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  • Comunicação em debate: se a cidade fosse nossa

    Comunicação em debate: se a cidade fosse nossa

    por Rodolfo Vianna

       A etapa realizada do Ciclo de debates “Se a cidade fosse nossa” realizada em Fortaleza, Ceará, no dia 7 de maio teve duas mesas de discussão. Pela manhã, o Direito à Comunicação foi a pauta e, à tarde, discutiu-se Ecossocialismo. A atividade foi realizada no Espaço de Capacitação, Formação e Pesquisa Frei Humberto, e contou com o apoio do diretório Estadual do PSOL-CE (que transmitiu ao vivo o debate em sua página do Facebook – e o registro pode ser conferido AQUI).

       O deputado estadual Renato Roseno e o vereador de Fortaleza João Alfredo participaram das atividades, conjuntamente com filiados do PSOL e militantes da temática abordada de diversas cidades do interior do estado do Ceará.

       A primeira mesa de facilitadores da discussão contou com a participação de Helena Martins, do Coletivo Intervozes, Roger Pires, do Coletivo Nigéria e de Aldenor Jr., ex-secretário de comunicação da gestão de Edmilson Rodrigues da prefeitura de Belém do Pará.

       Ao iniciar, Helena Martins lembrou da formulação da Unesco que diz que “todas as pessoas têm o direito de produzir, receber e fazer circular informações. É mais do que o direito de liberdade de expressão, que já está consagrado em todas as cartas de Direitos Humanos”. Assim, a ideia de Direito à Comunicação é romper com o desnível existente dos fluxos comunicacionais e garantir de fato que as pessoas possam produzir informação e cultura, fazendo com que essas produções possam chegar até as demais.

      Sobre a legislação que trata da Comunicação no país, Helena acredita que a Constituição brasileira possui aspectos importantes na garantia ao Direito à comunicação, como a previsão da repartição do espectro entre entidades públicas, privadas e estatais de comunicação como também a proibição da formação de monopólios e oligopólios. Entretanto, ressalta a militante, estas restrições não são postas em prática, faltando a regulamentação dos dispositivos constitucionais que não foi realizada até hoje: “nós temos um princípio geral que é progressista mas que na prática não se revela como política”.

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       Roger Pires deu sequência à discussão, informando que o Coletivo Nigéria é uma produtora de audiovisual que, enquanto coletivo de comunicação, funciona como uma cooperativa de comunicadores e de realizadores de vídeos, já com seis anos de produção de conteúdo alternativo. Roger focou sua intervenção sobre como a comunicação no âmbito municipal reflete a segregação existente na própria cidade: a representação dos centros é hegemônica, enquanto que as periferias não se apresentam representadas nos grandes veículos: “qual é o Ceará que nós vemos na televisão?”, questionou, dizendo que sempre que se “vê” a cidade de Fortaleza se “vê” a região da orla da cidade, a Beira-Mar. Porém, para quem vive na cidade mas que não frequenta ou frequenta pouco a região nobre, qual é a significação que essa imagem possui? “Significa muita desigualdade e, apesar de não ser um discurso direto, é um discurso de imagens muito forte”.

       Outra distorção apontada por Roger Pires é a imagem existente da produção jornalística e seus profissionais envolvidos. Enquanto é raro ver negros ou índios frente às câmeras, a imagem dos jornalistas engravatados não representa as condições precárias de trabalho desse segmento profissional, de alta cobrança de produção e de baixos salários. A isso, soma-se a crise dos sindicatos dos profissionais que sofrem de baixa adesão, acarretando uma crise de representatividade e uma perda de força na disputa por melhores condições trabalhistas.

       Como medidas a serem encampadas pelos programas de governo, o militante ressaltou a bandeira da Banda Larga gratuita, que possibilitaria uma maior democratização da comunicação tanto na produção de conteúdo como na sua circulação: “para nós do Coletivo Nigéria, sem internet a gente não distribuiria os vídeos e filmes que a gente faz. A gente acredita muito no potencial da internet para libertar as pessoas seja da TV, seja do rádio ou desses tipos de modelos”.

