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  • A falsidade da Falsa Consciência

    A falsidade da Falsa Consciência

    por Immanuel Wallerstein

    As pessoas nem sempre se comportam do jeito que pensamos que deveriam se comportar. Nós muitas vezes percebemos os outros se comportando de maneiras as quais pensamos ser contrárias ao seu interesse próprio. Isso parece louco ou tolo. Acusamos então essas pessoas de “falsa consciência”.

    O próprio termo foi inventado por Friedrich Engels no final do século XIX para explicar por que trabalhadores (ou ao menos alguns trabalhadores) não apoiavam os partidos operários nas urnas ou não apoiavam as greves chamadas por um sindicato. A resposta para Engels era que, por alguma razão, esses trabalhadores perceberam erroneamente seu auto-interesse, sofrendo de “falsa consciência”.

    O remédio era duplo: aqueles com o nível aprovado de “consciência de classe” deveriam procurar educar aqueles cuja “consciência de classe” era deficiente. Ao mesmo tempo, eles deveriam perseguir, tanto quanto possível, as ações políticas que são ditadas por indivíduos e organizações conscientes de classe.

    Esse modo de remédio tinha duas vantagens: primeiramente, justificava-se a legitimação de qualquer ação que as organizações com “consciência de classe” buscarem; em segundo lugar, permitia a elas ser condenscendentes com os acusados de “falsa consciência”.

    O conceito de “falsa consciência” (apesar do termo não ser utilizado hoje em dia) e o remédio sugerido têm seu paralelo na análise amplamente compartilhada que é feita atualmente pelos profissionais da educação sobre o comportamento de pessoas com menos educação. Um grande número de trabalhadores apoiou Donald Trump e as famigeradas organizações de extrema-direita (assim como grupos semelhantes em outros países apoiaram figuras similares a Trump). Muitos opositores bem-educados de Trump perceberam seu apoio por pessoas mais pobres como um falha irracional, já que Trump não tem a ver com o seu interesse.

    O remédio também é paralelo: eles procuram educar os apoiadores equivocados de Trump. Eles também continuam a impor sua própria solução para os problemas políticos contemporâneos, ignorando o fraco nível de apoio dos estratos mais baixos da população.  Seu escárnio, mal disfarçado, para os estratos mais pobres, os conforta em suas próprias ações. Eles ao menos não possuem uma falsa consciência.

    Eles compreendem o que o programa real de Trump é e compreendem que ele não é do interesse de ninguém, exceto de uma pequena minoria da população, o 1%. Paul Krugman expressa essa visão regularmente em sua coluna no The New York Times. Isso é o que Hillary Clinton quis dizer quando ela fez a declaração mal-intencionada sobre metade dos apoiadores de Trump terem vindo de uma “cesta de deploráveis”.

    Nunca ajuda ninguém a analisar o mundo real presumir que os outros não agem em seu próprio interesse. É muito mais útil tentar discernir como esses outros enxergam para si mesmo o que é seu próprio interesse. Por que os trabalhadores votam em partidos de direita (mesmo de extrema-direita)? Por que aqueles cujo padrão de vida tem diminuído ou que vivem em áreas rurais com fraca infraestrutura apoiam um homem e um programa baseado na diminuição dos impostos sobre as fortunas e na redução das redes de seguridade social para si próprios?

    Se alguém lê as declarações que eles fazem na internet ou em respostas às perguntas feitas pelos repórteres de notícias, a resposta parece clara, embora complexa. Eles sabem que os regimes liderados pelos presidentes mais tradicionalmente do Establishment dos últimos 20 anos têm lhe feito mal em termos de rendas e benefícios. Eles afirmam não ver razão para presumir que continuar as políticas anteriores melhorará sua situação. Eles pensam que não é irracional supor que sua situação pode melhorar com um candidato que promete governar de uma forma completamente diferente. Isso é tão inconcebível?

    Eles acreditam que as promessas ligeiramente redistributivas dos governos anteriores não os ajudaram em nada. Quando eles ouvem esses mesmos governos se vangloriarem (num exagero enorme) do progresso social que fizeram para ajudar “minorias” a serem melhor integradas aos programas de governo ou direitos sociais, é fácil entender que eles associam redistribuição e minorias, e então concluem que outros estão avançando às suas custas. Esta é uma conclusão muito errada a ser extraída, na minha visão e na visão da maioria daqueles que se opõem a Trump. Mas é melhor acreditar que um governo de Hillary Clinton serviria melhor a eles?

    Sobretudo, Trump os ouviu, ou ao menos fingiu ouvi-los. Clinton os desprezou. Eu não estou discutindo aqui que tipo de programa social a esquerda deveria oferecer agora, ou deveria ter oferecido durante a última eleição. Estou apenas sugerindo que a linguagem sobre a falsa consciência é uma forma de esconder de nós mesmos o fato de que todos buscam seu interesse pessoal, inclusive os “deploráveis”. Não temos o direito de ser condescendentes. Precisamos entender. Entender os motivos dos outros não significa legitimar seus motivos ou mesmo negociar com eles. Isso significa que devemos buscar a transformação social realisticamente sem culpar os outros por não nos apoiarem, argumentando que estão cometendo erros de julgamento.

    (15/03/2017)

    Fonte: http://iwallerstein.com/the-falsity-of-false-consciousness/  (Tradução: Charles Rosa, do Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos)

  • Lula e as reformas

    Lula e as reformas

    por Marcio Rosa *

     

    Dois fatos marcaram a conjuntura política do país na última semana: as massivas manifestações do dia 15 contra a reforma da Previdência e a divulgação da segunda lista de Janot. Esses apontam para uma maior dificuldade do governo e retomada do protagonismo popular, dentro de um quadro de muita instabilidade, assim como mais dificuldade para a candidatura de Lula.

    O golpe foi levado a cabo para permitir a realização das reformas, em especial a reforma trabalhista e previdenciária. Depois de um momento de reorganização, as forças populares retomam o protagonismo e enfrentam o governo golpista e suas reformas. Grandes manifestações em diversos estados, amplas paralisações, inclusive dos transportes, fizeram do dia 15 um grande dia para a luta dos trabalhadores, um momento de força em uma conjuntura tão adversa.

    O ato em SP teve como um dos oradores o ex-presidente e candidato a candidato à Presidência da República, o Lula. Pouco depois de depor como réu na Operação Lava Jato e de receber o apoio de intelectuais e artistas à sua candidatura, foi falar em uma manifestação onde contava com grande apoio. Mas não empolgou, mesmo assim. Até porque era um ato de protesto, não um comício.

    A luta contra a reforma não pode ser instrumentalizada em favor de uma candidatura. Há, inclusive, muita contradição nessa defesa, pois Lula foi o primeiro a realizar uma reforma da previdência atacando o funcionalismo público e abrindo caminho para outros ataques aos direitos dos trabalhadores.

    A tática da esquerda para o próximo período não deve começar pelos nomes. O que precisamos é de um programa popular de combate à crise, onde os mais ricos paguem a conta, e que possa contribuir para um processo de reorganização da esquerda. O “programa” que Lula apresenta é insuficiente: já que está ruim com Temer, vamos voltar com Lula. Mas as condições são outras, e ele não diz como vai fazer em tempos de vacas magras, muito menos reconhece os limites de seu governo anterior.

    A candidatura de Lula, nesse momento, sequestra o futuro. Primeiro, porque a premissa de que ele é o único que pode vencer a direita é questionável. Tem muito apoio mas também muito telhado de vidro, e está sendo bombardeado faz tempo. Segundo porque sufoca a renovação e o debate sobre programa. Terceiro, porque não oferece muito mais que um programa liberal com preocupações sociais, agora em condições econômicas muito mais difíceis. Por fim, impede a crítica aos governos petistas e não reconhece os limites do reformismo de baixa intensidade.

    A ideia de uma reforma da Previdência pegou muito mal entre os trabalhadores. Mesmo com toda a imprensa fazendo propaganda a favor, a reforma é altamente impopular. É hora de intensificar as ações contrárias, sempre em amplo diálogo com a população. É a pauta do momento, onde devemos concentrar nossos melhores esforços.

    Ao mesmo tempo a Operação Lava Jato se intensifica com a divulgação da lista de Janot. Há um terremoto de grandes proporções na política nacional. Para os socialistas, cabe pedir a mais ampla investigação para todos os envolvidos, mesmo que nesse caso específico se reconheça a seletividade da OLJ.

    A lista de Janot implica nomes do PT, em especial o ex-presidente Lula. Pode ser um caminho para impedir que ele se candidate. Mas também acerta o governo golpista, com diversos denunciados ocupando ministérios centrais, assim como os presidentes da Câmara e do Senado. Pode inclusive contribuir para diminuir o ímpeto do governo em fazer reformas que retiram direitos.

    O cenário de dificuldade é agravado pela situação econômica difícil e pelos ajustes recessivos. A carestia e a dificuldade vão se ampliar com a queda do emprego e da renda. Os trabalhadores não podem pagar pela crise. Medidas como a taxação de grandes fortunas, reforma tributária e diminuição dos juros reais são alternativas à ortodoxia neoliberal que quebrou diversos países e puniu os trabalhadores.

    O foco da luta política no próximo período deve ser barrar as reformas, onde há ampla unidade e fragilidades do governo golpista. Em paralelo, atuar no processo de reorganização da esquerda e de construção coletiva de uma plataforma dos trabalhadores para superar a crise. A candidatura de Lula, nesse sentido, só atrapalha.

     

    * Marcio Rosa é sociólogo e diretor da Fundação Lauro Campos

  • 20 reflexões sobre a “Carne é fraca”

    20 reflexões sobre a “Carne é fraca”

    Por Gilberto Maringoni *

    1. A espetacular ação do Ministério Público e da Polícia Federal contra alguns frigoríficos instaurou uma polêmica nas redes: qual a extensão do problema e que tipo de punição aplicar às empresas e seus controladores?

