Haters: os grupos paramilitares virtuais
do início do século XXI
Por Rodolfo Vianna*
A dimensão virtual já é parte constitutiva da vida social de qualquer pessoa. Um perfil em rede social é uma importante ferramenta de lazer, de instrução, profissional etc. Promover e incentivar um “linchamento virtual”, forçando determinada pessoa a excluir de sua vida esta dimensão cada vez mais presente e necessária na contemporaneidade, é um ato de violência e que deve ser rechaçado de pronto, sem titubeio, incluindo o acionamento da esfera jurídica para que seus protagonistas respondam por isso: tanto aqueles que objetivamente o fazem quanto aqueles que o incentivam.
A presença de “haters” no mundo virtual não é um fenômeno novo, pessoas que, protegidas ou não pelo anonimato, destilam ódio, preconceito e ameaças pela internet. Entretanto, os casos mais recentes permitem caracterizar este fenômeno sob um novo ângulo, uma vez que sua manifestação ganha espaço na esfera pública e no agendamento das pautas políticas. Os “haters”, massa mais ou menos amorfa, mais ou menos organizada, coadunam-se sob certas bandeiras ideológicas e, assim, necessitam serem entendidos atualmente como um novo agente político no cenário brasileiro. Ignorar esta nova dimensão é um grande e perigoso equívoco.
A perseguição, o amedrontamento e a agressão tampouco são ferramentas novas na política. Entretanto, a força de sua presença na esfera pública sempre foi inversamente proporcional à força da democracia vivenciada. Não raro, foi prenúncio de tempos sombrios do império do arbítrio e do totalitarismo. Enquanto agentes políticos, os “camisas negras” na Itália foram o aríete e a pavimentação do caminho de ascensão de Benito Mussolini na Itália dos anos 1920. Os “camisas pardas”, ou SA, cumpriram os mesmo papel, no mesmo período, para a ascensão de Hitler na Alemanha, como exemplos.
Estes grupos paramilitares eram formados majoritariamente por jovens movidos pela descrença na política institucional então vigente, indignados com a falta de “ordem”, conservadores no plano moral e dos costumes, patriotas exaltados e ávidos pelo resgate de um mítico orgulho nacional. Paranoicos, viam por todos os lados ameaças aos valores que julgavam serem caros a qualquer “cidadão de bem”, alarmados com o que consideravam ser o estado de degeneração em que se encontrava a sociedade, além de apontar inimigos “externos” que ameaçariam à unidade da nação: anarquistas, comunistas, judeus, ciganos, homossexuais etc. Tudo dentro de um contexto de acentuada crise econômica que minava expectativas positivas sobre o futuro se nada fosse feito.
Em que pese a existência de uma organização formal, o método de ação destes grupos na maioria das vezes era espontaneísta e pulverizado: respondendo a algum estímulo, alvoroçavam-se contra artistas, intelectuais, sindicatos (e sindicalistas), partidos políticos (e militantes), jornais (e jornalistas) ou qualquer coisa que julgavam ser uma ameaça à sua crença moral e política, usando da intimidação, humilhação pública e violência. A principal função era a de criar distúrbios, demonstrar força e silenciar os contrários. Cachorros loucos, cresceram exponencialmente nos anos de 1920 e 30, sob o estímulo de determinadas lideranças e, importante frisar, sob a cumplicidade silenciosa de outros atores políticos que viam neles oportunas ferramentas de ataque aos seus inimigos comuns. O que se sucedeu já é sabido.
Do início do século XX ao início do século XXI
Durante a campanha eleitoral de 2014, “haters” já estavam nas ruas e não foram raros os relatos de agressões verbais e físicas. Expressões de determinada posição política eram rechaçadas com violência. Tornou-se tenso sair à rua com camiseta ou boné de determinado partido político ou movimento social; pior, tornou-se tenso até mesmo trajar uma cor, o vermelho. Um clima de insegurança e amedrontamento já estava instaurado, e aquele conselho que jamais se esperaria ouvir numa democracia lhe era dado por pessoas que queriam o seu bem: “não se vista assim, não use esse broche, não fale isso… cuidado”.
Alguns entenderam esse fenômeno como consequência da polarização política expressa naquela eleição, mas isso por si só não é suficiente. Não foi a primeira eleição polarizada na história recente do país, tampouco o primeiro embate acirrado entre aqueles dois partidos (PTxPSDB). A polarização, portanto, não era inédita: mas o clima de agressividade, violência e amedrontamento derivado de um posicionamento político, sim.
