Categoria: Artigos

  • Todas filhas, mães e irmãs: que todas se olhem e ninguém se esqueça

    Todas filhas, mães e irmãs: que todas se olhem e ninguém se esqueça

    Todas filhas, mães e irmãs: que todas se olhem
    e ninguém se esqueça

    Manoella Back, do PSOL/Blumenau/SC

    Tenho o hábito de conversar em determinados espaços sobre questões voltadas a pessoas com deficiência, geralmente com recorte de gênero. As falas costumam ser curtas e, em uma hora, preciso dar conta de falar de relações de acesso à trabalho, estudos, nossos direitos reprodutivos (ou a ausência deles), capacitismo, origem da discriminação da pessoa deficiente na Revolução Industrial e outras formas de opressão. Chamo atenção para nomenclaturas as quais usamos ou que em algum período histórico já usamos para nos referir às e aos deficientes. Deixo as mesmas pairando no ar justamente para entender como estes termos soam para pessoas dos nossos tempos: pessoa defeituosa, pessoa excepcional, pessoa especial, pessoa portadora de necessidade especial/ deficiência ou os termos já aceitáveis como pessoa com deficiência ou deficiente. Particularmente, costumo usar este último por compreender e pactuar da ideia de que a deficiência não é mero anexo nosso como pessoa com deficiência propõe, mas sim que a deficiência é parte da gente:

    Deve-se entender deficiência como um conceito amplo e relacional. É deficiência toda e qualquer forma de desvantagem resultante da relação do corpo com lesões e a sociedade. Lesão, por sua vez, engloba doenças crônicas, desvios ou traumas que, na relação com o meio ambiente, implica em restrições de habilidades consideradas comuns às pessoas com mesma idade e sexo em cada sociedade. Lembro que deficiência é um conceito aplicado a situações de saúde e doença e, em alguma medida, é relativo às sociedades onde as pessoas deficientes vivem. Além disso, evito o uso da expressão pessoa portadora de deficiência ou pessoa com deficiência, mas adoto pessoa deficiente ou, simplesmente, deficiente. (DINIZ, 2003, p. 2).

    Falo ainda do Modelo Social da Deficiência (MSD) que se tornou revolucionária da área de saúde, só cresceu e se manteve graças às teorias feministas. Em resumo, o MSD é a ideia revolucionária de que pessoas com deficiência são seres humanos e não meros diagnósticos. O modelo iniciou com homens ingleses, brancos, de classe média e com lesão medular. Depois da entrada das feministas na reflexão, foi possível tratar de outros temas que tangenciam as deficiências como a teoria da dependência, espaços das dores – físicas e emocionais – lugar das cuidadoraAs e outras subjetividades. O modelo daria conta de abarcar as mulheres LGBT+ com deficiência, mulher negra com deficiência, mulher indígena com deficiência e mulher periférica, para chamar atenção para as possíveis formas de opressão. Graças a importância do MSD, a Organização Mundial de Saúde reclassificou seu catálogo internacional de doenças, revisou nomenclaturas e buscou fugir do modelo caritativo e médico da deficiência. Seu maior impacto, para mim, está na luta por Direitos Humanos, já que o modelo refuta que a cura não está na terapêutica e sim, na política. A deficiência não está em nós mas sim, do mundo externo:

    A base para esta reconfiguração do modelo social da deficiência deve se basear no reconhecimento da centralidade da dependência nas relações humanas, no reconhecimento das vulnerabilidades das relações de dependência e seu impacto sobre nossas obrigações morais e, por fim, nas repercussões dessas obrigações morais em nosso sistema político e social. (DINIZ, 2003, p. 7)

     Reforço ainda que, assim como muitas mulheres com deficiência, a imagem padrão do deficiente não me representa: tenho deficiência física, porém não sou cadeirante. Não representa, pois vivo e estou sujeita a outras formas de opressão que o sujeito – aqui eu me refiro aos homens – não estão. Há dados que definem muito bem este contexto:

    – 40% das mulheres com deficiência já sofreram algum tipo de violência. No Brasil, há 25.800.681 de mulheres com deficiência, o equivalente a 26,5% da população feminina, segundo dados do IBGE (Censo de 2010).

    Mulheres com deficiência estupradas não alcançam nem metade dos casos na profilaxia de IST (39,6%), HIV (27,6%); coleta de sangue (45 %), coleta de sêmem (6,8%); coleta de secreção vaginal (15,5%); contracepção de emergência (26%); e aborto previsto em lei (1,5%).

    – E quando o agressor acha que está fazendo um “favor” a vítima porque deu uma “experiência sexual” a ele? Ou seja, somos aceitavelmente estupradas e nossa solidão justificada pelo preconceito alheio.

    Já a ausência de dados no que diz respeito a assédio que é uma constante nas vidas de mulheres deficientes também preocupa. E já que o assédio é um problema, porque não falar em trabalho? Por mais que tenhamos a Lei da Cotas, que exige que empresas com mais de 100 funcionários tenham em sua equipe uma porcentagem mínima de pessoas com deficiência ou reabilitados, ainda é possível fazer mais um recorte de gênero. No Brasil há cerca de 45 milhões de pessoas com deficiência. Mesmo com as cotas apenas 403 mil pessoas exercem algum tipo de trabalho remunerado.  Com o recorte de gênero, 259 mil pessoas desta específica classe trabalhadora são homens e 144 mil trabalhadoras mulheres.

    Além de tudo o mercado nos enxerga como mero cumprimento de lei, já que “88% dos RHs ainda veem pessoa com deficiência como cota” e, na prática, as vagas dos deficientes são ainda previamente selecionadas pois são vagas frequentemente direcionadas a base da pirâmide, com baixo salário e carga horária inferior. Nisto, está inserido toda a discriminação já com a assertiva de que “somos incapazes”. Com todo o exposto, fica impossível não lançar a provocação: o que nós, pessoas com deficiência, significamos para sistema capitalista?

    Recentemente foi promulgada a Lei 13.409/ 2016 que garante ações afirmativas às pessoas deficientes já que somos apenas 0,42% dos ingressos nas universidades brasileiras.

    Súplica é uma palavra que pode soar pesada. Porém, eu suplico às pré-candidatas e para que ninguém pense que essas barreiras são apenas arquitetônicas. Não é só falta de acesso! O que nos atinge de forma mais específica é como toda uma sociedade explora nosso “lugar de dor” já que “lugar de fala”, mesmo dentro do próprio movimento feminista, raramente temos. Além do machismo de todos os dias, é difícil lidar com o capacitismo. No final do ano de 2016, em alusão ao Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, surgiu nas redes sociais a hashtag #Écapacitismoquando cujo objetivo era evidenciar nossas opressões e foi o estopim para que um mundo normatizado e alienado se aproximasse dos absurdos cotidianos que vive uma pessoa com deficiência, já que o capacitismo não surge apenas nos discursos de ódio ou de estranhamento. Ele está sempre na sua casa, do seu lado, na mídia e reforça o tempo todo que você não é capaz de viver de forma autônoma ou que pode tomar decisões próprias.

    Por fim, como pertencente a estas duas categorias opressoras – mulher com deficiência – e muitas de nós tendo a ideologia de esquerda como predominante, assim como as ícones da luta socialista Rosa Luxemburgo e Frida Kahlo, é impossível não vislumbrar um horizonte nada positivo frente aos ataques do atual governo neoliberal e os avanços do conservadorismo brasileiro. Não há dúvidas de que vamos à luta! Mas queremos reforços de todas as mulheres e o mínimo de saúde mental para lidar com tudo isso, já que ser deficiente é contra hegemônico por natureza, porque sim, vamos continuar desviando de trajetos não adaptados com corpos que nem sempre vão responder com que o sistema vigente quiser.

    Referências:

    CANDIDO, Marcos. 88% dos RHs veem pessoa com deficiência apenas como cota. Disponível em: https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/01/15/deficientes-ainda-so-sao-contratados-por-cotas-diz-empresaria-cadeirante.htm > Acesso em: 18. mai. 2018

    DINIZ, Débora. Modelo social da deficiência: a crítica feminista. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/15250/1/ARTIGO_ModeloSocialDeficiencia.pdf > Acesso em: 18. Mai. 2018

    Instituto Patrícia Galvão. Pauta feminina: novos dados dimensionam a violência contra mulher com deficiência. Disponível em: < http://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/noticias-violencia/pauta-feminina-novos-dados-dimensionam-violencia-sexual-contra-mulher-com-deficiencia/ > Acesso em: 18. mai. 2018

  • A luta contra o racismo

    A luta contra o racismo

    A LUTA CONTRA O RACISMO EM SUAS VÁRIAS DIMENSÕES: ÓTIMA AÇÃO DO MPT-SP

    Francisvaldo Mendes de Souza

    O Ministério Público do Trabalho de São Paulo assinou um PACTO que enfrenta o racismo em suas várias dimensões.  “O PACTO PELA INCLUSÃO SOCIAL DE JOVENS NEGRAS E NEGROS NO MERCADO DE TRABALHO DE SÃO PAULO“, que foi divulgado no mês de junho de 2018, é uma ótima iniciativa e fundamental. Diferente do que tem predominado nas ações das instituições e principalmente do judiciário e do Ministério Público em escala nacional, o MPT-SP assume uma postura progressista, assertiva e evidentemente comprometida com o enfrentamento e a superação das desigualdades.

    Toda ação com o compromisso de superação da desigualdade na sociedade cruel e desumana que vivemos produz ambientes e ações que são fundamentais para a construção de um mundo mais justo e solidário. O PACTO reconhece e afirma o papel de sujeitos que são todas as pessoas que compõem a maioria da sociedade e o majoritário grupo social de jovens negros. São esses os que vivem de sua força de trabalho nas condições mais pauperizadas, enfrentam as mais desiguais condições estruturais criadas pelo capitalismo e suas consequências mais perversas nas desigualdades imposta pela própria estrutura do Estado Brasileiro.

    Para além de se dedicar à ações que enfrentem a exclusão do mercado de trabalho, os salários, o tratamento e manutenção dos empregos, o PACTO avança nas condições de aprendizagem e cria um ambiente de participação. O reconhecimento dos movimentos sociais e de tudo que há organizado na sociedade civil para enfrentamento do racismo, é uma postura para fazer avançar o (sub)desenvolvimento brasileiro.

    O Estado assumir o papel de organizador de encontros, diálogos e comissões formadas para enfrentar e buscar elementos que superem o racismo é uma estética que diferencia do que predomina como ação do Estado, de suas instituições e aparelhos. Indiscutivelmente uma atitude que reforça processos de democratização que estão sufocados pelas ondas autoritárias dos tempos atuais.  O documento, oficialmente do Estado, estabelece prazos, aponta ações a serem tomadas, em todos os níveis e nos setores privados.

    É indiscutível que são as pessoas com menos direitos na venda da força de trabalho, com menos espaço para vagas e manutenção de vagas em escolas, com maiores dificuldades para moradias, transportes, arte, cultura e dignidade de vida, as mais impactadas pelo sistema das desigualdades capitalistas. Essas pessoas são as que trazem em suas histórias as maiores consequências do escravismo e que hoje é impactante nos racismo estruturais e institucionais que são tônicas das desigualdades.

