Categoria: Artigos

  • Considerações sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

    Considerações sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

    por Adriano Camargo de Oliveira*

         Como base dos processos de transformação social, a educação, mais especificamente o ensino básico, está constantemente em foco nas articulações políticas. De um lado, os movimentos sociais de educadores que lutam por uma escola com princípios de qualidade norteados por ideias progressistas (igualdade, coletivismo, democracia etc.), que entram em enfrentamento com o outro lado do debate, comumente os privatistas e grupos que veem a educação como um campo econômico, um serviço, que precisa e deve ser modelado e uniformizado com base nos interesses do mercado. São, a grosso modo, as influências neoliberais na educação que se arrastam pelas políticas educacionais principalmente desde o fim da Ditadura Militar (1964-1985).

          Desses debates e enfrentamentos, surgem as principais políticas que regulamentam e servem de indicadores para a educação básica, por exemplo: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (L9394/96), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e a mais recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ponto central que gostaria de fazer uma análise mais acentuada.

          Desde a Constituição Federal de 1988, já estava prevista a criação de uma Base Comum para o currículo das escolas de todo o país. Na LDB, em 1996, o assunto voltou às discussões, mas somente em 2010, momento de debate para a elaboração do que se tornaria o novo Plano Nacional de Educação (2014-2024), é que se aprofundaram as ideias sobre essa base curricular. Basicamente, a recente tão propagandeada BNCC propõe um conjunto de conteúdos que seriam essenciais ao aluno da educação básica. A grosso modo, desconsideradas as particularidades regionais e culturais, desconsiderado o contexto em que a escola está inserida dadas às questões da própria cultura escolar, um aluno de região periférica, que vez ou outra tem suas aulas canceladas por enfrentamentos entre facções criminosas e as forças do Estado, deveria aprender os mesmos conteúdos que outro aluno que frequenta uma escola pública na região central da cidade.

          De certa forma, a BNCC pode se tornar um entrave ao princípio de uma escola democrática que, atenta ao contexto em que está inserida, propõe uma estrutura curricular sensível aos alunos que recebe.

           Então, por que criar uma Base Comum para os currículos da educação básica?

          A princípio, a ideia de uniformizar as bases curriculares parece ótima, afinal todos os alunos receberiam os mesmos conteúdos e, ao final do processo, teriam a mesma carga de conhecimento. É exatamente nesse pensamento que consiste o erro. Os principais índices divulgados hoje para mensurar a qualidade da educação são os de repetência, evasão e muitas vezes o rendimento escolar. De cara, são índices que buscam uma homogeneização do contexto educacional e isso pode deixar implícito os interesses de grupos financeiros que visam uma educação mais produtiva para o mercado. Exemplo disso, a possibilidade de substituição do Ensino Médio pelo Ensino Técnico na nova reforma, formador para o mercado de trabalho, como a principal função social agregada à escola, que atinge as família em vulnerabilidade socioeconômica com a possibilidade de uma ínfima ascensão financeira em melhores condições de trabalho, sobrepondo, então, à ideia da formação para a cidadania, da formação para a democracia, da formação para a mudança social.

          Os princípios de equidade e igualdade propostos pela BNCC não são sociais, mas curriculares, são princípios burocráticos com a intenção de restringir assuntos pertinentes ao contexto de cada escola. Muito mais proveitoso às escolas seria o exercício da gestão democrática, na busca de uma comunidade escolar mais ativa nas decisões escolares, de um grêmio estudantil incentivado para a participação política como um preparo para a vida pública, de um conselho escolar que se sobrepõe às decisões impetradas pelas direções das escolas que sustentam a estrutura de micropoder abafada pelo Estado.

          Antes de se implementar uma Base Nacional Comum Curricular, há que se discutir os princípios qualitativos a serem almejados para todas as escolas que, muito além da inserção do aluno no mundo do trabalho, o pilar central de sustentação do modelo neoliberal de economia, desejável por uma formação acrítica, deveria, então, construir uma base democrática e mais próxima da realidade, visionária ao fim da desigualdade social, inerente às discussões de grupos minoritários que precisam exercer sua participação social com plenitude.

     

    * Adriano Camargo de Oliveira, 24, é graduando em História da UFMS, desenvolvendo pesquisa sobre o Ensino de História em âmbito penitenciário e sobre a Gestão Democrática das Escolas. É filiado PSOL.

     

     

  • Contribuições à reflexão e à discussão

    Contribuições à reflexão e à discussão

    Jorge Antunes *

    Comecei a elaborar uma tese a ser apresentada no VI Congresso do PSOL, mas ela acabou sendo escrita muito lentamente. Meus dedos foram bissextos sobre as teclas do computador. Mil atividades e compromissos artísticos me ocupavam, e o tempo não me permitia atender às normas da convocatória: não sei quantos caracteres ou palavras, não sei quantas assinaturas etc etc.

    Faltando 4 dias para terminar o prazo de inscrição de teses, dou por terminado meu primeiro rascunho.

    Não há mais tempo de discutir o texto com meus companheiros de coletivos do PSOL. Não há mais tempo para receber sugestões, acréscimos, supressões, críticas e correções. Não há mais tempo para conseguir signatários.

    Mas não posso deixar de comunicar o texto aos companheiros e companheiras, porque acredito que ele, modéstia à parte, pode dar alguma contribuição à nossa reflexão e busca de caminhos.

    Assim, dou publicidade, aqui, a meu texto, deixando-o à disposição de todos os filiados e militantes e correntes, para que pincem livremente quaisquer parágrafos, frases, pensamentos, ideias ou propostas que achem ser interessantes. Autorizo desde já, a todos os redatores e signatários de teses, que usem livremente a minha contribuição que apresento em seguida.

    O GOLPE PARLAMENTAR E SEU AVANÇO

    As propostas que o governo golpista e corrupto de Michel Temer encaminhou ao Congresso Nacional confirmaram a tese de que o Brasil sofreu um golpe parlamentar em 2016. Várias ações escancararam os objetivos do golpe: aumentar a espoliação do trabalhador brasileiro, invalidando direitos trabalhistas conquistados durante décadas, com luta, suor e sangue.

    A chamada “Constituição Cidadã” que consagrou direitos democráticos ora ameaçados e anulados, foi um avanço em seu tempo, mas necessita de urgente revisão e reescritura. Ela já sofreu, de 1988 para cá, 92 emendas, o que a desvirtua totalmente do seu caráter original. Alguns de seus artigos nunca foram implementados.

    Exemplo gritante é o de número 153 que institui o imposto sobre grandes fortunas e que, por falta de lei complementar que o regulamente, nunca foi colocado em prática. A lei que pudesse regulamentar o referido imposto, nunca poderia ser elaborada e aprovada por um Congresso Nacional composto, em sua maioria, por empresårios detentores de grande fortunas.