       Último a oferecer a sua contribuição, Aldenor Jr. apresentou a sua experiência como Secretário de Comunicação da Prefeitura de Belém durante os dois mandatos do então prefeito Edmilson Rodrigues (1997-2005). Em consonância com o eixo da protagonismo popular que orientou a experiência do Executivo da qual participou, Aldenor Jr. lembrou que a comunicação não foi pensada “como uma empresa”, mas sim “a partir do olhar ‘dos de baixo’, como uma ferramenta para educar, para organizar e para politizar o povo” e emendou dizendo que tanto na campanha eleitoral quanto na gestão, a comunicação foi uma ferramenta decisiva como uma política contra-hegemônica na disputa de valores.

       “Um governo de esquerda sempre vai ser um governo sob cerco”, alertou o ex-secretário, narrando que a desconstrução da experiência protagonizada por Edmilson Rodrigues em Belém começou antes mesmo de ele assumir o mandato, partindo das forças contrárias às transformações propostas pelo seu programa de governo: “e, aliás, quando ele não é um governo sob cerco, é porque ele não é um governo de esquerda”, alertou.

       A primeira arma da “comunicação militante”, conceito basilar da proposta desenvolvida à frente da prefeitura de Belém, seria a presença física junto àqueles a quem se quer dirigir a mensagem. A intervenção urbana também é essencial, com a presença das marcas, mensagens, logotipos, etc. nas ruas, prédios e obras. Outra arma é o incentivo e a aposta na mídia espontânea, que foge da dinâmica convencional concentrada nos grandes veículos de comunicação; o que não implica descartar a mídia tradicional, que também precisa ser ocupada de forma inteligente. Sobre os mandamentos da “comunicação militante”, está o respeito ao povo e às suas tradições; manter a política sempre no comando e criar as comunidades reais, e não virtuais, já que estas são voláteis. “A comunicação como um chamado à ação: esta é a mensagem que a comunicação militante traz”, ressaltou Aldenor Jr.

       Encerrada as primeiras falas, o debate foi aberto aos participantes. Na parte da tarde houve a discussão com os presentes sobre Ecossocialismo, cujo relato se encontra em texto separado.

  • Cidades Negras: etapa de debate realizada em Salvador

    Cidades Negras: etapa de debate realizada em Salvador

    por Rodolfo Vianna

    Ocorreu no último dia seis de maio em Salvador, Bahia, mais uma etapa do ciclo de debates “Se a cidade fosse nossa”. Promovidas pela Fundação Lauro Campos, as atividades têm como objetivo incentivar as discussões e dar subsídios à formulação dos programas municipais a serem apresentados pelo PSOL nas eleições deste ano. Na etaparealizada na última sexta-feira, o tema foi “Cidades Negras: racismo, territorialidade e identidades no contexto urbano” e teve o apoio do Setorial de Negros e Negras e do diretório estadual do PSOL-BA.

    A mesa foi composta por Dennis de Oliveira, professor da USP e militante da Rede Quilombação; pelo advogado e professor da UFBA Samuel Vida e pela professora da UESF, Linesseh Ramos. Os trabalhos tiveram a coordenação de Fábio Nogueira, pré-candidato à prefeitura de Salvador neste ano. Militantes de nove estados brasileiros participaram do debate, assim como o vereador de Salvador Hilton Coelho e o candidato ao senado em 2014, o professor Hamilton Assis.

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    Primeiro a usar a palavra, Dennis de Oliveira frisou a necessidade de compreender os três aspectos centrais da constituição do Estado brasileiro. O primeiro, é o de ser um Estado voltado para a manutenção da concentração de renda e do patrimônio; segundo, é um Estado voltado a ter uma concepção restrita de cidadania e, terceiro, é um Estado que se realiza a partir da violência como prática política central, na qual a violência não é episódica. Apesar de vivermos em uma sociedade com um regime democrático institucional, Dennis de Oliveira lembrou que nas periferias ainda existe uma prática característica dos regimes autoritários: “você tem invasões de domicílios sem mandato de busca, você tem execuções extrajudiciais, prisões ilegais e tortura nas delegacias. Isso significa o quê? Isso significa que você tem ainda o contexto de um regime autoritário”.