    Para um partido como o PSOL é fundamental reconhecer a ação propositiva do MPT-SP e sua importância para o enfrentamento das desigualdades, do racismo e das variadas formas de exploração. Mais ainda, é de grande importância motivar todos os partidos progressistas, de esquerda, comprometidos em suas ações ou resoluções para cobrarem que tal ação se espalhe por todo o Brasil. Reproduzir e ocupar o Estado, em escala nacional ou em escalas locais, com atos dessa grandeza, que envolvem a sociedade civil como protagonista e reconheçam negros e negras como sujeitos, cobrando do mercado suas responsabilidades, é fundamental para o processo da democratização,

    Parabéns ao MPT-SP. E que tais influências que aparecem no PACTO, em suas proposições e no modelo organizativo, que articula todos os personagens para uma ação que se avance no rumo da dignidade, seja uma marca decisiva para a estética, prática e táticas das pessoas que vivem do trabalho e dos partidos comprometidos com esses grupos sociais. Vamos avançar na conquista da dignidade humana, na superação das desigualdades e, para isso, é fundamental enfrentar e superar o racismo e com isso estaremos pavimentando o rumo ao socialismo.

  • A Intervenção Militar no Rio de Janeiro não é novidade

    A Intervenção Militar no Rio de Janeiro não é novidade

    A Intervenção Militar no Rio de Janeiro não é novidade

    A subordinação das PMs ao Exército estabelece há décadas uma tutela militar nas forças de segurança pública. Situações dessa natureza colocam a população pobre em permanente risco

    Por Ivan Seixas

    A intervenção militar do Rio de Janeiro, em meio ao aprofundamento do golpe de 2016, reacende o medo de termos uma nova ditadura militar. Não é para menos. A reedição de uma tragédia pode ser ainda mais grave e trágica. Se nos fiarmos na célebre frase de Marx, em O 18 brumário de Luís Bonaparte, de que a história acontece da primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, é essencial juntar esforços para que o replay não nos surpreenda.

    No clima bélico criado no Rio, um general chegou a afirmar, em palestra recente na Escola Superior de Guerra, que “a Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia”. A expressão “o que fizemos no Araguaia” pode ser sintetizada nas capturas e assassinatos de 64 participantes da Guerrilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista do Brasil, no sul do Pará. Seus corpos estão desaparecidos até hoje. Ou seja, as Forças Armadas cometeram delitos previstos na Convenção de Genebra, que qualifica como crime de guerra o tratamento desumano a prisioneiros, a execução sumária depois de capturado o inimigo e a ocultação de seus restos mortais. Não se sabe se o militar quer repetir “o que fizemos no Araguaia” nos morros do Rio.

    Segurança nacional

    A participação das Forças Armadas na segurança pública nunca deixou de acontecer. Traçada como estratégia de segurança nacional ainda nos tempos da ditadura, essa participação integra o conceito de “manutenção da ordem pública”. Apenas esporadicamente ela aparece de forma ostensiva aos olhos do grande público. Assim se deu em grandes eventos, como a Rio 92, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. A nova invasão de áreas pobres faz parte dessa métrica.

    O Exército e Marinha tiveram presença marcante nas ocupações de favelas para a implantação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e não fizeram nada mais do que agredir direitos de moradores, os quais eram tratados, em geral, como inimigos das tropas. Foram gastos vastos recursos e o resultado foi apenas um show midiático. Depois do impacto criado pela mídia, o serviço acabou e caiu no esquecimento, a exemplo das fracassadas ações no Complexo da Maré.

    Se a ocupação militar servisse para o chamado combate ao tráfico de drogas, não teríamos outra ocupação depois de quatro anos do espalhafatoso espetáculo de 2014. E as drogas não seriam apreendidas em helicópteros de senadores, em fazendas de ministros latifundiários a quilômetros dos morros cariocas ou em transportes por caminhões e navios. O grosso da droga não pertence aos moradores de favela, pertence aos proprietários de grandes apartamentos milionários. Nos morros e periferias há apenas distribuidores para a classe média. Os pobres são estigmatizados como perigosos traficantes para desviar a atenção das verdadeiras organizações criminosas, lucrativas empresas capitalistas.

    É inegável que esses pequenos varejistas do tráfico usam armas de grosso calibre, assim como é inegável que latifundiários também usem armas semelhantes para eliminar camponeses em luta pelo direito à terra. E nenhuma tropa é deslocada para locais de conflito com objetivo de confiscar esses arsenais.

    Máximos e mínimos

    Os montantes utilizados para o espetáculo midiático são enormes e os recursos destinados a proporcionar infraestrutura para a vida dos habitantes das favelas são mínimos. Na história dos governos do Rio de Janeiro, apenas o de Leonel Brizola se destaca como aplicador de orçamentos em benefício das maiorias. Quando o antigo governador instalou elevadores e teleféricos para facilitar o acesso de moradores aos seus locais de moradia, levantou-se uma onda de protestos elitistas contra a iniciativa.

    Quando o mesmo Brizola se dedicou a construir os famosos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), concebidos por Darcy Ribeiro, equipados com salas de aula, bibliotecas, quadras de esporte, piscinas e toda a infraestrutura adequada à uma educação pública de qualidade, a mesma mídia se dedicou a condenar o projeto. Em resumo, a direita brasileira detesta pobres e quem promove políticas públicas democratizantes.

    A ação policial, em vários países, não se dá por movimentações de tropas ou por espetáculos midiáticos. Só acontece como resultado de trabalho científico de inteligência, investigação e coleta de provas para a condenação dos acusados, tarefa da Polícia Judiciária Civil. Do contrário, vai inevitavelmente cair na agressão aos Direitos Humanos, na violação da lei e do Estado de Direito Democrático.

    Forças Armadas e segurança pública

    A alocação de tropas da Polícia Militar em favelas com a incumbência de investigar, reprimir e prender suspeitos, tomando o lugar da Polícia Judiciária Civil, leva à violências contra a população – sem falar em casos como o do pedreiro Amarildo Dias de Souza, preso, torturado e desaparecido até hoje – e à promiscuidade com o crime organizado. Não por acaso, no mesmo Rio de Janeiro acontece o “fenômeno” do surgimento de quadrilhas de policiais apelidadas de Milícias, que dividem espaço com as demais quadrilhas civis.

    Ou se reforça o trabalho da Polícia Civil, que tem legalmente a atribuição de investigar e prender, ou as atrocidades contra a população trabalhadora, moradora dos morros cariocas, continuará acontecendo e novas “intervenções militares” continuarão a ser pedidas e executadas.

    Repetindo: o Exército nacional nunca esteve alheio ou distante da atuação das Polícias Militares em qualquer estado da federação. Há uma ligação orgânica entre ambas as instituições, legalmente e não apenas como colaboração entre as forças.

    Pelo decreto 88.777, de setembro de 1983, de iniciativa de João Baptista Figueiredo, último general da ditadura, as polícias militares passaram formalmente a ser vinculadas ao Exército e se integraram ao Sistema Nacional de Informações, órgão central da repressão política no país. Esse decreto nunca foi revogado por nenhum governo democrático, o que mostra o descaso com questão tão séria para a vida cotidiana da população.

    Pelo artigo 3º desse dispositivo, o Ministério do Exército exercerá o controle e a coordenação das Polícias Militares, por intermédio do Estado-Maior do Exército, em todo o território nacional. E pelo Parágrafo Único, “O controle e a coordenação das Polícias Militares abrangerão os aspectos de organização e legislação, efetivos, disciplina, ensino e instrução, adestramento, material bélico de Polícia Militar”. Ou seja, as PMs são treinadas e dirigidas pelo Exército brasileiro.

    Pelo artigo 5º, “As Polícias Militares, a critério dos Exércitos e Comandos Militares de Área, participarão de exercícios, manobras e outras atividades de instrução necessárias às ações específicas de defesa interna ou de defesa territorial, com efetivos que não prejudiquem sua ação policial prioritária”.

    A digital do Exército Brasileiro está gravada no artigo 37, que diz:

    Compete ao Estado-Maior do Exército, por intermédio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares:

    1) o estabelecimento de princípios, diretrizes e normas para a efetiva realização do controle e da coordenação das Polícias Militares por parte dos Exércitos, Comandos Militares de Área, Regiões Militares e demais Grandes Comandos;
    2) a centralização dos assuntos da alçada do Ministério do Exército, com vistas ao estabelecimento da política conveniente e à adoção das providências adequadas;
    3) a orientação, fiscalização e controle do ensino e da instrução das Polícias Militares;
    4) o controle da organização, dos efetivos e de todo material citado no parágrafo único do artigo 3º deste Regulamento;
    5) a colaboração nos estudos visando aos direitos, deveres, remuneração, justiça e garantias das Polícias Militares e ao estabelecimento das condições gerais de convocação e de mobilização;
    6) a apreciação dos quadros de mobilização para as Polícias Militares;
    7) orientar as Polícias Militares, cooperando no estabelecimento e na atualização da legislação básica relativa a essas Corporações, bem como coordenar e controlar o cumprimento dos dispositivos da legislação federal e estadual pertinentes.

    Assim, a Polícia Militar de qualquer estado da federação está sujeita ao Estado Maior do Exército. Daí não ser correto dizer que a PM está fora de controle quando a corporação comete alguma atrocidade contra manifestações populares. Está sem o controle do poder civil, das entidades e órgãos dos governos, mas está sob controle e orientação do Exército brasileiro.

    Para tirar dúvidas quanto a esse controle e direção, basta ler o artigo 33 do decreto:

    A atividade operacional policial-militar obedecerá a planejamento que vise, principalmente, à manutenção da ordem pública nas respectivas Unidades Federativas.

    A intervenção do Exército não é, assim, marca apenas de um governo golpista, fraco e dependente de malabarismos para sobreviver mais alguns meses. A iniciativa existe cotidianamente há tempos.

    Por outro lado, expoentes de esquerda ou da academia dão declarações indignadas contra essa atuação, mas poucos tocam na extinção dessa estrutura militarizada das Polícias. Não examinam o essencial.

    Qualquer agrupamento de esquerda, que pense minimamente o país com uma perspectiva democrática e que tenha sensibilidade para os segmentos populares deveria ter em sua agenda a desativação dessa complicada relação entre Exército e Polícias Militares. Caso contrário, a intervenção seguirá acontecendo sem que a maioria perceba.

  • O 68, os 68: pensamentos de um velhinho radical

    O 68, os 68: pensamentos de um velhinho radical

    O 68, os 68: pensamentos de um velhinho radical

    Por Helmut Weiss*

    Parei de ler artigos, entrevistas e sei  lá o que sobre o ano de “68”. Já que cada um têm a sua definição daquela época, fingindo haver uma. Por razões pessoais participei um pouco do ano 68  em dois países, o que ajuda a ter condição  de comparar razões e o desenvolvimento do acontecimento histórico, seja na Alemanha ou na França.

    1. Raízes, fontes, razões

    Em ambos países, uma das razões da rebeldia era histórica. Na Alemanha, muito claro, era a pergunta de sempre, feito a todos e todas mais velhos: O que você fez na época do nazismo? Baseado numa ideologia dominante burguesa, que dizia “vamos esquecer isto aí”, todos fomos vítimas do argumento:  “esta na hora de reconstruir o país e o perigo hoje e o comunismo”.