    Só uma nova Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva, poderá elaborar uma Carta Magna que contemple os anseios atuais do povo brasileiro. Outra excrescência constitucional a ser banida da Carta, deverá ser a redação de seu artigo 142 em que, às forças armadas, não são apenas destinadas a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, mas também a “garantia da ordem”. Essa prerrogativa do Presidente da República foi recentemente utilizada para colocar o Exército nas ruas de Brasília, ameaçando a livre e pacífica manifestação popular.

    O Brasil está sendo privatizado e vendido ao capital internacional. Potências imperialistas tratam de ocupar espaços na economia e no solo brasileiro, com a conivência de um governo e um Congresso Nacional que não representam o povo. Assim, faz-se necessária a implementação de uma urgente política em que as rédeas da nação sejam arrancadas das mãos de banqueiros, empreiteiros, latifundiários, oligopólios e entreguistas que usam a prática da corrupção como hábito.

    UMA NOVA POLÍTICA

    A nova política deverá abraçar a prática das expropriações de empresas corruptas, abandonando a capitulação nacional vigente, em que é praticada a conivência e a leniência. Empresários corruptos e corruptores, após a expropriação e estatização de suas empresas, deverão ter seus bens arrestados.

    Urge estancar a sangria proporcionada pelo neoliberalismo iniciado com Fernando Collor, afirmado pelo governo FHC e continuado pelos governos petistas. Após sucessivas derrotas em intervalo de tempo de 12 anos, Lula conseguiu se eleger em 2002. Mas, para tanto, foi necessário se associar à burguesia nacional, a banqueiros, ao empresariado espoliador e ao PMDB, um saco de gatunos bem conhecidos.

    Enquanto Lula chamou à vice-presidência o chamado “empresário bonzinho”, amaciando o grande capital com sua famosa “Carta aos brasileiros”, Dilma aceitou, como vice-presidente, um cidadão que começou sua carreira política integrando o governo corrupto e golpista de Adhemar de Barros em São Paulo.

    A traição e o golpismo eram os destinos inexoráveis de tal aliança absurda e espúria. Em 1964 Dilma, então com 17 anos de idade, militava na Polop, resistindo ao golpe militar. No mesmo ano de 1964 Michel Temer, então com 24 anos, militava no staff do governador golpista Adhemar de Barros: Temer era oficial de gabinete do Secretário de Educação do governo Adhemar.

    A aliança direta do PT com o PMDB e a aliança indireta com banqueiros e grandes empresários, sinalizaram, desde o início, que as promessas feitas durante a campanha eleitoral seriam esquecidas e não cumpridas.

    PATRÃO X EMPREGADO

    Precisamos analisar com muita profundidade a chamada “política compensatória”. Verificamos, na última década, que o assistencialismo alardeado pelo Estado brasileiro teve, como resultado, o deslumbramento inconsequente que serviu como anestesia do povo. As migalhas oferecidas garantiu a paz social, o que sempre interessou aos donos do poder e permanentes espoliadores.

    Como disse sabiamente Vito Letízia: “para não haver convulsão social, o capitalismo tem que se transformar em sistema harmonioso e distribuidor de riqueza”.

    A anestesia do povo tem tido até mesmo a conivência de alguns setores da esquerda. Em janeiro de 2013 a General Motors, de São José dos Campos, passou a viver séria crise e ameaçou milhares de empregados de demissão. O sindicato da classe, dirigido pelo PSTU, fez um acordo com os empresários, aceitando a demissão de 500 empregados, o acréscimo de duas horas de trabalho por dia e o trabalho aos sábados.

    Slavoj Žižek foi cristalino ao denunciar a cartilha neoliberal e a nova ideologia capitalista: o chamado ecocapitalismo. Ele ensina que os capitalistas são gratos à sociedade que lhes permitiu acumular fortunas. Assim, os donos do capital passam a ter o dever de dar algo em troca: a participação dos funcionários no lucro, o diálogo com os clientes (0800), o respeito ao meio ambiente.

    Žižek vai mais adiante, em sua lucidez: “O capitalismo recuperou o espírito de 68, esvaziando o discurso da esquerda. O capitalismo se tornou uma espécie de socialismo.”

    Segundo Zizek, “…alguns dos pontos da lista de exigências do Manifesto Comunista (1848), são hoje aceitos pelo capitalismo: grande exceção é a abolição da propriedade privada dos meios de produção”.

    Infelizmente, os pais do “assistencialismo anestesiante”, no Brasil, não admitem fazer a autocrítica. Como disse Luciana Genro, na recente Bienal da UNE, em Fortaleza, “não podemos renovar a esquerda repetindo o passado, pois precisamos construir o novo.”

    DESMOBILIZAÇÃO E APATIA

    O PSOL precisa, urgentemente, analisar com profundidade as causas da flagrante desmobilização popular, e construir uma união de forças de esquerda para fazer frente ao atual quadro de apatia pós-golpe parlamentar, em que o povo passivo aguarda um “salvador da pátria”.

    Lima Barreto nos deixou uma máxima bastante realista e cruel: “O Brasil não tem povo: tem público”. A frase data do golpe militar de 1889 e da Primeira República, que mantiveram os privilégios das famílias aristocráticas e dos militares.

    O PSOL precisa implementar mecanismos de comunicação com o povo que é plateia, que é público, no sentido de despertar, nele, o protagonismo.

    Não podemos correr o risco de sermos massacrados por uma solução de conciliação das classes dominantes que imponha um “salvador direitista da pátria”. Mas também não podemos correr o risco de, contemplando a passividade das massas, ver ou incentivar a coroação de um “salvador progressista da pátria”.

    O esclarecimento do povo é o caminho. Devemos, de todos os modos possíveis, conscientizar as massas de que, sem uma total reestruturação do sistema, a disputa eleitoral e a chamada democracia representativa nunca nos levarão à solução.

    Em uma declaração recente, eu fiz uma afirmação audaciosa e temerária, que chocou amigos, correligionários e colegas. Eu disse: “Não quero ser, mais uma vez, candidato a deputado. O deputado tem que ser representante do povo. E eu não tenho condições de representar este povo que está aí. Só se for para representar a sociedade futura, com que sonho, e contra a qual o povo que está aí conspira”. O meu desabafo se justifica totalmente, quando observamos a estagnação que reina sob o tacão dos golpistas, dos banqueiros, dos latifundiários, dos oligopólios, dos corruptos e dos corruptores.

    TEMAS PARA A NOSSA PAUTA

    O PSOL, acredito eu, é o único partido que não é capaz de “pisar no pescoço da mãe”, como disse Brizola, e fazer alianças espúrias, para chegar ao poder a qualquer custo. Assim, este ficará longe de nossas mãos durante um bom tempo.

    Portanto, somos os únicos que podem lançar propostas audaciosas, radicais, corajosas, inovadoras e revolucionárias.

