opressão, a exploração, os rompantes fascistas, demanda construir um projeto de bem viver, e nossas contribuições, com repertórios históricos e políticos, como apresentamos na revista é um importante passo à frente.

    Quando Ivan Valente, em entrevista afirma que o PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno, demonstra que em cada pensamento, ação, sentimento de um partido comprometido com as pessoas que vivem da venda da força de trabalho, mercadoria única disponível, pode fazer avançar o lugar no ambiente de sujeitos em favor da dignidade humana. Assim, o PSOL apresenta-se como estratégico na grande onda para a ampliação da vida.

    Em sintonia sentimos para além do Brasil. Apresentar a América Latina, por meio do texto de Ana Carvalhaes e Israel Dutra, é uma abordagem que demonstra as veias abertas, mas não necrosadas, porque não a deixamos morrer. Avançamos mostrando em cada letra, desenho e abordagem um laço de solidariedade e compromisso com a liberdade. Assim como tratar da Nova Política Econômica, que continua nova, pois, nem nesse patamar sequer experimentamos, somos assertivos ao desembaralhar as asfixias que foram impostas na tragédia humanitária e sanitária que sofreram as pessoas de Manaus.

    Há colaborações neste número que contribuem para ampliar nossa capacidade de ação e acumular forças para superar o capitalismo. No caso do Brasil, não há dúvidas que acabar com o atual governo federal é passo fundamental para superar a jornada de enfrentamento do sistema que predomina no mundo. Nosso país vive uma enxurrada de destruições, fabricação de medos e imposições de mortes. Superar essa situação é sim um abraço internacional para a destruição do capitalismo e construção de uma sociedade socialista e com liberdade. Assim, não haverá mais décadas perdidas e vamos viver, como sujeitos que conquistam, mais e melhor. E há muito estímulo em nossa revista que é uma grande fonte de colaboração para superar a exploração, o controle e das opressões e, unificadamente, construir SOLICALISMO E LIBERDADE.

    Francisvaldo Mendes de Souza . Diretor-presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

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  • Depressão solidária . Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Depressão solidária . Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Depressão solidária

    O governo Bolsonaro consegue reunir o pior de dois mundos. Como falso liberal retira garantias e desprotege o trabalhador, criando ansiedade, desemprego e incerteza e como neoliberal postiço, mantém a política de empreitamento do Estado em benefício próprio, ou das milícias. A forma como a Pandemia está sendo enfrentada no Brasil não é apenas necropolítica, mas também depressiva no sentido de dividir o ordenamento simbólico de obediência a regras sanitárias, e por estimular o dissenso e a negação sistemática do perigo e das estratégias biopolíticas para enfrentá-lo

    Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Segunda maior causa de afastamento do trabalho, causa difusa de separações familiares e indutora de alcoolismo crônico, usado como terapia selvagem, a depressão tornou-se nosso modo preferencial de sofrimento. Em nossos trabalhos recentes sobre O Neoliberalismo como gestão do sofrimento e Uma biografia da depressão , tentamos mostrar como essa prima pobre das doenças mentais se tornou uma superstar que está por toda parte. Nosso caso está montado sobre quatro coincidências suspeitas:

    1. Em 1973 se realiza, durante a ditadura de Pinochet no Chile, a primeira implantação real do neoliberalismo no mundo.
    2. Também em 1973 os manuais de psicopatologia começam a substituir antigos diagnósticos como neurose, histeria e paranoia por uma nova forma de sofrer: a depressão, que em 2013 chegou a compreender 14 tipos diferentes de transtornos mentais.
    3. Na década de 1970 e 1980, descobrem-se uma série de novas medicações antidepressivas, como fluoxetina e paroxetina, que são apresentadas como pílulas da felicidade e tratamento curativo para depressão.
    4. Entre 2014 e 2019 investiram-se US$ 20 bilhões em pesquisa neurocientífica e farmacológica majoritariamente sobre a depressão, mas também em outros transtornos, sem que com isso se alterasse nada na curva de bem-estar dos pacientes, no número de internações ou na qualidade da saúde mental dos norte americanos (pelo contrário a tendência é de piora).

    Depressão e governos neoliberais

    Ou seja, os últimos quarenta anos de “governo” da depressão, na saúde mental, foram também os do consenso neoliberal, admitindo-se que a crise de 2008 é uma crise deste modelo. Isso poderia ser explicado por uma acentuação da diferença entre a política liberal e a neoliberal com relação à saúde. Enquanto os modelos keynesianos enfatizavam a proteção do trabalhador, tendo no sofrimento um adversário perigoso para o andamento dos negócios, o neoliberalismo descobriu que é possível administrar calculadamente sofrimento no trabalho, de modo a extrair mais desempenho e produtividade.