    Na França, menos claro, era a guerra colonial, principalmente na Argélia, mais também – e pela então atualidade muito influente – no Vietnã. Combinou-se isto com as razões de exigências democráticas, seja nas escolas (incluindo aquelas de formacão profissional),  ou nas universidades – sempre criticando não só as estruturas conservadoras e machistas (quem criticava isto eram “só” as mulheres, não por acaso) – como os conteúdos do ensino e da pesquisa. Por exemplo, num país como Portugal era diferente, já que a história era ainda o presente, na ditadura salazarista e seu colonialismo. Estas histórias se combinaram com o antiimperialismo mundial, seja na África, ou na Ásia e também com os efeitos da primeira crise econômica pós-guerra em vários países europeus.

    1. Desenvolvimento

    Continuando a comparação, a maior diferença entre a Alemanha e a França naquela época era a “questao comunista”. Sendo que na Alemanha Ocidental tinha um anticomunismo muito forte, incluindo, por exemplo, o movimento sindical; enquando na França existia o partido e sindicatos comunistas bem forte. Isto teve um papel importante quando se trata da medida em que o movimento operário participou daqueles eventos. Enquanto na Alemanha quem participou foi uma parte bem grande da juventude operária, na França foi muito menos uma questão de idade e mais de criticas de esquerda às organizações comunistas, inclusive nas grandes fábricas.

    Parte desta diferença foram as diferenças no comunismo mundial: Os acontecimentos na China influenciaram “as coisas” na Alemanha, muito mais do que na França, já que o PC Francês era capaz de freiar muito mais. E não falo do que realmente aconteceu na China, falo do jeito em que chegou aqui (Alemanha) – massas mobilizadas contra a hierarquia comunista.

    Fato resta que o movimento na França ficou muito mais forte, incluindo, por exemplo, os trabalhadores migrantes de forma muito mais ampla do que na Alemanha – e sendo “parado” pela orientação do PC para as eleições que viriam, estes acabaram perdendo feio, uma situação em que a fuga do General de Gaulle já era preparada. Comparável, aí sim, com a vitoria eleitoral do partido socialdemocrata na Alemanha ( a primeira vez desde quase 45 anos), ambas eleições sendo, não o começo do fim, mais sim o começo da normalização dos movimentos.

    1. Resultados

    Não é pouca a gente que diz, que o neoliberalismo, em parte, seja herdeiro daquela ideologia da liberdade individual, que era um aparte daqueles movimentos. O então ministro do exterior da Alemanha (que foi ativista em 68) chegou a dizer, durante a guerra nos Balcãs, que bombardear a Iugoslávia era devido a “tradição antifascista“ da nova Alemanha (ele era do partido Verde, claro!).

    Minha opinião sobre isto é que qualquer movimento de certa popularidade sempre tem vários resultados, inaugura várias tradições. Com a mesma razão com a qual se pode dizer aquilo da tradição neoliberal, pode se dizer isto de uma esquerda mais radical que esteja hoje – mais ou menos – a altura de uma luta social mais ampla, incluindo, por exemplo, a questão das fronteiras abertas ou das greves femininas. Eu pessoalmente acho que esta orientação mais ampla seria ao menos um ponto de partida para uma luta mais eficiente contra a forte onda de direitismo que tem não só no Brasil, (como vocês bem sabem), na Alemanha, bem como na França.

    *Helmut Weiss – É jornalista do portal Labournet.de,  ativista político e sindical alemão.

  • A democracia sob risco – Revista Socialismo e Liberdade

    A democracia sob risco – Revista Socialismo e Liberdade

    Quais os constrangimentos ao pleno funcionamento da institucionalidade democrática diante do poder desmedido dos mercados, que impõem leis, ditam regras de conduta e acabam por influenciar decisivamente a atuação dos três poderes da República?

    José Luís Fevereiro

    A democracia tal como o mundo ocidental a conhece desde o pós-guerra está em risco. O desenvolvimento do capitalismo sob hegemonia do capital financeiro, a globalização da produção de mercadorias e dos fluxos de capital, as novas crises de superprodução, o enorme avanço da concentração de renda a partir da apropriação concentrada dos ganhos de produtividade da inovação tecnológica, tornaram a democracia disfuncional para o Capital.

    A busca insensata pela redução dos custos do trabalho usando a globalização para desconstruir direitos conquistados por décadas de luta política e sindical, o desmonte dos sistemas tributários e políticas fiscais que viabilizaram a universalização de direitos sociais nos países centrais e a busca dessa universalização em países de desenvolvimento médio como o Brasil usando como argumento a concorrência industrial asiática, o avanço das isenções tributárias para os mais ricos reduzindo a capacidade de financiamento dos estados e justificando o desmonte de seus mecanismos de seguridade social, não podem conviver com a democracia sem sustos para a elite.

    Barragens de propaganda, debates de TV onde todos os debatedores defendem as mesmas teses pseudo científicas, utilização dos aparatos de formação de consensos, imposição de pautas diversionistas, nada disso tem impedido que aqui e acolá as classes trabalhadoras reajam e coloquem em risco a estabilidade de governos liberais portadores das “verdades científicas” das políticas de ajuste e corte de direitos.

    Esvaziamento do Estado

    Desde os anos 1990 é nítido o projeto de esvaziamento de poder das esferas eleitas do Estado. A construção de uma burocracia supranacional em Bruxelas, fora do alcance dos eleitores dos estados membros da União Europeia, a própria moeda única europeia, retirando a política monetária do controle dos governos eleitos, a defesa mundo afora da “independência” dos Bancos Centrais, subtraindo ao controle do povo e de seus representantes eleitos esse importante mecanismo de poder, faz parte da estratégia.

    No Brasil, a “Lei de Responsabilidade Fiscal” e suas “cláusulas de ouro”, que limitam as possibilidades de ação de governos eleitos, o desmonte acelerado dos aparatos do Estado como o programa de privatizações dos anos 1990 e sua retomada após o golpe de 2016, buscam reduzir o poder de fogo na economia dos executivos eleitos da República. Reduzir a democracia à eleição de síndicos desprovidos de poder real é a principal iniciativa à escala global das elites.

    Nessa mesma linha está a pressa com que o governo do golpe aprovou a Emenda Constitucional 95, que congela por vinte anos os gastos primários da União, tentando amarrar as próximas administrações à condição de gerenciadoras do desmonte do Estado.

    Em outra linha de ação, a imposição de pautas morais e culturalistas pela via do fortalecimento do fundamentalismo religioso, buscando retirar centralidade à agenda da desigualdade, foi também largamente utilizada desde os anos 1980. Trabalhadores pobres acabam votando em candidatos por serem contrários à legalização do aborto ou ao casamento igualitário. Curiosamente são os mesmos que reduzem impostos de ricos e cortam programas sociais dos pobres. É uma cena que começa nos EUA nos anos 1970 e se generaliza pelo planeta, ganhando força no Brasil duas décadas depois, quando, por exemplo, se aprovou a isenção de Imposto de Renda na distribuição de lucros e dividendos.

    Desmoralização dos poderes eleitos

    Mais recentemente uma terceira linha de ação, e que por bom tempo passou despercebida para boa parte da esquerda, é a desmoralização dos dois poderes eleitos da republica, legislativos e executivos, pela disseminação da lógica da antipolítica e o fortalecimento do poder judiciário, o único dos poderes não eleito, composto pela “meritocracia” tal como a conhecemos com seu perfil de origem nas classes medias e altas e, portanto, mais confiável aos interesses da elite.

    Manifestação contra a PEC que congela o orçamento por vinte anos, avenida Paulista (SP), outubro de 2016

    A imposição da pauta da ética como centro do debate nacional foi o primeiro passo e com o qual a esquerda alegremente contribuiu. A defesa despolitizada da Ética na politica, como se a politica não tratasse de luta de classes foi um erro estratégico. Desde os anos 1980 que a esquerda flerta com essa agenda aproveitando-se que conjunturalmente ela atingia seus adversários diretos com mais força dado o fato da burguesia controlar a maior parte dos aparatos do estado. É obvio que a corrupção deve ser denunciada e combatida e que não cabe à esquerda defender representações políticas carcomidas pela corrupção e muito menos deixar de zelar nas suas administrações para que a lógica dos “300 picaretas”, que Lula denunciava em 1989, não as invada como terminou acontecendo com o próprio governo de Lula. Mas também está evidente que a aceitação da centralidade dessa agenda no lugar da denuncia da desigualdade termina por ser uma enorme prestação de serviços á Casa Grande.

    O pacote do desmonte das prerrogativas dos poderes eleitos vem bem embrulhado. Temos a Lei de Responsabilidade Fiscal em contraposição às “irresponsabilidades”, a Lei do Teto dos Gastos em contraposição à “gastança”, a Lei da Ficha Limpa em contraposição aos detestáveis “fichas sujas”, o fim do foro privilegiado em contraposição “aos privilégios” e, no meio do caminho, a rejeição da PEC 37 que buscava restabelecer a separação de atribuições entre as policias, as procuradorias e a magistratura.

    Há uma clara conexão entre essas agendas, todas elas fortemente impulsionadas pela mídia corporativa e todas elas dentro da lógica do esvaziamento dos poderes eleitos da República, os únicos que de fato estão submetidos a algum crivo popular. A estratégia é manter as formalidades da democracia eleitoral, mas cuidando de esvaziar de consequências escolhas “insensatas” por parte dos eleitores que, vez por outra, insistem em eleger candidatos “populistas”, ou seja todos aqueles que não comungam da cartilha de interesses dos mercados e das elites econômicas globais.

    Redução do Estado

    É neste cenário que ocorre o golpe de 2016 no Brasil. A corrupção endêmica ao sistema econômico e não apenas ao sistema politico é conhecida há décadas. Circunscrever ao Estado e aos seus agentes o problema do desvio de recursos públicos é também uma forma de luta política das elites a favor da sua agenda de redução do papel do Estado, de desmonte da seguridade e da privatização de suas empresas do setor produtivo, do setor bancário e das suas funções de garantidor de direitos sociais.

    A Operação Lava Jato não desvendou nada que não fosse de amplo domínio publico há muito tempo, mas se aproveitou do enorme desgaste da presidenta Dilma Rousseff junto à sua base social e eleitoral, resultado da traição programática cometida em 2015. Ali se adotou um programa de ajuste fiscal suicida que a enfraqueceu, derrubou do poder e entronizou um governo que é a expressão pura e dura dos interesses da elite econômica globalizada. Contribuiu para a desmobilização de qualquer resistência de massa a despolitização construída deliberadamente por Lula, que nunca buscou a mobilização da sua enorme base social para pressionar por mudanças estruturais.

    Tal qual em 1964, o simulacro de legalidade foi mantido, com o Congresso votando o impeachment com a mesma cara dura de 10 de abril daquele ano, ao “eleger” indiretamente Castelo Branco. O STF, como há meio século, “legalizou” a tramoia. Não faltou a cassação de direitos políticos do principal candidato às eleições presidenciais seguintes, hoje Lula, antes Juscelino Kubitschek. Lula está preso como resultado de um processo que jamais tramitaria em um sistema judiciário minimamente sério, Juscelino teve que responder a Inquéritos Policiais Militares durante a ditadura.

    Tirando os tanques nas ruas e os coturnos marchando, o modelo não foi muito diferente.