    Com esse contexto esboçado, resta-me esperar e incentivar aos companheiros de partido, às lideranças das diversas correntes internas, que urgentemente incluamos em nossas pautas de discussão os seguintes temas:

    1- Presidencialismo ou parlamentarismo;

    2- Sistema Unicameral;

    3- Assembleia Constituinte Exclusiva;

    4- Conscientização e mobilização popular;

    5- Política compensatória mobilizadora;

    6- Socialismo ou barbárie;

    7- Reforma política;

    8- Referendo Revogatório.

    Fica aqui minha contribuição ao debate. Não sou daqueles que se incomodam com as disputas internas do PSOL. Mesmo que aguerridas, graves, elas acabam sempre, em última avaliação, sendo salutares. O famoso “guarda-chuva”, tanto mencionado por HH, nos idos de 2005, e que inspirou a criação do partido, entendo que deve prevalecer. Eis porque gostaria que o partido continuasse a receber, de braços abertos, grupos, polos, coletivos, que, sonhando e construindo o Socialismo no Brasil, possam se aglutinar fraternalmente, embora com disparidades e antagonismos no âmbito das estratégias e das táticas.

    Coloco minhas ideias e propostas, acima expostas, à disposição e ao livre uso de todos e todas.

     * Compositor, maestro, professor titular aposentado da UnB, membro da Academia Brasileira de Música, filiado e militante do PSOL-DF

  • O que quer a Rede Globo?

    O que quer a Rede Globo?

    por Guilherme Boulos*

     

    A delação dos donos da JBS precipitou o declínio do governo Temer. Poucos na bolsa de apostas de Brasília acreditam na possibilidade de mantê-lo até 2018, apesar dos esforços desesperados de salvação. Temer perdeu as condições políticas para governar o País. Pesam contra ele não apenas denúncias, mas provas, vistas e escutadas amplamente.

    O peemedebista aposta na tática de arrastar a crise, ao rechaçar a opção de renúncia e criar um falso ambiente de normalidade. Não tem outra saída. Mesmo se decidir renunciar, não poderá fazê-lo sem a busca de um acordo que salve seu pescoço. Caso contrário, corre o risco de sair do Palácio do Planalto direto para a prisão, dado que perderia o foro especial.

    Convenhamos, não há surpresa no conteúdo da denúncia. Que o governo Temer depende do silêncio de Eduardo Cunha até mesmo a crédula Velhinha de Taubaté desconfiava. Que Cunha não daria o silêncio em troca de nada é quase uma obviedade. Portanto, embora gravíssimos, os fatos não geraram perplexidade nacional.

    O que surpreendeu  foi a postura da Rede Globo no episódio, partindo para o ataque decidido e rápido contra Temer, exigindo sua queda. Essa guinada criou uma divisão na mídia e no campo que apoiou o golpe. Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo não seguiram a toada dos Marinho e relativizaram o teor das denúncias.

    É preciso compreender o que está em jogo na decisão política da Globo neste momento e em sua aliança com setores do Ministério Público. Existem hipóteses.

    Há quem sugira que a Globo e os setores político-econômicos que ela vocaliza tenham chegado a uma avaliação de que Temer não conseguiria entregar as reformas. Improvável, pois o governo caminhava para aprovar a reforma trabalhista no Senado e, possivelmente, a da Previdência na Câmara, após algumas concessões e um jogo pesado de compra de apoio.

    Outra possibilidade na mesa é o fator Lula. Sua força eleitoral cresceu muito nos últimos meses, em paralelo à perda de apoio social de Temer. O interrogatório de Curitiba, que visava constrangê-lo, teve efeito inverso. Lula saiu fortalecido de lá, ampliando a visão geral de falta de provas para condená-lo. Sergio Moro e a Globo, nesse sentido, ficaram num impasse. Agora, com o nível de repercussão das acusações contra Temer e, em especial, contra Aécio Neves, cria-se um clima mais favorável à condenação e, quiçá, à prisão de Lula. É evidente que enfraquecem a percepção de seletividade e perseguição política contra ele. E, como confessou um delegado da Lava Jato, o que vale é o timing.

    Esse fator, embora relevante, não explica por si só que a aliança Globo/Ministério Público derrube o governo Temer e coloque em risco a aprovação das reformas. Creio ser possível supor uma aposta mais estratégica, pensando na hegemonia política de longo prazo.

    O sistema político da Nova República está em ruínas. Crivado por denúncias, desmoralizado, esse modelo perdeu a capacidade de levar à coesão a sociedade brasileira. Perdeu hegemonia, embora ainda represente o poder de fato. Cabe uma analogia com a crise da ditadura sob o comando do general João Figueiredo. A ditadura ainda tinha o comando, mas havia perdido completamente a capacidade de criar maioria social. Em situações como essa, sempre há o risco de soluções por baixo, expressas na revolta popular contra um regime sem representatividade. A casa-grande tem verdadeiro pavor de alternativas como esta e, historicamente, antecipou-se para construir acordos de transição seguros e conservadores.

    Foi assim no fim da ditadura, pode ser assim agora. Não é de hoje que a Globo aposta na narrativa do Judiciário como salvador nacional. Criaram heróis do combate à corrupção, que podem representar a opção a um sistema que perdeu a credibilidade. Uma forma de “limpar” o Estado brasileiro, manter a agenda dominante e recobrar a hegemonia social pode ser com protagonismo do Judiciário. Não por acaso constrói-se a figura de Cármen Lúcia como possível saída em caso de eleições indiretas. Seria uma nova Operação Golbery, com juízes e procuradores à frente.

    Embora somente uma hipótese, é preciso muita atenção em relação aos interesses dessa coalizão. Se a crise da Nova República for canalizada nessa direção, isso pode significar o fechamento democrático, com institucionalização de medidas de exceção aplicadas. Não se deve descartar inclusive que se apropriem da bandeira de uma nova Constituinte.

    De todo modo, a desconfiança ante os interesses dessa coalizão não pode legitimar o envolvimento de setores da esquerda em arranjos de salvação. Nem para a manutenção de Temer, tampouco por eleições indiretas. Quaisquer que sejam os nomes, devem ser prontamente rechaçados pela ilegitimidade do processo.

    A única saída possível é engrossar o caldo pela saída de Temer e por eleições diretas, construindo uma frente ampla e fortalecendo as mobilizações populares. A rua é o melhor desinfetante contra soluções antidemocráticas.