    Retomando as três características do Estado brasileiro, Dennis de Oliveira entende que o “racismo é a ideologia que vai estar de forma transversal nesses três elementos. O racismo vai definir quem tem e quem não tem patrimônio e renda; o racismo que define quem é e quem não é cidadão e é o racismo que define quem é o autor e quem é a vítima da violência. Ele vai ser o elemento que vai justificar essa crivagem que acontece pela lógica do Estado brasileiro”. Esses elementos acabam por colocar a população negra na “franja da sociedade”, e essa posição acarreta aos negros e negras a perda do direito à cidade. “O conceito de periferia tem uma dimensão espacial, mas também uma dimensão simbólica: o que é periferia? Periferia é estar excluído do centro da política”, atestou o professor, “e essa periferia é para a gente a reconstrução simbólica da senzala”.

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    Na sequência, o professor Samuel Vida fez a sua contribuição. Para ele, há três questões importantes para se abordar o tema das “cidades”, como também para discutir o país e a sociedade brasileira. O primeiro é o “racismo institucional”, que apesar de ter sido formulado há quase 50 anos pelos jovens ativistas dos Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, na obra “Black Power: The Politics of Liberation”, “vem enfrentando um rebaixamento conceitual e interpretativo em todo o mundo, inclusive no Brasil, que é o de dizer que o racismo institucional é o fracasso do provimento de serviços equânimes do ponto de vista racial e étnico pelos organismos de serviços públicos e privados”. Essa compreensão para o professor é equivocada por vários aspectos, dos quais ele destacou dois: “primeiro, ao falar em fracasso presume que essas instituições são neutras e estão aptas a operar políticas de diversidade, o que é um grande equívoco: essas instituições nunca foram concebidas para operar políticas de diferença. Segundo, pressiona o enfrentamento do racismo institucional em torno dos funcionários, dos servidores” sendo que a solução muitas vezes proposta restringe-se à programas de reeducação de servidores. “Não é esta a questão principal”, afirma Samuel Vida.

    O segundo aspecto é 0 da necessidade de se dialogar mais com os conceitos de “biopolítica” e “biopoder”. “Há a necessidade de se aprofundar o entendimento sobre o porquê que algumas vidas, alguns corpos, algumas culturas persistem como vulneráveis”. E, como terceiro aspecto, a importância de se dialogar com o conceito de “Estado de exceção”, com o reconhecimento de que, para além das experiências formais de ditaduras ou de autoritarismo, há uma funcionalidade excludente dirigida focalmente contra certos setores “e que foi amplamente acolhida por todas as experiências de gestão de todos os matizes, inclusive as dos matizes de esquerda, e que se traduz numa normalização da exceção”. Para Samuel Vida, “falar de racismo institucional é tentar entender como esses mecanismos operam de formas distintas e com várias roupagens, podendo ocorrer, inclusive, em espaços governados e administrados por pessoas negras”.

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    Encerrando as contribuições dos convidados da mesa, a professora Linesseh Ramos centrou sua fala na luta antiproibicionista que desenvolve, especialmente como repercute para as mulheres negras. A política de guerra à drogas tem um marco histórico no Brasil que coincide com uma política internacional de contenção de grupos que é o período da Lei Áurea, fator que é fundamental para compreender que a política da guerra à drogas “é uma política essencialmente racista”. A professora lembrou que muitas drogas, especialmente a maconha e alguns chás, tinham um papel simbólico e ritualístico na cultura negra, e por isso sofreram uma política de estigmatização e de construção de uma relação negativa ao uso feito pelos negros.

    Lançando mão de dados do Ipea, Linesseh Ramos informou que o Brasil é o quinto país que mais encarcera mulheres negras, e o principal motivo para isso é a política de guerra às drogas, que serve de cobertura para a utilização do aparato repressivo do Estado de forma a violentar as mulheres negras, invadir seus espaços e matar seus filhos. “Muitos de nós, e falo de nós da esquerda em geral, inclusive muitos dos companheiros brancos, não assumem ou não podem assumir que fumam maconha por uma diversidade de estigmas, e não assumem também esse debate porque ele é colocado como um tabu. E, reparem, a gente trata na sociedade como um tabu uma política que mata jovens todos os dias”.