    2. A primeira questão é decisiva, mas está quase fora da pauta. Não se sabe, estatisticamente, se os problemas demonstram que as carnes das gigantes do agronegócio configuram uma amostragem científica de que toda a produção está comprometida, ou não. A detecção de um problema em cidades do Paraná expressaria uma tendência da produção nacional?

    3. Sem responder a essa questão, tudo o mais fica comprometido como análise séria;

    4. No entanto, com o espetáculo midiático, outro tema entrou em tela: caso se comprovem as acusações de venda de produtos contaminados, quimicamente manipulados com substâncias nocivas à saúde ou corrupção de agentes públicos e privados, quais devem ser e contra quem devem incidir as sanções legais.

    5. Aqui surge uma falsa questão, no âmbito da esquerda. De um lado, há os que julgam imprescindível a penalização das empresas, por degradarem o meio ambiente, explorarem trabalhadores, cometerem crimes contra a população etc. etc.

    6. De outro, há os que – como eu – entendem que empresas não são entes dotados de vontade própria e que penalizá-las – com bloqueio de acesso a créditos oficiais, veto a compras governamentais, não emissão de certificados de qualidade, boicote aos produtos e tudo o mais – implica a quebra não apenas destas, mas de toda a cadeia do agronegócio, que vai do pequeno produtor, rede de fornecedores de insumos, equipamentos e tecnologia, indústria de grãos, milhares de empregos e, principalmente, tecnologia acumulada ao longo de décadas.

    7. Assim, punidos deveriam ser donos, acionistas, técnicos e responsáveis por essa sequência produtiva. Punidos com afastamento da direção dos negócios, multas, arresto de bens e prisão, de acordo com a legislação vigente. No limite, intervenção oficial ou estatização dos negócios.

    8. A defesa das empresas não significa a defesa das empresas tal como elas são, mas a defesa de conhecimento acumulado e nichos de mercado na e pela economia brasileira. Não vi, até agora, entre a esquerda, ninguém defendendo a salvação de uma incerta “burguesia brasileira” ou da “fraude nacional”, como, com evidente má-fé, alguns fizeram por aqui.

    9. Não se está tampouco defendendo uma “conciliação de classes”, a partir de um raciocínio plano.

    10. O que seria penalizar uma empresa? Seria destruí-la? Vender seus ativos a retalho? Detonar as marcas? Isso tem sido feito na cadeia da indústria naval e da construção civil, deixando donos e controladores – esses sim responsáveis por escândalos de corrupção – livres, leves e soltos. E essas fatias do mercado começam a ficar livres para serem ocupadas por conglomerados transnacionais.

    11. Os que dizem professar um marxismo puro logo alegam a desimportância do processo. Repetem bordões como “capital não tem pátria” e “isso seria uma agressão aos trabalhadores”. Cumpre lembrar que capital realmente não tem pátria, mas a sede da enorme maioria das corporações globais se situa no hemisfério Norte, para onde migram lucros, recolhimento de impostos e mais-valia acumulada no sul.

    12. Há evidentes diferenças entre empresas aqui sediadas e que reinvestem seu lucro aqui e as que remetem a maior parte dele para fora e só se expandem mediante créditos, desonerações e subsídios oficiais. Assim, não se trata de alardear que quem defende a não-destruição das empresas desposa a tese de que empresas nacionais exploram menos o trabalhador que sua congêneres globais.

    13. Denunciar os males do agronegócio, suas relações de trabalho e danos ambientais não é difícil. A maior parte de tais denúncias é verdadeira, e ninguém – entre a esquerda – parece desejar encobri-los. São relações encontradas em qualquer empresa capitalista. O que está em tela no caso Carne Fraca – me parece – não é a superação do capitalismo, mas a investigação de possíveis fraudes.

    14. Lamentavelmente, até onde sei – não li ainda os jornais de hoje – o socialismo não está na agenda imediata. Assim, qualquer solução colocada para as empresas estará inscrita no universo de uma economia de mercado, com os instrumentos que o Estado (burguês!) dispõe.

    15. Quebrar as empresas equivale a desnacionalizá-las. Nada garante que, por serem companhias de capital aberto, o processo de desnacionalização não aconteça com as mesmas nas mãos de seus atuais controladores, como elas estão. Os casos da TAM e da Ambev estão aí, frescos na memória de todos. Logo, manter as coisas como estão tampouco é solução.

    16. Se destruir empresas que incidiram em práticas corruptas fosse solução, Lockheed, Alstom, Siemens, Samsung, IBM, ITT, Volkswagen e tantas outras não mais estariam entre nós. Achar que JBS e outras expressam a corrupção inata do Brasil, existente desde a Carta de Caminha, é incidir na velha teoria das classes dominantes de que este seria um país inviável;

    17. A solução – repetindo – é punir exemplarmente proprietários, acionistas e responsáveis pela possível bandalha e preservar marcas, ativos, mercados e conhecimento acumulado. A carne brasileira não teria entrada em mais de uma centena de países – a maioria com duras regras de fiscalização fitossanitária – se alguma qualidade não tivesse.

    18. O mercado da carne é extremamente competitivo em termos globais. Perdê-lo seria um harakiri econômico de difícil reversão num país em crise. Trata-se da produção de commodities? Sim. Mas não é detonando a produção doméstica que se reverterá a primarização acelerada da economia brasileira.

    19. Por fim, alguns contrapõem a produção das empresas-gigante – nociva e podre – à de pequenos produtores – virtuosos e higiênicos. Além de ingênuo, o raciocínio não leva em conta o processo de extrema monopolização do setor, operado na última década. Pequenos e médios produtores fazem parte hoje – em sua maioria – da cadeia produtiva das grandes. Quebrariam todas juntas, como carreira de dominó. No caso dos “orgânicos”, sua produção, por falta de escala e fatores logísticos, não supre nem a médio prazo a demanda e têm preços inacessíveis para a grande massa da população.

    20.  No mais, defender empresas não tem nada a ver com defender burguesias nacionais, internas ou rurais.

    * Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e diretor da Fundação Lauro Campos.

  • Entre a carne e o rio – onde a esquerda se perdeu?

    Entre a carne e o rio – onde a esquerda se perdeu?

    Por Isadora Salomão*

     

    Nessa semana dois fatos influenciaram a política brasileira: A operação da PF, denominada Carne Fraca, que denuncia empresas nacionais e órgãos do Governo Federal de adulteração de alimentos em troca de dinheiro, e a disputa de quem foi o pai da Transposição do Rio São Francisco, tendo Alckmin, Lula, Dilma e uma pá de figuras expoentes da nossa política – que se colocam à direita e à esquerda do espectro político – fazendo de tudo para convencer do parto da criança.

    Os desdobramentos dos fatos – e os posicionamentos de diversos setores e partidos sobre eles – mostram o que está em jogo e o que falta para a esquerda para tentar vencer a real disputa. Esse raciocínio pode ser explicado a partir de uma pergunta:

    O que tem a ver a “descoberta” das adulterações das carnes produzidas e vendidas no Brasil e a inauguração “popular” da obra de Transposição do Rio São Francisco, na Paraíba?

    Vamos por partes.

    O debate central do primeiro caso tem passado por denunciar uma pretensa estratégia de ataque à produção nacional e aos “interesses nacionais”, mas ignorando que essa defesa da nossa indústria traz consigo a defesa do agronegócio, dos oligopólios e, consequentemente, do que isso traz de concreto para a vida da maioria dos homens e mulheres do nosso país – principalmente as mulheres pretas e pobres, que, assim como no debate sobre as Reformas da Previdência e Trabalhista, são as primeiras impactadas por uma política que bloqueia o acesso a terra, impede os avanços relacionados à produção agroecológica, à agricultura familiar e reduz direitos já conquistados.

    Como já diziam as mulheres do MST, em sua jornada de lutas em 2016, essa é uma política que ignora que “no mercado de trabalho brasileiro existem várias desigualdades, a rotatividade, a intermitência do trabalho, a informalidade” (1). 

    Isso não nega a capacidade e intencionalidade real do imperialismo, tendo intensificado seu projeto de poder a partir do golpe, de, dentre outros objetivos, buscar aprofundar no Brasil a submissão aos EUA, a partir do enfraquecimento da indústria de carnes brasileira, segunda maior exportadora mundial do alimento. Pensar em revolução brasileira sem pensar na influência dos EUA em nossa economia também é um equivoco.

    No tocante à Transposição do Rio São Francisco, a contradição continua. A defesa que se ouve hoje, em tom de vitória popular, é expressa pela frase “O sertão vai virar mar”, atribuída à maior liderança da Guerra de Canudos, o pregador sertanejo Antônio Conselheiro, lida na grande obra literária “Os Sertões” (Euclides da Cunha) e musicada lindamente pela dupla Sá & Guarabira.

    Lembro que, há alguns anos, quando do início da obra de transposição, setores importantes da esquerda e parte das correntes petistas faziam uma análise crítica da transposição e se juntavam ao coro dos movimentos sociais ribeirinhos, quilombolas e indígenas, que denunciavam a obra como um projeto do e para o latifúndio, um caro projeto calça-curta, que não pretendia resolver o problema da seca no semiárido brasileiro, mas favorecer setores da economia local que passam ao largo da maioria de sua população pobre.

    Vale lembrar ainda que a greve de fome de Dom Luiz Cappio (Bispo do município de Barra/BA) e as declarações de artistas/ativistas como Letícia Sabatella e de organizações como a CNBB (Confederação Nacional de Bispos do Brasil) se somavam aos movimentos sociais contrários ao projeto e visibilizavam a luta, fazendo o contraponto direto com defensores mais fiéis e entusiastas da obra, Geddel e Ciro Gomes, ex-Ministros da Integração Nacional.