     

    Guilherme Boulos é da coordenação nacional do MTST

    (artigo originalmente publicado na Carta Maior – 29/05/2017)

  • Para a democracia sequestrada, somente uma reforma do sistema político

    Para a democracia sequestrada, somente uma reforma do sistema político

    por Lucas Coradini *

     

    Em 1958, Raymundo Faoro publicava Os Donos do Poder – formação do patronato político brasileiro, obra que se consagrou ao apontar a origem da corrupção e da burocracia no país. De acordo com o autor, toda a estrutura patrimonialista foi trazida de Portugal no período colonial, cristalizando-se na economia política brasileira desde então. Muito do que se pretende explicar hoje sobre o turbulento cenário político brasileiro seria possível fazê-lo através da releitura de Faoro. Entender a degenerada relação entre o público e o privado, empresários e políticos, capital e Estado, é a chave para compreender como o sistema político tem sido historicamente sequestrado por interesses particulares e a fragilidade de nossa democracia. Tornaria mais claro, enfim, identificar quem são os verdadeiros donos do poder hoje.

    E chegaríamos então à conclusão que a democracia nunca coube no Brasil, e que as camadas populares jamais fizeram parte das estruturas de poder de fato. Que somos uma colônia de exploração desde sempre, com uma ligeira modernização mercantil orgulhosamente intitulada de agronegócio, que resume nosso papel no globo à produção de commodities. Que convivemos na quase totalidade de nossa história com regimes políticos conservadores e avessos aos avanços democráticos,frutos de uma aristocracia que perpetuou o trabalho escravo por três quartos da nossa história, e ainda fomos dos poucos países que após a independência manteve esse anacronismo por mais de meio século. Que tivemos a primeira legislação de proteção ao trabalhador somente em 1943, utilizando até então de um modelo servil característico do período pré-revolução industrial. Que nossa história republicana nasce das oligarquias e é atravessada por tantos golpes que a democracia parece ser o regime de exceção. Que desde o governo de Deodoro da Fonseca, passando pelo Estado Novo e pelo Regime Militar de 1964-1984, até os impedimentos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, somos marcados por conspirações, golpes e rupturas. E, ao fim, que muito pouco mudou em relação às formas como os “donos do poder” imprimem seus interesses através das estruturas do Estado.

    Com alguma perplexidade, a partir das investigações recentes, descobrimos que um grupo formado por pouco mais de dez empresas detém nas mãos – e nos bolsos – grande parte dos mandatários das casas legislativas, membros do executivo em todos os níveis da administração, e até do poder judiciário. Seja de forma legal, através de doações para campanhas, seja de forma ilegal, através de propinas, estas empresas impõem sua influência sobre as mais diversas legendas e sobre as mais diversas estruturas do Estado. Vemos constituir, assim, a bancada dos bancos, a bancada do boi, a bancada do cimento, a bancada da bíblia, a bancada da bala, e tantas outras quanto forem possíveis “comprar”, o que faz do jogo eleitoral um mero ato ficcional necessário para produzir algum senso de participação política popular. Um processo supostamente democrático enquanto, objetivamente, estamos diante da égide de uma ditadura do mercado. Os donos do poder encontram-se hoje nas grandes corporações empresariais, no agronegócio e nos meios de comunicação.

    Apesar de a democracia nascer inserida no período de consolidação do capitalismo, percebe-se que as forças capitalistas vêm provocando sérios prejuízos ao modelo democrático. Para Schumpeter, alguns desvios do princípio da democracia estão atrelados à presença de interesses capitalistas organizados, ou seja, meios privados são frequentemente usados para interferir no funcionamento do mecanismo da liderança competitiva. Segundo o autor, os padrões do capitalismo impelem alguns grupos da sociedade a recusar as regras do jogo democrático, colocando em risco todo método político. O que vemos no Brasil vai além disso: utiliza-se das próprias regras do jogo democrático para o autobeneficiamento, a partir do instrumento do financiamento privado de campanhas que vincula a atuação da classe dirigente aos interesses de seus credores.

    E é preciso destacar a violência simbólica que exerce essa ditadura do mercado, bem como as consequências da subordinação da democracia ao grande capital. Nas últimas eleições, JBS, Bradesco, Itaú, Vale, AMBEV, OAS, Odebrecht, Andrade Gutierrez, UTC e Queiros Galvão “doaram”, de forma legal, mais de 200 milhões a partidos políticos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral. Contudo, ilegalmente, somente a JBS teria distribuído 600 milhões a pelo menos 1829 políticos de 28 partidos em troca de contrapartidas no setor público ao longo dos últimos anos, naquilo que os corruptores chamavam de “banco de benevolência”. A Odebrecht chegou ao cúmulo de institucionalizar a atuação criminosa através de um “setor de propina” na empresa, que dispendeu entre 2006 e 2014 cerca de 10, 6 bilhões a políticos, valor que supera o PIB de 33 países. Recursos deslocados, há que se destacar, dos próprios cofres públicos, através de contratos superfaturados, perdão de dívidas fiscais e previdenciárias, e concessão de créditos subsidiados.

    Preocupa que, diante do desvelamento dos mecanismos de apropriação do público pelo privado e da crise política e institucional colocada, não se vislumbre uma saída democrática e verdadeiramente alinhada aos interesses nacionais. Enquanto se engendra a queda do presidente envolvido em corrupção, as análises sobre os possíveis desdobramentos seguem pautados pela “reação dos mercados” ou pelas perspectivas de continuidade de reformas feitas sob medida para o grande capital. Mais do que discutir o sistema político que permitiu o sequestro do estado por corporações empresariais, ou a necessidade de resgatar a legitimidade da classe política a partir de eleições diretas, confabula-se sobre os possíveis nomes capazes de mediar a crise com os interesses corporativos dos donos do poder. Em outras palavras, se discutem as peças do tabuleiro mas não se discutem as regras do jogo. Enquanto isso, em nome de uma pretensa recuperação econômica, privilegiam-se justamente os interesses corporativos que levaram ao atual quadro, impondo uma agenda de retrocessos em conquistas sociais consagradas, como a legislação trabalhista e previdenciária, jamais submetida às urnas.

    Trata-se de uma visível sobreposição da razão econômica em relação à razão social, como de fato o é desde que o Estado tem se resumido a um aparelho de lobismo para patrocinadores das campanhas, de relações clientelistas e patrimonialistas conflagradas com o setor privado, e de manutenção do sistema da dívida pública como meio de transfusão de recursos públicos para o capital financeiro. E daí decorre o problema da legitimidade. Como já apontava Habermas, com o avanço do capitalismo o sistema político vem sendo colonizado por meios de controle como o dinheiro, o mercado e a burocracia, até ocorrer um desacoplamento entre o sistema e o mundo da vida. Esse processo de diferenciação impulsionado pela modernização social, quando a instância política não atende às necessidades da sociedade civil, faz intensificar o conflito entre o sistema e o mundo da vida, naquilo que hoje se apresenta como uma enorme crise de representação. Ao mesmo tempo, as formas tradicionais de organização social encontram-se fragilizadas, colocando em descrédito o potencial de renovação de partidos políticos, movimentos sociais e sindicatos, que têm se mostrado incapazes de canalizar os anseios e reivindicações populares emergentes.