    Para a esquerda, é fundamental identificar corretamente a estratégia do inimigo buscando fugir do taticismo que, no mais das vezes, opera na lógica do adversário. É fundamental colocar no centro da agenda a desigualdade, a imperiosa necessidade de superação da crise, de revisão do sistema tributário grotescamente concentrador de renda, desmontar os entraves à ação dos poderes eleitos, tanto no campo da condução da economia como da restauração das suas prerrogativas plenas hoje usurpadas pelo judiciário.

    Usurpação de poderes

    É inacreditável a usurpação crescente de poderes do Executivo e do Legislativo, como vimos no impedimento da posse de Lula como ministro de Dilma, mas também no impedimento da posse de Cristiane Brasil como ministra de Temer. Nessa mesma linha, o ministro do STF Luiz Roberto Barroso se outorga poderes para rever o indulto de Natal, função também precípua da Presidência da Republica, e a justiça prescinde da autorização das casas legislativas para prender seus membros, como ocorreu na ALERJ.

    Se era correta a atitude da esquerda em votar a favor da autorização, derrotada em plenário, não compartilho do regozijo dos que comemoraram o fato de a justiça ter renovado a prisão dos mesmos, prescindindo dessa autorização. Estrategicamente quebrar as prerrogativas dos poderes eleitos submetendo-os á tutela do Judiciário é um equivoco enorme ainda que venha embrulhado em boas causas. É certamente o caso das prisões dos deputados Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos do PMDB.

    Para os de curta memória vale lembrar que o AI-5 foi editado em 1968 na sequência de uma negativa do Congresso Nacional em autorizar o processo contra o deputado Márcio Moreira Alves. A Lei da Ficha Limpa, o fim do foro determinado – mal denominado de privilegiado – e o inusitado acumulo de funções de investigação e oferecimento de denúncias pelas procuradorias, que a PEC 37 buscava impedir, são operações de esvaziamento da democracia e de submissão dos poderes que emanam do povo ao poder que emana da meritocracia.

    As eleições de 2018

    Teremos eleições em 2018 e o golpe não é a total reprodução de 1964, embora algumas características se repitam. A estratégia da elite golpista é a do esvaziamento das prerrogativas de quem venha a ser eleito, seja pelo desmonte do Estado, seja pelos impedimentos ao exercício da política fiscal constitucionalizados com a EC-95 do teto de gastos e seja pelas ações do Judiciário. Há também tentativas de edição de novas PECs, que buscam impedir a emissão de divida pública, seja também pela subordinação de suas ações ao judiciário que hoje se sente empoderado para sustar qualquer ação de governo que contrarie interesses.

    Essa nova logica ascendente não ocorre apenas na esfera federal, mas em todas as instâncias de poder no país. Prefeitos, por exemplo, têm assistido aumentos de IPTU votados nas Câmaras de Vereadores sendo sustados na justiça. Se permitirmos que essa escalada continue, o presidente da República a ser eleito em 2018 assumirá desprovido de prerrogativas básicas de governabilidade. Um exame histórico do Brasil no campo dos direitos sociais pode mostrar que os avanços mais significativos obtidos se deram por iniciativa de poderes Executivos. Raramente isso aconteceu pelos Legislativos e nunca pelo Judiciário.

    O golpe não tem uma única data marcante, ele é uma agenda politica que, passo a passo, vai esvaziando de conteúdo real o pouco de democracia que temos.

    Identificar corretamente a sua estratégia é essencial para combate-lo com efetividade.

  • Eu sou porque nós somos – Revista Socialismo e Liberdade

    Eu sou porque nós somos – Revista Socialismo e Liberdade

    Por Débora Camilo

    Marielle Franco chegou ao mundo com marcas da opressão e da violência. Era uma mulher negra, nascida e criada na favela da Maré, em uma sociedade radicalmente desigual, construída sobre a escravidão do povo negro, estruturada em uma cultura machista, patriarcal e com um ódio de classe latente.

    Marielle compartilha uma história de brutalidade e repressão com milhares de outras mulheres. Marielle representa também minhas demandas de negra, periférica e socialista. Para alguém assim, tudo é mais difícil: trabalhar, estudar e mesmo militar politicamente.

    Marielle, foi mãe aos 19 anos, frequentou curso pré-vestibular comunitário, assim como eu e tantas e tantas. A sua não é uma história de superação individual e nem uma narrativa sobre “meritocracia”. É uma vivência de projetos coletivos de enfrentamento de desigualdades e imposições de cima.

    Projetos coletivos

    A violência trouxe Marielle à militância, após a morte trágica de uma amiga, vítima de bala perdida em confronto entre policiais e traficantes. E a violência tirou Marielle da militância. A execução, o crime político matou fisicamente a afrossocialista da Maré.

    A luta coletiva fez a preta favelada, bolsista ProUni, se tornar socióloga, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). A mulher de pele escura foi mais longe e quebrou as estatísticas, concluindo o mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela levou a pauta da favela para os espaços privilegiados da Universidade ao defender a dissertação “UPP: a redução da favela em três letras”.

    A sucessão de asperezas que assinala a vida de Marielle, somada à sua formação acadêmica, possibilitou a realização de trabalhos exemplares em organizações da sociedade civil e na coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ). Essas tarefas foram realizadas juntamente com o deputado estadual Marcelo Freixo, personagem de outra vivência moldada pelo enfrentamento às nossas mazelas ancestrais.

    Trincheira e reconhecimento

    Marielle consolidou sua trajetória pautada pelos interesses da classe trabalhadora e fez do PSOL sua trincheira. O reconhecimento veio através dos 46.502 votos recebidos em 2016 para o cargo de vereadora, a quinta maior votação da cidade do Rio de Janeiro.

    No plenário da Câmara dos Vereadores, a menina da Maré fez ecoar vozes silenciadas, enfrentando uma estrutura machista, com ódio a tudo que ela representava. Como parlamentar, insistiu na criação de políticas públicas que garantissem vida digna para os historicamente marginalizados.

    Marielle denunciou e combateu o modelo falido de segurança pública que vitima pobres, periféricos e agentes de segurança. É um modelo que garante a prevalência de um pequeno grupo no poder e que utilizou do arbítrio para um presidente da República ilegítimo decretar intervenção militar no estado do Rio de Janeiro.

    Os que a temem

    Na noite de 14 de março, quatro tiros fizeram Marielle tombar. Foram quatro projéteis disparados pela vontade de poderosos que temem tudo o que ela representa. Executaram quem ousou organizar os de baixo contra o sistema. Esses mesmos poderosos fulminaram, com três balas nas costas, Anderson Pedro Gomes, marido, pai e trabalhador que, como muitos brasileiros, lutava por uma vida melhor.

     

    Marielle era uma mulher que tinha cor, filha, companheira, partido e lado. Tentaram calá-la em vão. Sua voz e determinação se ampliaram e ganharam mundo

     

    Não contentes com a eliminação física de Marielle, seus assassinos tentaram matar sua história e sua honra. Buscaram implantar o medo em todas e todos que ousam acreditar que outro mundo é possível.

    O Brasil passa por um período de recrudescimento da repressão, de criminalização dos movimentos sociais, de intenso ataque a direitos historicamente conquistados e de perseguição aos que se batem por uma sociedade justa.
    Os crimes cometidos durante a ditadura militar, cujos autores nunca foram punidos, revelam o triste e trágico histórico de que assassinatos de militantes de esquerda sempre foram prática comum na tentativa de conter a luta coletiva, organizada e classista.

    Não foi crime comum

    A morte de Marielle não foi crime comum e não entrará para a estatística das milhares de mortes brutais que ocorrem cotidianamente em nosso país. Como Helenira Resende e Alceri Maria, executadas durante os anos de chumbo, a vida de Marielle foi ceifada por ser ela de esquerda e porque lutava pelos seus iguais.

    Marielle era uma mulher que tinha cor, filha, companheira, partido e lado. Tentaram calá-la em vão. Sua voz e determinação se ampliaram e ganharam mundo. Marielle não é uma. São todas e todos os inconformados que vão à ação.

    O que se viu após o fuzilamento no centro do Rio foi surpreendente. Milhares de pessoas, mesmo corroídas pela dor, encontraram forças para sair às ruas, enfrentar seus executores e dizer que a luta de Marielle está maior, mais forte e mais determinada, rumo a uma sociedade livre, justa e igualitária.

    Marielle e Anderson presentes, hoje e sempre!

  • Revolução portuguesa: uma revolução solitária

    Revolução portuguesa: uma revolução solitária

    Revolução portuguesa: uma revolução solitária

    Por Valério Arcary

    Já se disse que as revoluções tardias são as mais radicais. Seis anos depois do Maio de 68 francês, mas quatro anos antes que uma mobilização de massas se colocasse em movimento no Estado espanhol, a revolução dos cravos deslocou um regime ditatorial que estava no poder há quase meio século.

    No 25 de Abril de 1974 ruiu a ditadura mais antiga do continente europeu. A rebelião militar organizada pelo MFA, uma conspiração dirigida pela oficialidade média das Forças Armadas que evoluiu, em poucos meses, de uma articulação corporativa para a insurreição, foi fulminante. Abatida militarmente por uma guerra sem fim, exausta politicamente pela ausência de base social interna, esgotada economicamente por uma pobreza que contrastava com o padrão europeu, e cansada culturalmente pelo atraso obscurantista que impôs durante décadas, poucas horas foram suficientes para uma rendição incondicional. Foi nesse momento que o processo revolucionário que comoveu Portugal se iniciou. A insurreição militar precipitou a revolução, e não o contrário.

    O atual regime semipresidencialista em Portugal não deve ser confundido como herdeiro direto das liberdades e direitos sociais conquistados pela revolução nos seus intensos dezoito meses. O regime que mantém Portugal como o mais pobre país europeu é o resultado de um longo processo de reação das classes proprietárias e seus aliados nas classes médias proprietárias. A insurreição militar agigantou-se como uma revolução democrática, quando as massas populares saíram às ruas, que enterrou o salazarismo e foi vitoriosa. Mas a revolução social que nasceu do ventre da revolução política foi derrotada. Talvez surpreenda a caracterização de revolução social, mas toda revolução é uma luta em processo, uma disputa, uma aposta em que reina a incerteza. Na história não se pode explicar o que aconteceu considerando somente o desfecho. Isso é anacrônico. É uma ilusão de ótica do relógio da história. O fim de um processo não o explica. Na verdade, o contrário é mais verdadeiro. O futuro não decifra o passado. Revoluções não podem ser analisadas somente pelo desenlace final. Ou pelos seus resultados. Estes explicam, facilmente, mais sobre a contra-revolução, do que sobre a revolução.

    As liberdades democráticas nasceram do ventre da revolução, quando tudo parecia possível. Mas o regime democrático semipresidencialista hoje existente em Portugal não surgiu do processo de lutas aberto no 25 de abril de 1974. Ele veio à luz depois de um auto-golpe da cúpula das Forças Armadas organizado pelo Grupo dos Nove em 25 de novembro de 1975. A reação triunfou depois das eleições presidenciais de 1976. Foi necessário recorrer aos métodos da contra-revolução em novembro de 1975 para restabelecer a ordem hierárquica nos quartéis e dissolver o MFA que fez o 25 de abril. É verdade que a reação com táticas democráticas dispensou uma quartelada com métodos genocidas, como tinha acontecido em Santiago do Chile em 1973. Não foi acidental, contudo, que o primeiro presidente eleito fosse Ramalho Eanes, o general do 25 de novembro.