    Deixe todo mundo com medo de ser demitido e veja se as jornadas de trabalho, incluindo sábados e domingos, não se ampliam “naturalmente”. Faça um departamento concorrer com o outro para ver se a agressividade corporativa produzida em laboratório não faz “bem para os negócios”. Distribua bônus erraticamente e verifique se o clima paranoico de denúncia, predação e concorrência não fará todos trabalharem mais, sem organização de resistências sindicais

    Deixe todo mundo com medo de ser demitido e veja se as jornadas de trabalho, incluindo sábados e domingos, não se ampliam “naturalmente”. Faça um departamento concorrer com o outro para ver se a agressividade corporativa produzida em laboratório não faz “bem para os negócios”. Distribua bônus erraticamente e verifique se o clima paranoico de denúncia, predação e concorrência não fará todos trabalharem mais, sem organização de resistências sindicais. Finalmente, demita as pessoas em massa e prometa que agora elas serão livres, pois terão um CNPJ que as tornará verdadeiros empresários. Crie sistemas de microgestão e avaliação permanente para ver se a coerção entre funcionários não faz a competição “benéfica” criar mais resultados no final do quarter.

    Fato é que fomos nos acostumando a olhar para nossas próprias vidas como se fôssemos uma empresa, que tem que dar lucro, que precisa investir em renovação (senão a empregabilidade cai), que precisa olhar para os riscos tributários e para as metas e métricas, em sistema permanente de auto-observação, avaliação e punição. Esse conjunto articulado parece ter se implantando como moralidade hegemônica. E dentro dela o depressivo é o caso chave e problemático. O sintoma de um sistema que só consegue individualizar culpas e excluir desvios improdutivos. O depressivo não tem aquele “gosto” permanente pelo trabalho, não é que ele não “vista a camisa da empresa”, ele não veste a própria camisa, individualizando culpas e reduzindo o consumo, ele é o protótipo do sintoma criado pelo neoliberalismo.

    A era da depressão

    Podemos descrever o reinado da depressão, dividindo-o em três momentos.

    No primeiro período, que vai de 1973 a 1980, a depressão ainda é considerada uma espécie de febre, ou sintoma transversal de diferentes quadros clínicos, mas passa a ser definida, cada vez mais, no eixo de oposição entre o infantil e o adulto. Nessa narrativa a depressão é uma espécie de recusa ao crescimento, uma paralização do desenvolvimento ou uma regressão produzida por certos encontros traumáticos com a realidade. Haveria, por assim dizer, tanto para psicanalistas quanto para psicólogos cognitivos, uma espécie de estado básico de depressão, representado pela falta de amparo, estado este que teria sido vivido em momentos críticos da infância, os quais o sujeito regrediria diante de situações de alta complexidade.

    No segundo período, de 1980 a 2000, a depressão se expande e ganha uma personalidade própria, não mais reduzida a uma espécie e infantilismo ou de covardia moral, mas ao eixo mais genérico da impotência e da impossibilidade. Aqui, o paradigma não será mais a experiência originária e infantil, mas a perda de performance a recusa a operar segundo um certo regime específico de individualidade. O depressivo sofreria com uma dificuldade de enquadramento narcísico, ou seja, com uma gramática desviante de reconhecimento. Ele pode se identificar idealizadamente como um grande empreendedor, vocacionado para incríveis realizações e um destino glorioso no mundo dos negócios, dos amores e da família, para logo sofrer um “tombo” inesperado diante de uma demissão inesperada ou de uma decepção amorosa. A mesma narrativa compreende o polo oposto dos indivíduos que cronicamente se experimentam como inadequados, com sentimento de si rebaixado ou com uma limitação insidiosa para tomar riscos e avançar posições subjetivas e desejantes. Manter-se perfazendo um “papel”, torna-se uma experiência postiça, inautêntica e uma artificialidade cujo trabalho parece a um tempo infinito e impraticável. É o famoso realismo depressivo, que usualmente é interpretado pelos que estão a sua volta como um pessimismo ou como um gosto por desmanchar o prazer alheio. Isso ocorre porque o prazer alheio remete a esse complexo de imposturas e falsidades que é como o sujeito se lê nas trocas sociais e desejantes.

    Os tratamentos para a depressão passam a ser as “políticas de austeridade”. Redução de gastos sociais, equilíbrio de contas públicas e contenção de investimentos. Assim, a depressão clínica passa a ser descrita a partir de estados de distanciamento, desligamento e de auto-observação

    No terceiro período, de 2000 a 2008, a depressão torna-se algo crônico. Os antidepressivos tomados por décadas começam a reduzir os efeitos promissores. A depressão torna-se uma diabete mental, falta de um ingrediente químico no cérebro que temos que repor com medicação, indefinidamente. Junto a isso aparece a alegoria do revólver, que tem gatilhos que disparam a depressão, pois ela já está lá, geneticamente dada e à espreita permanente do sujeito. O termo “depressão” parece ter sido eficaz primeiro na economia e depois na psicopatologia.