Terminada a eleição, derrotado nas urnas o candidato de oposição (PSDB), o arrefecimento previsível derivado da ausência da disputa eleitoral não se deu. O discurso de ódio continuava sendo propagado abertamente por comentaristas políticos em grandes veículos de comunicação. A teia de boataria, já amplamente utilizada no período eleitoral, ampliava-se em redes sociais e meios eletrônicos de comunicação (vale lembrar que o boato tampouco é novidade na disputa política). Organizações novas, percebendo a potencialidade da arena política virtual, fortaleceram-se e protagonizaram as maiores manifestações de rua da história recente do país exigindo o “impeachment” da presidenta recém-eleita.
O processo de “impeachment”, entre aspas por ter sido um golpe parlamentar, não é o objeto deste artigo, e por isso não se fará uma análise mais detalhada dos movimentos das forças políticas que o promoveram. Entretanto, cabe ressaltar três coisas: 1) A existência crescente dos “haters” na arena política (tanto virtual quanto material); 2) O fomento ao seu crescimento por novos agrupamentos políticos (MBL, Vem pra rua e afins), e 3) A cumplicidade de agentes políticos tradicionais que buscavam instrumentalizá-los para o alcance de seus objetivos estratégicos (o impeachment e a aniquilação de qualquer organização entendida como de “esquerda”).
A moral, os bons costumes e os esquerdistas
Passado o processo de “impeachment” e assumindo o presidente Michel Temer, a fachada farsesca da bandeira do “combate à corrupção” ruiu pela dureza dos fatos concretos que se sucederam, explicitando o real caráter das grandes manifestações pelo processo de impeachment, a saber, um “anti-petismo” e um inconformismo com a derrota eleitoral. Se não era mais plausível trabalhar somente na caracterização da esquerda como corrupta, como operado no processo pré-impeachment, o discurso mobilizador de ódio deu mais peso às chamadas pautas “morais”: ameaça à família, à educação, à infância e juventude, a Deus, etc.
Assim, resgatou-se o velho discurso da esquerda como corruptora da “sociedade” e de seus “valores” pétreos. A luta do movimento feminista de denúncia da condição subalterna da mulher na nossa sociedade é tachada como sendo “histérica” (adjetivo mais do que sintomático); a luta do movimento LGBT de denúncia da violência que sofre e por igualdade de direitos é tachada como sendo a de “busca por privilégios e destruidora da família tradicional”; a luta pelo ensino de valores mínimos como tolerância, respeito e convivência é alardeada como “doutrinação” (e até a educação sexual como sendo “sexualização precoce”); artistas e suas obras tornam-se “degenerados”, a denúncia de discurso de ódio de certos segmentos religiosos evangélicos viram “cristofobia” e a luta pela defesa dos Direitos Humanos é encarada como sendo a de proteção do bandido em detrimento do “cidadão de bem”. A estas inversões, permanece e amplia-se o recorrente discurso de tratar os movimentos sociais populares como organizações oportunistas e compostas por “vagabundos” e “criminosos”.
Propositalmente, todas estas pautas são agrupadas ideologicamente como sendo oriundas dos “esquerdistas”, termo genérico e pejorativo que denota aqueles cujas reivindicações são tomadas como destruidoras dos valores morais vigentes e, ainda, uma ameaça à mítica unidade nacional: não à toa, o velho recurso do embate entre o “verde e amarelo”, cores da Bandeira Nacional, e o “vermelho”, cor de alguns partidos e movimentos sociais, é estimulado. Assim, o elemento ideológico do “nacionalismo” é ativado, ainda que farsescamente. Mas, novamente, nenhuma novidade: todo nacionalismo tem por base o farsesco, e eleger determinado grupo como o grande inimigo da nação também não é de hoje. Entretanto, é justamente nesta falta de novidade que mora o perigo desses novos agentes políticos que são os haters do início do século XXI.
Dos métodos
Retomando o início deste texto, a dimensão virtual já é parte constitutiva da vida social do indivíduo contemporâneo, assim também como parte importante da atividade econômica de estabelecimentos comerciais e de informação. Feita a constatação, as perguntas: o que difere o linchamento em um perfil de rede social da execração em praça pública? Da intimidação virtual e consequente exclusão de um perfil da privação de liberdade e do medo de sair à rua? O massivo ataque calunioso a determinado estabelecimento de uma pichação de parede ofensiva ou quebra de vidraças? A “derrubada” de uma página on-line do empastelamento de um veículo de comunicação? O que há é a manifestação da mesma e conhecida tríade “perseguição, intimidação e violência”, só que agora na esfera pública virtual, inexistente no início do século XX porém ubíqua neste início de século XXI.