    O debate que se fortalecia á época nestes movimentos era o de fortalecimento da “Convivência com o Semiárido” com o aprimoramento de Tecnologias Sociais e o consequente protagonismo local nas soluções de acesso à água, criando, inclusive, programas governamentais “nunca dantes vistos na história de nosso país”, como o Programa Água para Todos, o Programa Cisternas e o Programa Cisternas nas Escolas (2).  Era o contraponto necessário à política que potencializava o polígono das secas e o controle dos “coronéis” da política e economia locais, que utilizavam da água como sua principal moeda de barganha eleitoral. Que faziam da vida de sertanejos e sertanejas um eterno esperar pelos carros-pipa redentores. Como dizia o D. José Rodrigues, bispo emérito da Diocese de Juazeiro-BA: “No Nordeste não falta água, falta justiça!”.

    Depois desse apontar de contradições, retomo a pergunta: O que tem a ver a “descoberta” das adulterações das carnes produzidas e vendidas no Brasil e a inauguração “popular” da obra de Transposição do Rio São Francisco, na Paraíba?

    O que me parece é que a esquerda esqueceu de que política se faz com o olhar em horizontes estratégicos. A festa que se dá hoje na Paraíba, nesse dia de “Reinauguração Popular” da Transposição do Rio São Francisco, é a mesma festa que comemora um “Lula 2018” pela quantidade de bandeiras vermelhas ou pelas pesquisas de intenção de voto. Mas também é a anti-festa (ou enterro) cujos atores e atrizes ignoram a vida do povo – aqui e agora – e até hoje não construíram uma alternativa de Programa Democrático e Popular para o Brasil, acreditando que a revolução socialista virá tão somente do seu umbigo vanguardista e revolucionário.

    Assim, a festa em questão, comemora apenas a incapacidade político-programática e reafirma a irrelevância e/ou perda dos ideais estratégicos que deveriam colocar a esquerda como alternativa política de transformação real nesse país. Tanto o Lulismo quanto o Esquerdismo se digladiam na superfície e não enxergam que é urgente a construção de um projeto verdadeiramente democrático e popular para o Brasil, numa perspectiva de realinhar nossos horizontes estratégicos aos ideais socialistas.

    Enxergo hoje, não obstante alguns esforços, que nenhum partido que se reivindica à esquerda no Brasil está à altura desse desafio, de sair da sua zona de conforto, mesmo com a conjuntura de ataques e desmontes aos direitos duramente conquistados nas últimas décadas pelos trabalhadores e trabalhadoras. Uns se consideram filhos e seguidores cegos de um Salvador pseudo-neodesenvolvimentista e jogam toda sua energia nas eleições de 2018 e outros se colocam como “La crème dela crème” comunista, herdeiros do pensamento e da prática das maiores lideranças de esquerda da Europa do Séc. XIX.

    Considero que o melhor caminho para a esquerda, talvez seja parar de festa e/ou dedo em riste e buscar requalificar seu papel estratégico. Isso passa por não precisarmos defender o indefensável para sobreviver politicamente. Só se faz isso com programa, povo e luta.

    Entre a carne e o rio, fico com as mulheres pretas e pobres, fico com a esperança trazida pela luta, fico com os ideais de uma sociedade sem explorados e exploradores, onde o futuro e a vida de mulheres e homens desse país valham mais que a paternidade de obras faraônicas e a imagem de empresas do agronegócio nacional que não nos representam. Que nosso futuro e o futuro da esquerda também valha mais que o ego dxs vanguardistas e esquerdistas de plantão.

     

    NOTAS:

    1. Fonte: http://www.reformapolitica.org.br/noticias/entrevistas/1596-em-jornada-de-lutas-mulheres-denunciam-impactos-do-agronegocio-no-campo.html.

    2. A autora participou, no estado da Bahia, da coordenação dos projetos Cisternas I e Cisternas II e do primeiro projeto piloto Cisternas nas Escolas, cujos resultados desembocaram na criação do Programa do Governo Federal homônimo.

     

    * A autora é liderança mulher negra e feminista do PSOL Salvador. É ainda arquiteta, urbanista e Mestranda de Desenvolvimento Territorial e Gestão Social pela Escola de Administração da UFBA, além de ser dirigente do Coletivo quatro de novembro. Ex-dirigente do DCE-UFBA fez parte da primeira composição da Superintendência de Políticas para as Mulheres do Estado, onde foi uma das responsáveis pela elaboração do 1º Plano Estadual de Políticas para as Mulheres. Hoje atua no fortalecimento de Organizações da Sociedade Civil, como consultora

  • Porquê o sistema ainda vencerá

    Porquê o sistema ainda vencerá

    Brexit, vitória de Trump, movimentos populistas na Europa: o Ocidente está protestando, à direita e à esquerda, contra as ortodoxias neoliberais e globalistas dos últimos 40 anos.

    por Perry Anderson*

    O termo “movimentos antissistêmicos” era comumente usado há 25 anos (1) para caracterizar forças de esquerda em revolta contra o capitalismo. Hoje, ainda que não tenha perdido relevância no Ocidente, seu significado mudou. Os movimentos de revolta que se multiplicaram ao longo da última década já não se rebelam contra o capitalismo, mas o neoliberalismo – fluxos financeiros desregulamentados, serviços privatizados e crescente desigualdade social, variante específica do reinado do capital estabelecido na Europa e na América desde os anos 80. A ordem econômica e política resultante foi aceita de maneira quase indistinguível por governos de centro-direita e centro-esquerda, de acordo com o princípio central de la pensée unique, a sentença de Margaret Thatcher de que “não há alternativa”. Dois tipos de movimento estão agora dispostos contra este sistema; a ordem estabelecida estigmatiza-os, à esquerda e à direita, com a ameaça do populismo.

    Não é por acaso que esses movimentos surgiram primeiro na Europa que nos EUA. Sessenta anos depois do Tratado de Roma, a razão é clara. O mercado comum de 1957, resultado da comunidade do carvão e do aço do Plano Schuman – concebido tanto para evitar qualquer reversão de um século nas hostilidades franco-germânicas quanto para consolidar o crescimento econômico pós-guerra na Europa ocidental – foi o produto de um período de pleno emprego e aumento dos rendimentos populares, o enraizamento da democracia representativa e o desenvolvimento dos sistemas de bem-estar social.  Seus arranjos comerciais incidiram pouco na soberania dos Estados-nação que o compunham, os quais foram fortalecidos ao invés de enfraquecidos. Os orçamentos e as taxas de câmbio foram determinados internamente, pelos parlamentos responsáveis perante os eleitores nacionais, nos quais políticas politicamente contrastantes foram vigorosamente debatidas. As tentativas da Comissão em Bruxelas de formar um grupo foram acentuadamente rejeitadas por Paris. Não só a França sob Charles de Gaulle, mas, na sua forma mais silenciosa, a Alemanha Ocidental sob Konrad Adenauer perseguiu políticas externas independentes dos EUA e capazes de desafiá-los.

    O fim dos trinta anos gloriosos trouxe uma grande mudança nessa construção. A partir de meados da década de 1970, o mundo capitalista avançado entrou em uma longa desaceleração, analisada pelo historiador americano Robert Brenner (2): taxas de crescimento menores e aumentos mais lentos da produtividade, década a década, menos emprego e maior desigualdade, pontuadas por recessões acentuadas. A partir da década de 1980, começando no Reino Unido e nos EUA, e gradualmente se espalhando para a Europa, as direções políticas foram revertidas: os sistemas de assistência social foram reduzidos, as indústrias e serviços públicos foram privatizados e os mercados financeiros desregulamentados. O neoliberalismo havia chegado. Na Europa, isso veio ao longo do tempo para assumir uma forma institucional excepcionalmente rígida: o número de Estados membros daquilo que se tornou a União Europeia multiplicou-se por quatro, incorporando uma vasta zona de baixos salários do Leste europeu.

    Austeridade draconiana

    Da união monetária (1990) para o Pacto de Estabilidade (1997), depois o Ato do Mercado Único (1991), os poderes dos parlamentos nacionais são anulados numa estrutura supranacional de autoridade burocrática protegida da vontade popular, tal como o economista ultraliberal Friedrich Hayek profetizou. Com este mecanismo, a austeridade draconiana poderia ser imposta sobre os eleitores desamparados, sob a direção conjunta da Comissão e de uma Alemanha reunificada, agora o estado mais poderoso da União, onde os principais pensadores abertamente anunciam sua vocação para a hegemonia continental. Externamente, durante o mesmo período, a UE e seus membros deixaram de desempenharam qualquer papel significativo no mundo, em desacordo com as diretivas vindas dos EUA, fazendo com que o avanço das políticas da “neo-guerra fria” em relação à Rússia fosse estabelecido pelos EUA e pago pela Europa.

    Assim, não é de surpreender que as castas cada vez mais oligárquicas da UE, desafiando a vontade popular em sucessivos referendos e incorporando diktats nas constituições, deveriam gerar muitos movimentos de protesto contra elas. Qual é o panorama dessas forças? No núcleo pré-ampliação da UE, a Europa ocidental da Guerre Fria (a topografia da Europa ocidental é tão diferente que se pode ser abandonada para propósitos presentes) , os movimentos de direita dominam a oposição ao sistema na França (Front National), na Holanda (Partido para a Liberdade, PVV), na Áustria (Partido Liberdade da Áustria), na Suécia (Democratas Suecos), na Dinamarca (Partido do Povo Dinamarquês), na Finlândia (Os Verdadeiros Finlandeses), na Alemanha (Alternativa para a Alemanha, AfD) e na Grã-Bretanha (UKIP).