    Os tratamentos para a depressão são as “políticas de austeridade”. Redução de gastos sociais, equilibração de contas públicas e contenção de investimentos. Assim, a depressão clínica passa a ser descrita a partir de estados de distanciamento, desligamento e de auto-observação. Estar nos lugares, participar das relações e extrair delas parece uma tarefa impossível.

    No lugar disso, o sujeito se coloca em recuo, como que a observar a festa humana como um teatro mal executado e imperfeito. Quando esse recuo é rompido artificialmente pela aproximação da realidade, seja por um comentário desavisado, seja por um mal encontro, isso colhe o sujeito em um estado de sensibilidade extrema e reatividade, muitas vezes agressiva ou impulsiva.

    As condições sociais de transmissão da depressão

    Notemos que com a depressão não estamos mais no registro do sofrimento mental como consequência de um conflito, da luta contra o proibido ou a revolta contra o que se reprime, mas da soberania do forte ou do fraco, do que se sustenta ou do que cai, da eficiência do egoísta contra a solidariedade depressiva. Encontramos aqui o que Maria Rita Kehl descreveu como as condições sociais da transmissão da depressão: a aceleração do tempo, o incremento da prontidão para a resposta à demanda, à demissão das posições de autoridade na relação entre pais e filhos, à recusa da partilha social do gozo e às paixões da segurança, que demanda do indivíduo que este se transforme em um ser genérico, indefinidamente comparável e substituível com os outros. Surge aqui a narrativa do depressivo como alguém que se perdeu de si mesmo, que se desgarrou do sistema da produção e consumo, que não consegue empreender a si mesmo, que oscila perpetuamente entre ser alguém superior e especial ou um nada, vazio dissolvido na multidão informe da insignificância.

    Nesse terceiro tempo do reinado depressivo, ela começa a ser pensada cada vez mais como uma síndrome com sintomas corporais: dores que andam pelo corpo, como na fibromialgia, corpo em cansaço permanente, como na fadiga crônica que explode na queima de toda energia, como no burn-out, ou que se mostra resistentes aos manipuladores químicos da libido ou do sono. A novidade dos antidepressivos cessa de funcionar, curiosamente quando as patentes vão sendo liberadas e os preços caem. Os novos antidepressivos não prometem mais a cura, mas o alívio das versões “corporais” da depressão, bem como a redução desses indesejáveis, mas por muito tempo pouco tematizados efeitos colaterais.

    Enquanto verdadeiros quadros neurológicos são indiferentes às formas como são descritos, a depressão depende de como se fala dela. Isso envolve tanto como o sujeito “se fala”, quanto à forma como ele “é falado” de tal modo a ter o sofrimento incluído em discursos, ganha legitimidade e reconhecimento. O quadro configura uma nova posição diante do sofrimento

    À medida que a depressão passou a ser pensada como um quadro dotado de uma etiologia indiferente ao conflito psíquico, ela foi reforçando o conflito com a realidade. As terapias cognitivas interpretavam a depressão como uma deformação do pensamento e propunham um roteiro bem estruturado baseado em princípios e evidências. Um dos manuais mais populares dessa abordagem apregoa que a terapia se baseia:

    a. No “contínuo desenvolvimento do paciente e de seus problemas cognitivos”.
    b. Realizado por meio de uma “aliança segura” e a “colaboração e participação ativa” do paciente.
    c. Orientada para “metas e soluções de problemas” enfatizando o “presente”.
    d. Visando “ensinar o paciente a evitar recaídas” durando um “tempo limitado”.
    e. As sessões são estruturadas de modo “a ensinar o paciente a avaliar e responder a pensamentos e crenças disfuncionais” usando uma variedade de técnicas para mudar o “pensamento, humor e comportamento”.

    Essa abordagem, que durante anos foi elevada à condição de protocolo no tratamento das depressões, associada permanentemente à administração de medicação antidepressiva, tornou-se dominante e globalmente exportada para os países da África, da Ásia e da América Latina, criando diferentes cenários de recepção, conforme o choque se desse com relação a crenças animistas e formas religiosas, tipos de individualização não ocidentais ou culturas previamente informadas por narrativas de interiorização do conflito.

    A neuroliteratura

    Críticos literários como Marco Roth e Paulo Werneck apontam como nossa forma de produzir romances teria se desligado das antigas narrativas psicanalíticas repletas de interioridade, conflitos de desenvolvimento, tramas familiares e divisões da consciência, seja no sonho, seja nos sintomas. A neuroliteratura, como por exemplo Amor sem Fim (1997) de Ian McIvan, destacou síndromes neurológicas, como a síndrome de Huntington e Tourrete ou e de linhagem psicóticas, como a síndrome de Clerambault, o autismo. Esse movimento de reapropriação literária de novas formas de sofrer, em oposição aos romances modernos, como os de Balzac, Flaubert, Joyce ou Proust tem um impacto direto na depressão. Enquanto verdadeiros quadros neurológicos são indiferentes às formas como são descritos, a depressão depende de como se fala dela. Isso envolve tanto como o sujeito “se fala”, quanto à forma como ele “é falado” de tal modo a ter o sofrimento incluído em discursos, ganha legitimidade e reconhecimento. Isso significa uma nova posição diante do sofrimento. Ele tem uma origem que transcende decisões: ele emana de uma avaria no cérebro ou em cadeias de desenvolvimento que afetaram a evolução da espécie ou a genética com a qual cada um foi determinado.

