Categoria: Artigos

  • Uma comunicação com potência inspiradora veio da Costa Rica

    Uma comunicação com potência inspiradora veio da Costa Rica

    Uma comunicação com potência
    inspiradora veio da Costa Rica

    Francisvaldo Mendes*

    No dia primeiro de abril de 2018 ocorreu o segundo turno das eleições presidenciais na Costa Rica. A chapa do PAC – Partido da Ação Cidadã – venceu as eleições com mais de 60% dos votos. O presidente eleito, Carlos Alvarado, traz em sua chapa, como vice, uma mulher negra: a economista Epsy Campbell. A formação da chapa foi fruto de um processo de debates que envolveu o educador e sindicalista Marvin Rodriguez como possível vice até a decisão. Fabrício Alvarado, ex-deputado e bispo evangélico foi derrotado em uma eleição na qual temas polêmicos e contemporâneos como direitos trabalhistas, direitos humanos, religião e casamento de pessoas do mesmo sexo ganharam notoriedade.

    De um lado estava um jovem de 38 anos, cientista político, roqueiro, com uma mulher, economista, negra (a primeira vice-presidente negra da América Latina). Do outro estava um pastor, conservador, que se posicionava fortemente contrário ao casamento de pessoas do mesmo sexo e o direito ao aborto. As chapas polarizaram nesse debate e a polarização pendeu favorável a posição mais libertária, democrática, com corte claro pela convivência. Ainda que no primeiro turno a chapa do PRN – Partido da Restauração Nacional – tenha ficado à frente, foi derrotado no desfecho final do segundo turno.

    Questões fundamentais estavam colocadas no processo eleitoral. De um lado um discurso fundamentalista de um Bispo neopentecostal que afirmava defender o seu país de todas as influêncis malignas: aborto, homossexuais, casamento gay, direitos individuais múltiplos. Do outro uma chapa com um discurso contemporâneo sobre liberdade e direitos. A chapa, para além do homem branco que a dirigia, contava com uma mulher negra e antenada para questões do momento.

    O clima não poderia ser outro: o país se dividiu. Mas não se tratava de apenas uma divisão local que dizia respeito somente a Costa Rica. Trata-se de questões fundamentais que envolvem todas as pessoas, em especial as latino-americanas e, entre essas, e especialmente, os brasileiros, nesse momento peculiar que atravessamos.

    Apesar de nenhum debate de fôlego sobre o capitalismo ou sobre um projeto político revolucionário que colocasse a centralidade do trabalho e a questão avassaladora do lucro acima da vida, tratam-se de questões fundamentais para o momento político atual. Mesmo com a baixa participação do eleitorado no primeiro turno, com uma taxa de abstenção que superou os 33%, a votação que colocou o pastor à frente de Carlos Alvarado, com 24,8% contra os 21,6% do candidato do PAC, indicava uma vitória conservadora. Isso não ocorreu, o conservadorismo foi derrotado eleitoralmente na Costa Rica, fazendo com que o discurso em defesa da “família, princípios e valores”, não se materializasse em apoio popular eleitoral, o que nos traz um alento de esperança e otimismo para o Brasil.

    Essa é a terceira eleição do país que foi resolvida em dois turnos. Enquanto o pastor comemorava sua colocação afirmando os valores mais reacionários e que facilmente seriam tratados como fascistas, o segundo lugar apostou na convivência, no diálogo e no respeito às diferenças. Foi justamente o chamado no sentido contrário do autoritarismo, das interdições, das criminalizações, que pulsavam na narrativa de Carlos Alvarado.

    Mesmo se levando em conta que o PAC conseguiu eleger apenas 10 dos 57 congressistas, ficando para o PLN – Partido Liberación Nacional – 17 cadeiras e para o PRN – Partido da Restauração Nacional – 14 cadeiras. Fato esse que trará grandes dificuldades políticas de governança, mas, mesmo com tais obstáculos e desafios que serão apresentado pela composição do Congresso, pode-se afirmar que o resultado eleitoral foi uma expressiva vitória. Não foi uma viótira da esquerda, do socialismo, ou de um programa que coloque em xeque o capitalismo. Mas foi uma vitória fundamental pois serviu para se impor como barreira ao vulto fascista que se multiplica em toda a América Latina, América do Norte e Europa.

    Não há dúvidas que que a mobilização popular assumirá lugar central para manter um governo que se sustente aos vários ataques reacionários. Com um Congresso formado majoritariamente por liberais, conservadores e uma direta das mais retrógradas, que infla o sentimento de ódio, serão forjadas ações serão permanentes para desestabilizar o novo governo eleito. Corre-se o risco, inclusive, de manipulações para armações de Golpe contra a chapa eleita, tendo em vista que essa é uma das tônicas da política nos últimos anos.

    Trata-se de pensar, sentir e atuar nesse contexto com solidariedade, apoio crítico e fortalecimento.do símbolo da vitória e da chapa que chega ao posto de presidente. Para além de derrotar eleitoralmente o conservadorismo, pela primeira vez, na América Latina e Caribe, uma mulher negra assume o lugar de vice-presidente. E nós só podemos estender as mãos, conhecer e atuar para fortalecer esse processo. Nos caberá atuar para garantir uma unidade que possa fortalecer a derrota das influencias fascistas e apresentar inspirações socialistas e libertárias, na composição das mobilizações da Costa Rica e em toda América Latina. Essas são ações fundamentais e de grande importância para os trabalhadores de todo mundo.

    Para além disso, vamos os nutrir dessa potência inspiradora que vem da Costa Rica para fortalecer a chapa presidencial com a qual disputaremos as eleições no Brasil. Apresentamos um jovem que luta por moradia e uma vice que defende os povos indígenas, sustentados na defesa dos direitos e comprometidos com o enfrentamento das desigualdades. Esperamos que possamos empolgar, ganhar as eleições e derrotar o sentimento perverso de ódio que tenta influenciar um povo alegre e de luta, que constrói, diariamente, as bases do nosso país.

    *Francivaldo Mendes é presidente da Fundação Lauro Campos

  • O assassinato de Marielle Franco e a crise do fascismo

    O assassinato de Marielle Franco e a crise do fascismo

    O assassinato de Marielle Franco e a crise do fascismo

    Renan Zapata*

    Em 30 de maio de 1924, o deputado italiano Giacomo Matteotti fez um discurso na Câmara dos Deputados denunciando a fraude da eleição anterior, ocorrida a 6 de abril do mesmo ano, assim como a violência que havia acompanhado o pleito. Nessas eleições, a oposição ao regime de Benito Mussolini havia conquistado uma grande importância e desde então a maioria parlamentar fascista se deteriorava. Um ano e meio se passava da Marcha sobre Roma, manifestação que instaurou a ditadura fascista. Junto do discurso, Matteotti, do Partito Socialista Unitario, propunha invalidar a eleição de pelo menos um grupo de deputados. Apesar da proposta ter sido derrotada de forma esmagadora, os fascistas se atemorizaram.