    Vivemos, portanto, um momento complexo, de crise política e institucional sem precedentes. Política, pelo agravamento da falta de representatividade e legitimidade da classe dirigente. Institucional, pela percepção de que os três poderes da república revelam-se colonizados por interesses privados. Que modelo de Estado é possível a partir desse cenário de crise das instituições, e em que as formas tradicionais de organização não apresentam respostas para os problemas colocados? Se nenhum partido ou movimento social têm capitalizado politicamente a ponto de fazer-se alternativa às transformações ensejadas, para onde convergirá as mudanças que devem marcar esse novo momento da república? O que, ou quem, terá condições de substituir essa classe política?

    No momento em que se discute a mudança da Constituição para a realização de eleições diretas, deve-se considerar os riscos que a atual descrença na politica pode produzir num possível pleito presencial. Sejam eles: a adesão a lideranças totalitárias e aos discursos nacionalistas, que historicamente emergem nas crises; ou a adesão a lideranças populistas pretensamente dissociadas do metiê político, que ocultam suas bases ideológicas sob o discurso da não-política, mas geralmente ligadas ao mercado. Mesmo o retorno de Lula, que não se encaixa em nenhuma das alternativas anteriores, traria em si a manutenção da polarização estabelecida no cenário nacional desde as eleições de 2014, o risco de ingovernabilidade pela relação com a base parlamentar que chancelou o impeachment de sua sucessora, além do idêntico desgaste de todos os envolvidos nas investigações da Lava Jato. Por outro lado, se observada a Constituição e transigida a eleição indireta, a possibilidade de uma sucessão mediada com e pelos donos do poder é a consequência óbvia, em se tratando de uma indicação do atual Congresso.Nem uma nem outra opção dão conta de superar os dilemas que o país enfrenta, que passam necessariamente pela reformulação do sistema político e eleitoral. É preferível, antes, o avanço e aprofundamento das investigações da Lava Jato,uma drástica renovação da classe dirigente – especialmente do parlamento – e, sobretudo, um momento de inflexão sobre o Brasil que queremos e a democracia possível, num esforço de aproximação das estruturas de poder com os interesses populares.

    Uma discussão que só tem ambiente para ser desenvolvida a partir de uma nova assembleia constituinte exclusiva, que aprofunde o debate sobre as reformas necessárias, incluindo as recentemente tramitadas. Uma constituinte realizada para além dos quadros político-partidários, agregando membros da academia, cientistas políticos, juristas, constitucionalistas, movimentos sociais e representantes dos diferentes segmentos que compõem o mosaico étnico e cultural brasileiro. Se a Constituição tem sido desfigurada para atender aos interesses mais obtusos dos donos do poder, como ocorreu com a emendado congelamento dos investimentos públicos por vinte anos, ou como ocorre em relação à reforma da previdência, que ela seja também revista para, de uma vez por todas, romper a ordem estabelecida e induzir algum nível de democratização das estruturas estatais. Está claro que o atual nível de desagregação institucional tem afetado a funcionalidade do Estado, e que todo legado da Lava Jato será inócuo sem transformar a estrutura política vigente, ou seja, sem prescrever um novo contrato social que repactue o papel do estado e a dinâmica de suas instituições. Tão importante quanto a pauta das eleições diretas, para retomar o poder de escolha a quem lhe é de direito, importa devolver o poder “de fato” à vontade popular, garantindo o alinhamento da representação política às agendas e programas submetidos às urnas.

     _

    FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder – formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre, Editora Globo, 1958.

    HABERMAS, J. Teoría da Acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racionalización social. 3. Ed. Madri: Taurus, 2001.

    SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia . Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1984.

    Lucas Coradini é mestre em Sociologia, Doutor em Ciência Política, e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul.

    (artigo originalmente publicado na página Sul21)

     

     

  • Curso de Agroecologia e Ecossocialismo em São Carlos-SP

    Curso de Agroecologia e Ecossocialismo em São Carlos-SP

    Qual a importância da agroecologia dentro dos ambientes urbanos? Como podemos repensar a relação campo-cidade dentro de um horizonte ecossocialista?

    É com enorme prazer que o Núcleo do Seteorial Ecossocialista do PSOL São Carlos, em parceria com o Setorial Estadual e a Fundação Lauro Campos, convida a todxs para um curso livre e gratuito sobre “Agroecologia e Ecossocialismo”, que buscará refletir coletivamente sobre essas e outras questões.

    Será todo um dia de programação com debates sobre a questão agrária brasileira e sobre os desafios agroecológicos numa perspectiva anticapitalista. Além disso, faremos atividades práticas de cultivo da terra, assistiremos ao filme ‘Sem Clima’, e celebraremos em grande estilo!

    O curso pretende criar um espaço de troca de saberes entre educadorxs, pesquisadorxs, comunicadorxs e ativistas, de dentro e de fora do PSOL. Esperamos que o encontro possa resultar em novas alianças e repertórios, capazes de fortalecer as atividades profissionais e militantes de cada umx. Por isso, valorizaremos muito os momentos de diálogo.

    O curso possui 40 vagas. Todxs receberão um caderno de formação com textos selecionados pela organização.

    Programação completa:

    9h – 9h30: Recepção / café / credenciamento (Restaurante VivaVeg – R. Nove de Julho, 1704 – Centro – São Carlos)

    9h30 – 10h: Falas de boas vindas:

    10h – 12h30: Mesa “Agroecologia, Ecossocialismo e a Questão Agrária no Brasil”

    Joana Ortega: Introdução a agroecologia, e apresentação das Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA)
    Denise Vasquez: Ecossocialismo e o Setorial Ecossocialista do PSOL SP
    Waldemir Soares: a questão agrária no Brasil e os atuais conflitos rurais
    Junior e/ou Patrícia (MST Ribeirão): luta pela terra e luta pela vida, o papel da agroecologia nos movimentos sociais

    12h30 – 14h: Almoço vegano no VivaVeg (Feijoada Vegana)

    14h – 14h30: Ida para atividade prática (CSA São Carlos).
    – Organização de carros na finalização da mesa da manhã. Caronas solidárias saindo do VivaVeg.

    14h30 às 15h: conversa com Dina sobre sítio, CSA e agroecologia

    15h – 17h30: Prática de manejo agrícola no Sítio Centenário

    19h – 21h: Exibição e bate papo filme ‘Sem Clima’, com a presença de membro da equipe do “De Olho nos Ruralistas”, na Veracidade (Rua Dona Ana Prado, 501).