Recentemente, porém, um evento foi emblemático: o encerramento precoce de uma exposição de arte devido às pressões destes grupos. No mês de setembro de 2017, o Santander Cultural de Porto Alegre encerrou um mês antes do previsto a exposição “Queermuseu – cartografia da diferença na arte brasileira” após pressão de grupos religiosos e do movimento MBL, sob infundadas (e absurdas) alegações de estímulo à pedofilia e à zoofilia que circularam pela internet. O recuo do Santander Cultural, encerrando a exposição e emitindo ainda uma nota bastante condenscendente com os inverídicos argumentos dos ataques sofridos, foi uma infeliz sinalização. Estes grupos conseguiram um resultado concreto: forçaram uma instituição cultural a se auto-censurar. O Rubicão fora atravessado.
Protestos semelhantes ocorreram após o alardeamento de um factóide envolvendo uma performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), culminando com um ato em frente à instituição com ameaças de ocupação e resultando na agressão física a uma funcionária. Mais recentemente, a perseguição foi contra a filósofa americana Judith Butler, com movimentações que visavam inviabilizar as conferências que faria no país.
Outro caso que merece destaque foi a demissão de um jornalista pela Folha de S.Paulo (um dos maiores e mais importantes jornais do país) após uma onda de ataques sofrida por ele ter criticado o filme de Danilo Gentilli. Usando seu perfil do twitter, com quase 16 milhões de seguidores, Gentilli replicou a crítica negativa com os dizeres: “para enquadrar”. O termo em si já reflete o arbítrio e a violência. Segundo levantamento parcial realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), mais da metade das denúncias feitas por jornalistas e recebidas formalmente pela entidade no ano de 2017 relatam ameaças vindas do MBL.
Não se aprofundando sobre as diversas e cada vez mais recorrentes manifestações similares, o que vale salientar é justamente a constatação do método: não se trata de criticar, expor a diferença e/ou o posicionamento contrário a algo (ainda que derivados de falta de informação, mentiras ou crenças religiosas particulares), posturas necessárias e que cabem num regime democrático. O que se dá nessas ações, por suas vez, é a tentativa de silenciamento do contrário mediante a perseguição, intimidação e violência. E isso não cabe numa democracia e nem pode ser tolerado.
São essas manifestações que dão sustentação a projetos de lei que avançam nas diversas esferas legislativas. Movidos por identificação com as reivindicações ou por mero oportunismo eleitoral, parlamentares apresentam (ou aprovam) propostas cujo espírito antidemocrático e mesmo antirrepublicano são explícitos. Como exemplo maior, o “Escola sem partido”, projeto de patrulhamento ideológico e de imposição de temário específico no escopo da Educação: sob o discurso do combate à suposta doutrinação nas escolas, implementa-se a censura e o controle ideológico de conteúdo.
As enormes labaredas consumindo uma pilha de livros considerados “degenerados” e “subversivos”, em cerimônias realizadas na Alemanha nazista em 1933, tornaram-se prenúncio dos tempos que viriam. Ainda em 1823, século XIX, o poeta alemão Heirinch Heine escrevera: “onde se queimam livros, acaba-se por queimar pessoas no final”. Heine era judeu.
No ato do dia 07/11 em frente ao SESC Pompeia, em São Paulo, um boneco representando a filósofa Judith Butler fantasiada de bruxa foi queimado pelos que queriam impedir a realização da sua conferência no local. Para além desse emblemático gesto, a instituição recebeu forte pressão destes grupos – e de políticos ameaçando corte de repasse de verbas – para que sua palestra fosse cancelada. A instituição SESC, diferentemente do Santander Cultural, não cedeu e o evento ocorreu. A filósofa iniciou sua conferência agradecendo a posição do SESC.
Considerações finais
Em que pese as diferenças, as semelhanças já são assustadoramente grandes para compreender a motivação e a ação desses grupos de haters em analogia as dos grupos paramilitares fascistas do início do século XX. Esta caracterização se faz importante por dois motivos: 1) identificar o fenômeno em sua dimensão política e, consequentemente, 2) combater o fenômeno em sua dimensão política.