    “Vocês são uma milícia armada, composta de cidadãos de um só partido, a qual tem a tarefa declarada de sustentar um determinado governo com a força, ainda que para isso, falte o consenso”[1]

    A motivação de Matteotti era de formar uma oposição combativa e intransigente, baseada no direito de legítima defesa. Não se importava de a proposta ser derrotada. Nem se importava com as consequências certamente fatais de tal atitude afrontosa. Depois do discurso, Matteotti disse profeticamente a alguns companheiros de partido: “Eu, o meu discurso fiz. Agora, preparem o discurso fúnebre para mim”. Bastaram dez dias para que ele fosse sequestrado. Acharam o corpo 2 meses depois num bosque a 25 quilômetros de Roma. Seu assassinato levou o fascismo a uma crise inesperada. A hegemonia fascista fragilmente preservada nas eleições de abril era suspensa. Uma comoção de grandes proporções toma conta da Itália, o fascismo é cada vez mais explicitado em seu aspecto autoritário. Cria-se uma abertura histórica para isolar o fascismo e desenvolver uma hegemonia da oposição, democrática. Porém, os inúmeros partidos da esquerda italiana não conseguem entrar em acordo para uma ação conjunta e decisiva. Fragmentada e desorientada, essas várias agremiações parecem não ter a força necessária para se sobrepor ao fascismo. Três meses depois da morte de Matteotti, um militante comunista mata um deputado fascista, vingando Matteotti. O terrorismo fascista recomeça e a abertura histórica de crise começa a se fechar.

    Essa mesma crise do fascismo que se abriu na Itália da década de 20, agora ressurge diante de nós mesmo que o nosso atual regime não seja propriamente fascista. O assassinato da vereadora Marielle Franco do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), ao que tudo indica, por paramilitares, desnudou para todo o mundo, o caráter autoritário, não só da intervenção militar do Rio de Janeiro, mas de toda a política envolvida nessa “solução”. A morte de Marielle acontece cerca de 15 dias depois dela assumir a relatoria na comissão da Câmara de Vereadores que avaliava a intervenção militar e a menos de um mês desta iniciar-se. O absurdo desse “excesso” colocou de uma vez por todas em suspensão o Estado democrático de direito. Isso é extremamente relevante, de um modo grave, porque o governo e o judiciário estavam mantendo a política da legitimidade da lei e do funcionamento normal das instituições, apesar de tudo. De certo modo, ela corria bem e camuflava todas as medidas impopulares, como se a popularidade do judiciário equilibrasse a impopularidade do governo Temer. Essa linha condicionava a esquerda a uma só estratégia, a de esperar pelas eleições. Toda angústia e impotência causada pelo assombro das reformas impostas desde o impeachment estavam sendo canalizadas para as eleições, mesmo com a incógnita da participação de Lula. Agora parece que a situação mudou. Antes, o governo e o judiciário conjugavam o funcionamento normal da democracia com o abuso de poder, um poder autoritário e seletivo contra os principais representantes do pacto do governo lulista, e na esteira contra todos os marginalizados. Agora, a aparência de democracia sofre um abalo significativo. Passou-se, então, de uma ordem fracamente legítima com popularidade média para uma ordem ilegítima. Po isso, renasce em todos os lados o debate sobre o terrorismo de Estado.

    Há com essa mudança, consequências explosivas e paradoxais. As manifestações do dia 15 de março por conta do assassinato de uma parlamentar de esquerda no dia anterior, que denunciava o Estado de exceção vivido nas favelas do Rio de Janeiro com a intervenção militar, recolocam as massas nas ruas. O que, por mais que se tentasse na defesa contra a perseguição de Lula, não tinha êxito. Esse assassinato não aparece ao mundo como mais uma morte de negros da periferia, contudo, mais do que isso, como um crime político, oficial e excepcionalmente político, de uma representante do povo com imunidade parlamentar. O peso simbólico que se ergue é que o Estado não se sustenta mais. Isso significa rigorosamente uma ruptura na ordem simbólica que balizava o governo. Ruptura que arranca a esquerda da inércia e a coloca de novo no protagonismo de suas próprias ações. A retórica pública, isto é, aquele pequeno “consenso” do que é permitido falar em público sem se isolar, do que é conveniente falar em público, volta a uma suspensão da hegemonia de direita, conquistada em 2013. Uma retórica pública democrática ressurge e sua força é ampliada pelo represamento angustiante a que o impeachment havia reduzido a esquerda e as forças populares, que padeciam de uma impotência somente consolada pela esperança das eleições.

    A esquerda pode intervir nessa crise de modo a fazer recuar o governo Temer tanto quando o judiciário na sua normalidade despótica. Para isso, são necessárias uma estratégia comum e uma ação sólida e coordenada. A oportunidade pode não representar de imediato muita coisa, mas batalhas gigantescas vão ser travadas nas próximas semanas, principalmente nos próximos dias. O “clima” político parece ter a primeira ocasião de ser remodelado e tende de novo a um equilíbrio das forças políticas. Isso pode fazer diferença na prisão de Lula, na perseguição ao PT, PSOL e movimentos sociais e também na garantia das eleições esse ano. Até a eleição com Lula hoje parece voltar a ser possível. As ocasiões, é claro, podem ser perdidas, mas mesmo assim o sacrifício de uma mulher tão corajosa, nos inspira a levantar a cabeça e lutar com mais garra. O deputado Giacomo também falou aos seus companheiros que embora pudessem matá-lo, a ideia que ele carregava, jamais.

    A voz da história ressoa alto: as ideias de Marielle não serão assassinadas!

    *Professor de história e filosofia e estudante de mestrado em Filosofia na FFLCH-USP

    [1] O texto integral desse discurso em italiano se encontra no site: https://it.wikisource.org/wiki/Italia_-_30_maggio_1924,_Discorso_alla_Camera_dei_Deputati_di_denuncia_di_brogli_elettorali

  • A mulher como eixo da igualdade material: o caso Tifanny Abreu

    A mulher como eixo da igualdade material: o caso Tifanny Abreu

    A mulher como eixo da igualdade material:
    o caso Tifanny Abreu

    Por Mariah Lessa*

    Em oito de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher, data que simboliza mundialmente o êxito em uma série de reivindicações, a fim de alçar, por exemplo, direitos políticos e trabalhistas indistintamente aos cidadãos ou àqueles com qualidades de sê-los. Dia marcante em uma jornada incansável de luta e enfrentamento político-social.

    Em um país historicamente tradicional, como é o que se revela no Brasil, o simples fato de ser mulher representa aspectos mais relevantes que o gênero do indivíduo, tais quais, os imbróglios na inserção no mercado de trabalho, a tripla jornada, bem como as mazelas oriundas da realidade misógina hodierna. Nascer mulher é conviver com inúmeros impasses , tornar-se mulher – através de um processo de transgenia – é ato de força, coragem e, sobretudo, empoderamento feminino. Tifanny Abreu representa exatamente todos estes predicados. Ela foi a primeira – e até então, a única – atleta transexual a disputar uma partida oficial na Superliga Feminina de Vôlei.

    A jogadora reacendeu diversos questionamentos e preconceitos silentes na sociedade e na comunidade esportiva, principalmente por despontar como a maior pontuadora da Liga. Argumentos sociológicos, metabólicos e os do senso comum não foram suficientes para coibir a atuação de Tifanny na competição, tendo em vista que, segundo a Confederação Brasileira de Vôlei, os índices de testosterona da atleta estão nivelados com os dos seus pares, após tratamento médico pertinente.

    Em face dos debates decorrentes da condição biológica (não só hormonal) da jogadora e das nuances da transgenia, é de suma importância reviver o conceito de igualdade extraído da Carta Magna vigente, proclamando o aspecto material que o norteia, a saber, o tratamento desigual que deverá ser suplantado aos desiguais, na medida de suas desigualdades. Trago à baile a igualdade material não para clamar por um tratamento desigual à Tifanny, mas sim para apontar a necessidade, através do políticas públicas, de naturalizar a inserção da mulher trans nos contextos sociais, não as marginalizando, tampouco as negligenciando.