    21h – 00h: Celebração na Veracidade (fazer xixi no mato, usar o banheiro seco, trazer caneca, e cuidar do espaço). Vamos passar chapéu. Vai ter chopp artesanal local. Open de guaca-mole: traga seu pão 😀

    INSCRIÇÕES

    As inscrições são gratuitas e serão confirmadas por ordem de envio. Então corra para fazer a sua! Teremos apenas 40 vagas, então caso você confirme sua participação NÃO DEIXE DE COMPARECER, ou estará tirando a vaga de outra pessoa interessada.

    Se precisar de hospedagem na cidade, fale conosco!

    Se quiser organizar um curso dessa na sua cidade, bora!

    Link para formulário de inscrição: https://goo.gl/N2n3FE

     

     

  • Juros e inflação: o triunfo da tragédia

    Juros e inflação: o triunfo da tragédia

    por Paulo Kliass *

     

    Os grandes meios de comunicação não se furtam a enaltecer – dia sim, outro também – as supostos competências e virtudes da equipe econômica do governo que se notabiliza a cada dia que passa em somar mais integrantes nas listas de denúncias de corrupção e escândalos envolvendo recursos públicos.

    Afinal, de acordo com a narrativa construída pelos articuladores do golpeachment no Congresso Nacional em simbiose com os patrões do financismo, tudo se resolveria com o afastamento da Presidenta reeleita em outubro de 2014. Bastaria compor uma equipe de governo que rompesse com as experiências ditas populistas e bolivarianas do período anterior para que o Brasil adentrasse o espaço do paraíso da estabilidade.

    Como o mote da aventura irresponsável do golpe institucional havia sido a temática das “pedaladas fiscais”, criou-se um mito a respeito da irresponsabilidade na condução da política fiscal e o consequente descontrole da evolução dos preços. A política macroeconômica teria perdido completamente a credibilidade e apenas a entrega dos postos chave aos homens do sistema financeiro teria condições de restabelecer a ordem. Amém!

    Golpeachment e consolidação do austericídio.
    E assim foi feito, tudo de acordo com as articulações conduzidas a partir do interior do Palácio do Jaburu, a residência oficial do Vice Presidente eleito na mesma chapa de Dilma. De pouca valia foram as tentativas ingênuas – senão oportunistas – patrocinadas por ela de se firmar como uma interlocutora confiável junto aos interesses do financismo. Nomeou o indicado pelo Banco Bradesco para o Ministério da Fazenda, mas nem mesmo o austericídio perpetrado por Joaquim Levy como verdadeiro estelionato eleitoral do programa da candidata funcionou como estratégia eficaz de sobrevivência política.

    A consumação do afastamento de forma ilegítima abriu a avenida para que o “conservadorismo autêntico” tomasse conta da Esplanada dos Ministérios. A partir da usurpação levada a cabo por Temer, não mais haveria a terceirização da defesa dos interesses do financismo. A duplinha dinâmica dos banqueiros Meirelles e Goldfajn assume de forma efetiva e integral a definição da política econômica do governo. O discurso a respeito da necessidade de impor a austeridade fiscal a qualquer custo não encontra mais a menor resistência dentre os demais ocupantes de cargos no primeiro escalão.

    Estava sendo iniciada a contagem regressiva para a entrada em ação da fadinha mágica das expectativas. Uma equipe econômica sólida e competente, formada por técnicos do mais alto gabarito técnico, finalmente abriria as portas para a retomada do crescimento. A concentração de poderes em torno da equipe econômica e a ocupação de postos estratégicos pelos quadros emanados do tucanato se orientam para a etapa de consolidação do desmonte do Estado brasileiro. Por um lado, a destruição dos poucos fundamentos do projeto de Estado de Bem Estar Social tal como previsto em nosso texto constitucional. De outro lado, a rapinagem da privatização e da liquidação do patrimônio público nacional a toque de caixa. Uma verdadeira corrida contra o relógio para implementação de uma coleção de maldades.

    Fadinha mágica das expectativas não compareceu.
    No entanto, qualquer manual básico de economia pondera bastante o suposto efeito das expectativas para qualquer processo de decisão de investimento e de ampliação da capacidade econômica em escala micro ou macro. O espírito animal dos empreendedores capitalistas não se move apenas para apoiar um governo mais identificado com seus próprios interesses de classe. O interesse fundamental para a decisão de ampliar a capacidade capitalista refere-se aos lucros potenciais oferecidos pelo novo investimento.

    E essa aparente contradição entre o discurso e a inciativa do empreendedor era explicitado de forma bastante objetiva pelas pesquisas de opinião junto aos investidores. A grande maioria se dizia otimista a partir da mudança de governo e achava que finalmente o país estava no rumo certo. No entanto, quando indagados a respeito de novos investimentos em sua própria empresa, as respostas eram evasivas ou negativas. Todos achavam ótimo que o equipe econômica fosse séria e competente. Mas quase ninguém se arriscava transformar esse desejo e essa torcida em decisões objetivas de ampliar sua própria capacidade empresarial.

    O aprofundamento do austericídio aparenta ser a melhor resposta para tal paradoxo. Desemprego e recessão não costumam se apresentar como os melhores ingredientes para aumento da demanda em uma economia capitalista. A continuidade da crise não se converte em incentivo para aumento das vendas ou melhoria dos negócios. A ausência de políticas públicas de natureza contracíclica não contribui para melhorar as expectativas de melhoria do cenário econômico futuro.

    O único argumento de que o governo pode se valer é que foram realmente bem eficazes no patrocínio do desastre em que se transformou a sociedade brasileira. Ao colocar em marcha o roteiro do conservadorismo ortodoxo mais tacanho, conseguiram mesmo promover a desgraça da redução da demanda. Aprofundaram a desindustrialização, contribuíram para o fenômeno da falência em múltipla escala, se regozijaram com a explosão dos índices do desemprego pelo Brasil afora, festejaram a generalização do mercado informal de trabalho e vibraram finalmente com a redução dos rendimentos dos salários.

    Custo social da queda da inflação e juros.
    Frente a esse quadro terrível, seria mesmo natural que os índices de inflação fossem reduzidos. Não por conta de alguma sabedoria mágica que estivesse a embasar as decisões do COPOM, mas tão simplesmente em razão da supressão forçada da capacidade da demanda. O crescimento dos preços verificado por meio do desempenho do IPCA caiu mesmo de 9,4% em março de 2016 para 4,6% em março desse ano. No entanto, o custo social de tal movimento é intolerável e não há argumento econômico que resista ao impacto do drama social em que o Brasil se viu mergulhado para tanto.

    O contraponto dessa redução da inflação foi a flexibilidade oferecida pelo sistema financeiro para que o governo promovesse também a diminuição, ainda que atrasada, do próprio patamar da SELIC. Como a única referência que a autoridade monetária utiliza é o crescimento dos preços, só houve redução na taxa oficial de juros quando o IPCA finalmente começou a ceder por conta da recessão severa. Assim, saímos de um patamar de 14,25% em abril de 2016 para os atuais 11,25%.