    Junto ao neoliberalismo o vocabulário econômico sofre uma mutação que enfatizará o medo e a inveja, o otimismo ou o pessimismo dos mercados, operando uma despolitização da política e deslocando a contenda moral para o terreno dos comportamentos de gosto

    Confirma-se aqui a ideia de que na depressão a causa do problema vem de fora. Ela não emana da alçada moral ou de nosso campo de escolhas ou decisões. Isso não significa que não exista nada a falar, mas trata-se de recriar a experiência a partir dessa posição de aceitação e conformidade. Não devemos desvalorizar essa narrativa porque ela sempre esteve presente nos modos de subjetivação e de narrativização dos sintomas. Aliás, essa tendência remete a narrativas transcendentais ou teológicas, nas quais as razões de nosso destino pertencem a “outros mundos”. A aceitação ou autorreconhecimento de que sintomas não são apenas decorrentes de falta de fé ou de força de vontade, mas que eles nos impõem um limite a nossa própria liberdade deveria inspirar uma discussão sobre os paradoxos de nosso desejo, mas ele parece ter sido capturado por uma dicotomia mais simples que divide as coisas entre a esfera na qual “podemos” agir e aquelas nas quais é “impossível” atuar.

    O segundo aspecto importante da emergência desse discurso literário-científico para a depressão é que ela passa a abranger formas tradicionalmente incorporadas ao registro da psicose. Isso aconteceu pela progressão da categoria de transtorno bipolar, dividido em três subtipos. Ou seja, a gravidade das depressões começa a ser reconhecida tanto porque ela responde cada vez menos aos tratamentos quanto pelo fato de que ela admite formas muito graves, com relação às quais não sabemos muito bem quais são os critérios de diferenciação.

    A narrativa do neoliberalismo

    Mas vejamos agora como as três figuras da depressão, a infantil, a narcísica e a corporal parece traduzir passo a passo a narrativa do neoliberalismo, como discurso econômico. Isso compreende a retomada de certos aspectos da teoria moral dos pais do liberalismo, com Stuart Mill e Adam Smith. Eles criticavam a infantilidade daqueles que não conseguiam se inibir, ou seja, conter o impulso para gastar e transformar isso em um adiamento temporal da satisfação, conhecido como poupança.

    A grande metáfora do neoliberalismo vai apregoar metáforas como a da necessidade de austeridade ao mesmo tempo que advogará o caráter essencialmente egoísta e competitivo do ser humano. Von Mises, patriarca do neoliberalismo, inventou a “síndrome de Fourrier” que consistiria em negar a finitude dos recursos naturais e o papel incontornável do trabalho como um sacrifício. Ou seja, a dúvida ou crítica quanto a realidade da escassez de recursos, da lógica do sacrifício e do medo natural da violência alheia, seriam uma traição da forma correta de percepção da realidade.

    A grande narrativa do neoliberalismo vai apregoar metáforas como a da necessidade de austeridade ao mesmo tempo que advogará o caráter essencialmente egoísta e competitivo do ser humano

    Essa estratégia ilustra bem como para esse discurso não estamos diante de um conflito de interpretações sobre a realidade, com a correlativa concorrência entre interesses, mas da patologização daqueles que duvidam de como as coisas realmente são. Eles estarão imbuídos de má-fé, desonestos, pois divergem da realidade e não de como nós percebemos ou construímos a realidade.

    Junto ao neoliberalismo o vocabulário econômico sofre uma mutação que enfatizará o medo e a inveja, o otimismo ou o pessimismo dos mercados, operando uma despolitização da política e deslocando a contenda moral para o terreno dos comportamentos de gosto. Ora, essa dissociação entre a produção econômica, identificada com a realidade, e o pensamento ou nossa forma de ler e interpretá-la vai operar no fulcro psicológico da depressão explicando porque ela é o correlato necessário desse tipo de forma econômica.

    Individualização do fracasso

    A individualização do conflito, a transformação em forma de culpa em associação ao fracasso e a potência produtiva, faz com que a agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, seja introvertida em uma agressividade orientada para o próprio eu. Isso se mostra, como vimos no raciocínio de auto-observação, de crítica de si mesmo com a inversão em ilações idealizadas.