    Continuando, a professora deixou claro que “o empoderamento da mulher negra é algo que não volta mais atrás: a questão de colocar que nós podemos assumir espaços de poder na academia, na política e na própria vida não volta mais atrás, e isso é fundamental na luta democrática”, e atestou: “o empoderamento das mulheres negras é fundamental à luta democrática. O racismo atua no sentido de manter a faxina ética. Não existe socialismo e liberdade se não tivermos o fim do racismo”.

    Encerrada as falas da mesa, a palavra foi aberta aos participantes do evento que deram prosseguimento ao debate com diversas intervenções sobre o tema. Encerrada a discussão, todos foram convidados para a inauguração da nova sede do PSOL estadual da Bahia, já apelidada pela militância de “Casa Amarela”, que fica na Avenida Sete de Setembro, em frente ao antigo Hotel da Bahia, no bairro de Campo Grande.

    Em breve a Fundação Lauro Campos disponibilizará o registro da atividade na integra.

  • A crise no Brasil

    A crise no Brasil

    Os países dos BRICS estão em apuros. Por um tempo eles foram os dínamos do crescimento global enquanto o Ocidente estava envolto na pior crise financeira e recessão econômica desde a Grande Depressão, mas agora eles se tornaram a principal fonte de preocupação nos quartéis-generais do FMI e do Banco Mundial. A China, acima de todos eles, por causa do seu peso na economia global: produção desacelerada e um Himalaya de dívidas. A Rússia: sitiada, com a queda dos preços do petróleo e as sanções tirando seu quinhão. A Índia: segurando melhor as pontas, mas com preocupantes revisões estatísticas. A África do Sul: em queda livre. As tensões políticas emergem em cada um deles: Xi e Putin respondem às tensões com força bruta, enquanto Modi vai se afundando nas pesquisas e Zuma é jogado na lama junto com seu próprio partido. Todavia, em nenhum outro lugar as crises política e econômica se fundiram de forma tão explosiva quanto no Brasil, cujas ruas no último ano viram mais manifestantes do que o resto do mundo combinado.

    Escolhida por Lula para a sucessão, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira que se tornou chefe de Estado, venceu a disputa presidencial em 2010 com uma maioria esmagadora de votos. Quatro anos depois ela foi reeleita, mas dessa vez com uma margem muito menor de votos, uma vantagem de 3% sobre o seu oponente, Aécio Neves, governador de Minas Gerais, num pleito marcado por uma polarização regional nunca antes vista, com um Sul-Sudeste industrializado voltando-se contra ela e com um Nordeste lhe dando uma vantagem ainda maior do que em 2010, com 72%. Mas, ainda assim, foi uma vitória definitiva, comparável à de Mitterrand sobre Giscard, e maior, para não dizer também mais limpa, do que a de Kennedy sobre Nixon. Em janeiro de 2015, Dilma – e nesse ponto vamos abandonar os sobrenomes, como os brasileiros costumam fazer – começou sua segunda presidência.

    Em três meses, grandes manifestações lotaram as ruas das principais cidades do país, com cerca de pelo menos dois milhões de pessoas que exigiam sua saída. No Congresso, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de Neves e seus aliados, encorajados pelo fato de que as pesquisas mostravam a queda vertiginosa na popularidade de Dilma, se movimentaram para conseguir seu impeachment. No dia Primeiro de Maio, ela não conseguiu nem mesmo dar seu discurso tradicional transmitido pela televisão a todo o país. Anteriormente, quando seu discurso no dia Internacional da Mulher foi transmitido, as pessoas começaram a bater suas panelas e fazer buzinaços, numa forma de protesto que ficou conhecida como panelaço. Da noite para o dia, o Partido dos Trabalhadores (PT), que desfrutara do mais longo e maior índice de aprovação do Brasil, tornou-se o partido mais impopular do país. Confidencialmente, Lula teria lamentado: ‘Nós vencemos a eleição. No dia seguinte, nós a perdemos’. Muitos militantes se questionaram se o partido iria sobreviver a tudo isso.