    A revolução portuguesa foi, portanto, muito mais do que o fim atrasado de uma ditadura obsoleta. Hoje sabemos que o capitalismo lusitano escapou à tempestade revolucionária. Sabemos que Portugal logrou construir um regime democrático razoavelmente estável, que a Lisboa dirigida pelos banqueiros e industriais sobreviveu à independência de suas colônias e, finalmente, se integrou na União Européia. Poderia, todavia, ter sido outro o resultado daqueles combates, com imensas conseqüências para a transição espanhola do final do franquismo.

    O que a revolução conquistou em dezoito meses, a reação consumiu dezoito anos para destruir e, ainda assim, não conseguiu anular todas as conquistas sociais alcançadas pelos trabalhadores. Depois de ter incendiado durante um ano e meio as esperanças de uma geração de operários e jovens, a revolução portuguesa colidiu em obstáculos intransponíveis. A revolução portuguesa, a tardia, a democrática, teve o seu momento à deriva, descobriu-se perdida e terminou derrotada. Mas foi, desde o início, filha da revolução colonial africana e merece ser chamada pelo seu nome mais temido: revolução social.

    Compreender o passado exige um esforço de reflexão do campo de possibilidades que estava desafiando os sujeitos sociais e políticos que atuavam projetando um futuro incerto. Em 1974, uma revolução socialista em Portugal poderia parecer improvável, difícil, arriscada, ou duvidosa, mas era uma das perspectivas, entre outras, que estava inserida no horizonte do processo. Já foi dito que revoluções são extraordinárias porque transformam o que parecia impossível em plausível, ou até provável. Ao longo de seus dezenove meses de surpresas, a revolução impossível, aquela que faz aceitável o que era inadmissível, provocou todas as cautelas, contrariou todas as certezas, surpreendeu todas as suspeitas. Esse mesmo povo português que suportou durante quase meio século a mais longa ditadura do continente – abatido, prostrado, até resignado – aprendeu em meses, encontrou em semanas e, em alguns momentos, descobriu em dias, aquilo que décadas de salazarismo não lhe tinham permitido sequer desconfiar: a dimensão de sua força. Mas, estavam sozinhos. Naquela estreita faixa de terra da Península Ibérica, o destino da revolução foi cruel. Os povos do Estado Espanhol só se colocaram em movimento na luta final contra o franquismo quando, em Lisboa, já era tarde demais. A portuguesa foi uma revolução solitária.

    A vertigem do processo desafiou a solução bonapartista-presidencial de Spínola em três meses. Spínola  foi derrotado com a queda de Palma Carlos da posição de primeiro-ministro e a nomeação de Vasco Gonçalves e, na seqüência, a convocação de eleições para a Constituinte antes das eleições presidenciais. Um ano depois do 25 de abril de 1974, a carta do golpe militar já tinha sido tentada por duas vezes, e por duas vezes esmagada. A contra-revolução precisou mudar a sua estratégia depois da segunda derrota de Spínola. Três legitimidades disputaram forças depois do 11 de março de 1975: a do Governo provisório sustentado pelo MFA, com o apoio do PC; a do resultado das urnas para a Constituinte eleita em 25 de abril de 1975, em que o PS se afirmou como a maior minoria, mas que poderia ser defendida como uma maioria, quando considerado o apoio dos partidos de centro-direita (PPD) e direita (CDS); e aquela que surgia da experiência de mobilização nas empresas, nas fábricas, nas universidades, nas ruas, a democracia direta da auto-organização.

    Três legitimidades políticas, três blocos de classe e alianças sociais, três projetos estratégicos, enfim, uma sucessão de governos provisórios em uma situação revolucionária, com uma sociedade dividida em três campos: o do apoio ao governo do MFA, e duas oposições, uma de direita (com um pé no governo e outro fora, mas com importantes relações internacionais) e outra de esquerda (com um pé no MFA e outro fora, e uma devastadora dispersão de forças). Nenhum dos blocos políticos conseguia se afirmar por si só durante o verão quente de 1975. Foi então que a contra-revolução recorreu à mobilização de sua base social agrária no Norte, e algumas partes do centro do país. Mas, a reação clerical reacionária era ainda insuficiente. Portugal já não era o país agrário que Salazar tinha governado. Apelou, então, à divisão da classe trabalhadora, e para isso o PS de Mário Soares  era indispensável. Recorreu à estratégia do alarme, do medo, do pânico para assustar e insuflar os setores da classe média proprietária contra a classe operária. Mas, acima de tudo, a questão prioritária para a burguesia, entre março e novembro de 1975, foi a recuperação do controle sobre as Forças Armadas.

    A revolução tardia

    Apesar de seus longos 48 anos, a queda do regime encabeçado por Marcelo Caetano foi, paradoxalmente, uma surpresa. Os governos de Londres, Paris ou Berlim sabiam que o pequeno país ibérico vivia há décadas uma situação anacrônica: ultimo Estado enterrado em uma guerra colonial em três frentes sem perspectiva de solução, um “Vietnam africano”, condenada até por resolução da ONU. A ditadura, já senil de tão decadente, ainda impunha um regime implacável na metrópole. Mantinha uma polícia de facínoras – a PIDE – que garantia as prisões repletas, e a oposição no exílio. Controlava através da censura qualquer opinião crítica ao governo, proibia as atividades sindicais, reprimia o direito de greve. No entanto, nem mesmo Washington, tinha previsto o perigo de uma revolução. A explicação histórica mais estrutural da estabilidade do regime salazarista remete à sobrevivência tardia de um imenso Império, formado no alvorecer da época moderna.                           

    Em 28 de Maio de 1926 um golpe de Estado protofascista derruba a primeira república portuguesa, instalando uma ditadura militar liderada pelo general Gomes da Costa, sucedido pelo general Carmona. Os chefes militares convidam Antonio de Oliveira Salazar, até então um professor de economia em Coimbra, para ser ministro das Finanças, cargo que só assumirá em 1928, quando tinha 39 anos. Assumirá a posição de primeiro-ministro em 1932. Conhecido como Estado Novo, o regime não parecia excepcional nos anos trinta, quando o capitalismo europeu inclinou-se por um discurso nacionalista exaltado, e recorria em larga escala, mesmo em sociedades mais urbanizadas e, economicamente, mais desenvolvidas, aos métodos da contra-revolução para evitar revoluções sociais como o Outubro russo. A ditadura em Portugal espantaria, no entanto, pela sua longevidade.

    O fascismo “defensivo” deste Império desproporcional e semi-autárquico sobreviverá a Salazar, permanecendo incríveis 48 anos no poder. A burguesia deste pequeno país resistirá à vaga de descolonização dos anos cinquenta por um quarto de século. Encontrará forças para enfrentar, a partir dos anos sessenta, uma guerra de guerrilhas em África, na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, mesmo se, na maior parte desses longos anos, mais uma guerra de movimentos, que uma guerra de posições, ainda assim, sem solução militar possível. Mas a guerra sem fim acabou destruindo a unidade das Forças Armadas. Quis a ironia da história que tenha sido o mesmo exército que deu origem à ditadura que destruiu a I República, que tenha derrubado o salazarismo para garantir o fim da guerra.

    A reforma pelo alto, por deslocamentos internos do próprio salazarismo, a transição negociada, a democratização pactuada, tantas vezes esperada, não veio. Os deslocamentos da oficialidade média expressavam o desespero das classes médias com a obtusidade da ditadura. O obscurantismo sufocava a nação. Depois da insurreição militar abriu-se uma janela de oportunidade histórica, e o que as classes proprietárias evitaram fazer por reformas, as massas populares se lançaram à conquista pela revolução. O salazarismo obsoleto de Caetano acabou acendendo a faísca do mais profundo processo revolucionário na Europa Ocidental, depois da Guerra Civil Espanhola em 1939.

    A revolução colonial

    Em 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro “Portugal e o Futuro”. O Governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro. O parecer favorável foi feito por ninguém menos que o general Costa Gomes.[1]A guerra nas colônias mergulhou Portugal em uma crise crônica. Um país de dez milhões habitantes, acentuadamente defasado da prosperidade européia dos anos sessenta, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço militar e da pobreza, não podia continuar mantendo um exército de ocupação de dezenas de milhares de homens, indefinidamente, em uma guerra africana. O que não se sabia, então, era que o livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg e que, clandestinamente, na oficialidade média, já estava se articulando o Movimento das Forças Armadas, o MFA. A fraqueza do governo Marcelo Caetano era tão grande que cairia como uma fruta podre, em horas. A nação estava exaurida pela guerra. Pela porta aberta pela revolução antiimperialista nas colônias, iria entrar a revolução política e social na metrópole.

    O serviço militar obrigatório era de assombrosos quatro anos, dos quais pelo menos dois eram cumpridos no ultramar. Mais de dez mil mortos, sem contar os feridos e mutilados, na escala de dezenas de milhares. Foi do interior desse exército de alistamento obrigatório que surgiu um dos sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o MFA. Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole e, também, à pressão da classe trabalhadora na qual uma parcela dessa oficialidade média tinha sua origem de classe, cansados da guerra, e ansiosos por liberdades, rompiam com o regime.

    Estas pressões sociais explicam, também, os limites políticos do próprio MFA, e ajudam a compreender porque, depois de derrubar Caetano, entregaram o poder a Spínola. O próprio Otelo, defensor, a partir do 11 de Março, do projeto de transformar o MFA em movimento de libertação nacional, à maneira de movimentos militares em países da periferia, como no Peru do início dos anos setenta, fez o balanço com uma franqueza desconcertante: “Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no “bom” caminho, nos perseguiria até o final”. [2]

    Esta confissão permanece uma das chaves de interpretação do que ficou conhecido como o PREC (processo revolucionário em curso), ou seja, os doze meses em que Vasco Gonçalves esteve à frente do II, III, IV e V governos provisórios. Ironicamente, assim como muitos capitães se inclinavam a depositar excessiva confiança nos generais, uma parcela da esquerda entregava aos capitães, ou à fórmula unidade do povo com o MFA, defendida pelo PCP, a liderança do processo.

    Diz-se que, em situações revolucionárias, os seres humanos excedem-se ou se elevam, entregando-se na melhor medida de si próprios. Aparece, então, o que têm de melhor e pior. Spínola, enérgico e perspicaz, era um reacionário pomposo, com poses de general germanófilo, com seu incrível monóculo do século XIX. Costa Gomes, sutil e astuto, era, como um camaleão, um homem da oportunidade. Do MFA surgiram as lideranças de Salgueiro Maia ou Dinis de Almeida, valentes e honrados, mas sem educação política; de Otelo, o chefe do COPCON, uma personalidade entre um Chávez e um Capitão Lamarca, ou seja, entre o heroísmo da organização do levante, e o disparatado das posteriores relações com a Líbia e as FP-25 de abril; de Vasco Lourenço, de origem social popular, como Otelo, atrevido e arrogante, mas tortuoso; de Melo Antunes, instruído e sinuoso, o homem chave do grupo dos nove, o feiticeiro que termina prisioneiro de suas manipulações; de Varela Gomes, o homem da esquerda militar, discreto e digno; de Vasco Gonçalves, menos trágico que Allende, mas, também, menos bufão que Daniel Ortega. Foi da tropa, também, que surgiu o “Bonaparte”, Ramalho Eanes, sinistro, que enterrou o MFA.