    O depressivo é aquele que fracassa e por outro lado tem um sucesso demasiado em tornar-se um empreendedor de si mesmo. Ele não consegue usufruir da gramática da competição de todos contra todos, que tornaria a vida uma espécie de esporte permanente, de viagem contínua ou de teatro de estrelas nas quais há um prazer em representar. A anedonia, este sintoma central da depressão, a incapacidade de experimental de sentir prazer com o outro, consigo e no mundo, o torna uma espécie de ditador de si mesmo, em um impasse com as próprias ordens, incapaz de entender o porquê de sua greve para iniciar, ou fazer algo que por outro lado lhe parece óbvio, prático e indiscutivelmente desejável.

    De certa maneira a depressão só descreve, ela não narra, ela luta contra a perda de memória e de concentração, o que a torna um ser de cansaço, ela é a greve e ao mesmo tempo a lei opressiva que a torna possível. Nesse sentido o reinado da depressão é também um reinado crítico contra a era do “capital humano”, do prazer dócil e flexível no trabalho e da narrativa do talento, do propósito e da autorrealização que sobrecarrega a produção com métricas de desempenho e resultado.

    A individualização do conflito, a transformação em forma de culpa em associação com o fracasso e a potência produtiva, faz com que a agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, seja introvertida em uma agressividade orientada para o próprio eu

    Daí que o depressivo não esteja exatamente trazendo um recado da realidade como ela é, mas um fragmento de verdade sobre porque não conseguimos perceber a coisas. Em certa medida ele responde demasiadamente bem à demanda de abrir mão de si mesmo, ao tematizar-se apenas como um personagem pouco convincente e um ator cansado do seu papel. A resposta insiste na coerência, na unidade e na síntese em um universo no qual a produção se torna deslocalizada, onde os manuais de gerenciamento nos ensinam como criar mais sofrimento para incitar mais produção, assim como fragmentam a narrativa do trabalho e do estudo em blocos de potencialidades e listas de traços desejáveis e funcionalmente adequados. Assim, como para o neoliberalismo o mercado é outro compacto e fechado, idêntico a si mesmo em suas regras imutáveis, o Outro da depressão é composto por uma lei consistente e soberana que só podemos nos apresentar como corpos-mercadorias, crianças-amparáveis ou narcisos-impotentes.

    A regressão conservadora

    Coincidentemente, 2008 foi o ano no qual a aplicação irrestrita dos princípios neoliberais na economia começou a ser mais seriamente questionada. A crise americana no mercado imobiliário não foi deixada a sua própria sorte, desencadeando uma série de falências, mas sobre ela o Banco Central agiu no melhor e mais antigo keynesiano amparando e protegendo a economia. As crises da Europa periférica, envolvendo Islândia, Portugal e Grécia, começaram a colocar em xeque o sistema de contenção por austeridade. A insatisfação com a progressiva financeirização da economia, ausência de resposta ao problema do desemprego e da emergência de monopólios, deu origem a um período de turbulência que envolveu primaveras e ocupações, assim como a regressão conservadora na América de Trump ou na Inglaterra do Brexit.

    Por volta de 2010, as suspeitas contra o reinado da depressão começaram a se desdobrar. Há boatos de que os efeitos colaterais, notadamente, a redução da libido, foi na verdade o princípio ativo, ou seja, ao diminuir a libido diminuímos ao mesmo tempo todos os conflitos que vêm junto a ela: desejos insatisfeitos, frustrações e intensidades muito elevadas são “inibidas” pelos antidepressivos. Essa espécie de colchão contra as dores causadas pelo “choque de realidade” ou pela excessiva sensibilidade, protege o sujeito. Assim, como a hiperatividade pode ser tratada por um acelerador derivado das anfetaminas, como a ritalina, a depressão poderia ser tratada por um verdadeiro “depressivo” agindo sobre nossa libido, não só no sentido sexual.

    Em certa medida, o depressivo responde demasiadamente bem à demanda de abrir mão de si mesmo, ao tematizar-se apenas como um personagem pouco convincente e um ator cansado de seu papel

    Começam os primeiros processos jurídicos contra as companhias que produzem antidepressivos em função dos danos cerebrais derivados de um uso continuado. As narrativas clínicas de usuários de antidepressivos por décadas, que não conseguem superar os efeitos da abstinência, a associação de antidepressivos à irrupção de violência e suicídio, bem como a consciência crescente de que uma cultura da medicação permanente é no fundo uma variante da drogadição generalizada, vem a público. Essa literatura tem a mesma perspectiva que vai da crítica que vimos nos textos antipsiquiátricos de Tomas Sazs, Deleuze, Guatarri e Franco Basaglia, nos anos 1970, mas também a mesma perspectiva de denúncia que a psicanálise sofreu nos anos 1990-2000.