    É de suma importância que mulheres transexuais, bem como transgêneras, adentrem, de forma humanizada, nas diversas camadas sociais, a fim de mitigar uma realidade cruel e hostil que tende a se potencializar diante dos discursos de ódio que se propagam de força maçante.

    Dito isto, vale ressaltar que, ser mulher é, principalmente, ter o prazer de usufruir de todas as forças que os percalços nos obrigam a ter, é ser mais forte do que imaginávamos que realmente somos. Em um país enfestado de machismo, ser mulher é sofrer, mas também sorrir, sem nunca deixar de regar a flor da esperança.

    *Mariah Lessa, 23, é advogada, pós-graduanda em Direito de Família e Mediação, filiada ao PSOL e Membro do Diretório Municipal do PSOL em Maceió-AL

  • A alegria que fez pulsar e impulsionar a consciência

    A alegria que fez pulsar e impulsionar a consciência

    A alegria que fez pulsar e impulsionar a consciência

    Por Francisvaldo Mendes

    O carnaval de 2018 foi um dos melhores, que se tem registro na história dos carnavais, do ponto de vista da construção de uma consciência coletiva crítica. A arte com um tom crítico e mobilizador se fez presente nos enredos de várias escolas de samba, de múltiplos blocos carnavalescos e em músicas criadas por vários artistas desconhecidos para o grande público. Nos espaços públicos pulsou intervenções criativas que estimularam a busca de conhecimento, a consciência crítica e o ativismo, o que muitas vezes, inclusive, as pessoas não conseguem expressar, no dia-a-dia, de forma coletiva e organizada.

    O processo de educação do nosso povo tem muita influncia da grade curricular rebaixada das nossas escolas. Não organizam, majoritariamente, para um processo de elevação da consciência crítica e dialética, mas para que o discurso dos poderosos apareça como história oficial. Por sua vez, o acesso ao conhecimento histórico, teórico, científico, acumulado na sociedade, quando organizado criticamente e dialeticamente, pode fazer das escolas um importante espaço para motivação e elevação da consciência. O que predomina, no entanto, é uma organização ideologicamente comprometida para manter a estrutura do sistema. Quando momentos de expressões coletivas, com alegrias e afetos, fazem pulsar a vida das pessoas, como nesse carnaval, cria-se uma expressão de alegria motivadora.

    Infelizmente, governos com viés progressistas, ocuparam o planalto central, mas não investiram na conscientização coletiva e na potencialização da cultura. Por sua vez, dedicaram-se, com prioridade e quase exclusivamente, ao investimento para o consumo, com o discurso de suprir carências materiais. Claro que suprir carências materiais não é um detalhe, mas isso precisa acompanhar a participação ativa dos sujeitos, a alteração da superestrutura que ordena todo o processo, a diferença do tratamento de riqueza e salários e o investimento poderoso na ampliação da cultura popular. Do contrário, agradar-se-á a poderosa elite que domina, lucra e impões o lucro acima de todos os direitos, da vida das pessoas, das alegrias.

    Nesse carnaval, a critica social levada às ruas e avenidas demonstraram que, apesar de quaisquer governos, o povo não é uma simples massa de manobra, que serve apenas como força de trabalho e enriquecer os “burgueses”. O povo, visto como os setores mais populares e todas as pessoas que trabalham para sobreviver, que historicamente e no seu dia-a-dia, emana criatividade é a verdadeira alma desse País. É esse povo, essa grande e numerosa quantidade de pessoas, que vive do trabalho, é quem constrói cada alicerce desse brasil. Mesmo com a poderosa corrupção estrutural que se unificada a exploração e a privatização ampla da natureza, que ceifa milhares de vida, em momentos como esse, nessa maravilhosa expressão popular que foi o carnaval de 2018, não consegue esmagar sonhos e esperanças.

    O povo defende suas raízes mesmo que a mídia, esse covarde e poderoso monopólio, tente encobrir, a todo instante a história de dominação que poucas famílias impõem a maioria da população. O povo luta incansavelmente para sobreviver e oferecer aos seus, vida digna, moradia, condições de saúde, educação, transporte e vive com exaltação suas alegrias e tristezas.

    A arte expressa nesse Carnaval, como em outros carnavais, impulsionou a verdade de que é possível fazer algo para transformar esse país em uma “nação da parcela da população que mais sofre com os desmandos das autoridades. Mostrou que as desigualdades, das mais escondidas as mais cruéis, que são impostas pela elite e predominaram e toda a formação social do Brasil. A escravização do negro, que foi transformado em coisas e negócios nos grandes portos brasileiros, segue hoje para todo o povo trabalhador e é orquestrado pelas ditas instituições democráticas. Os poderosos, com toda sua superestrutura organizadora, na qual o Estado ocupa lugar central de poder e vive, ainda hoje, do sangue e suor do povo trabalhador.

    O que se tem que fazer é comemorar esse impulso de conscientização crítica que invade as casas das pessoas que, com seus trabalhos, sustentam a nação para contribuir com a capacidade de ganhar as mentes das pessoas em defesa de um projeto do seu próprio sujeito coletivo, a classe social que cada um de nós faz parte, sendo isso fundamental.  Como bem mostrou a comissão de frente da Paraiso do Tuiuti, onde o capataz era um negro acoitando os demais e, na evolução do enredo, se arrependia quando construiu a consciência do que estava fazendo com o seu próprio povo. Assim temos que agir, assim precisamos ser, ter a capacidade apresentar de forma clara, assertiva e direta que nenhum de nós tem o direito de agir como capatazes de nossa própria classe ou grupo social, apesar de muitos serem ganhos para defender a ideologia dos de cima. É justamente ganhando essa consciência que cada um de nós, seremos os sujeitos da revolução nos tempos atuais.

  • Um balão de ensaio para a barbárie

    Um balão de ensaio para a barbárie

    Um balão de ensaio para a barbárie

    Por Francisvaldo Mendes

    A contínua marcha militar brasileira deve ser abolida o quanto antes. A determinação de Michel Temer em decretar a Intervenção Militar no Rio de Janeiro – ainda que possa ser uma densa cortina de fumaça para demonstração de força e busca de apoio dos setores mais reacionários da população – é a possibilidade do consórcio do golpe de 2016 em instalar um nível de excepcionalidade e de violência estruturante do sistema penal e do Estado brasileiro ainda mais intenso no comportamento da vida cotidiana da população. Principalmente e tão somente para os de baixo. Hoje, nas comunidades do Rio de Janeiro. Amanhã e depois, estendendo-se para onde quer que se queira.

    A primeira análise – acertada – logo após o anúncio da intervenção fez crer que esse decreto seria apenas “uma jogada” de Michel Temer para tirar o foco e camuflar as articulações para a aprovação da inescrupulosa Reforma da Previdência. Ventilou-se até que tendo os votos necessários, a intervenção seria interrompida por um dia, voltando a valer logo após a reforma passasse pela Câmara dos Deputados. Não será possível! O cão de guarda de Temer, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, extinguiu a possibilidade de votar a reforma – ao menos nos próximos meses. A matilha do golpe faz seus rearranjos. Tenta achar brechas, mecanismo, ações e enganações junto a mídia para dar resposta ao “mercado”. Não está conseguindo graças a forte reação e rejeição popular, demonstrada nas ruas e, também, no carnaval carioca. Significativo!