    Na Espanha, Grécia e Irlanda, movimentos de esquerda têm predominado: Podemos, Syriza e Sinn Fein. A exclusividade é a Itália que tem tanto um forte movimento antissistêmico de direita na Lega e um movimento ainda maior na divisão direita/esquerda do Movimento 5 Estrelas (M5S); sua retórica extra-parlamentar sobre impostos e imigração o coloca à direita, em contraste com sua atuação parlamentar à esquerda, de oposição consistente às medidas neoliberais do governo de Matteo Renzi (particularmente sobre educação e desregulamentação do mercado laboral), e seu papel central na derrota da tentativa de Renzi de enfraquecer a constituição democrática da Itália (3). A isso pode ser adicionado o Momentum, que emergiu na Grão-Bretanha por trás do inesperada eleição de Jeremy Corbyn para a direção do Labour Party. Todos os movimentos de direita, à exceção do AfD, precedem o crash de 2008; alguns têm histórias que remontam a década de 1970 ou datas mais antigas. A decolagem do Syriza e o nascimento do M5S, Podemos e Momentum são resultados diretos da crise financeira global.

    O fato central é o maior peso global dos movimentos de direita em relação aos de esquerda, tanto em número de países onde eles chegaram ao governo quanto em força eleitoral. Ambos são reações à estrutura do sistema neoliberal, que encontra sua expressão mais marcante e mais concentrada na atual UE, com sua ordem fundada na redução e privatização dos serviços públicos; a revogação do controle democático e da representação; e desregulamentação dos fatores de produção. Todos os três elementos estão presente em nível nacional na Europa, como em qualquer outro lugar, mas são de um grau maior de intensidade no nível da UE, tal como atestam a tortura da Grécia, o atropelamento dos referendos e a escalada do tráfico humano.  Na arena política, eles são as questões primordiais de interesse popular, dirigindo protestos contra o sistema em relação à austeridade, soberania e imigração. Os movimentos antissistêmicos são diferenciados pelo peso atribuído a cada um – a qual cor na paleta neoliberal eles direcionam a maior hostilidade.

    Movimentos de direita predominam sobre os de esquerda porque desde cedo fizeram a questão imigratória um assunto de sua propriedade, apostando nas reações xenófobas e racistas para ganhar mais apoio entre os setores mais vulnerável da população. Com a exceção dos movimentos na Holanda e na Alemanha, que acreditam no liberalismo econômico, eles são tipicamente ligados (na França, Dinamarca, Suécia e Finlândia) não à denúncia, mas à defesa do estado de bem-estar social, ao mesmo tempo que reclamam que a chegada de imigrantes minam este estado. Mas seria errado atribuir toda sua vantagem a essa carta; em exemplos importantes – a Front National (FN) na França é o mais significativo –  eles também têm uma vantagem sobre outras frentes.

    A união monetária é o exemplo mais óbvia. A moeda única e o banco central, concebido em Maastricht, fizeram a imposição da austeridade e da negação da soberania popular num único sistem. Movimentos de esquerda deveriam atacar isso tão veementemente quanto qualquer movimento de direita, se não mais. Mas as soluções que eles propõem são menos radicais. À direita, a FN e a Lega possuem remédios claros para as tensões da moeda única e para a imigração: sair do euro e parar os fluxos migratórios. À esquerda, com exceções isoladas, nunca se fizeram exigências tão inequívocas. No máximo, os substitutos são ajustes técnicos na moeda única, complicados para ter maior apelo popular e vagas alusões embaraçosas às cotas; nem chega perto de ser tão inteligível para os eleitores como as proposições diretas da direita.

    O desafio da crescente imigração

    A imigração e a união monetária criaram dificuldades especiais para a esquerda por razões históricas. O tratado de Roma foi fundado sobre a promessa de livre movimentação de capitais, commodities e mão-de-obra dentro de um mercado comum europeu. Enquanto a Comunidade Europeia estava confinada aos países da Europa ocidental, os fatores de produção onde a mobilidade mais importava foram o capital e as commodities: a imigração pelas fronteiras dentro da comunidade era geralmente bastante modesta. Mas, no final da década de 1960, o trabalho imigrante de ex-colônias africanas, asiáticas e caribenhas, e de regiões semi-coloniais do ex-Império Otomano, já foi significativo em números. A extensão da UE para a Europa oriental aumentou então consideravelmente a imigração dentro do bloco. Finalmente, as aventuras neo-imperais nas ex-colônias mediterrâneas – a blitz militar na Líbia e a propaganda na guerra civil na Síria – levaram grandes ondas de refugiados para a Europa, juntamente com o terror de retaliação por parte de militantes da região onde o Ocidente permanece acampado como senhor supremo, som suas bases, bombardeiros e forças especiais.

    Tudo isso acendeu a xenofobia: os movimentos anti-sistêmicos da direita se alimentaram dela, e os movimentos da esquerda a combateram, leais à causa de um internacionalismo humano. Os mesmos apegos subjacentes levaram a maioria da esquerda a resistir a qualquer pensamento de acabar com a união monetária, como uma regressão a um nacionalismo responsável pelas catástrofes passadas da Europa. O ideal da unidade europeia permanece para eles um valor cardinal. Mas a atual Europa de integração neoliberal é mais coerente do que qualquer uma das alternativas hesitantes que até agora propuseram. Austeridade, oligarquia e mobilidade dos fatores de produção formam um sistema interligado. A mobilidade dos fatores não pode ser separada da oligarquia: historicamente, nenhum eleitorado europeu foi consultado sobre a chegada ou a escalada do trabalho estrangeiro; isso sempre ocorreu por detrás de suas costas. A negação da democracia, que se tornou a estrutura da UE, excluiu desde o início qualquer posição na composição da sua população. A rejeição desta Europa por movimentos da direita é politicamente mais consistente do que a rejeição pela esquerda, outra razão para a vantagem da direita.

    Níveis recordes de descontentamento dos eleitores

    A chegada do M5S, Syriza, Podemos e AfD marcou um salto no descontentamento popular na Europa. As pesquisas agora registram níveis recordes de insatisfação com a UE. Mas, à direita ou à esquerda, o peso eleitoral dos movimentos anti-sistêmicos permanece limitado. Nas últimas eleições europeias, os três resultados mais bem sucedidos para a direita – UKIP, FN e Partido Popular Dinamarquês – foram cerca de 25% dos votos. Nas eleições nacionais, o valor médio na Europa Ocidental para todas as forças de direita e esquerda combinadas é de cerca de 15%. Essa percentagem do eleitorado representa pouca ameaça ao sistema; 25% pode representar uma dor de cabeça, mas o ‘perigo populista’ do alarme midiático permanece até hoje muito modesto. Os únicos casos em que um movimento anti-sistêmico chegou ao poder, ou parecia que poderia fazê-lo, são aqueles em que um deliberado super-ganho de assentos, através de um prêmio eleitoral destinado a favorecer o establishment, teve um efeito reverso; ou como na Grécia ou na Itália, esses movimentos arriscaram-se a participar desse jogo.

    Na realidade, há uma grande diferença entre o grau de desilusão popular com a UE neoliberal do presente – no último verão, maiorias na França e na Espanha expressaram sua aversão a ela, e mesmo na Alemanha, apenas a metade dos questionados apresentam uma visão positiva sobre o bloco – e a extensão do apoio às forças que se posicionam contra ela. A indignação e o desgosto com o que se transformou a UE é comum, mas há algum tempo o determinante fundamental dos padrões eleitorais na Europa tem sido e continua a ser o medo. O status quo sócio-econômico é amplamente detestado. Mas é regularmente ratificado nos pleitos com a reeleição dos partidos responsáveis por essa situação, por temores de que perturbar o status e alarmar os mercados traria ainda mais miséria. A moeda comum não acelerou o crescimento na Europa e ingligiu graves dificuldades aos países do sul. Mas a perspectiva de uma saída aterroriza mesmo aqueles que sabem até agora o quanto eles sofreram com isso. O medo supera a raiva. Daí a aquiescência do eleitorado grego na capitulação do Syriza em Bruxelas, os reves do Podemos na Espanha, as dificuldades do Parti de Gauche na França. O sentido subjacente é o mesmo em todo lugar. O sistema está mal. Afrontá-lo é arriscar-se a uma represália.

    O que, então, explica o Brexit? Imigração massiva é outro temor em toda a UE, e foi explorado no Reino Unido na campanha pelo Leave, no qual Nigel Farage foi um porta-voz e organizador hábil, juntamente com os proeminentes Conservadores. Mas a xenofobia por si só não é suficiente para compensar o medo de crise econômico. Na Inglaterra, como em toda a parte, a aversão aos imigrantes tem crescido à medida que governos sucessivos mentiram sobre as escalas da imigração. Mas se o referendo sobre a UE tivesse apenas sido uma disputa entre esses medos, como o establishment político pretendia que fosse, o Remain teria vencido indubitavelmente por uma margem considerável, como ocorreu em 2014 com o referendo sobre a independência escocesa.

    Havia outros fatores. Depois de Maastricht, a classe política britânica recusou a camisa de força do euro, apenas para perseguir um neoliberalismo nativo mais drástico do que qualquer outro do continente: primeiramente, a arrogância financeirizada do New Labour, mergulhando a Inglaterra numa crise bancária antes de qualquer outro país europeu e, depois, um governo Liberal-Conservador com uma austeridade mais drástica do que qualquer outra gerada sem constrangimento externo da Europa. Economicamente, os resultados dessa combinação são peculiares. Nenhum outro país europeu ficou tão polarizado por regiões, entre uma metrópole cheia de bolhas e bolsões de alta renda em Londres e no sudeste, e um norte e nordeste desindustrializado e empobrecido onde os eleitores sentiram que tinham pouco a perder se optassem pelo Leave (crucialmente, uma perspectiva mais abstrata que abandonar o euro), seja lá o que acontesse com a City e os investimentos estrangeiros. O medo contou menos que o desespero.