    O pior dos mundos

    O governo Bolsonaro consegue reunir o pior dos dois mundos. Como falso liberal retira garantias e desprotege o trabalhador, cria ansiedade, desemprego e incerteza e como neoliberal postiço mantém a política de empreitamento do Estado em benefício próprio, ou das milícias. A forma como a Pandemia está sendo enfrentada no Brasil não é apenas necropolítica, mas é também depressiva, no sentido de dividir o ordenamento simbólico de obediência a regras sanitárias, o que envolve estimular o dissenso e a negação sistemática do perigo e das estratégias biopolíticas para enfrentá-lo. Sem tratamento ordenado do futuro, sem acolhimento do luto, sem reconhecimento de qualquer instância de mediação, seja a ciência, o direito ou a razão sanitária, ele personifica a potência pessoal, diante da qual é preciso ajoelhar e pedir proteção, confirmando assim o estado de melancolia e impotência diante da realidade.

    *Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de A arte da quarentena para principiantes (Boitempo).

  • “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    Por Gilberto Maringoni

    Ivan Valente tinha 18 anos de idade quando foi dado o golpe de 1964. A interrupção da democracia e seu valor marcaram para sempre aquele estudante de cursinho que aspirava entrar num curso de Engenharia. Ao longo dos 56 anos seguintes a militância passou pelo movimento estudantil, pela vida clandestina na ditadura, pela prisão e pelas torturas, pela fundação do PT e pela construção do PSOL. Ivan exerce seu sexto mandato de deputado federal, depois de se eleger por duas vezes para a Assembleia Legislativa de São Paulo. Nesta entrevista, ele comenta os impasses do Brasil de Bolsonaro e relembra pontos marcantes da sua trajetória política.

    Como se explica o fenômeno Bolsonaro e por que o Brasil, depois de 35 anos de democracia, resolveu elegê-lo?

    Bolsonaro é um fenômeno que vem desde, pelo menos, a crise de 2008 e foi impulsionado a partir de 2013. Naquela situação de disputas, a direita surgiu como movimento de massas. Percebendo a instabilidade reinante, uma elite econômica sem projeto de Nação resolveu chutar o balde do regime democrático de forma agressiva e oportunista. Houve, claro, uma decepção com o governo Dilma em setores populares e de esquerda, mas além disso houve uma manipulação política por parte da grande mídia, que ajudou a criar um carimbo de corrupto no PT. Cresceu na base da sociedade uma forte tendência antipetista, que impulsionou um processo de impeachment absurdo. Abriu-se a oportunidade para a imposição de um projeto de hegemonia do capital financeiro e do neoliberalismo, implementado a todo vapor com Michel Temer. Paralelo a isso, o que chamamos de lavajatismo – uma prática falsamente moralista, punitivista e parcial –ajudou a criar o caminho que desembocou em Bolsonaro. Isso nos deu uma lição: futuros governos de esquerda, mais contundentes que o PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo etc. E defendendo a ditadura militar, citada todo dia, com AI-5 e tortura. Há quase um terço da população que não se arrepende do voto dado em 2018. Isso é grave.

    “Futuros governos de esquerda, mais contundentes que os do PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo”

    A mesma sociedade brasileira que deu a vitória à extrema direita elegeu por quatro vezes um governo de centro-esquerda. Como isso se explica?

    A primeira eleição de Lula assustou bastante a burguesia. O PT fez a “Carta ao povo brasileiro”, colocou o Palocci na Fazenda, atendeu ao mercado e Lula partiu para uma ação de alguma distribuição de renda aos pobres e de grandes ganhos para os ricos. Assim, deixou de assustar. Isso se confirmou ao vermos que, em 2006, mesmo após o mensalão e de tudo o que a Globo fez, ele foi muito bem reeleito. A economia ia bem, os de cima ganhavam mais e os de baixo ganhavam alguma coisa. Teve a oportunidade de pegar um boom de commodities. Frei Betto diz algo com o qual concordo totalmente. Uma coisa é ter consciência do valor das conquistas e outra é estar bem servido no consumo. Lula sempre foi isso, de servir no consumo. Claro que, contra a fome, temos que almoçar, jantar e tomar café da manhã. Mas, depois, todo mundo tinha que ter as utilidades domésticas de linha branca, o carro etc. Isso pegava bem no sentido geral do consumo, mas não mudava as consciências. Quando veio uma crise com o impacto da de 2008, a direita, que estava sendo bem acomodada no governo, começou a querer mudar de barco. Há um aspecto adicional: Lula não contribuiu para mexer em nada na hegemonia do capital financeiro no Brasil. Por que não se fala em acabar de vez com subsídios? Em reforma tributária? Em taxação das grandes heranças e fortunas? Não houve nada disso nos governos do PT. A linha geral era de atrair capital e investimento para o Brasil, especulativo ou não, mas sem mexer nas estruturas, no problema da dívida pública e no tripé macroeconômico.


    Uma vida de combate: Ivan por Ivan

    O esforço foi grande, mas valeu a pena!