    Se em 2018 a reforma não sai, o que se está pretendendo, agora, é intensificar o estado penal e brutal dos próximos anos. Utilizando a intervenção até o dia 31 de dezembro como um grande balão de ensaio da barbárie. Não é que a intervenção militar vai criar um estado de exceção nas comunidades do Rio. Isso já existe há tempos. Temer moderniza tragicamente o que Rodrigues Alves fez – junto com Francisco Pereira Passos – com o povo dos cortiços do centro do Rio de Janeiro no início do século XX, quando se construiu a Av. Rio Branco e enxotou os egressos do fim da escravidão e o todo povo do centro da cidade com a justificativa de trazer a “paz e o progresso” para o Brasil.

    Discurso parecido. Mas, dessa vez, a tentativa não é só varrer o povo para outro lugar. É varrer o povo! O aumento da política de polícia ostensiva – agora, pela polícia do exército – será cada vez mais capilarizada e capitalizada para todos os espaços da sociedade e para a subjetividade do dia a dia dos de baixo. É a fachada. Igual às fachadas dos novos casarões da recém construída Av. Rio Branco – no início, os prédios da avenida só tinham a fachada mesmo, não tinha aposento, nem gente morando atrás. Eles querem matar, ainda mais, em qualidade e quantidade, nós, o povo.

    Não é à toa que circula, pelas redes, recomendações de que jovens, negros e negras, de comunidades do Rio de Janeiro comecem a andar, por exemplo, com a nota fiscal dos seus celulares junto consigo, que não esqueçam de jeito nenhum a identidade ou a carteira de trabalho quando saírem à rua – dentro de casa também -, que não usem bermudas de táctil, cabelos pintados, toucas, agasalhos com capuz. Eles – os ostensivos – é que escolhem quem é criminoso. Eles, que agindo com toda liberdade “sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, é que terão ainda mais liberdade para exaurir de vez qualquer tipo de proteção de direito (à vida). A nossa saída é a unidade na ação política conjunta, organizada, num programa mínimo na defesa dos direitos fundamentais para a dignidade humana e para garantir o direito do nosso povo de viver. Precisamos demonstrar que a nossa força é a força coletiva.

  • Haters: os grupos paramilitares virtuais do início do século XXI

    Haters: os grupos paramilitares virtuais do início do século XXI

    Haters: os grupos paramilitares virtuais
    do início do século XXI

    Por Rodolfo Vianna*

         A dimensão virtual já é parte constitutiva da vida social de qualquer pessoa. Um perfil em rede social é uma importante ferramenta de lazer, de instrução, profissional etc. Promover e incentivar um “linchamento virtual”, forçando determinada pessoa a excluir de sua vida esta dimensão cada vez mais presente e necessária na contemporaneidade, é um ato de violência e que deve ser rechaçado de pronto, sem titubeio, incluindo o acionamento da esfera jurídica para que seus protagonistas respondam por isso: tanto aqueles que objetivamente o fazem quanto aqueles que o incentivam.

         A presença de “haters” no mundo virtual não é um fenômeno novo, pessoas que, protegidas ou não pelo anonimato, destilam ódio, preconceito e ameaças pela internet. Entretanto, os casos mais recentes permitem caracterizar este fenômeno sob um novo ângulo, uma vez que sua manifestação ganha espaço na esfera pública e no agendamento das pautas políticas. Os “haters”, massa mais ou menos amorfa, mais ou menos organizada, coadunam-se sob certas bandeiras ideológicas e, assim, necessitam serem entendidos atualmente como um novo agente político no cenário brasileiro. Ignorar esta nova dimensão é um grande e perigoso equívoco.

         A perseguição, o amedrontamento e a agressão tampouco são ferramentas novas na política. Entretanto, a força de sua presença na esfera pública sempre foi inversamente proporcional à força da democracia vivenciada. Não raro, foi prenúncio de tempos sombrios do império do arbítrio e do totalitarismo. Enquanto agentes políticos, os “camisas negras” na Itália foram o aríete e a pavimentação do caminho de ascensão de Benito Mussolini na Itália dos anos 1920. Os “camisas pardas”, ou SA, cumpriram os mesmo papel, no mesmo período, para a ascensão de Hitler na Alemanha, como exemplos.

         Estes grupos paramilitares eram formados majoritariamente por jovens movidos pela descrença na política institucional então vigente, indignados com a falta de “ordem”, conservadores no plano moral e dos costumes, patriotas exaltados e ávidos pelo resgate de um mítico orgulho nacional. Paranoicos, viam por todos os lados ameaças aos valores que julgavam serem caros a qualquer “cidadão de bem”, alarmados com o que consideravam ser o estado de degeneração em que se encontrava a sociedade, além de apontar inimigos “externos” que ameaçariam à unidade da nação: anarquistas, comunistas, judeus, ciganos, homossexuais etc. Tudo dentro de um contexto de acentuada crise econômica que minava expectativas positivas sobre o futuro se nada fosse feito.

         Em que pese a existência de uma organização formal, o método de ação destes grupos na maioria das vezes era espontaneísta e pulverizado: respondendo a algum estímulo, alvoroçavam-se contra artistas, intelectuais, sindicatos (e sindicalistas), partidos políticos (e militantes), jornais (e jornalistas) ou qualquer coisa que julgavam ser uma ameaça à sua crença moral e política, usando da intimidação, humilhação pública e violência. A principal função era a de criar distúrbios, demonstrar força e silenciar os contrários. Cachorros loucos, cresceram exponencialmente nos anos de 1920 e 30, sob o estímulo de determinadas lideranças e, importante frisar, sob a cumplicidade silenciosa de outros atores políticos que viam neles oportunas ferramentas de ataque aos seus inimigos comuns. O que se sucedeu já é sabido.

     

    Do início do século XX ao início do século XXI

         Durante a campanha eleitoral de 20141, “haters” já estavam nas ruas e não foram raros os relatos de agressões verbais e físicas. Expressões de determinada posição política eram rechaçadas com violência. Tornou-se tenso sair à rua com camiseta ou boné de determinado partido político ou movimento social; pior, tornou-se tenso até mesmo trajar uma cor, o vermelho. Um clima de insegurança e amedrontamento já estava instaurado, e aquele conselho que jamais se esperaria ouvir numa democracia lhe era dado por pessoas que queriam o seu bem: “não se vista assim, não use esse broche, não fale isso… cuidado”.

         Alguns entenderam esse fenômeno como consequência da polarização política expressa naquela eleição, mas isso por si só não é suficiente. Não foi a primeira eleição polarizada na história recente do país, tampouco o primeiro embate acirrado entre aqueles dois partidos (PTxPSDB). A polarização, portanto, não era inédita: mas o clima de agressividade, violência e amedrontamento derivado de um posicionamento político, sim.

         Terminada a eleição, derrotado nas urnas o candidato de oposição (PSDB), o arrefecimento previsível derivado da ausência da disputa eleitoral não se deu. O discurso de ódio continuava sendo propagado abertamente por comentaristas políticos em grandes veículos de comunicação. A teia de boataria, já amplamente utilizada no período eleitoral, ampliava-se em redes sociais e meios eletrônicos de comunicação (vale lembrar que o boato tampouco é novidade na disputa política). Organizações novas, percebendo a potencialidade da arena política virtual, fortaleceram-se e protagonizaram as maiores manifestações de rua da história recente do país exigindo o “impeachment” da presidenta recém-eleita.