    Politicamente, também, nenhum outro país europeu tem tão flagrantemente manipulado um sistema eleitoral: UKIP foi o maior partido britânico individual em Estrasburgo sob representação proporcional em 2014, mas um ano depois, com 13% dos votos, ganhou apenas uma cadeira simples no Westminster, enquanto o Partido Nacional Escocês (SNP), com menos de 5% dos votos, ficou com 55 assentos. Sob os regimes intercambiáveis dos Trabalhistas e dos Conservadores, produzidos por esse sistema, os eleitores da base da pirâmide desertaram das urnas. Mas de repente concedida, uma vez, uma real escolha num referendo nacional, eles retornaramo com força para proferir seu veredito sobre as desolações de Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron.

    Finalmente, e de forma decisiva, veio a diferenção histórica separando o Reino Unido do continente. Por séculos, o país não foi somente um império que abteu qualquer rival europeu culturalmente, mas ao contrário da França, Alemanha, Itália ou a maioria do restante do continente, não sofreu derrota, invasão ou ocupação em qualquer guerra mundial. Logo, a expropriação dos poderes locais por uma burocracia na Bélgica causou mais atritos que em qualquer outro lugar: por que deveria uma estado que por duas vezes rejeitou o poder de Berlim se submeter a uma intromissão de Bruxelas ou Luxemburgo? Questões de identidade poderiam superar as questões de interesse mais facilmente que no resto da UE. Assim, a fórmula normal – medo de uma represália econômica supera o medo de uma imigração massiva – falhou, deformada por uma combinação de desespero econômico e amor-próprio nacional.

    O pulo dos EUA no escuro

    Essas eram também as condições nas quais um candidato presidencial dos Republicanos dos EUA de antecedentes e temperamento inéditos – abominável para opinião bipartidária mainstream, sem qualquer disposição de se conformar com códigos aceitos de conduta civil e política, odiados por muitos de seu atual eleitorado – poderia apelar para os suficientemente desconsiderados trabalhadores brancos do cinturão da ferrugem a fim de vencer a eleição. Como na Grã-Bretanha, o desespero superou a apreensão em regiões proletárias desindustrializadas. Aí também, muito mais crua e abertamente, num país com uma história mais profunda de racismo nativo, imigrantes foram denunciados e barreiras, físicas e processuais, foram demandadas. Sobretudo, o império não era uma memória distante do passado mas um atributo vívido do presente e uma reclamação natural ao futuro, mas tinha sido descartado por aqueles no poder em nome de uma globalização que significou ruína e humilhação para seu país. O slogan de Donald Trump foi “Fazer a América Grande Novamente” – próspero ao descartar os fetiches do livre movimento de mercadorias e de trabalho, e vitorioso em ignorar os obstáculos e as crenças do multiletarismo: ele não estava errado ao proclamar que seu triunfo foi um grande Brexit. Foi muito mais que uma revolta espetacular, uma vez que não ficou confinado a uma questão única (para a maioria do povo, simbólica), e esteva desprovida de qualquer respeitabilidade do establishment ou bênção editorial.

    A vitória de Trump colocou a elite política europeia, centro-direita e centro-esquerda unidos, em uma consternação ultrajada. Quebrar as convenções estabelecidas sobre imigração é ruim o suficiente. A UE pode ter tido poucos escrúpulos na transferência de refugiados para a Turquia de Recep Tayep Erdogan, com suas dezenas de milhares de prisioneiros, tortura policial e suspensão do que se passa dentro do Estado Democrático de Direito; ou na colocação de arames farpados na fronteira norte da Grécia para manter os imigrantes trancados nas ilhas do Egeu. Mas a UE, respeitando seu decoro democraico, nunca glorificou suas exclusões. A falta de inibição de Trump nesses assuntos não afeta diretamente a UE. A sua rejeição à ideologia do livre trânsito de fatores de produção, seu aparentemente desrespeito desaberto pela OTAN e seus comentários sobre uma atitude menos beligerante com a Rússia são o que causa uma preocupação muito mais séria. Se qualquer um daqueles elementos é mais do que um gesto que logo será esquecido, como muitas das suas promessas domésticas, permanece algo a ser comprovado. Mas sua eleição cristalizou uma diferença significativa entre um número de movimentos antissistêmicos de direita ou de centro ambíguo e partidos da esquerda do establishment, rosa ou verde. Na França e Itália, movimentos de direita têm consistentemente se oposto às políticas de uma “nova guerra fria” e às aventuras militares aplaudidas pelos partidos de esquerda, incluindo a blitz na Líbia e as sanções à Rússia.

    O referendo britânico e a eleição dos EUA foram convulsões antissistêmicos da direita, embora flanqueadas por surtos antissistêmicss de esquerda (o movimento de Bernie Sanders nos EUA e o fenômeno Corbyn no Reino Unido), menores em escala, quando não menos esperados. Quais serão as consequências de Trump ou do Brexit é algo que permanece indeterminado, embora sem dúvida mais limitado que predições correntes. A ordem estabelecida está longe de ser batida em qualquer país e, como a Grécia mostrou, é capaz de absolver e neutralizar revoltas de qualquer direção com velocidade impressionante. Entre os anticorpos já gerados estão os simulacros yuppie dos avanços populistas (Albert Rivera, Emmanuel Macron na França), atacando os bloqueios e corrupções do presente, e prometendo uma política mais limpa e mais dinâmica do futuro, para além dos partidos decadentes.

    Para as movimentos antissistêmicos do esquerda em Europa, a lição dos anos recentes é clara. Se eles não quiserem ser ultrapassados pelos movimentos de direita, não podem ser menos radicais no ataque ao sistema e devem ser mais coerentes em sua oposição. Isso significa enfrentar a probabilidade da UE estar agora tão firmemente no caminho da dependência, enquanto uma construção neoliberal, que reformá-la não é algo mais seriamente concebível.  Teria de ser desfeita antes que qualquer coisa melhor fosse construída, seja rompendo com a atual UE, seja reconstruindo a Europa em outros marcos, lançando Maastricht às chamas. A menos que haja uma crise econômica muito mais profunda, é pouco provável qualquer uma das alternativas.

    * Perry Anderson leciona história na UCLA e publicou recentemente The H-Word: Peripetia of Hegemony, ed.Verso, Londres, 2017.

     

     

    NOTAS

    (1) Por Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e outros.

    (2) Robert Brenner, The Economics of Global Turbulence: the Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long Downturn 1945-2005, Verso, New York, 2006.

    (3) Raffaele Laudani, ‘Renzi’s fall and Di Battista’s rise’, Le Monde diplomatique, Edição Inglesa, January 2017.

    Fonte: Le Monde Diplomatique Inglesa (https://mondediplo.com/2017/03/02brexit)

    Tradução do original (em inglês) para o português: Charles Rosa – Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos

  • Contra o progressimo neoliberal um novo progressismo populista

    Contra o progressimo neoliberal um novo progressismo populista

    por Nancy Fraser  *

     

    A leitura que Johanna Brenner fez do meu artigo “Trump ou o final do neoliberalismo progressista” não toca a centralidade do problema que postulei: a hegemonia. Meu ponto de vista primordial é que o atual predomínio do capital financeiro não se deu apenas pela força, mas também pelo que Gramsci chama “consentimento”.

     

    As forças que se beneficiam com a financeirização, a globalização corporativa e a industrialização tiveram êxito quando o Partido Democrata exibiu como progressista políticas manifestamente anti-operárias.

     

    Os neoliberais ganharam poder recobrindo seu projeto com um novo espírito cosmopolita, centrado na diversidade, na autonomia da mulher e nos direitos dos coletivos LGBTQ. Assumindo esses ideais forjaram um novo bloco hegemônico, que chamei de progressismo neoliberal.

     

    Na identificação e na análise deste bloco nunca perdi de vista o poder dominante do capital financeiro – como insinua J. Brenner – mas do que se trata é oferecer uma explicação de sua preponderância política.

     

    Colocar a lente sobre a hegemonia projeta luzes sobre o progressismo e sobre os movimentos sociais que bateram de frente com o neoliberalismo. Em lugar de analisar quem conspirou ou quem foi cooptado, me concentrei na mudança que se produziu no pensamento progressista; um processo ideológico que modificou o conceito de igualdade pela noção de “meritocracia”.

     

    Nas décadas recentes, o pensamento neoliberal influenciou não só as feministas liberais e os defensores da diversidade (que abraçaram de um certo modo o ethos individualista) mas também muitos dos movimentos sociais. Inclusive aqueles movimentos que J. Brenner denomina partidários do bem-estar social, porque quando estes se identificaram com o progressismo neoliberal fizeram vista grossa a sua contradições.

     

    Afirmar que eles não têm a culpa – como sustenta J. Brenner – não permite entender como funcionam os processos hegemônicos e, tampouco, ajuda a encontrar a melhor maneira de construir a contra-hegemonia.

     

    É necessário avaliar o comportamento da esquerda desde a década de 1980 até a atualidade. Revisando aquele período, Brenner expõe os dados de um impressionante ativismo de esquerda, que apoia e admira tanto como eu apoio e admiro. Penso, no entanto, que esta admiração não deve nos impedir de comprovar que esse ativismo não contribuiu para a construção da contra-hegemonia.

     

    Estes movimentos não tiveram êxito. Ou seja, não conseguiram apresentar-se a si mesmo como uma alternativa crível ao progressismo neoliberal, nem muito menos para sua substituição. Ainda que para explicar os porquês requer-se um estudo “lato”, ao menos uma coisa está clara: para desafiar as versões neoliberais do feminismo, do antirracismo e do multiculturalismo, os ativistas de esquerda não conseguiram chegar aos chamados “populistas reacionários” (ou seja, os brancos da classe operária industrial) que terminaram votando em Trump.