    E assim se compõe o cenário em que o comando da economia se vangloria de ter cumprido com afinco seu dever de casa. Afinal, a inflação e a taxa oficial de juros realmente cederam. Alguém aí comentou a respeito do custo social desse penoso processo? Não importa, isso é irrelevante. O fundamental é que a economia esteja estabilizada! Fábricas vazias, empresas fechando, famílias sem renda para sobreviver com dignidade? Bem isso tudo faz parte da solução dolorosa, aliás a única que o financismo enxerga à sua frente. O sofrimento dos outros, pois os lucros dos bancos e demais instituições financeiras continuam bombando de forma bilionária a cada novo trimestre em que são anunciados.

    Chantagem e mentira.
    Com a explosão da crise política associada à divulgação da famosa Lista Fachin, o governo vê ainda mais reduzida sua margem de manobra para aprovar as reformas estruturais no interior do Congresso Nacional. Em especial, a Reforma da Previdência começa a fazer água e Temer passou a anunciar um recuo por dia em sua proposta original, que era considerada imexível à época em que foi anunciada. O próprio governo vendeu a falsa ilusão de que apenas a aprovação desse pacote de maldades seria capaz de impulsionar a retomada do crescimento da economia. Mentira! A manipulação das informações e a compra da opinião dos meios de comunicação não foram ainda capazes de reverter a impopularidade das propostas.

    Está cada vez mais claro para a maioria da população que a crise atual do regime previdenciário está muito mais associada à redução das receitas do que à suposta explosão das despesas. E como o governo se agarrou a essas mudanças como a boia de salvação de sua governabilidade, agora Meirelles se sai mais uma vez com a conhecida e recorrente chantagem junto aos parlamentares:

    “Se o país não fizer a reforma no devido tempo, em primeiro lugar as taxas de juros brasileiras, em vez de cair como agora, vão voltar a subir fortemente”.

    Ou seja, se o desmonte da previdência social não for realizado, estaríamos condenados a retornar aos tempos de juros altos e inflação elevada. Como se vê, o desespero político tangencia a retórica oportunista e se fundamenta na desonestidade intelectua

    * Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

    (artigo originalmente publicado na Carta Maior – 19/04/2017)

  • Elementos para um programa para a nova esquerda

    Elementos para um programa para a nova esquerda

    *   Marcio Rosa é cientista político e diretor da Fundação Lauro Campos.
  • Existe pena de morte no Brasil

    Existe pena de morte no Brasil

    por Joselicio Junior *
    Infelizmente, não fiquei surpreendido com o desfecho do julgamento que absolveu, de forma unânime pelo júri popular, os 3 Policiais Militares acusados de matar um jovem que havia roubado uma moto na região do Butantã, zona oeste da capital paulista. Nem mesmo as imagens, amplamente divulgadas nas redes sociais e pela grande mídia, que mostra que o rapaz estava rendido e foi jogado pelo PM de cima do telhado da casa e em seguida executado por outros dois policiais, foi capaz de condenar os agentes do Estado.

    Esse caso exemplar é a prova concreta daquilo que o Deputado do PSOL Marcelo Freixo chama de pessoas matáveis, ou seja, dentro da estrutura social brasileira existem pessoas que sua morte não geram comoção, que são vistas como naturais, como permissíveis e muitas vezes até como necessárias para estabelecer a ordem social. Portanto, os agentes do estado responsáveis pela “segurança pública” estão legitimados por uma parcela da sociedade e pela grande mídia policialesca, a determinar quem deve ser preso e julgado e quem pode ser executado sumariamente.

    O que determina quem são os “matáveis” é a origem social e étnica, sendo assim, os jovens, negros, pobres e moradores das periferias são classificados dessa maneira. Diante da avalanche de noticiais entorno das operações de combate à corrupção, é impossível não fazer um paralelo, pois de um lado tem aqueles que falam que todo crime é crime, seja quem roubou um pão, ou quem roubou para enriquecer através da corrupção e deve ser punido igualmente, mas a realidade mostra grandes diferenças no tratamento.

    Como dissemos anteriormente a Polícia na sua ação ostensiva determina que são executados ou até mesmo encarcerados, a parcela encarcerada forma uma população de quase 700 mil pessoas, desses, 40% não tiveram nem o direito ao julgamento, ficando na condição de presos provisórios por longos anos, vivendo em condições degradantes, suscetíveis ao assédio das facções e muitas vezes sem o direito a ampla defesa por falta de recursos para contratação de advogados.

    Por outro lado, temos visto através de operações de combate a corrupção como a Lava Jato (que merece uma série de críticas que não cabe nesta análise), onde grandes empresários, servidores públicos e políticos estão sendo investigados e até mesmo presos, que por conta da sua condição social, acompanhamento de grandes escritórios de advocacia, processos de delação premiada, que reduz drasticamente as penas, essas pessoas acabam ficando muito menos tempo presas, ou pegam regimes alternativos como prisão domiciliar, semi aberto.

    Não quero defender a impunidade, nem muito menos um estado punitivista. Mais salta aos olhos os dois pesos e duas medidas do Estado brasileiro. Para os ricos o direito a ampla defesa, penas alternativas e para os pobres, particularmente para os negros, o Estado penal máximo, encarceramento e mortes sumárias, instituindo na prática a pena de morte em nosso país.

    Precisamos superar a ideia que a punição é o único remédio para nossas mazelas, precisamos inverte a lógica do estado social mínimo e o estado penal máximo, por isso é tão importante também somar fileiras na luta contra os ataques aos direitos sociais encabeças pelo governo golpista de Temer, com a Reforma Trabalhista e da Previdência, pois são face da mesma moeda de um Estado que legitima os matáveis.

    * Joselicio Junior, conhecido como Juninho, é jornalista, presidente estadual do PSOL – SP e militante do Círculo Palmarino, entidade do movimento negro.
  • O Programa?! Onde está o Programa?!

    O Programa?! Onde está o Programa?!

    por Juliano Medeiros *

     

    Na última semana, ao menos dois acontecimentos de grande repercussão reacenderam o debate sobre as eleições presidenciais de 2018 no âmbito das esquerdas. O primeiro foi o ato realizado pelo Partido dos Trabalhadores e movimentos sociais a ele ligados na cidade de Monteiro (PB). A repercussão da presença do ex-presidente Lula no ato e a disputa simbólica em torno da “paternidade” das obras de transposição do Rio São Francisco deram a tônica das discussões na mídia independente e nas redes sociais. O segundo acontecimento foi o impacto da operação Carne Fraca na opinião pública e a divisão que se verificou entre críticos e defensores da ação da Polícia Federal que revelou um escândalo de corrupção envolvendo agentes do Ministério da Agricultura e partidos políticos, promovendo discussões acaloradas que levantaram questões fundamentais para as relações entre o Estado e os setores produtivos.