         O processo de “impeachment”, entre aspas por ter sido um golpe parlamentar, não é o objeto deste artigo, e por isso não se fará uma análise mais detalhada dos movimentos das forças políticas que o promoveram. Entretanto, cabe ressaltar três coisas: 1) A existência crescente dos “haters” na arena política (tanto virtual quanto material); 2) O fomento ao seu crescimento por novos agrupamentos políticos (MBL, Vem pra rua e afins), e 3) A cumplicidade de agentes políticos tradicionais que buscavam instrumentalizá-los para o alcance de seus objetivos estratégicos (o impeachment e a aniquilação de qualquer organização entendida como de “esquerda”).

     

    A moral, os bons costumes e os esquerdistas

         Passado o processo de “impeachment” e assumindo o presidente Michel Temer, a fachada farsesca da bandeira do “combate à corrupção” ruiu pela dureza dos fatos concretos que se sucederam, explicitando o real caráter das grandes manifestações pelo processo de impeachment, a saber, um “anti-petismo” e um inconformismo com a derrota eleitoral. Se não era mais plausível trabalhar somente na caracterização da esquerda como corrupta, como operado no processo pré-impeachment, o discurso mobilizador de ódio deu mais peso às chamadas pautas “morais”: ameaça à família, à educação, à infância e juventude, a Deus, etc.

         Assim, resgatou-se o velho discurso da esquerda como corruptora da “sociedade” e de seus “valores” pétreos. A luta do movimento feminista de denúncia da condição subalterna da mulher na nossa sociedade é tachada como sendo “histérica” (adjetivo mais do que sintomático); a luta do movimento LGBT de denúncia da violência que sofre e por igualdade de direitos é tachada como sendo a de “busca por privilégios e destruidora da família tradicional”; a luta pelo ensino de valores mínimos como tolerância, respeito e convivência é alardeada como “doutrinação” (e até a educação sexual como sendo “sexualização precoce”); artistas e suas obras tornam-se “degenerados”, a denúncia de discurso de ódio de certos segmentos religiosos evangélicos viram “cristofobia” e a luta pela defesa dos Direitos Humanos é encarada como sendo a de proteção do bandido em detrimento do “cidadão de bem”. A estas inversões, permanece e amplia-se o recorrente discurso de tratar os movimentos sociais populares como organizações oportunistas e compostas por “vagabundos” e “criminosos”.

         Propositalmente, todas estas pautas são agrupadas ideologicamente como sendo oriundas dos “esquerdistas”, termo genérico e pejorativo que denota aqueles cujas reivindicações são tomadas como destruidoras dos valores morais vigentes e, ainda, uma ameaça à mítica unidade nacional: não à toa, o velho recurso do embate entre o “verde e amarelo”, cores da Bandeira Nacional, e o “vermelho”, cor de alguns partidos e movimentos sociais, é estimulado. Assim, o elemento ideológico do “nacionalismo” é ativado, ainda que farsescamente. Mas, novamente, nenhuma novidade: todo nacionalismo tem por base o farsesco, e eleger determinado grupo como o grande inimigo da nação também não é de hoje. Entretanto, é justamente nesta falta de novidade que mora o perigo desses novos agentes políticos que são os haters do início do século XXI.

     

    Dos métodos

         Retomando o início deste texto, a dimensão virtual já é parte constitutiva da vida social do indivíduo contemporâneo, assim também como parte importante da atividade econômica de estabelecimentos comerciais e de informação. Feita a constatação, as perguntas: o que difere o linchamento em um perfil de rede social da execração em praça pública? Da intimidação virtual e consequente exclusão de um perfil da privação de liberdade e do medo de sair à rua? O massivo ataque calunioso a determinado estabelecimento de uma pichação de parede ofensiva ou quebra de vidraças? A “derrubada” de uma página on-line do empastelamento de um veículo de comunicação? O que há é a manifestação da mesma e conhecida tríade “perseguição, intimidação e violência”, só que agora na esfera pública virtual, inexistente no início do século XX porém ubíqua neste início de século XXI.

         Recentemente, porém, um evento foi emblemático: o encerramento precoce de uma exposição de arte devido às pressões destes grupos. No mês de setembro de 2017, o Santander Cultural de Porto Alegre encerrou um mês antes do previsto a exposição “Queermuseu – cartografia da diferença na arte brasileira” após pressão de grupos religiosos e do movimento MBL, sob infundadas (e absurdas) alegações de estímulo à pedofilia e à zoofilia que circularam pela internet. O recuo do Santander Cultural, encerrando a exposição e emitindo ainda uma nota bastante condenscendente com os inverídicos argumentos dos ataques sofridos, foi uma infeliz sinalização. Estes grupos conseguiram um resultado concreto: forçaram uma instituição cultural a se auto-censurar. O Rubicão2 fora atravessado.

         Protestos semelhantes ocorreram após o alardeamento de um factóide envolvendo uma performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), culminando com um ato em frente à instituição com ameaças de ocupação e resultando na agressão física a uma funcionária. Mais recentemente, a perseguição foi contra a filósofa americana Judith Butler, com movimentações que visavam inviabilizar as conferências que faria no país.

         Outro caso que merece destaque foi a demissão de um jornalista pela Folha de S.Paulo (um dos maiores e mais importantes jornais do país) após uma onda de ataques sofrida por ele ter criticado o filme de Danilo Gentilli. Usando seu perfil do twitter, com quase 16 milhões de seguidores, Gentilli replicou a crítica negativa com os dizeres: “para enquadrar”. O termo em si já reflete o arbítrio e a violência. Segundo levantamento parcial realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), mais da metade das denúncias feitas por jornalistas e recebidas formalmente pela entidade no ano de 2017 relatam ameaças vindas do MBL3.

         Não se aprofundando sobre as diversas e cada vez mais recorrentes manifestações similares, o que vale salientar é justamente a constatação do método: não se trata de criticar, expor a diferença e/ou o posicionamento contrário a algo (ainda que derivados de falta de informação, mentiras ou crenças religiosas particulares), posturas necessárias e que cabem num regime democrático. O que se dá nessas ações, por suas vez, é a tentativa de silenciamento do contrário mediante a perseguição, intimidação e violência. E isso não cabe numa democracia e nem pode ser tolerado.

         São essas manifestações que dão sustentação a projetos de lei que avançam nas diversas esferas legislativas. Movidos por identificação com as reivindicações ou por mero oportunismo eleitoral, parlamentares apresentam (ou aprovam) propostas cujo espírito antidemocrático e mesmo antirrepublicano são explícitos. Como exemplo maior, o “Escola sem partido”, projeto de patrulhamento ideológico e de imposição de temário específico no escopo da Educação: sob o discurso do combate à suposta doutrinação nas escolas, implementa-se a censura e o controle ideológico de conteúdo.

         As enormes labaredas consumindo uma pilha de livros considerados “degenerados” e “subversivos”, em cerimônias realizadas na Alemanha nazista em 19334, tornaram-se prenúncio dos tempos que viriam. Ainda em 1823, século XIX, o poeta alemão Heirinch Heine escrevera: “onde se queimam livros, acaba-se por queimar pessoas no final”5. Heine era judeu.

         No ato do dia 07/11 em frente ao SESC Pompeia, em São Paulo, um boneco representando a filósofa Judith Butler fantasiada de bruxa foi queimado pelos que queriam impedir a realização da sua conferência no local. Para além desse emblemático gesto, a instituição recebeu forte pressão destes grupos – e de políticos ameaçando corte de repasse de verbas – para que sua palestra fosse cancelada. A instituição SESC, diferentemente do Santander Cultural, não cedeu e o evento ocorreu. A filósofa iniciou sua conferência agradecendo a posição do SESC.