    Como a situação chegou a esse ponto? No último ano do governo Lula, quando a economia global estava ainda se recuperando da primeira onda do crash financeiro de 2008, a economia brasileira cresceu 7,5%. Ao assumir o governo, Dilma instituiu uma política de controle contra o superaquecimento da economia, o que deixou satisfeita a imprensa financista, naquilo que parecia ser uma política semelhante a que Lula teve durante o início de seu primeiro mandato. Mas tão logo o crescimento experimentou uma queda vertiginosa e as finanças globais pareceram sombrias novamente, o governo mudou seu prumo, criando um pacote de medidas que visavam priorizar os investimentos em desenvolvimentos subsidiados. As taxas de juros foram reduzidas, as dívidas trabalhistas foram abatidas, os custos da energia elétrica foram reduzidos, a moeda se desvalorizou e foi imposto um limitado controle sobre o movimento do capital.[1] No embalo de todo esse estímulo, durante a primeira metade de sua presidência, Dilma desfrutou de um índice de aprovação de 75%.

    Mas, ao invés de decolar, a economia desacelerou de um crescimento medíocre de 2,72% em 2011 para mero 1% em 2012. Além disso, com uma inflação que já ultrapassava os 6%, em abril de 2013 o Banco Central aumentou os juros de forma abrupta, minando assim a base da “nova matriz econômica” de Guido Mantega, o ministro da Fazenda. Dois meses depois, o país foi acometido por uma onda de protestos de massas cuja origem estava nas passagens de ônibus em São Paulo e no Rio, mas que rapidamente aumentaram sua dimensão tornando-se expressões generalizadas de descontentamento com os serviços públicos e, estimulados pela mídia, também de hostilidade contra um Estado incompetente. Rapidamente a aprovação do governo caiu para a metade. Em resposta, ele bateu em retirada, dando início a reduções caucionárias nos gastos públicos e permitindo que os juros aumentassem novamente. O crescimento caiu ainda mais – ele seria praticamente zero em 2014 – mas o desemprego e os salários permaneceram estáveis. No fim de seu primeiro mandato, Dilma liderou uma desafiadora campanha para reeleição ao assegurar a seus eleitores que ela continuaria priorizando as melhorias nas condições de vida dos trabalhadores, assim como atacando o seu oponente do PSDB por planejar reverter os acúmulos sociais feitos pelo PT, cortando benefícios e atingindo assim os mais pobres. Apesar do contínuo ataque ideológico sofrido contra ela pela imprensa, ela conseguiu chegar à vitória.

    Antes mesmo de seu segundo mandato começar formalmente, Dilma mudou o seu rumo. Ela rapidamente passou a defender que um pouco de austeridade se fazia necessária. O arquiteto da nova matriz econômica foi então dispensado do ministério da Fazenda e quem assumiu foi alguém orientado em Chicago, o diretor da gestão de ativos do segundo maior banco privado do Brasil, assumindo um mandato que deveria reduzir a inflação e restaurar a confiança. Os imperativos tornaram-se o corte nos gastos sociais, reduzir o crédito dos bancos públicos, leiloar propriedades do Estado e aumentar taxas para trazer o orçamento de volta a uma situação de superávit primário. Rapidamente o Banco Central aumentou sua taxa de juros para 14,25%. E já que a economia se encontrava estagnada, o efeito desse pacote pró-cíclico foi de mergulhar o país numa recessão generalizada – queda nos investimentos, salários diminuindo e o desemprego dobrando. Enquanto o PIB contraía, as receitas fiscais diminuíam, piorando ainda mais o quadro de déficit e dívida pública. Nenhum índice de aprovação do governo poderia ter aguentado a rapidez de tal deterioração econômica. Mas a crise da popularidade de Dilma não foi resultado apenas de um resultado previsível sobre o impacto da recessão nas condições de vida do povo. Ela também foi, ainda que seja mais dolorido admiti-lo, o preço a ser pago por ela ter abdicado das promessas pelas quais ela foi eleita. De forma generalizada, a reação de seus eleitores foi de que sua vitória poderia ser qualificada como ‘estelionato’, ou seja: ela enganou seus apoiadores ao cumprir o programa dos seus adversários de campanha. E isso não gerou apenas desilusão, mas também raiva.