    “O rumo neoliberal do primeiro governo Lula não nos deixou alternativa a não ser sair do PT e vir para o PSOL. Ou seja, deixamos um transatlântico e desembarcamos em uma canoa. Hoje, nossa canoa é uma das principais referências dos lutadores populares brasileiros”.

    “Infância e estudos

    Nasci em São Paulo, em 1946. Meu pai, involuntariamente, participou da chamada Intentona Comunista de 1935. Ele era sargento da Aeronáutica e, quando houve a rebelião, estava no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, para fazer o curso de piloto. O campo foi cercado e ele ficou preso seis meses, foi expulso da Aeronáutica e depois se tornou comerciário. Não tinha uma formação socialista, mas sempre esteve ao lado dos de baixo e sempre me inclinou para a esquerda. Toda a minha educação básica e do ginásio foram na escola pública.

    Início da militância

    Entrei para a Escola de Engenharia Mauá, em 1966. No ano seguinte, comecei a participar intensamente do movimento estudantil. E montamos e lideramos o Centro Acadêmico da Escola de Engenharia.

    Em contato com lideranças da USP e de outras faculdades, acabei me ligando ao Partido Operário Comunista (POC), organização formada por outras, como a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP). O POC rachou em 1970, entre aqueles que queriam ir para a luta armada e quem queria ficar na luta de massas. Eu não achava que aquele era o caminho mais correto. Com o tempo, o POC foi literalmente extinto e seus dirigentes foram assassinados. Só escapou quem foi para o exterior.

    Clandestinidade e prisão

    Em 1972, fiquei clandestino em São Paulo por oito meses. Como era liderança estudantil, encontrava muita gente pela rua. E o pessoal do Rio achou que eu deveria ir para lá, onde eu não era conhecido. Com isso, a militância e a formação de nossa nova organização, o Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP, em 1976), se deu com a participação de importantes lideranças estudantis e operárias. No total, fiquei cinco anos e meio na clandestinidade.

    Fui preso pela primeira vez em julho de 1977 e fiquei quatro meses e meio encarcerado com outros 25 companheiros. Nesse período, fizemos duas greves de fome. A tortura era algo sistemático. Foram dez dias no DOI-CODI, nos quais passei por porrada, cadeira do dragão e pau de arara, dia e noite. E geladeira, aquele cubículo gelado onde te observavam por meio de câmeras e isolamento térmico.

    Protesto amplo

    Saímos da cadeia por meio de uma greve de fome. Escrevemos uma denúncia da situação dos presos políticos, a “carta dos presos do MEP”. O texto saiu integralmente no Jornal do Brasil e no Le Monde, e trechos foram publicados na Folha, no Globo e no Estadão. Ali, relaxaram a preventiva, pois nossa prisão estava tendo repercussão pública. Marcaram nosso julgamento para novembro de 1978. Tínhamos a decisão a tomar: ou ir para a clandestinidade ou para o julgamento. E nós fomos para o julgamento por acharmos que já havia um movimento de anistia forte na sociedade. No dia, havia mais de mil pessoas na porta da sala da Auditoria da Aeronáutica, no Rio. Fizemos um banzé, subimos na mesa, gritamos “Abaixo a ditadura!”. Saí de lá carregado pela polícia da aeronáutica sem pisar no chão. E pegamos três anos de cana.

    No presídio da rua Frei Caneca, ficamos mais seis meses. Após intensa batalha política e jurídica, fomos libertados em maio de 1979, quatro meses antes da Anistia.

    Do PT ao PSOL

    Quando voltei a São Paulo, participei da fundação do PT, em 1980, um marco essencial nas lutas populares brasileiras. Já havíamos lançado no ano anterior o jornal Companheiro, do MEP, que durou três anos.

    De 1983 a 1986, fui assessor do mandato de deputado federal do José Genoíno, enquanto lecionava matemática na escola pública. A partir de 1986, fui eleito para dois mandatos de deputado estadual em São Paulo (1987-95) e seis de deputado federal. Fomos oposição e governo. Essa última fase foi difícil.

    O primeiro governo de Lula (2003-07) foi bastante controverso, com a designação de Antônio Palocci para a Fazenda e Henrique Meirelles para o Banco Central. Começamos batendo no aumento dos juros e, depois, veio a reforma da Previdência. Dos vários tensionamentos com o conservadorismo do PT, a questão da Previdência representou uma batalha particularmente insana, com quase 400 reuniões, em poucos meses. O rumo neoliberal da política governamental não nos deixou alternativa a não ser sair do partido e vir para o PSOL. Ou seja, deixamos um transatlântico e desembarcamos em uma canoa. Como toda a nossa história, o esforço foi imenso. Mas valeu a pena. Hoje, nossa canoa é uma das principais referências dos lutadores populares brasileiros”.


    No governo Lula, as Forças Armadas continuaram tão ou mais fortes do que antes e os meios de comunicação não foram regulados. Que mudanças reais o PT proporcionou ao País?