     

    Considerações finais

         Em que pese as diferenças, as semelhanças já são assustadoramente grandes para compreender a motivação e a ação desses grupos de haters em analogia as dos grupos paramilitares fascistas do início do século XX. Esta caracterização se faz importante por dois motivos: 1) identificar o fenômeno em sua dimensão política e, consequentemente, 2) combater o fenômeno em sua dimensão política.

         Há de se perder, de uma vez por todas, um certo olhar complacente para com eles motivado muitas vezes pelo caráter exdrúxulo, caricatural e profundamente ignorante de algumas de suas lideranças e, em maior escala, de seus membros. Não há mais espaço para riso quando alguém difunde um vídeo “comprovando” o projeto de dominação comunista ao confundir uma alegoria com a bandeira brasileira e a japonesa dentro do Congresso Nacional, tampouco desdenhar por ser absurdo quando propagam que há uma conspiração internacional em marcha para destruir os valores “basilares” da sociedade, incluindo a “família” e a “natureza humana”, com participação ativa da Unicef. A História já demonstrou que não é por ser insano que um argumento deixa de conquistar corações e mentes na política.

         Outra medida urgente é denunciar e combater a postura de muitos políticos tradicionais que flertam com estes grupos movidos por oportunismo político e eleitoral, vendo neles alguma utilidade particular ao seu projeto pessoal. A estes, somam-se aqueles que, se não flertam abertamente, silenciam-se frente às suas práticas e ações pelos mesmos motivos. Novamente a História já demonstrou o peso da omissão em determinadas conjunturas. O que está em jogo aqui não é o resultado da partida, mas as suas próprias regras. E por isso que cabe também uma cobrança sistemática dos grandes veículos de comunicação para não terem postura que possa parecer cúmplice. Vale lembrar como agravante que hoje a segunda maior emissora de televisão do país já é de um agrupamento evangélico com claro projeto político.

         Às possíveis críticas que este texto possa receber apontando um superdimensionamento do tamanho e influência destes grupos, ou mesmo o quanto de atenção dada a eles só os fazem aumentar, há uma resposta prática: dada a potencialidade destrutiva deste fenômeno, superdimensioná-lo em seu combate é antes de tudo necessária prudência política, talvez mesmo urgência histórica. E sobre o ponto da atenção e consequente propaganda a eles, há de reiterar o quanto a omissão historicamente já se demonstrou potencializadora de barbáries. Vale lembrar, retomando a analogia aqui colocada entre os “haters” e os grupos paramilitares fascistas do início do século XX, que estes últimos também eram minoritários no conjunto da sociedade e, no princípio, tratados com desdém dado a seu caráter folclórico e “descolado da realidade”6.

         Cabe ainda uma reflexão que merece um aprofundamento posterior, mas que já deve ser lançada. As então novas tecnologias de comunicação foram intensamente utilizadas pelos grupos nazi-fascistas do início do século XX. Cabe perguntar-se até mesmo se sem a existência do rádio e do audiovisual, poderiam estes movimentos crescerem e se tornarem regimes políticos. Assim, a pergunta provocativa: será que a consolidação desta nossa nova tecnologia neste início de século XXI, a internet, também não pode passar a ser a possibilitadora de um neomovimento fascista e a consequência de um neoregime fascista? Reparem: o prefixo neo está nas palavras “movimento” e “regime”, e não no adjetivo “fascista”. Ou seja, o “novo” está na forma, e não na caracterização.

         Por fim, cabe trazer a etimologia da palavra “virtual”. A palavra deriva do radical latino “virtus”, que significa “força” ou “potência”. Assim, uma acepção de virtual é aquela que toma alguma coisa como detentora de força ou que carrega em si a potência de existir. “Virtual”, portanto, não é sinônimo de “irreal”, “inexistente”: virtual é aquilo que carrega em si a possibilidade/potencialidade de se tornar real ou até mesmo a de se equivaler ao real. Enxergar o “virtual” como “irreal” é um perigoso equívoco metodológico que pode levar a análises e diagnósticos, estes sim, completamente descolados da realidade. É com esse entendimento da palavra que deriva a compreensão dos haters como sendo os grupos paramilitares virtuais do início do século XXI.

         A História, em sua dinâmica, é permeada de fenômenos “neovelhos”. Antes de serem uma contradição, são resultados das condições históricas de cada período (sociais, econômicas, culturais e tecnológicas). Dada a experiência vivida pelos regimes totalitários de meados do século XX, e sua magnitude destruidora e trágica, cabe como dever histórico de qualquer humanista a luta para que a História não se repita, nem mesmo como farsa.

    * Rodolfo Vianna, 32, é jornalista, doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Filiado ao PSOL, é assessor de comunicação da Fundação Lauro Campos.

    1Ainda em 2013, dentro do que ficou conhecido como “jornadas de junho”, ao menos na cidade de São Paulo já havia a presença desta turba intimidatória contra militantes de determinados partidos ou ideologias. No ato comemorativo à redução da tarifa de ônibus (bandeira que deflagrou as manifestações), em 20/06/13, militantes identificados como de esquerda foram agredidos física e verbalmente por outros manifestantes “apartidários”.

    2Durante a antiga República Romana, havia uma lei promulgada pelo Senado que proibia a qualquer general que atravessasse o rio Rubicão (ao noroeste de Roma) com suas tropas, justamente para evitar qualquer ameaça à República por meio do uso da força militar. Júlio César atravessou o Rubicão em 49 a.C., desencadeando uma guerra civil e, posteriormente, a instauração do Império Romano. César teria dito, neste momento, outra famosa expressão: “alea jacta est” ou “a sorte está lançada”. A expressão “atravessar o Rubicão”, portanto, passou a significar a realização de um passo ousado e com grandes consequências, sem retorno.

    4Em 6 de abril de 1933, a Associação Nazista Estudantil Alemã divulgou nacionalmente um “Ato contra o Espírito Não Germânico”, o qual culminou em uma “ “depuração“ ou “limpeza” literária pelo fogo. Em um ato simbólico de envergadura profética, em 10 de maio de 1933 os estudantes universitários atearam fogo em mais de 25.000 livros por eles considerados “não alemães”, pressagiando uma era de censura política e de controle cultural nazista sobre toda a população. Naquela noite, estudantes em trinta e quatro cidades universitárias na Alemanha marcharam à luz de tochas em desfiles organizados para protestar “contra o espírito não alemão”. Muitos faziam parte das SA hitleristas. (fonte: Museu do Holocausto de Washington https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=10007978)

    5dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen” (No livro Tragödien: nebst einem lyrischen Intermezzo – Tragédias: além de um intermezzo lírico – 1823).

    6Em 1923, Hitler tenta um mal fadado golpe para tomar o poder na Baviera. É preso. Em 10 anos, assume o poder pela via democrática.

  • O dia depois do referendo curdo no Iraque

    O dia depois do referendo curdo no Iraque

    por Thomas Cantaloube *

    Contra todo prognóstico, ou melhor contra todos, os curdos iraquianos levaram a cabo sua consulta na segunda-feira, 25 de setembro de 2017.. Não é um referendo sobre a independência em si, mas um referendo sobre a perspectiva da independência, o que não é exatamente o mesmo, ainda que o matiz não seja suficiente para apaziguar os vizinhos de um hipotético Curdistão futuro.