    Ainda que ocultas, as raízes dessa debacle vingaram justamente no solo do próprio modelo petista de crescimento. Inicialmente poderia se dizer que seu sucesso dependia de dois tipos de nutrientes: um superciclo de aumento nos preços das commodities e um boom do consumo doméstico. Entre 2005 a 2011, os ganhos comerciais do Brasil aumentaram para mais de um terço, pois a demanda por matéria-prima da China e de outras partes do mundo aumentou o valor das suas principais exportações, assim como o volume de retorno fiscal para gastos sociais. No final do segundo mandato de Lula, a fatia correspondente da exportação de bens primários dentre as exportações brasileiras subiu de 28 para 41%, no que o espaço dos bens manufaturados caiu de 55 para 44%; no final do primeiro mandato de Dilma, as matérias-primas eram responsáveis por mais da metade do valor das exportações. Mas de 2011 em diante, os preços das principais mercadorias comercializadas pelo país entraram em colapso: o minério de ferro caiu de 180 dólares para 55 dólares a tonelada, a soja caiu de aproximadamente 40 dólares a saca para 18 dólares, o petróleo cru despencou de 140 dólares para 50 dólares o barril. E reagindo ao fim da bonança do comércio exterior, o consumo doméstico também entrou em declínio. Durante seu governo, a principal estratégia do PT foi expandir a demanda interna ao aumentar o poder de compra das classes populares. E isso foi possível não apenas com o aumento do salário mínimo e com transferências de renda para os pobres – o ‘Bolsa Família’ – mas também por uma massiva injeção de crédito aos consumidores. Durante a década de 2005 a 2015, o total de débitos controlados pelo setor privado aumentou de 43% para 93% do PIB, com empréstimos aos consumidores atingindo o dobro do nível dos países vizinhos. Quando Dilma foi reeleita, em 2014, os pagamentos de juros no crédito mobiliário estavam absorvendo mais de 1/5 da renda média disponível dos brasileiros. Junto com a exaustão do boom das commodities, a época de gastança também não era mais viável. Os dois principais motores do crescimento tinham estagnado.

    Em 2011, o alvo da nova matriz econômica de Mantega foi estimular a economia a partir de um aumento nos investimentos. Mas os meios para fazê-lo tinham diminuído. Desde 2006, os bancos estatais passaram a aumentar gradualmente sua quantidade de empréstimos, indo de um terço para metade de todo crédito – o portfólio do banco de desenvolvimento do governo, o BNDES, chegou a aumentar em sete vezes seu valor desde 2007. Ao ofertar taxas preferenciais de juros para as grandes companhias num valor muito mais alto do que os outros subsídios para as famílias pobres, a ‘Bolsa Empresarial’ passou a custar ao tesouro nacional o dobro do que custava a ‘Bolsa Família’. Favorável ao agronegócio e às construtoras, essa expansão direta dos financiamentos públicos foi um anátema pelo qual a classe média urbana passou a aderir a um movimento cada vez mais violento anti-PT, com a mídia nacional – amplificada pela imprensa financista de Nova York e Londres – fazendo vitupérios sobre os perigos do estatismo. Assim, ao mudar de direção, Mantega esperava impulsionar os investimentos do setor privado com concessões tributárias e juros mais baixos, mas isso impactou na redução dos investimentos nas estruturas públicas do país, assim como pela desvalorização do Real que ajudou nas exportações manufatureiras. Mas todos esses agrados à indústria brasileira foram em vão. Estruturalmente, as finanças são uma força muito maior no país. A capitalização combinada dos dois maiores bancos privados do Brasil, Itaú e Bradesco, é hoje duas vezes maior do que da Petrobrás e da Vale, as duas principais empresas extrativas do país, e com finanças muito mais saudáveis. As fortunas desses e de outros bancos foram concebidas de acordo com o maior sistema de juros de longo prazo do mundo – um horror para os investidores, mas verdadeiro maná para os rentistas – e com um abissal spread bancário, com mutuários pagando de cinco a vinte vezes mais pelos seus empréstimos. Além disso, somando-se a esse quadro, há também o sexto maior bloco de fundos de pensão do mundo, sem falar no maior banco de investimento da América Latina, uma verdadeira constelação de fundos de cobertura e de private equity.