    O caso das Forças Armadas é complexo. Na época da discussão da Comissão da Verdade (2011-14), havia na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara um projeto da Luíza Erundina – que eu coassinava – segundo o qual era a hora de punir os torturadores. Mas o projeto não passou. Como você não mexe nos torturadores e nos mandantes, eles continuam falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido. Isso passa a ser uma conivência. No caso das comunicações, vamos lembrar quem foram os ministros: Miro Teixeira, Helio Costa – que foi da Globo por 30 anos – e Paulo Bernardo. No fundo, eles achavam que havia democracia com a Globo mandando. Ao não mexer no sistema econômico, quando acabou a onda de commodities e a conjuntura internacional favorável, não se asseguraram direitos dos trabalhadores e houve até retrocesso. Faltou contundência, um diálogo de massa, manter mobilizado o movimento social e popular, na medida do possível. O MST, por exemplo, não queria a Lei Antiterrorismo, sancionada pela Dilma. Agora, a extrema direita quer aprofundá-la. Isso tudo é resultado de coisas que fizemos errado lá atrás. Falo disso tudo sem contar as coisas feitas no oba-oba, como a questão da Copa do Mundo e esses elefantes brancos que estão aí até hoje, que são as arenas. Houve uma euforia com a elite, e uma ilusão do PT com partes enormes do topo da pirâmide social, que se mostrou falsa e se expressou em ódio de classe contra o partido. Também houve muita ilusão com a governabilidade conservadora do Congresso Nacional.

    “Sem punir torturadores e mandantes, eles continuarão falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido”

    Atualmente, o PSOL está sendo acusado de se reaproximar do PT e de ser um puxadinho do partido. É verdade?

    A posição nítida do PSOL é a de que o ano de 2022 passa por 2021. Agora – neste ano! – nós precisamos fazer uma grande frente entre todos que lutam contra o bolsonarismo e contra o estreitamento da democracia, e a favor de uma resposta pronta do Estado brasileiro em relação à pandemia. É hora de unir forças e produzir muita mobilização contra Bolsonaro. No ano que vem, se ele for competitivo, temos que derrotá-lo com a candidatura de esquerda mais bem posicionada nas pesquisas. E essa candidatura precisa ter um programa que mobilize os trabalhadores e o povo. Repito, isso vai ser visto em 2022. É o momento de tornar o PSOL presente na conjuntura, no combate ao bolsonarismo e garantir protagonismo no processo.

    O PSOL é um partido que galvaniza a juventude na esquerda, mais do que qualquer outro. E tem uma geração de quadros novos muito promissores. Como você vê essa renovação?

    Vejo de forma muito positiva. E isso tem explicação. O PSOL tem sido vanguarda em várias lutas importantes, como a luta contra o racismo, a homofobia, o machismo e pelos direitos civis e humanos. Isso tem sido uma marca, mas ela não é suficiente. Por exemplo, a candidatura do Boulos com a Erundina em São Paulo representou uma proposta de mudança popular e massiva. Ela propunha mudanças estruturais. É por isso que Boulos se tornou uma figura tão expressiva. Da mesma forma, Erundina cumpriu um papel muito importante, e mostra que a candidatura de ambos foi, antes de tudo, programática – a favor do combate à pobreza, à desigualdade – e com uma cara socialista. Conquistar 40% dos votos no segundo turno foi uma vitória e mostra o enorme potencial do PSOL.

    O PSOL se consolidou como uma corrente de opinião e lançou candidatos majoritários na maioria dos estados. Qual foi o principal ponto de virada do partido, depois de sua criação?

    Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós. Ela estava insatisfeita no PSB e a convidei para entrar no PSOL. E ela aceitou. A Erundina dá um grande salto de qualidade ao partido, uma dimensão de massas. É notável também a entrada de Guilherme Boulos, maior expressão do movimento social nesse último período, além de outras figuras públicas que reforçam a representatividade do PSOL na conjuntura. A ética na política, a coerência na ação e a questão programática do PSOL foram três pilares que preservaram o partido e o tornaram respeitado nos movimentos sociais. Nós nos tornamos grandes mesmo sendo pequenos. O PSOL é grande, por ser muito respeitado por esses três pilares. Ao mesmo tempo, é ainda um partido pequeno em expressão e capilaridade de massa.

    “Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós”

    Estamos na maior crise da história republicana. Você é otimista, realista ou pessimista?

    Mesmo com todo esse retrocesso bolsonarista, é óbvio que confio que o povo brasileiro vai virar essa situação. É claro que, para isso, temos que acumular força e ter movimentos de massas. Há um percalço pelo caminho. Estamos em meio a uma pandemia e não podemos sair para a rua! Não vai ser fácil, vai ter muita luta e mobilização, mas nós vamos superar isso. E vamos deixar o pessimismo para momentos melhores.