                                                      A revolução democrática

    A economia portuguesa, pouco internacionalizada, mas já razoavelmente industrializada, se estruturava na divisão internacional do trabalho em dois “nichos”, os dois pilares empresariais do regime, a exploração colonial e a atividade exportadora. Sete grandes grupos controlavam quase tudo. Ramificavam-se em 300 empresas que tinham 80% dos serviços bancários, 50% dos seguros, 8 das 10 maiores indústrias, 5 das 7 maiores exportadoras. Os monopólios comandavam, mas a dinâmica de crescimento era oscilante. O país permaneceu, comparativamente, estagnado, enquanto a economia européia vivia o boom do pós-guerra. Em Portugal, não houve alívio social. A superexploração do trabalho manual se manteve, agravada pelas seqüelas sociais da guerra colonial. A ordem salazarista se manteve depois da morte do ditador, com um implacável braço armado – a PIDE – 20.000 informantes, mais de dois mil agentes.

    Não há, é certo, um sismógrafo de situações revolucionárias. Ainda na manhã dia 25 de Abril, ao ouvir pelo rádio a comunicação do levante militar do MFA, uma multidão de milhares de pessoas saiu ás ruas e se dirigiu à baixa de Lisboa, cercando o Quartel da GNR (Guarda Nacional Republicana) no Largo do Carmo, onde Marcelo Caetano se refugiara, e negociava com Salgueiro Maia os termos da rendição, exigindo a presença de Spínola. Algumas centenas de pides – Polícia Internacional de Defesa do Estado – entrincheirados na sede, disparam sobre a massa popular. No Porto, milhares de pessoas cercaram os policiais no edifício da Câmara, e estes responderam atirando sobre a população. E foi só isso a força da resistência. Deixaram quatro mortos.

    Toda revolução tem o seu pitoresco. Nunca saberemos ao certo da veracidade maior ou menor dos pequenos episódios. Ma si non é vero, é bene trovato. Nas primeiras horas da manhã, quando uma coluna de carros militares descia a Avenida da Liberdade em direção ao Terreiro do Paço, as floristas do Parque Mayer lhes perguntam o que estava acontecendo, e os soldados respondem que vieram derrubar a ditadura. Elas, na sua simplicidade, de tão felizes, lhes oferecem cravos vermelhos e assim, sem o saber, batizaram a revolução com o nome de uma flor.

    Recordemos que uma revolução não deve se confundir com o triunfo de um levante militar, mesmo quando se trata de uma insurreição com apoio popularNão é incomum que golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem, historicamente, como um sinal de que uma tormenta muito maior se aproxima. As operações palacianas podem “abrir uma janela” por onde irá entrar o vento da revolução que estava contido. Em Portugal, o processo da revolução política transbordou, como na Rússia de 1917, porque o exército tinha sido dilacerado pela guerra. Quando no primeiro de Maio de 1974 centenas de milhares de pessoas desfilaram durante horas até o estádio de Alvalade, carregando milhares de bandeiras vermelhas para recepcionar os que voltavam do exílio, e abraçar os que saíram das prisões, estavam marchando em direção aos seus sonhos de uma sociedade mais justa. Descobriam, surpresas, a força social de sua mobilização. É dessa experiência prática compartilhada por milhões que são feitas as revoluções sociais.

                                                       A última revolução  

    A revolução portuguesa foi a última revolução social na Europa Ocidental do final do século XX. Ainda que interrompida, a dinâmica de revolução social anticapitalista foi um dos seus traços chave. O conteúdo social do processo que veio no ano e meio que sucedeu o 25 de abril foi determinado em um contexto complexo: a revolução tinha tarefas pendentes – fim da guerra colonial, independência das colônias, reforma agrária, trabalho para todos, elevação dos salários, acesso à moradia, direito ao ensino público – que não se resumiam à derrubada da ditadura. O que determinou o seu vigor foi uma combinação de fatores sociais e políticos, mas o mais importante foi a entrada em cena da mobilização das classes populares com uma disposição de luta revolucionária que não podia ser contida pela repressão, e não a presença de um dos Partidos Comunistas mais poderosos da Europa. Ao contrário, a presença de um forte PCP foi um elemento de contenção da luta social.[3]

    A queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de radicalização popular incomparavelmente mais profunda – uma situação revolucionária – em que foram sendo construídas as experiências de auto-organização. No 1 de maio, uma semana depois da queda de Caetano, uma manifestação gigantesca em Lisboa, demonstra que uma irrupção de massas já começou. Comemora-se a libertação dos presos políticos, soltos em Caxias e Peniche, assim como no famigerado Tarrafal, em Cabo Verde. Álvaro Cunhal e Mário Soares chegam do exílio e, pela primeira vez, discursam. Soares faz exigência pública ao MFA e a Spínola, indicado presidente, defendendo que o PS e o PCP, nas suas palavras, os dois partidos mais representativos da classe operária, deveriam ser o núcleo do governo.

    Já no 28 de abril, os moradores de barracas da Boavista em Lisboa ocuparam casas vazias de um bairro social – construções feitas pelo Estado – e se recusaram a sair, mesmo quando cercados pela polícia e por tropas, sob o comando do MFA, realizando a primeira ocupação. No dia 30 de abril, a primeira assembléia universitária de Lisboa reúne mais de 10.000 estudantes no Técnico, a faculdade de engenharia. No dia 2 de Maio é autorizado o regresso de todos os exilados. Desertores e refratários do Exército são anistiados. No dia 3 de Maio generaliza-se uma onda de ocupações de casas desocupadas na periferia de Lisboa, com forte iniciativa de militantes de várias organizações de extrema-esquerda. O embarque de uma unidade militar para África é impedido. Em 5 de Maio, trabalhadores dos TLP (telefônicos), Caixa de previdência de Faro, Hospital do Porto, reúnem-se para exigir a demissão das chefias. Em Évora, os trabalhadores transformam as Casas do Povo em sindicatos agrícolas. Uma vaga de greves começa, encabeçada pelas grandes concentrações operárias, como na Lisnave e na Siderúrgica Nacional, exigindo a reintegração dos demitidos, desde o início do ano, e salários. Trabalhadores do Diário de Notícias, o principal matutino, ocupam o Jornal, e impedem a entrada dos administradores, que são depois demitidos. Meia dúzia de exemplos que são apenas uma ilustração de que ainda antes de completar um mês do fim da ditadura, a revolução invadia todas as esferas da vida social e ocupava, além das ruas, as empresas, escolas, universidades, hospitais, oficinas, sindicatos, jornais, rádios, e até as casas.

    Podemos periodizar o processo em três conjunturas: (a) de abril de 1974 até o 11 de março de 1975, abre-se uma situação revolucionária semelhante à do Fevereiro russo[4]: uma ampla frente social que une pequenas frações dissidentes da burguesia, exasperada com a inércia da ditadura, com a ampla maioria das classes médias urbanas,  cansadas com o arcaísmo e obtusidade do regime, e as massas trabalhadoras, desesperadas pela guerra e pela pobreza. Nesses meses se garantiram as amplíssimas liberdades democráticas, inclusive nos locais de trabalho e o cessar-fogo em África, derrotando duas tentativas de quarteladas e o projeto de consolidação de um regime presidencialista forte. Predomina um forte sentimento de unidade entre os trabalhadores e a maioria dos setores médios, um apoio esmagador ao MFA, um sentimento a favor da unidade do PS e do PCP e contra Spínola. A sociedade gira vertiginosamente à esquerda; (b) entre o 11 de Março e Julho de 1975, uma situação revolucionária semelhante à que precedeu o Outubro russo: os de cima já não podem e os debaixo já não querem mais ser governados como antes. A fuga do país de uma parte considerável da burguesia, a nacionalização de parte das grandes empresas, o reconhecimento das independências – menos Angola – e a generalização de um processo de auto-organização de massas nos locais de trabalho, estudo e, sobretudo, nas Forças Armadas, mas sem que a dualidade de poder encontrasse uma via de centralização; (c) finalmente, a crise revolucionária, entre julho e novembro de 1975, com a cisão do MFA, a independência de Angola, a radicalização anticapitalista com rupturas de setores de massas da influência do PS e do PCP, a formação dos SUV (auto-organização de soldados e marinheiros) e manifestações armadas, ou seja, a ante-sala ou de um deslocamento revolucionário do Estado, ou um golpe contra-revolucionário. Um destes dois desenlaces se tornava inadiável.[5]

    A contra-revolução

    A primeira tentativa de golpe fracassa estrepitosamente em 28 de setembro, na forma de um chamado público de Spínola à “maioria silenciosa”, recurso retórico de um apelo à contra-ofensiva dos grotões mais reacionários de um Portugal rural profundo.           No dia 26 de Setembro, Spínola compareceu a uma tourada no Campo Pequeno e foi ovacionado por uma parte do público, mas confrontos ocorreram entre militantes de esquerda e direitistas. Lisboa acordou coberta de cartazes convocando a passeata. No dia seguinte, ativistas do PCP e das variadas organizações da esquerda mais radical levantaram barricadas para impedir a passagem dos manifestantes de direita que, se esperava, viriam de fora. Soldados se uniram, espontaneamente, às barricadas. As sedes do Bandarra, do Partido Liberal e do Partido do Progresso foram invadidas – propaganda fascista encontrada – e saqueadas. No dia 28 de setembro, as barricadas ganharam mais participação, e carros foram parados e revistados, prendendo-se os ocupantes quando traziam armas. Otelo afirmou ter estado detido no Palácio de Belém por ordem de Spínola. Não houve adesão de massas ao chamado de Spínola. Cento e cinqüenta conspiradores foram presos durante o dia.

    Obrigado a renunciar, mas ileso, Spínola entregou a presidência ao general Costa Gomes. Assume, então, o III Governo provisório, permanecendo Vasco Gonçalves como primeiro-ministro. As energias do projeto de neocolonialismo à “inglesa’ não tinham, todavia, se esgotado. Tentarão o putsch “korniloviano” de novo no 11 de março. Mais uma vez, as barricadas levaram muitos milhares às ruas. O segundo golpe foi a última e desesperada tentativa da fração burguesa que se opunha à independência imediata das colônias e contou com a participação da GNR (Guarda Nacional republicana). O RAL-1 (Regimento de Artilharia Ligeira) de Lisboa foi bombardeado e cercado por unidades de pára-quedistas, mas o golpe é desbaratado. Um episódio de negociação acontece, publicamente, diante das câmaras de televisão da RTP (!!!) e sintetiza toda a turbulência de uma quartelada improvisada e sem base sociais significativas.