     

    Bernie Sanders é a exceção que confirma a regra. Sua campanha eleitoral, em que pese estar longe de ser perfeita, desafiou diretamente as placas tectônicas da classe política.

     

    Apontando a “classe de multimilionários” estendeu a mão aos abandonados pelo progressismo neoliberal. Ademais, dirigiu-se para a “classe média” porque também é vítima da “economia neoliberal” e porque necessariamente devem estar numa causa comum com as outras vítimas do sistema; os que não tiveram acesso aos postos de trabalho da “classe média”. Ao mesmo tempo, Sanders foi um divisor de águas em relação aos partidários do progressismo neoliberal.

     

    Ainda que derrotado por Clinton, Bernie Sanders abriu o caminho para a construção de um poder contra-hegemônico; no lugar de uma aliança dos progressistas com os neoliberais, Bernie Sanders abriu a perspectiva de um novo bloco “progressista-populista” que combine emancipação com a proteção social

     

    Na minha opinião, a opção de Sanders é a única estratégia de princípios e capaz de ganhar na era Trump. Aos que agora se mobilizam sob a bandeira da “resistência”, lhes sugiro um contra-projeto.

     

    A primeira estratégia sugere uma subordinação ao progressismo neoliberal com um “nós” (os progressistas) contra “eles” (os “deploráveis” partidários de Trump); o que proponho é redesenhar o mapa político – forjando uma causa comum entre todos aqueles que Trump indefectivelmente vai golpear e trair. Estes setores NÃO são somente os imigrantes, as feministas e os negros (que votaram contra ele) também são os trabalhadores parados do “cinturão do óxido” e os estratos da classe operário do Sul que votaram nele.

     

    Contra o que opina J. Brenner, penso que a estratégia não deve colocar em contradição a “política de identidade” com a “política de classe”. Ao contrário, deve identificar claramente os interesses da classe dominante e as injustiças provocadas pelo capitalismo financeirizado construindo alianças para lutar contra ambas.

     

    *  professora de filosofia e política na The New School for Social Research e autora, mais recentemente, de Fortunes of feminism: from State-Managed Capitalism to neoliberal crisis. New York: Verso, 2013.

     

    Fonte: Rebelion (Tradução de Charles Rosa, do Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos)
  • Políticas mundiais de Trump: os dois pontos críticos

    Políticas mundiais de Trump: os dois pontos críticos

    por Immanuel Wallerstein *

     

         O presidente Donald Trump deixou claro que sua presidência terá uma posição sobre tudo e em todas partes. Também deixou claro que somente ele tomará a decisão final sobre as políticas que o seu governo seguirá. Ele escolheu duas áreas prioritárias para implementar suas políticas: México e Síria/Iraque, que é a zona de força do Califado ou Estado Islâmico (EI). Poderíamos chamar estas duas áreas de dois pontos mais críticos (hotspots), onde o magnata está atuando com o seu modo mais provocador.

     

         O México foi o principal assunto de toda sua campanha, primeiro em sua nomeação republicana e depois durante a eleição presidencial. É provável que seus incessantes comentários ásperos sobre o país e os mexicanos lhe tenham angariado mais apoio popular que qualquer outro tema e, portanto, lhe deram a presidência.

     

         Trump se deu conta corretamente de que se não tivesse priorizado realizar ações contra o México arriscava-se a uma rápida e séria desilusão de seus mais ardentes simpatizantes. Logo, assim ele o fez.

     

         Em seus primeiros dias no cargo, tem reiterado que construirá um muro. Assegurou que busca uma revisão importante do NAFTA, e que se isso fracassa, repudiará o tratado. E tem repetido sua intenção de fazer que o México pague pelo muro instituindo um imposto sobre todas as importações mexicanas para os Estados Unidos.

     

         Ele pode realmente fazer tudo isso? Há problemas legais e políticos para que implemente o programa. Os obstáculos legais, de acordo com as leis estadunidenses e internacionais, provavelmente não são tão grandes apesar de que era possível acusar os Estados Unidos de estar violando previsões da Organização Mundial de Comércio (OMC). Se isso fosse ocorrer, Trump provavelmente estaria disposto a retirar os Estados Unidos da OMC.

     

          Há obstáculos políticos mais sérios, que fazem menos possível que possa levar a cabo seu programa pronto e totalmente. Há séria oposição nos Estados Unidos ao projeto, sobre bases tanto morais como pragmáticas. A objeção pragmática é que um muro seria ineficaz para reduzir a entrada de trabalhadores sem documentos e meramente incrementará o custo e o risco para os indivíduos que cruzem a fronteira. É interessante que as objeções pragmáticas estejam sendo expressas pelos fazendeiros texanos, que são alguns dos seus mais fortes simpatizantes. E, evidentemente, há muitas empresas que dependem dos trabalhadores sem documentos e que teriam grandes perdas. Eles constituirão uma força de pressão no Congresso para debilitar tal política.

     

         Tampouco é claro que é possível transferir o custo de construção do muro para os exportadores mexicanos. Já há muitas análises que argumentam que, via o aumento no custo das importações, eventualmente o custo terminará pesando sobre os consumidores estadunidenses também, ou em substituição dos exportadores mexicanos.

     

         Do lado mexicano, o presidente Enrique Peña Nieto inicialmente fez o esforço de negociar os assuntos fronteriços com o presidente Trump. Enviou dois secretários de Estado a Washington para começar as discussões preliminares. Deu-lhe as boas-vindas ao México e anunciou que viajaria para visitá-lo pessoalmente. Esta suave resposta às declarações de Trump foi bastante impopular no México. E Peña é atacado em casa por muitos outros assuntos há muito tempo.

     

         O evidente desinteresse do mandatário estadunidense por acomodar algo com seu homólogo mexicano foi a gota que transbordou o vaso. No México foi considerado humilhante. Peña cancelou sua viagem e assumiu uma postura de desafio a Washington. Fazendo isso, conseguiu que muitos de seus críticos internos se reúnam ao seu redor, reivindicando o orgulho nacional.

     

         Pergunto de novo: Trump pode fazer que o México se dobre a sua vontade? A muito curto prazo, pode parecer que consiga cumprir suas promessas de campanha. A médio prazo, no entanto, não é nada seguro que Trump supere este ponto crítico com um recorde de êxitos.

     

         Síria/Iraque é um ponto crítico ainda mais difícil. Trump disse que tem o plano secreto para eliminar o Estado Islâmico. Tipicamente, ele deu ao Pentágono 30 dias para que concretize propostas. Apenas a partir daí anunciará sua decisão.

     

         Já há uma série de problemas para Trump. Agora, a Rússia parece o ator político individual mais forte na região. Avançou pelo caminho de criar um processo de paz política que inclui o governo de Bashar al-Assad, a principal força de oposição na Síria, a Turquia e o Irã (junto com Hezbolah). Estados Unidos, Europa Ocidental e Arábia Saudita estão todos excluídos.

     

         Tal exclusão é intolerável para o mandatário estadunidense, que já fala agora de enviar tropas terrestres para golpear o ISIS. Mas, com quem se aliarão essas tropas na Síria ou no Iraque? Se o fazem com o governo dominado pelos xiitas, impedirão o apoio das forças tribais sunitas que os Estados Unidos vinham cultivando apesar do respaldo que alguma vez outorgaram a Saddam Hussein. Se eles se aliam com os peshmerga turcos, antagonizarão ainda mais com os governos turcos e iraquianos. Se eles se juntam com as forças iranianas, haverá gritos no Congresso estadunidense e em Israel, tanto como na Arábia Saudita.

     

         Se apesar disso, Trump envia tropas, terá que se defrontar com a grande dificuldade de retirá-las, como se sucedeu a George W. Bush e a Barack Obama. Mas com as inevitáveis baixas estadunidenses pode desaparecer o respaldo que possui em casa. Então, receberá aplausos de mais curto prazo que no caso do México, e provavelmente mais frustrações a médio prazo. Cedo ou tarde, tanto ele como seus simpatizantes aprenderão a amarga verdade sobre os limites do poderio geopolítico estadunidense e, como tal, sobre os limites do poderio mundial de Trump.

     

          O que ocorrerá então? Explorará e cometerá atos perigosos? Isso é o que quase todo o mundo teme; um Estados Unidos demasiado débil no poder real e muito forte em armamento. Trump terá que decidir entre duas opções: utilizar as armas com as quais conta, o que é fútil, porém terrível, ou retirar-se caladamente da geopolítica até a Fortaleza América, admitindo implicitamente o seu fracaso. Em qualquer caso, será uma decisão muito pouco confortável para ele.

     

    * sociólogo norte-americano
    (tradução do espanhol por Charles Rosa, do Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos)

     

  • Previdência Social ou Juros?

    Previdência Social ou Juros?

    por Paulo Kliass*

     

    Ao contrário do que o financismo nos faz crer, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União.

    A entrada em 2017 também pode ser encarada pela ótica de uma busca desesperada por afirmação de alguma rota de coerência e credibilidade do governo Temer. Afinal, o passar do tempo veio desconstruindo, pouco a pouco, toda aquela falsa expectativa criada em torno das vantagens do “golpeachment”. O canto de sereia dos “putschistas” assegurava que, uma vez consumada a retirada de Dilma do Palácio do Planalto, tudo seria resolvido e o Brasil entraria em um verdadeiro céu de brigadeiro.

    A realidade, porém, insistiu em desmentir os vendedores de tais falsas ilusões. Os equívocos do diagnóstico a respeito da situação econômica e social não foram abandonados em relação à leitura equipe anterior, quando o chefe da turma da economia era Joaquim Levy. Muito pelo contrário! A entrada em campo da dupla Meirelles e Goldfajn recoloca o financismo no centro de decisões, ainda com mais poder de fogo. Assim, a manutenção da estratégia do austericídio se vê reforçada, com elevação sensível dos níveis das maldades a serem praticadas contra a maioria da população brasileira.