    Se bem que os resultados não se conhecem ainda quando se escreve este artigo (na noite da terça-feira, 26), não há muitas dúvidas. Segundo estimativas oficiais, 72% dos eleitores registrados compareceram às urnas, o que sem representar uma participação massiva, demonstra o apoio de uma grande maioria dos curdos iraquianos aos projetos de independência encabeçados pelo presidente do Governo regional Massoud Barzani e seu partido, o PDK. É significativo que no feudo de seus oponentes o grande partido rival, o PUK, ao redor da cidade de Sulamaniyah, a participação foi muito mais baixa, geralmente abaixo dos 50%.

    Entretanto, ninguém considera que a resposta à pergunta “Deseja que a região do Curdistão e das zonas curdas fora da região se convertam em um país independente?” possa ser negativa. Porque para muitos curdos, “o maior povo sem estado”, como se costuma dizer, esta votação poderia ter uma ressonância histórica.

    O primeiro-ministro da região, Nechirvan Barzani (sobrinho de Massoud), entretanto, esforçou-se por assegurar a todos os que veem a perspectiva da independência com receio que “o referendo não significa que a independência seja para amanhã ou se vão modificar as fronteiras. Se o voto é afirmativo, vamos resolver nossos problemas com Bagdá em paz”. Os países vizinhos e as grandes potências temem principalmente duas coisas de um desmantelamento do Império Otomano há um século (que todo o mundo está de acordo em que são inadequadas).

    Até o dia da votação, os principais aliados do Curdistão Iraquiano (Estados Unidos sobretudo, mas também a UE) e os países vizinhos, cada um com uma grande população curda, solicitaram a anulação ou o adiamento da consulta. Uma pequena parte dos próprios curdos também defendeu a consigna “Não agora”, para enfatizar que era inútil e precipitada. Mas Massoud Barzani negou-se a suspendê-la, pelo que se abriu um período incerto para o Curdistão e por toda a região, onde as fronteiras e os conflitos no Iraque, Irã, Síria e Turquia cruzam-se como placas tectônicas.

    Para realçar seu descontentamento, o Irã suspendeu seus voos aéreos entre Teerã e o Curdistão, fechando sua fronteira, a pedidos de Bagdá. Na escala das sanções esta é a decisão mais dura. O Parlamento iraquiano, por sua vez, votou uma resolução pedindo para o governo enviar o exército às zonas controladas pelos curdos (ou seja, principalmente à disputada região petroleira de Kirkuk) e recuperar o controle dos postos fronteiriços atualmente em mãos curdas. Em teoria, a Constituição iraquiana requer que o primeiro-ministro cumpra com este mandato parlamentar, mas se faz isso, equivalerá a uma declaração de guerra (civil). Para não falar que o exército iraquiano está ainda ocupado na luta contra os restos do Estado Islâmico.

    No lado turco, o presidente Recep Tayyip Erdogan tampouco encarou bem a consulta. Depois de dar a entender que “nossas tropas bem poderiam chegar durante a noite (ao Curdistão)”, fustigou o ministro da Fazenda do governo regional do Curdistão iraquiano, literalmente, esfregando as mãos: “Ainda veremos através de que canais e onde vão vender seu petróleo. As válvulas são nossas. Se as fechamos, acabou-se…”. Sabendo que o petróleo e o gás são o principal recurso do Curdistão, que exporta cerca de 90% de sua produção (600.000 bpd) através da Turquia, a ameaça de cortar o fluxo é grave. Sobretudo porque estas exportações são parcialmente ilegais (as rendas deveriam ir para a Fazenda federal iraquiana), e também porque provêm da região de Kirkuk, que não pertence oficialmente ao governo regional curdo.

    Entretanto, esta ameaça da Turquia não pode ser considerada definitiva. Ancara não só se beneficia economicamente destas exportações, mas que pode fazê-lo ainda mais, graças a um contrato assinado entre o Curdistão e a empresa russa Rosnef para construir um gasoduto através da Turquia para levar o ‘gás curdo’ a Europa. “As advertências de Erdogan são antes de tudo uma forma de marcar seu território, em particular em relação a sua própria população curda, para mostrar que não é preciso pedir demasiado e menos rapidamente a independente”, disse sob condição de anonimato um diplomata europeu em relação com os curdos. “Entretanto, no fundo, Erdogan tem boas relações com o Curdistão iraquiano”.

    O conflito com Bagdá é mais difícil de resolver, porque incubou-se durante muito mais tempo. Muitos observadores pensaram nos últimos meses que a convocatória do referendo sobre a independência buscava melhorar a correlação de forças curda mas complicadas negociações com o governo central (sobre os temas orçamentários, pagamento dos funcionários públicos, o estatuto de Kirkuk, etc). Mas como Bagdá não fez nenhuma concessão, a consulta teve lugar finalmente, o que agrava as tensões de ambos os lados. Isso não quer dizer que não tenha nada que negociar.

    “Massoud Barzani conseguiu seu objetivo: situar o Curdistão iraquiano no caminho da independência e assegurar o prestígio subsequente, observa o diplomático consultado. Mas não tem interesse em que seu país seja assediado e sangrado financeiramente, como ameaçam seus vizinhos nas próximas semanas e meses. Será necessário negociar com Bagdá e dar garantias a seus vizinhos”. O primeiro passo, já anunciado há muito tempo, é não declarar a independência de imediato ou inclusive rapidamente. O Governo Regional do Curdistão não tem nenhum interesse de anunciar uma data, mais ou menos distante e difusa, em vários anos.

    Barzani quer buscar um compromisso com Bagdá. Com a promessa de não voar por sua conta imediatamente, retomando as conversas de verdade sobre Kirkuk (Curdistão ou não?), as rendas da venda de petróleo ou o papel dos peshmerga (a milícia curda), Barzani poderia obter importantes concessões por parte do governo central iraquiano. Este último, que ainda está se recuperando da desestabilização e da guerra provocada pelo Estado Islâmico não quer abrir uma nova frente nem fomentar novas divisões complicadas num país que está unido com alfinetes.

    Um acordo com Bagdá permitiria a Barzani demonstrar que não pode ser marginalizado e que sua decisão de convocar a consulta foi correta. Porque além das questões geopolíticas ligadas ao escrutínio de 25 de setembro, sua dimensão política interna não é insignificante. A família Barzani está acusada de corrupção e nepotismo, e o prestígio associado com o êxito do referendo traz a possibilidade de que permaneça no poder. Especialmente porque em 1 de novembro, haverá eleições parlamentares e presidenciais na região do Curdistão (que foram adiadas vários anos).

    Se Barzani não joga o apaziguamento com Bagdá e seus vizinhos daqui até lá e as coisas se complicam, corre o risco de perder as eleições. Se, pelo contrário, mostra que a perspectiva de um Curdistão independente, por remota que seja, é aceita, é provável que seja o vencedor ou inclusive que possa voltar a adiá-las sem demasiado dano…

     * Thomas Cantaloube é jornalista especializado em temas de Oriente Médio da Medyapart.

    Fuente: Medyapart, 27 de setembro 2017 (Traduzido para o português por Charles Rosa, do Observatório Internacional da FLC)

  • Um país um pouco mais tranquilo

    Um país um pouco mais tranquilo

    por Francisco Louçã *

     

       Teve razão Jerónimo de Sousa quando, no domingo de manhã, sugeriu cuidado com as leituras nacionais das autárquicas. Se as eleições, todas, medem as temperaturas e as relações de forças, cada uma fá-lo na medida das suas particularidades: nas autarquias, medem-se poderes e forças locais, que importam aos cidadãos, aos partidos e ao futuro imediato. Oito notas então sobre essas temperaturas.