    Desde o 25 de abril, esta foi a terceira vez em que militares se enfrentaram. A primeira foi a crise que opôs a Coordenadora do MFA e Spínola, em busca de reforço da autoridade presidencial, e levou à queda de Palma Carlos e do I governo provisório. A segunda foi o no 28 de setembro quando Spínola ordenou a ocupação das estações de rádio. Nas duas primeiras nenhum tiro foi disparado. No 11 de março, o principal quartel de Lisboa foi bombardeado e cercado, e um soldado morre. Ninguém tem mais ilusões que grandes enfrentamentos estão no horizonte. A memória recente do golpe de Pinochet no Chile exerce uma forte pressão sobre a esquerda e sobre a oficialidade do MFA. Seguem-se dezenas de prisões, articuladas pelo COPCON: os comandantes operacionais da força que atacou o RAL-1, e várias lideranças burguesas tradicionais: vários Espírito Santo, um Champalimaud, e um Ribeiro da Cunha.

    Spínola e outros oficiais comprometidos fogem para Espanha, onde Franco os recebe, e depois, muitos foram se refugiar no Brasil. Na seqüência, os trabalhadores bancários entram em greve política, e assumem o controle do sistema financeiro. O MFA cria o Conselho da Revolução, e decreta a nacionalização dos sete grupos bancários portugueses mais importantes. Muitas empresas são ocupadas pelos trabalhadores. A burguesia entra em pânico e começa a abandonar o país. Mansões desabitadas são ocupadas, e nelas serão instaladas creches.

    A revolução à deriva

    O IV governo provisório se instala em 26 de março.
    África estava perdida. A burguesia passou a temer o pior, também, na metrópole. Reorientou-se, apressadamente, para o projeto europeu. A reconstrução da autoridade do Estado, a começar pelas Forças Armadas, ainda permanecia a prioridade. O mais complexo, contudo, continuava sem solução: tinha que improvisar uma representação política, atrair a maioria das classes médias, e derrotar os trabalhadores.

    Não tendo mais Spínola como carta na manga – e debilitados o PPD e CDS pela ligação com Spínola – não tinha instrumentos diretos – a não ser parte da imprensa e o peso sobre a alta hierarquia das FFAA – e precisava recorrer à pressão da burguesia européia, e dos EUA, sobre a socialdemocracia e sobre a URSS, para que enquadrassem o PS e, sobretudo, o PCP.

    Depois do 11 de março veio a segunda primavera das utopias. Lisboa era a capital mais livre do mundo. A grande massa do povo urbano, tanto em Lisboa – incluído o grande cinturão metropolitano que a rodeia – e no Porto como na maioria das cidades médias do centro e sul o país, os trabalhadores e a juventude, mas também as novas classes médias assalariadas no comércio e nos serviços exigiam a independência das colônias, o retorno dos soldados, as liberdades nas empresas, salários, trabalho, terra, educação, saúde, previdência. A experiência histórica colocava em movimento milhões de pessoas, até então, politicamente, inativas. Aprendiam quase instintivamente, no calor da luta, que eram a maioria e podiam vencer. Ainda existia, também, um outro Portugal, idoso, rural, atrasado, desconfiado da revolução, manipulado pela Igreja, e com base social nos minifúndios do norte. Mas eram muito minoritários. Nas cidades, sobretudo as industrializadas, o povo simpatizava com as nacionalizações. Concordava que sem limitações ao direito de propriedade – isto é, expropriações dos que tinham sustentado a ditadura – não poderiam conquistar as suas reivindicações. Começa a etapa do que foi denunciado pela ultradireita como “assembleísmo”, ou seja, a dualidade de poderes. As hierarquias seculares de autoridade política e social que se apoiavam em tradições culturais de medo e respeito desabaram. As massas invadiram os espaços sociais de suas vidas e estavam atrevidas. Queriam participar. Queriam decidir.

    Em vagas de lutas sucessivas, surgiram comissões de trabalhadores em todas as grandes e médias empresas, como a CUF (Companhia União Fabril) – só ela, 186 fábricas – a maioria concentrada no Barreiro, cidade industrial do outro lado do Tejo. Champalimaud, um dos líderes mais influentes da burguesia reage declarando “os operários são atualmente demasiado livres”.[6]

    O muralismo político – painéis à mexicana, grafites à americana, dazibaos à chinesa, e simples pichações – fazia das ruas de Lisboa uma expressão estético-cultural desse “universo diverso’ da revolução. Havia de tudo, do mais solene ao mais irreverente. À porta do cemitério o impagável Abaixo os mortos, a terra para quem nela trabalha. Nas grandes avenidas, o dramático, Nem mais um só soldado para as colônias. Na região das avenidas novas, “Os ricos que paguem a crise”, assinado pela UDP e, ao lado,“A UDP que pague a crise”, assinado “Os ricos”. Nas paredes da entrada da Faculdade de Letras, onde os trotskistas eram mais influentes, o cético: Os índios também eram vermelhos e se foderam.

    A Igreja não escapou à fúria do processo revolucionário. Em Lisboa as Igrejas ficaram desertas de jovens. Associada durante décadas ao salazarismo – quando o Cardeal Cerejeira foi o braço direito do regime – estava desmoralizada no Sul do País, e desautorizada diante de amplos setores sociais. As ocupações se estendiam aos meios de comunicação. No dia 27 de maio os trabalhadores da Rádio Renascença ocupam os estúdios e o centro transmissor. É abandonada a designação de “Emissora Católica”. A emissora passa a transmitir uma programação de apoio ás lutas dos trabalhadores.

    Os operários da Lisnave, então um dos grandes estaleiros do mundo, deram o exemplo organizando piquetes para ocupar o seu sindicato. Na Amadora, a Sorefame, uma das maiores indústrias metalúrgicas do país entra em greve, assim como a Toyota, a Firestone, a Renault, a Carris (motoristas de ônibus), a TAP e a CP (ferroviários), mas também pelo interior, como entre os têxteis da Covilhã, ou nas minas da Panasqueira. A onda de auto-organização – formação nas empresas de comissões de trabalhadores – que aprofunda a dinâmica revolucionária da situação, produz reações: Os sindicalistas do PCP queixam-se amargurados: ‘Os grevistas fazem tábua rasa das formas tradicionais de luta, nem tentam negociar e por vezes decidem parar mesmo antes de redigirem o caderno reivindicativo. Em muitos casos, os trabalhadores não se limitam a exigir mais dinheiro, passam á ação direta, tentam tomar o poder de decisão e instituir a co-gestão sem estarem preparados para isso”. (Canais Rocha ao Diário de Lisboa, em 24/6/74). [7]

    Ainda quando PCP apostava toda a sua imensa autoridade para freiar as greves, as invasões de latifúndios no Alentejo se generalizavam, ao mesmo tempo em que as ocupações de casas desabitadas em Lisboa e Porto se alastravam; saneamentos – o eufemismo para expulsão dos fascistas – realizavam depurações na maior parte das empresas, a começar pelo serviço público, e a pressão estudantil nas Universidades impunha assembléias deliberativas.  Toda a antiga ordem parecia desabar:

    A criação do salário-mínimo nacional abrange mais de 50% dos assalariados não agrícolas. São os trabalhadores menos qualificados, as mulheres, os mais oprimidos, que constituem a vanguarda da conquista do poder de compra e dos direitos sociais. O poder de compra dos assalariados aumenta 25,4% em 1974 e 75; os salários que, em 1974, já são 48% do rendimento nacional, passam a 56,9% em 1975. A estrutura da propriedade modifica-se: 117 empresas são nacionalizadas, 219 outras têm mais de 50% de participação do Estado, 206 são intervencionadas, abrangendo 55.000 operários; 700 empresas entram em auto-gestão, com 30.000 operário. [8]

    Cada revolução tem o seu vocabulário. Como o pêndulo da política se inclinou para a extrema-esquerda, o discurso da direita girou para o centro, e o do centro para a esquerda. O travestismo político – o descompasso entre as palavras e os atos – faz o discurso dos partidos irreconhecível. Mas, em Portugal, as forças burguesas superaram o inimaginável. Desde o PPD de Sá Carneiro, hoje o PSD de Durão Barroso, até o PPM (Partido Popular Monárquico), todos reivindicavam alguma forma de socialismo, o que explica a linguagem socializante da Constituição que até hoje produz espanto.

    A situação aberta pela queda de Spínola trazia maiores desafios, e mais perigosos. A burguesia exigia ordem e, sobretudo, respeito à propriedade privada. Diante das pressões, o PS e o PCP, as forças políticas de longe majoritárias, e as únicas com autoridade na direção dos Governos Provisórios – além do MFA – dividiram-se e provocaram uma cisão irremediável entre os trabalhadores. Um ano depois do 25 de abril, as eleições para a Constituinte surpreenderam. O PS foi o grande vencedor com espetaculares 37,87%. O PCP decepcionou com somente 12,53%. Revelou-se um abismo entre sua força de mobilização social e a eleitoral. O PPD (Partido Popular Democrático) de Sá Carneiro, um líder liberal dentro das estruturas do regime salazarista, fica em segundo lugar com 26,38%. O CDS (na extrema-direita, dirigido por Freitas do Amaral) o MDP (Movimento Democrático Português), uma colateral do PCP que vinha do tempo das eleições sob Caetano, e a UDP (União Democrático Popular), maoístas de inspiração “albanesa”, conseguiram, também, representação parlamentar.

    A revolução derrotada

    A presença de um partido comunista em governos europeus foi um tabu dos anos de guerra fria. Foi uma surpresa mundial quando Cunhal foi apresentado como ministro sem pasta no primeiro governo provisório liderado por Palma Carlos e Spínola. A estupefação foi ainda maior quando o PCP não somente permaneceu nos governos provisórios seguintes, como aumentou significativamente sua influência até a queda de Vasco Gonçalves em agosto de 1975.

    A repercussão do papel do PCP continuou crescendo porque, a partir do V governo provisório, no verão quente de 1975, Cunhal foi acusado pelo Partido Socialista, dirigido por Mário Soares, de estar tramando um “golpe de Praga”, ou seja, uma insurreição para tomar o poder. Soares desafiou a hegemonia da mobilização de ruas que, até então, o PCP detinha, levando centenas de milhares às ruas contra Vasco Gonçalves e, apoiado pela hierarquia da Igreja, pela embaixada americana, e pelos governos europeus, estimulando a divisão do MFA que se expressou através do “grupo dos nove”.

    Meses depois, quando o movimento militar dirigido por Ramalho Eanes, na madrugada de 25 de novembro de 1975, de fato, tomou pela força o poder – fazendo aquilo que denunciava que o PCP estaria preparando – Melo Antunes defendeu, inusitadamente, a participação do PCP na “estabilização democrática”, sublinhando, dramaticamente, que a democracia portuguesa seria impensável sem o PCP na legalidade, para deixar claro que o golpe não seria uma pinochetada, e que foi feito para evitar aquilo que, no calor daqueles dias, se interpretava como o perigo de uma guerra civil, e não para provocá-la. Admitiu, portanto, que o VI governo provisório e o Conselho da revolução estavam fazendo uma intervenção armada nos quartéis (um clássico autogolpe), mas alegou que era em legítima defesa, para manter a legalidade, não para subvertê-la.

    A contra-revolução ensaiou o golpe bonapartista duas vezes com a direção de Spínola e fracassou. Recorreu, depois, a outros dirigentes e a outros métodos. Uma combinação de espada e concessões. Usou a espada, cuidadosa e seletivamente, no 25 de novembro. Usou os métodos da reação democrática com as eleições presidenciais de 1976, a negociação dos empréstimos de emergência que os Estados da NATO liberaram, e recorreu até à formação de um governo em vôo solo do Partido Socialista liderado por Mário Soares.