    O impacto destes acontecimentos nas esquerdas, porém, foi contraditório. No primeiro caso, poucos foram os que questionaram os problemas envolvendo as obras da transposição e o que se viu, em geral, foi um “oba-oba” em torno da candidatura de Lula. Escassas críticas à controversa transposição, quase nenhuma voz lembrando a greve de fome de Dom Luís Cappio ou o vazamento da barragem de Sertânia, que desalojou 60 mil famílias, poucos questionamentos aos impactos ambientais da obra.

    No segundo caso, abriu-se um interessante debate sobre o lugar das esquerdas frente às principais cadeias produtivas do agronegócio e como estas impactam nossa economia. Alguns até descobriram que, na base do setor, uma imensa rede de pequenos agricultores alimenta parte dos médios e grandes frigoríficos e que, torcer por uma quebradeira geral, seria jogar milhares à própria sorte. Ao mesmo tempo, parece que outros, encantados pelo bonança do setor, não perceberam que os negócios dos “campeões nacionais”, queridinhos dos grandes partidos e largamente financiados pelo Estado, poderiam acabar num escândalo de corrupção de grandes proporções.

    Mas o que estes episódios e o comportamento contraditório demonstrado pelas esquerdas frente a eles demonstra? É fato que o debate sobre a sucessão presidencial ganha a agenda política do país dia a dia desde que a candidatura de Lula passou a ser uma hipótese concreta. O problema é que, com o nome do ex-presidente no circuito, não se discute o principal: o programa. É como se Lula bastasse para resolver os problemas do Brasil. A máxima da “saudade do meu ex” sintetiza o sentimento que tem sido estimulado em torno da imagem do ex-presidente. Mas todo mundo que já reatou um relacionamento com uma “ex” (ou um “ex”) sabe o trabalho que isso dá. E sabe também que – não raramente – a tentativa acaba em frustração.

    No caso da transposição do Rio São Francisco, a festa de campanha não deixou margem para uma reflexão crítica sobre a eficácia da obra ou sobre os investimentos que ainda serão necessários para construção das adutoras que levarão a água às cidades, muito menos sobre seus impactos ambientais ou os mecanismos de controle público necessários para evitar que a transposição sirva apenas ao grande agronegócio.

    No caso da Operação Carne Fraca ocorreu o contrário. Estando o ex-presidente fora dos holofotes, se produziu um rico debate no plano econômico. Com todos os excessos possíveis, ainda assim, o que vimos foi uma tentativa de interpretar os impactos da monopolização da economia brasileira, meios para reverte-la e – o mais relevante – formas concretas de combater a tendência de reprimarização de nossa economia, aprofundada nos últimos vinte anos pelos governos do PT e PSDB. É aqui que está a chave do futuro da esquerda brasileira: da capacidade de refletir sobre a realidade socioeconômica dependerá a possibilidade de formulação de um programa capaz de enfrentar os séculos de atraso e dependência a que estamos submetidos.

    O pré-candidato do PT já se movimenta para responder a essas questões. Reunido pelo Instituto Lula, um time de economistas começa a pensar um plano econômico para o Brasil pós-Temer, segundo atesta matéria veiculada pelo jornal Valor, na última segunda-feira. No radar dos economistas estão propostas como o alongamento e a renegociação das dívidas dos estados, municípios e mesmo das famílias; a retomada do crédito subsidiado a instituições financeiras como o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal; condições facilitadas para a renegociação das dívidas do setor empresarial e uma ampliação do endividamento público (que saltou de 56% para 70,5% do PIB desde o início do ajuste fiscal iniciado por Dilma e aprofundado tragicamente por Michel Temer). São fórmulas repetidas por Lula em eventos públicos em todo o Brasil e não deixam de ser, a rigor, o esboço de um programa econômico.

    No mesmo dia, a Frente Brasil Popular, da qual fazem parte movimentos como MST, CUT e UNE, divulgou documento intitulado Plano Popular de Emergência, onde apresenta uma série de medidas urgentes para, segundo o texto, “restabelecer a ordem constitucional, enfrentar a crise econômica, salvar as conquistas históricas do povo trabalhador e defender a soberania nacional”. Sem se referir às eleições presidenciais de 2018 o plano apresenta medidas avançadas para a democratização do Estado, geração de emprego e renda, reforma agrária e agricultura familiar, reforma tributária, defesa e direitos sociais e trabalhistas, acesso à saúde, educação e moradia, além de ampliação dos direitos civis e política externa. Embora se apresente como uma plataforma emergencial, com claras limitações no plano macroeconômico, a iniciativa mostra uma sincera disposição de colocar, novamente, o boi à frente da carroça: não basta discutir nomes sem aprofundar imediatamente o debate programático.

    Particularmente, sou da opinião de que Lula, se não for condenado em segunda instância em uma das cinco ações penais que tramitam contra ele na Justiça Federal, dificilmente assumirá o programa defendido pelos movimentos que compõem Frente Brasil Popular, mais radicalizado do que aquele em discussão no Instituto Lula. Ao contrário, o petista tem optado por sinalizar que não implementará medidas “heterodoxas”. Nos relatos disponíveis até agora sobre os encontros promovidos por seu Instituto, não houve uma palavra sequer sobre a necessidade de anular o teto de gastos imposto pela Emenda Constitucional 95, a necessidade de uma maior tributação sobre o capital e o patrimônio ou uma reforma profunda do sistema da dívida. As menções sobre a necessidade de redução do custo da dívida através da diminuição da taxa de juros apareceram sempre subordinadas à dinâmica do superávit primário e mesmo temas aparentemente prosaicos, como a utilização das reservas brasileiras para o financiamento de obras de infraestrutura, não encontram consenso no time de economistas que discutem com o ex-presidente.

    Resumo da ópera: o debate em torno do apoio a Lula divide a esquerda, interdita o necessário balanço crítico sobre a experiência do PT à frente do governo federal e impede a formulação de um programa capaz de corrigir os erros do passado. Por isso, centrar as discussões sobre 2018 a partir da defesa de Lula, colocando o debate programático em segundo plano, pode até fazer sentido para os simpatizantes e partidários do ex-presidente, mas não é uma boa opção para o futuro da esquerda – que não pode e não deve ficar refém do xadrez político mais imediato. Precisamos estimular iniciativas que discutam a fundo um programa para o Brasil e, necessariamente, façam o balanço de erros cometidos no plano das políticas macroeconômicas. Espaços dessa natureza começam a tomar forma. Interditar esse necessário processo de reflexão seria um erro que a história não perdoaria.

    *Juliano Medeiros é Historiador, Presidente da Fundação Lauro Campos e Coordenador Político da Liderança do PSOL na Câmara dos Deputados.

    (artigo originalmente publicado na Revista Fórum – 24/03/17)