Há de se perder, de uma vez por todas, um certo olhar complacente para com eles motivado muitas vezes pelo caráter exdrúxulo, caricatural e profundamente ignorante de algumas de suas lideranças e, em maior escala, de seus membros. Não há mais espaço para riso quando alguém difunde um vídeo “comprovando” o projeto de dominação comunista ao confundir uma alegoria com a bandeira brasileira e a japonesa dentro do Congresso Nacional, tampouco desdenhar por ser absurdo quando propagam que há uma conspiração internacional em marcha para destruir os valores “basilares” da sociedade, incluindo a “família” e a “natureza humana”, com participação ativa da Unicef. A História já demonstrou que não é por ser insano que um argumento deixa de conquistar corações e mentes na política.
Outra medida urgente é denunciar e combater a postura de muitos políticos tradicionais que flertam com estes grupos movidos por oportunismo político e eleitoral, vendo neles alguma utilidade particular ao seu projeto pessoal. A estes, somam-se aqueles que, se não flertam abertamente, silenciam-se frente às suas práticas e ações pelos mesmos motivos. Novamente a História já demonstrou o peso da omissão em determinadas conjunturas. O que está em jogo aqui não é o resultado da partida, mas as suas próprias regras. E por isso que cabe também uma cobrança sistemática dos grandes veículos de comunicação para não terem postura que possa parecer cúmplice. Vale lembrar como agravante que hoje a segunda maior emissora de televisão do país já é de um agrupamento evangélico com claro projeto político.
Às possíveis críticas que este texto possa receber apontando um superdimensionamento do tamanho e influência destes grupos, ou mesmo o quanto de atenção dada a eles só os fazem aumentar, há uma resposta prática: dada a potencialidade destrutiva deste fenômeno, superdimensioná-lo em seu combate é antes de tudo necessária prudência política, talvez mesmo urgência histórica. E sobre o ponto da atenção e consequente propaganda a eles, há de reiterar o quanto a omissão historicamente já se demonstrou potencializadora de barbáries. Vale lembrar, retomando a analogia aqui colocada entre os “haters” e os grupos paramilitares fascistas do início do século XX, que estes últimos também eram minoritários no conjunto da sociedade e, no princípio, tratados com desdém dado a seu caráter folclórico e “descolado da realidade”.
Cabe ainda uma reflexão que merece um aprofundamento posterior, mas que já deve ser lançada. As então novas tecnologias de comunicação foram intensamente utilizadas pelos grupos nazi-fascistas do início do século XX. Cabe perguntar-se até mesmo se sem a existência do rádio e do audiovisual, poderiam estes movimentos crescerem e se tornarem regimes políticos. Assim, a pergunta provocativa: será que a consolidação desta nossa nova tecnologia neste início de século XXI, a internet, também não pode passar a ser a possibilitadora de um neomovimento fascista e a consequência de um neoregime fascista? Reparem: o prefixo neo está nas palavras “movimento” e “regime”, e não no adjetivo “fascista”. Ou seja, o “novo” está na forma, e não na caracterização.
Por fim, cabe trazer a etimologia da palavra “virtual”. A palavra deriva do radical latino “virtus”, que significa “força” ou “potência”. Assim, uma acepção de virtual é aquela que toma alguma coisa como detentora de força ou que carrega em si a potência de existir. “Virtual”, portanto, não é sinônimo de “irreal”, “inexistente”: virtual é aquilo que carrega em si a possibilidade/potencialidade de se tornar real ou até mesmo a de se equivaler ao real. Enxergar o “virtual” como “irreal” é um perigoso equívoco metodológico que pode levar a análises e diagnósticos, estes sim, completamente descolados da realidade. É com esse entendimento da palavra que deriva a compreensão dos haters como sendo os grupos paramilitares virtuais do início do século XXI.
A História, em sua dinâmica, é permeada de fenômenos “neovelhos”. Antes de serem uma contradição, são resultados das condições históricas de cada período (sociais, econômicas, culturais e tecnológicas). Dada a experiência vivida pelos regimes totalitários de meados do século XX, e sua magnitude destruidora e trágica, cabe como dever histórico de qualquer humanista a luta para que a História não se repita, nem mesmo como farsa.
* Rodolfo Vianna, 32, é jornalista, doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Filiado ao PSOL, é assessor de comunicação da Fundação Lauro Campos.
Ainda em 2013, dentro do que ficou conhecido como “jornadas de junho”, ao menos na cidade de São Paulo já havia a presença desta turba intimidatória contra militantes de determinados partidos ou ideologias. No ato comemorativo à redução da tarifa de ônibus (bandeira que deflagrou as manifestações), em 20/06/13, militantes identificados como de esquerda foram agredidos física e verbalmente por outros manifestantes “apartidários”.