    Depois de novembro de 1975, com a destruição da dualidade de poderes nas Forças Armadas o processo assumiu uma dinâmica lenta, contudo, irreversível, de estabilização de um regime democrático liberal. A derrota da revolução portuguesa não exigiu derramamento de sangue, mas consumiu muitos bilhões de marcos alemães e de francos franceses. A integração posterior na Comunidade Econômica com o acesso aos fundos estruturais, gigantescas transferências de capitais para modernizar a infra-estrutura, e construir um pacto social capaz de absorver as tensões sociais pós-salazaristas, permitiu a estabilização do capitalismo e do regime democrático nos anos 80 e 90.

    [1]  Marcelo Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Record, 1974, p.194.

    [2] CARVALHO, Otelo Saraiva deMemórias de Abril, Los preparativos y el estallido de la revolución portuguesa vistos por su principal protagonista, Barcelona, Iniciativas Editoriales El Viejo Topo, s/data, p.163.

    [3] VARELA, Raquel. A história do PCP na revolução dos cravos. Bertrand Editora, Lisboa 2011.

    [4] A discussão dos tempos da revolução e dos critérios para aferição das relações sociais de força pode ser encontrada no meu livro As Esquinas Perigosas da História, São Paulo, Xamã, 2004.

    [5] Lincoln Secco, A Revolução dos Cravos, São Paulo, Alameda, 2004, p.153.

    [6] Champalimaud em declaração ao matutino Diário de Notícias, Lisboa, 25/6/74, citado em Francisco Louçã, 25 de abril, dez anos de lições, Ensaio para uma revolução, Lisboa, Cadernos Marxistas, 1984, p.36.

    [7]  Francisco Louçã, Ibidem, p.36

    [8] Francisco Louçã, Ibidem, 35.

  • Joaquim: “Herói” sepultado?

    Joaquim: “Herói” sepultado?

    Joaquim: “Herói” sepultado?

    André Luan Nunes Macedo*

    Os tempos desérticos em termos de utopia nacional e de plena celeridade golpista demonstram que não basta morrer uma única vez. Que a derrota política advinda da traição determina a criação de uma imagem. Um sepultamento completo, não somente da pessoa física, como também de conceitos fundamentais para a resistência: sedição, rebelião, luta contra as elites e a perspectiva estratégica anti-colonial são jogadas para a passividade do “passado morto”. O passado passa a ser inativo e inoperante. Por ele não se pode problematizar, uma vez que o “contexto é outro”, radicalmente distinto dos tempos de outrora e, portanto, pouco exemplar. Cabe somente, nos tempos atuais, a mera sobriedade e assepsia.

    Uma ideia-síntese desta morte que só se permanece ativa no imaginário popular mineiro e brasileiro é a de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Nas pesquisas históricas nos livros didáticos recentes[1], esse indivíduo aparece como um “mito de uma época”. As representações em torno das suas atividades políticas são parcamente problematizadas. De protagonista da Conjuração Mineira, Tiradentes é mais um Joaquim qualquer, executado exemplarmente devido à sua “loucura republicana”, que tinha consigo a ideia de transformar Minas Gerais em uma nação industrial e de desenvolvimento intelectual elevado. Nesse sentido, numa sociedade que não “cabe heróis” – leia-se: militantes e políticos destacados com projetos históricos rebeldes que produzem uma autodistinção importante para compreender a razão de ser de um pensamento indignado num determinado contexto – cabe ao livro didático brasileiro consolidar uma pedagogia “política sóbria”, apresentando Tiradentes apenas pela representação “de corpo esquartejado”, como lembrado na belíssima e trágica pintura de Pedro Américo. Trata-se de uma pedagogia política conservadora, que não quer mostrar o lastro popular deste homem, cheio de contradições e que, ao longo de todo o século XX, à esquerda e à direita, foi tratado no Brasil como elemento que impulsiona nossa esperança rumo a luta por reformas profundas em prol das maiorias[2]. Trata-se de desvinculá-lo das tavernas e de suas contradições cotidianas que o fizeram ser conhecido como um indivíduo que tentou desafiar a tirania colonial.

    Nesse dia 21, não cabe a nós glorificar Tiradentes. Porém, cabe situá-lo novamente como o sujeito que resiste. Que discute. Que tenta organizar um dissenso. Que foi contra a ideia “manda quem pode, obedece quem tem juízo” ainda prostrada com força no senso comum da nação, herança da ditadura militar. É preciso enxerga-lo com o olhar do mito proposto por Jose Carlos Mariátegui: “a civilização burguesa sofre da ausência de um mito, de uma fé, de uma esperança. Ausência que e a expressão de sua falência material. A experiência racionalista teve a paradoxal eficiência de conduzir a humanidade à triste convicção de que a Razão não lhe pode oferecer nenhum caminho” [3]. O excesso de sobriedade dos historiadores, super-brecthianos, propagadores da ideia do “feliz da sociedade que não depende de heróis” perdeu consigo, nesse caminho, a tendência de problematizar a pedagogia política e a retomada do fio da história. Perdeu a capacidade de ser um campo intelectual de ideias perigosas para a classe dominante, assumindo a postura asséptica e distante das lutas pela emancipação nacional.

    Entre os mineiros e visitantes de Ouro Preto, sempre ouço a história de que a cidade carrega “uma energia pesada e negativa”. Esse senso comum remonta não somente ao bárbaro passado escravista, como também o aborto de uma sedição traída por delatores abonados.

    Vivemos a era da “delação premiada” e de “luta contra a corrupção”. Não quero aqui fazer tábula rasa. Porém o paralelo me parece pertinente, desde que seja tratar os contextos com suas diferenças. Nesse sentido, não acredito que seria pedagógico tratar o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci como um “Joaquim Silvério dos Reis do século XXI” ou a tirania judiciária e golpista de Sérgio Moro como se fosse a alma do “Visconde de Barbacena”. A história da Conjuração Mineira e de Tiradentes pode oferecer uma pedagogia política revolucionária e ativa. Onde a práxis do falar em público, em defesa de um programa anti-colonial, popular e nacionalista seja vista não como mera “loucura” entre nós brasileiros, mas como um elemento fundamental da nossa brasilidade. De unidade aberta e de luta contra o subdesenvolvimento.

    O dia que a foto de Tiradentes tomar as ruas novamente, não tenho dúvidas, será o dia em que os próprios dias nublados e cinzentos de Ouro Preto serão menos lembrados do que os seus lindos dias ensolarados, de clima ameno, cuja primavera será nosso horizonte civilizatório de expectativa, nossa grande utopia nacional.

    Ao Republico beberrão e falador da verdade, os meus parabéns! Carrego contigo seu exemplo! Meu camarada de luta! Viva Joaquim, nosso eterno Tiradentes.

    *Mineiro de coração e criação, Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

    [1] Publiquei um artigo no ano de 2016 na revista de Teoria da história e Historiografia da Universidade do Estado de Goiás. Para maiores informações sobre o tema e minha opinião a respeito: http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth/article/view/4596/4164.

    [2] Destacamos o breve destacamento armado inspirado nas lutas das Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião no ano de 1961, o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Para maiores informações, ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-revolucionario-tiradentes-mrt.

    [3] Ver: https://www.marxists.org/portugues/mariategui/1925/01/16.htm.

  • Lênin propõe o assalto ao céu

    Lênin propõe o assalto ao céu

    Lênin propõe o assalto ao céu

    Isabela OIiveira e Pedro Otoni

    Em abril de 1917 uma voz se fez notar ante as outras. Esta voz tinha um timbre que expressava as mais altas aspirações do povo russo, era de alguém que havia acabado de retornar de um exílio, líder de uma organização minoritária, ridicularizado pelas mais expressivas personalidades da esquerda europeia, acusado de delirante e incitador da guerra civil: era a voz de Lênin.

    Qual então seria o delírio de Lênin naqueles dias de abril? Reivindicou, quanto todos vacilavam, a bandeira histórica da Comuna de Paris, reivindicou Todo poder aos Sovietes. Para isso denunciou o “defensismo revolucionário”, a via passiva de resistência ao Governo Provisório, e o apoio – expresso ou velado – de boa parte da esquerda russa frente a permanência do país na I Guerra Mundial.  

    Os 10 pontos das Teses de Abril causaram grande desconforto, mas um em especifico conquistou a rejeição veemente de quem quer que fosse: “o apoio limitado” ao governo provisório. Lênin antecipava as debilidades do poder dual e mantinha uma desconfiança, posteriormente confirmada, na manutenção do governo provisório. Sua ousadia consistiu em apontar com clareza  que o governo provisório representava a forma política da dominação de classe e que a conquista do poder político deveria percorrer um caminho de explanação paciente para o convencimento e elevação da consciência dos sovietes e do povo russo. Sobretudo, o que Lênin reivindicava era uma revolução ininterrupta.

    Seu raciocínio não era delirante; era rigoroso, preciso, intransigente. Seus alvos foram escolhidos, e as palavras de agitação extrapolaram seu uso habitual e ganharam a dimensão programática que centenas de páginas não poderiam explicar.

    A PAZ, ante a guerra imperialista de anexação, que submetia os povos a brutalidade dos interesses capitalistas. A paz viria não apenas com a retirada da Rússia da guerra, mas a unificação de todos os bancos do país e a sua transferência aos Sovietes de Deputados Operários e camponeses pobres.

    O PÃO, que significou romper com a ordem capitalista que impõe a escassez como método de controle social. Socializar o pão significa romper com a ordem burguesa, significa de maneira mais profunda, superar as classes.

    A TERRA, o meio de produção mais elementar, aprisionado por séculos por uma oligarquia agrária antinacional. Transferir o controle do território para os camponeses implicaria, como vislumbrou Lênin, na remoção mais profunda e efetiva dos resquícios da aristocracia tzarista, que insistentemente sobrevivia sob o Governo Provisório.   

    Desta forma a bandeira da paz não significava rendição; a distribuição do pão não significava assistencialismo, nem a socialização da terra aos camponeses uma política compensatória. Era o imperialismo, a burguesia bancária e a aristocracia rural os alvos que Lênin havia definido, era contra eles que aquela voz “delirante” de abril se fez ouvir.

    A abordagem leninista se transformou na mais extraordinária pedagogia de massas da história, pois propôs, como método o esclarecimento dos setores populares e revolucionários vacilantes da necessidade de compreender a relação fundamental entre a paz e a revolução.

    Para dar consequência prática e militante para suas Teses, Lênin propõe um congresso imediato do partido, que apontasse para a modificação do programa, aprofundando a caracterização do imperialismo como inimigo principal; a adoção de uma proposta de Estado-comuna – a organização de um aparelho estatal que desse consequência aos objetivos já levantados pela Comuna de Paris -;  a mudança de denominação do partido, que passaria a se chamar Partido Comunista – a organização política que teria a organização comunal com eixo programático máximo -; e a constituição imediata de uma nova organização internacional, a III Internacional Socialista, que colocasse fim a via passiva presente no movimento revolucionário.

    As Teses de Abril incendiaram como combustível a vontade de poder do povo. Este fato nos ensina que é necessário existir um “abril delirante” para que se tenha um “outubro vermelho”.