      Primeiro, abstenção reduzida, bom sinal, mas ainda demasiada e sempre muitas lágrimas de crocodilo. Ora, nem os cadernos eleitorais estão actualizados, e portanto sobrevalorizam a abstenção, nem o sistema político tem sabido criar a confiança e mobilização que a democracia exige.

       Segundo, derrota de alguns candidatos populistas (Valentim, Narciso), mas vitória de Isaltino. Aqui, tudo como se esperava. A experiência de extrema-direita do PSD em Loures termina em fiasco, como antecipei, além de que a queda do PSD a nível nacional arrasta todas as suas candidaturas – ou seja, ainda vamos ter mais ensaios André Ventura no futuro, pois a direita radicaliza-se na exasperação.

       Terceiro, o PSD afunda-se e o PS ganha. Em Lisboa e Porto o PSD ronda os 10%, enquanto o PS reforça a sua maioria autárquica. Para Passos Coelho é um desafio difícil, foi ele quem escolheu os candidatos e quem pensou que comoveria o país arrastando o seu despeito por ter sido derrotado.

       Quarto, Moreira ganha no Porto, apesar de prejudicado pela sua pose sobranceira. Fica um problema: as duas sondagens sucessivas da Universidade Católica estavam completamente fora da margem de erro e, sendo um estímulo óbvio à campanha do PS, ficam sob suspeita. Lembro-me de casos parecidos, nenhum tão grotesco.

       Quinto, o CDS ganha ao PSD em Lisboa e era isso que importava a Assunção Cristas. Assim, ajuda-se a si própria e ajuda o centro e a esquerda: ficou queimado o barco da coligação das direitas em 2019.

       Sexto, o PCP segura a sua presença autárquica com maioria em regiões importantes. Era importante para confirmar a sua orientação e para o seu trabalho de implantação.

       Sétimo, o Bloco sobe em todo o país, ganha onde mais precisava de ganhar, elegendo mais vereadores em Lisboa e outras cidades onde passa a ser determinante para as escolhas locais. De notar que em Lisboa arriscou-se com um candidato pouco conhecido mas que se mostrou seguro e mobilizador. Se há uma lição para o partido, é que se reforça ampliando-se e renovando-se.

       Oitavo, agora a vida muda em muitas câmaras. Medina tem de se entender com a esquerda, mesmo ganhando confortavelmente, e a negociação vai ser difícil. O PCP deverá fazer alianças à esquerda em várias câmaras. E o Bloco tem de organizar um trabalho sistemático no poder local, porque a partir de agora disputará a maioria em várias câmaras. Se, no conjunto, a confluência maioritária PS-BE-PCP fica reforçada perante a derrota da direita, também é certo que vai ter muito trabalho, que exige muita negociação e criará tensão. É a vida, como dizia um antigo primeiro-ministro, e ainda bem.

     * Franciso Louçã é economista e político português

     

    (Texto originalmente publicado em https://www.publico.pt/2017/10/02/politica/opiniao/um-pais-um-pouco-mais-tranquilo-1787332)

  • Em defesa da autodeterminação da Catalunha

    Em defesa da autodeterminação da Catalunha

        por Juliano Medeiros*

     

        Apesar de parecer um palavrão, o conceito de “autodeterminação” não tem nada de complicado. Basicamente representa o direito de um povo de definir livremente o estatuto político no qual quer viver. Apesar de simples, a ideia sempre assustou o status quo. Basta lembrar das lutas de descolonização na África, da guerra dos Balcãs, da histórica luta de irlandeses, escoceses, curdos, palestinos, bascos, sarahuís… Isso para não mencionar as lutas de libertação na América nos séculos XVIII e XIX. Quem detém o controle sobre um território ou população raramente aceita pacificamente a autodeterminação como um direito.

     

        No próximo dia 1º de outubro a Europa viverá mais um episódio do conflito pela autodeterminação de uma nacionalidade. Os catalães e as catalãs irão às urnas para uma definição histórica: manter a região integrada ao reino da Espanha ou declarar sua independência. O referendo convocado para este domingo só foi possível graças à formação de um governo francamente pró-independência nas eleições de setembro de 2015. Juntos, os partidos independentistas reunidos na coalização “Juntos pelo Sim” firmaram o compromisso de convocar um plebiscito e submeter à soberania popular a decisão de tornar a Catalunha uma nação independente.

     

        A situação é inédita para a União Europeia. Em comunicado, o organismo pediu que a Catalunha respeitasse a decisão do Tribunal Constitucional da Espanha que decretou a ilegalidade do plebiscito e advertiu que só reconhecerá o resultado de qualquer consulta se ela for feita dentro da “legalidade”. O problema, porém, é que os tribunais não são imparciais.

     

        Por sua vez, a Generalitat (governo autônomo da Catalunha) já tem definido o mecanismo para viabilizar a separação imediata da Catalunha do restante da Espanha caso o governo conservador de Mariano Rajoy consiga impedir a realização do plebiscito sobre a independência. Segundo o jornal El País a chamada “Lei de Transição Jurídica”, conhecida como lei da ruptura pretende funcionar como uma constituição provisória catalã pelo prazo de dois meses, até que o parlamento regional promova um processo constituinte que desembocaria na República Parlamentar da Catalunha.

     

        A tensão aumentou nos últimos dias, com gigantescos protestos a favor e contra a separação da Catalunha. Em Barcelona e outras cidades os partidos e movimentos independentistas ampliaram o apoio popular ao referendo. Na Espanha, por sua vez, começaram a surgir protestos contrários à divisão, em geral promovidos por forças nacionalistas conservadoras.

     

        A polícia catalã, por sua vez, informou que não cumprirá a determinação da Fiscalía (equivalente ao Ministério Público) para reprimir o referendo no próximo domingo. Como reação, o governo espanhol enviou milhares de soldados da Guarda Civil e da Polícia Nacional, o que tende a aumentar a tensão. Na semana passada a mesma Guarda Civil prendeu Josep Maria Jové, considerado o braço direito do vice-presidente da Catalunha, o independentista Oriol Junqueras. Além dele outras 14 lideranças independentistas também foram detidas em represália do governo de Madri ao referendo.

     

        Para escapar das medidas repressivas do governo espanhol, a “Sindicatura Electoral”, uma espécie de Comissão Eleitoral temporária estabelecida apenas para o plebiscito, teve de se autodissolver para evitar represálias por parte das autoridades de Madri.

     

        As pesquisas demonstram que há uma importante divisão dentro da própria Catalunha. Embora o movimento pela independência demonstre muita força em atos de rua e nas declarações das lideranças políticas catalãs, a verdade é que diversas pesquisas demonstram que o tema divide opiniões. Mais uma razão pela qual a consulta se torna tão relevante: demonstrar se o sentimento pró-independência é tão majoritário quanto parece.

     

        No entanto, o governo conservador de Rajoy já afirmou que não aceitará o resultado e lutará com todas as armas a seu alcance – o que pressupõe a violência – para manter a Catalunha subordinada à Espanha. Assim como ocorreu recentemente na Escócia, não cabe outra posição à esquerda que não o apoio incondicional à autodeterminação do povo catalão, qualquer que seja sua decisão. Viva a Catalunha! Viva a decisão soberana de seu povo!

     

    * Presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL, esteve na Catalunha em julho de 2017.