    Já virou jargão a afirmação de que governar é fazer escolhas e definir prioridades. Pois a imagem cabe como uma luva para a compreensão dos rumos adotados por Temer, desde que ele encabeçou o movimento pela deposição ilegítima da presidenta eleita. Além de optar pela via da inconstitucionalidade do golpe travestido de ares institucionais, Temer escolheu o campo do conservadorismo ortodoxo no domínio da economia. É bem verdade que tal preferência não revelou nada de muito surpreendente, mas ele resolveu aprofundar a aliança com o núcleo duro do sistema financeiro e incorporou para si, de forma definitiva, a narrativa da inevitabilidade do ajuste recessivo.

    Austericídio: cortes no orçamento e juros nas alturas.

    A leitura da turma do neoliberalismo tupiniquim a respeito da dinâmica econômica permanecia monocórdica. A recomendação para superar as dificuldades se resumia, como ainda se reduz, ao binômio do corte das despesas orçamentárias e da manutenção de uma política monetária arrochada. Às favas com as críticas que apontavam para os graves problemas sociais derivados de tal estratégia, além do desprezo pelos economistas que alertávamos para a própria ineficiência de tais medidas para resolver o que se pretendia. A trágica combinação de política fiscal restritiva com taxas de juros estratosféricas provocaria uma mistura explosiva para o conjunto da sociedade.

    Alçado ilegitimamente à condição de chefe de governo, Temer fez as suas escolhas. A radicalização da trilha austericida veio acompanhada de contingenciamentos mais duros de verbas públicas, de taxas de juros reais e nominais inimagináveis, de desmonte de estruturas essenciais da administração pública, entre tantas outras manifestações dos representantes da “nova equipe técnica e competente” que chegava à Esplanada dos Ministérios. Enfim, nem tão eficiente nem tão nova assim, uma vez que os oportunistas de todos os matizes rapidamente se converteram ao novo credo e se acomodaram aos comandos da nova direção.

    O vice-presidente eleito em 2014 estabeleceu suas prioridades. E assim foram considerados essenciais seus objetivos de: i) promover o congelamento das rubricas orçamentárias pelo horizonte de 20 anos da vida nacional; e ii) empurrar goela abaixo da sociedade uma reforma previdenciária redutora de direitos de trabalhadores na ativa e de aposentados. Levando-se em consideração a insanidade da avaliação subjacente a tal aventura criminosa, nada mais coerente com um diagnóstico que tem seus olhos focados única e exclusivamente na necessidade de promover superávit primário a qualquer custo.

    Ocorre que o discurso é mentiroso e o argumento é falacioso.

    Não é verdade que a estrutura da previdência social seja estruturalmente desequilibrada e que sua manutenção levará à quebradeira generalizada do Estado brasileiro. A situação das contas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) passa por um momento de maior dificuldade em função de problemas das receitas do INSS e não por um descontrole insuperável. Os últimos governos promoveram um festival de desonerações das receitas previdenciárias a serem recolhidas pelas empresas. Por outro lado, a redução do ritmo de atividade econômica e a recessão promoveram também uma drástica redução das receitas do RGPS. O aumento do desemprego tem provocado a retirada de milhões de trabalhadores do mercado de trabalho, com evidentes impactos também sobre a previdência.

    Previdência não é estruturalmente desequilibrada.

    Frente a esse quadro é compreensível que haja um descompasso entre entradas e saídas de recursos do sistema. As despesas se mantêm, uma vez que as pessoas continuam aposentadas e outras passam a se aposentar. As receitas diminuem por conta da estagnação provocada pelo austericídio. E daí os jornalões escancaram as manchetes do suposto “rombo enorme” da previdência. Trata-se do mais puro e conhecido alarmismo irresponsável. Desde 2015 as contas apresentam problemas, mas nada comparável a um descompasso estrutural. Se a economia voltar a crescer, as receitas devem retornar a patamares compatíveis às despesas.

    E tudo isso sem mencionar os problemas associados ao contingente da previdência rural e ao abandono deliberado do conceito de seguridade social, tal como definido na própria Constituição. A parte mais relevante do chamado “déficit previdenciário” tem origem nos benefícios concedidos aos trabalhadores do campo, que só foram incorporados ao sistema em 1988 e não apresentam histórico de contribuição. Ao contrário do que afirmam os especialistas em planilha contábil, a decisão dos constituintes foi o reconhecimento de uma profunda dívida da sociedade brasileira para com que esse setor, que até então sempre fora marginalizado e impedido de participar do sistema previdenciário. Já o tripé “saúde-previdência-assistência” que a Constituição define como seguridade social tem suas fontes de receita asseguradas e apresenta um orçamento formalmente equilibrado.

    Não é verdade que a única maneira de evitar o descontrole da inflação seja pela manutenção da SELIC em níveis tão elevados que fazem do Brasil o campeão mundial da taxa de juros há anos, sem interrupção. Exatamente pelo fato de a economia não ser uma ciência exata, existem várias interpretações para o mesmo fenômeno e mais de uma recomendação de política econômica. Tanto isso é verdade que até um dos principais economistas do campo da ortodoxia, André Lara Rezende, acaba de tornar pública uma espécie de “mea culpa” a esse respeito. De acordo com ele, a política que mantém a taxa de juros alta não apenas é ineficaz para reduzir preços, como em alguns casos pode até provocar inflação. Ainda que meio capenga, em sua auto crítica pública, o banqueiro afirma que esse tem sido o caso brasileiro (nem tão) recente. Em suas palavras: “Ou seja, o juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação alta.” Em poucas palavras, ele reconhece o equívoco cometido ao longo dos últimos vinte anos. Resta saber quem vai pagar a conta de tanta irresponsabilidade cometida contra a grande maioria da sociedade.

    Por que não uma Reforma da Política Monetária?

    Ora, se o governo estabeleceu mesmo como objetivo o controle de gastos públicos, sua opção em alcançá-lo pela previdência social revela uma prioridade bastante questionável. Senão, vejamos. Os números oferecidos pelas próprias instituições oficiais encarregadas pela política econômica são cristalinos.

    Ao contrário do que nos faz crer o discurso do financismo, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União. O item do Orçamento federal que oferece o maior rombo é a conta de pagamento de juros. Sim, de acordo com informações do próprio BC, ao longo de 2016 as despesas com esse quesito foram de R$ 407 bilhões, algo que representa em torno de 7% do PIB. Houve momentos, ao longo do ano passado, em que o total acumulado de 12 meses dessa conta chegou a atingir igualmente vergonhosos R$ 540 bilhões. Ainda que sejam gastos da órbita federal, o governo faz cara de paisagem e ignora o assunto quando alguém ousa colocar o tema na mesa. Como não existe nenhuma receita de tributo correspondente a tal atividade, o impacto das despesas é 100% comprometedor do equilíbrio fiscal. No entanto, como outra “prioridade do governo” é a manutenção do superávit primário, não há nenhuma medida para contingenciar ou reduzir os gastos com a política monetária. Afinal, como o povo da finança enche a boca para dizer, os contratos do mercado são sagrados e imexíveis.

    Assim, como a intenção é encontrar contas passíveis de redução na estrutura orçamentária, os especialistas dos cortes não hesitam em apontar o dedo para a previdência social. Afinal, a conta é mesmo expressiva: foram R$ 516 bi em 2016. No entanto, o sistema prevê receitas específicas para sua manutenção. Assim, ainda que fiquemos submissos aos cálculos polêmicos e questionáveis do Ministério da Fazenda, o déficit apresentado pelo sistema no ano passado teria sido de R$ 108 bi. A disparidade entre ambas as contas é evidente! Mas o governo esqueceu juros e optou pela previdência.

    Assim como a chamada “PEC do Fim do Mundo” silenciou sobre congelar os gastos financeiros ao longo dos próximos 20 anos, aqui também o financismo passa incólume – graças ao compadrio generoso dos responsáveis pela equipe econômica. Pouco importa o caráter redistribuidor de renda dos benefícios do INSS. Pouco importa que mais de 40% desse volume de aposentadorias e pensões retorne aos cofres públicos sob a forma de tributos e impostos. Pouco importa que sejam mais de 30 milhões de indivíduos beneficiados por esse tipo de remuneração. A prioridade é a Reforma da Previdência, com o intuito de retirar direitos para reduzir as despesas previdenciárias. E ponto final.

    Juros: R$ 4 trilhões em 2 décadas.

    Por outro lado, a exemplo do que vem sendo praticado há décadas, a prioridade é não mexer com o superávit primário. Assim, não interessa promover nenhuma “Reforma da Política Monetária” – esta sim poderia oferecer algum alívio significativo nos gastos federais. Nesse caso, os dados da Secretaria do Tesouro Nacional são realmente impressionantes. Ao longo de 2 décadas entre 1997 e 2016, por exemplo, o Estado brasileiro registrou um déficit acumulado de R$ 4,1 trilhões em sua conta de juros. Isso significa que foi esse o valor transferido do orçamento público para o sistema financeiro, a título de pagamento dos juros da dívida pública. Todos sabemos que são recursos dirigidos a uma pequena parcela da população e sobre os quais incide uma porcentagem muito reduzida de impostos, em razão da conhecida regressividade de nossa estrutura tributária.

    Previdência social ou juros? Temer fez sua escolha e definiu sua prioridade.

    Cabe à sociedade organizada demonstrar sua discordância e pressionar o Congresso Nacional para evitar a aprovação de tal desastre anunciado.

    * Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

     

    Publicado originalmente na Carta Maior. 08/08/2017. http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEconomia%2FPrevidencia-Social-ou-Juros-%2F7%2F37670 

  • Carandiru, Pedrinhas e Manaus: as prisões como projeto de dominação de classe

    Carandiru, Pedrinhas e Manaus: as prisões como projeto de dominação de classe

    por Marcelo Biar*

    Eis aí, em Manaus, uma nova velha rebelião. Nova em Manaus, e velha no Brasil. Repetitiva, arriscaria dizer. Uma rebelião de classe, ainda que sem consciência. Há algo que unifica a história do Carandiru (SP), Pedrinhas (MA) e COMPAJ (AM). São presídios brasileiros e cumprem, ou cumpriram, a mesma função. A de aglutinar excluídos. Na verdade, os presídios são locais que recebem os indesejados a ordem dominante, quando em excesso. Quando extrapolam o quantitativo conveniente e controlável. É assim hoje em dia e também desde o século XIX quando recebia em sua absoluta maioria, escravos indisciplinados. Pois é, pena de privação de liberdade para quem não a tinha. Reclusão e castigo a quem ameaçava a ordem. No Rio de Janeiro, entre 1810 e 1821, tivemos o total de 4776 presos. Destes, 3182 eram escravos, 944 libertos (negros ex escravos) e 20 homens livres**. Neste período, seja pela questão étnica ou pela condição jurídica (escravo ou homem livre) ficava muito fácil identificar quem devia ser reprimido no Brasil. Hoje, reconfigurada a questão étnica e, transformada a questão jurídica em questão de classe, seguimos com a mesma prática. A mesma lógica. O encarceramento do excluído.

    Mas não se trata apenas de encarcerar. Na verdade é necessário demarcar este grupo como sendo aquele que erra, para que o projeto de dominação e exploração brasileiro tenha êxito. É preciso, portanto, ter uma prática penal que demarque o indivíduo que delinquiu como impróprio para o convívio social, não apenas no período previsto pela pena, mas por todo o sempre. E, considerando que como preso não temos um sujeito social aleatório que cometeu um delito, mas sim um perfil social muito claramente definido, pode-se, assim, atestar a todos, a incivilidade da classe subalterna. Pronto, a classe social que se apodera do aparato jurídico e repressivo legitimador da ordem classista, criminaliza a existência do grupo social por ela explorado. Transforma o estar à margem em ser criminoso. Ou seja, criminaliza toda identidade do subalterno, justificando e absolvendo a relação de produção que o subalternizou. Absolvendo a si própria da expropriação e naturalizando a diferença de classe.

    Completa este quadro o uso que a classe dominante faz do oprimido que, à margem da sociedade, do emprego formal, da condição cidadã e tudo mais, acaba por se ocupar de atividades criminosas que acumulam capital para seu opressor. O tráfico de drogas é um exemplo. A etapa conhecida, temida e criminalizada desta atividade econômica tão contemporânea quanto concentradora de renda é, justamente, a fase varejista que é executada por este subalterno. Este que morre, é preso e não acumula capital. Este que vive e sofre uma peculiar expropriação do grande capital.
    O presídio é um setor importante desta lógica expropriadora. É o local, inclusive, de onde o Estado organiza, fomenta e regula o crime a partir da concentração daqueles que o cometeram, e da “faccionalização” deste. Não por acaso as facções criminosas conhecidas e desenvolvidas nas últimas décadas foram criadas dentro dos presídios com clara intervenção e/ou mediação de agentes do estado.

    O Estado centauro, aquele que possui parte do corpo voltado para a ausência do Estado (em questões sociais) e outra parte para a grande presença (em questões repressivas), assim chamado pelo sociólogo francês, Loicq Wacquant***, tem seu coração no presídio. Nesta lógica neoliberal, em que quanto maior a ausência do estado no campo social, maior, por consequência, no campo repressivo, o aparato vem se sofisticando. Criaram as SEAPs (secretarias de estado de administração penitenciária), o FUNPEN (Fundo Penitenciário) e uma parafernalha tecnológica como detectores de metal etc. Isto que parece investimento de Estado na questão da segurança é especialização e financiamento de um processo de dominação. As SEAPs são a afirmação do encarceramento como fim, já que de todo amplo espectro da execução penal concentra como seu único foco, a privação de liberdade. Não entende esta como um aspecto de todo um contexto que deve ser abrangido que envolve, dentre outras coisas, a reconfiguração de identidade daquele que delinquiu e a mediação com a sociedade e suas relações para que este sujeito se integre de forma construtiva na mesma. É a afirmação da clausura. Por sua vez, o FUNPEN é o órgão que financia tal prática. Criado em 1994, tem se esmerado em financiar ampliações e construções de cadeias. Ampliação deste sistema.

    Neste Brasil que já é o quarto país em população carcerária, Carandiru, Pedrinhas e o recente episódio em Manaus (COMPAJ), são tão somente acidentes de percurso. O problema não são as rebeliões, mas sim o próprio sistema. Mas as rebeliões, contraditoriamente, ao invés de denunciar a falência deste sistema, reforçam no imaginário coletivo a indesejabilidade do preso, e consequentemente do seu grupo social, ratificam a repressão e, pasmem, afirmam a eficiência do Estado que, como se não lhe coubesse responsabilidade no processo de rebelião, aparece com soluções repressivas que nada diferem de suas ações anteriores, mas que parecem redentoras ante grande parte da população amedrontada pelos “perigosos”.

    A foto, amplamente divulgada, dos rebelados de Manaus com armamento pesado no interior do presídio, assusta tanto e a tantos que impede que se pense na falência da instituição que, antes mesmo de ser queimada por estes, já se apresenta secularmente apodrecida. A mesma foto dá vida a notícia de que o governo Temer liberará R$1,2 bilhões para o FUNPEN. Divulgada dias antes da rebelião sem maiores repercussões, esta notícia reciclada pela rebelião dá pungência a ação repressora. Reafirma a necessidade de tal prática. Revigora um governo ilegítimo e gestor das relações que implodiram.

    Não se trata, por ora, de discutir se a gestão dos presídios é pública, terceirizada ou privada. Trata-se de negar a ação gestora opressora. O laboratório de negação de direitos e estigmatização que é o presídio contemporâneo. Esta instituição que, não por acaso, surge na afirmação da sociedade burguesa, é um importante mecanismo da dominação de classe. Atua no consenso e na coerção. Na repressão e na construção de subjetividades que legitimam a desigualdade. Tanto quanto podemos dizer que a prisão é um elemento de opressão de classe, podemos afirmar que qualquer um que anseie o fim da desigualdade social, da opressão classista, que não repense a instituição de privação de liberdade estará operando de forma inócua. Assim, seja em Manaus ou na Lava Jato, na prisão de um ladrão de celular ou do Eduardo Cunha, temos que ter cuidado para não alimentar o monstro que quer nos engolir. A prática de violações aos direitos do cidadão é um projeto de poder, seja na sociedade livre, no trato do judiciário, ou na prisão. Quando comemoramos tal prática com aqueles que não simpatizamos reforçamos uma lógica de opressões com a qual, salvo engano, também não simpatizamos. (Espero que não!). O sistema não pode receber o respaldo de quem deseja sua derrocada. Milhares de presos, no Rio de Janeiro, tem o acesso a água limitado a 3 vezes ao dia com duração de 20 minutos e defecam em buracos no chão. Os chamados “buraco do boi”. Quando alguém comemora a chegada de Sérgio Cabral a uma destas prisões, percebendo ou não, aceita tal situação. E pior, a cada ex governador a ter seu direito violado, a despeito de sua indigna conduta na vida pública, milhares de oprimidos seguirão sendo desrespeitados em sua dignidade. Quando se comemora uma ação arbitrária do juiz Sérgio Moro com um réu da Lava Jato, repito, a despeito de sua indigna conduta, milhares de populares sofrerão, ou continuarão a sofrer, tais arbitrariedades. Enfim, não se vence um sistema comemorando suas ações. Não se rompe a exploração de classes fortalecendo seus mecanismos.

    Termino recordando uma cena do filme 400 contra 1, baseado no livro homônimo de William de Souza (o Professor, fundador do Comando Vermelho), em que presos comuns ao verem sendo retirados do presídio da Ilha Grande os presos políticos, gritam que estava havendo um engano. Dizem que proletários ali, são eles. Sem entrar no mérito de quem representa o proletariado naquela circunstância, é preciso que se deixe claro que o sistema penitenciário brasileiro e o judiciário com sua prática autoritária, são um projeto classista de dominação e opressão. Em Manaus ou em qualquer lugar, o preso, a despeito do delito cometido, é sim um preso político. Um preso de classe. O desrespeito aos direitos humanos, na cadeia, assim como a arbitrariedade da justiça que fere, por muitas vezes, o próprio direito de defesa e a presunção de inocência, também é um projeto de dominação classista. Não perceber ou não denunciar isto é, portanto, consciente ou não, uma prática reacionária que sustenta esta sociedade desigual.

    Manaus, Pedrinhas ou Carandiru, são panelas de pressão. Todas apitam ou explodem. Mas o que devemos discutir não é isto, mas sim a panela em si!

    *Marcelo Biar é professor de História com mestrado em Serviço Social e doutorado em História, pela UERJ. De 2007 a 2011 trabalhou como diretor de escola e professor no Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu_ RJ) e é autor dp livro ARQUITETURA DA DOMINAÇÃO: O RIO DE JANEIRO, SUAS PRISÕES E SEUS PRESOS, Editora Revan.
    ** Este estudo pode ser encontrado no artigo ENTRE DOIS CATIVEIROS: ESCRAVIDÃO URBANA E SISTEMA PRISIONAL NO RIO DE JANEIRO 1790-1821, de Carlos Eduardo M. de Araújo, do livro HISTÓRIA DAS PRISÕES NO BRASIL, Editora Rocco.
    *** Loiq Wacquant é um sociólogo francês, autor de AS DUAS FACES DO GUETO e AS PRISÕES DA MISÉRIA.