    Na esperança de que isso trouxesse o setor industrial para o seu lado, o governo confrontou os bancos ao força-los a aceitarem a recuarem o patamar sem precedentes de 2% dos juros no final de 2012. Em São Paulo, a Federação das Indústrias (FIESP) brevemente expressou satisfação perante a medida, para logo depois pendurar bandeiras em apoio aos manifestantes anti-estatistas de Junho de 2013. Os industrialistas ficaram felizes em colher os frutos de altos rendimentos durante o período de crescimento elevado do governo Lula, no qual virtualmente cada grupo social viu sua posição melhorar. Mas quando isso terminou durante o governo Dilma e as greves recomeçaram, eles não tiveram qualquer compaixão por quem lhes favorecera anteriormente. E não apenas as grandes empresas, assim como suas parceiras do Norte global, se encontravam cada vez mais em holdings financeiros que eram afetados negativamente por conta das políticas rentistas – e por essa razão, não poderiam dar às costas totalmente aos bancos e fundos de investimento –, mas o próprio grupo social a que pertenciam a maior parte dos empresários era formado por uma alta classe média que tornara-se mais numerosa, vocal e politizada do que os antigos grupos de empresários, manifestando assim maior capacidade de comunicação e coesão ideológica perante a sociedade em geral. A furiosa hostilidade desse estrato para com o PT foi inevitavelmente seguida também pelos industrialistas. Tanto os banqueiros do andar de cima e os profissionais do andar de baixo, ambos estavam comprometidos a derrubar um regime que agora viam como ameaça aos seus interesses comuns, o que significou que os empresários tinham cada vez menos autonomia.

    Contra essa frente, que tipo de apoio o PT poderia esperar? Os sindicatos, ainda que mais ativos no governo Dilma, eram apenas uma sombra do seu antigo passado. Os pobres seguiram sendo beneficiários passivos do governo petista, que nunca se dispôs a educa-los ou organizá-los, quanto muito mobilizá-los em torno de uma força coletiva. Movimentos sociais – dos sem-terra e dos sem-teto – foram mantidos distantes do governo. Intelectuais acabaram sendo marginalizados. Mas não houve apenas uma ausência de potencialização política das energias vindas dos subalternos. Também não existiu uma verdadeira política de redistribuição de riqueza ou de renda: a infame estrutura tributária regressiva legada de Fernando Henrique Cardoso para Lula, que penalizava os pobres e deixava os ricos intocados, foi mantida. Houve, de fato, alguma distribuição que acabou melhorando consideravelmente as condições de vida dos mais miseráveis, mas isso foi feito de forma ainda individualizada. Com o ‘Bolsa Família’ tomando forma de recompensa para mães de filhos em idade escolar, isso era um resultado esperado. Aumentos no salário mínimo significaram também um aumento no número de trabalhadores com ‘carteira assinada’, o que lhes garantiria acesso aos direitos formais do emprego; mas não houve aumento, e pode ter havido até mesmo uma queda, na sindicalização. Acima de tudo, com a chegada do ‘crédito consignado’ – os empréstimos bancários com juros altos deduzidos diretamente dos salários – o consumo privado cresceu sem amarras e às custas dos gastos com serviços públicos, cujas melhorias teriam sido uma forma mais cara de estimular a economia. A compra de eletrônicos, bens de consumo e veículos foram estimuladas (a compra de automóveis recebeu incentivos fiscais), enquanto o suprimento de água, pavimentação, ônibus eficientes, saneamento básico aceitável, escolas decentes e hospitais públicos foram negligenciados. Os bens coletivos não tinham prioridade nem ideológica e nem prática. Logo, junto com a tão necessária melhoria nas condições de vida doméstica, o consumismo em sua forma mais deteriorada se espalhou nas camadas populares através de uma hierarquia social em que a classe média se deslumbrava, ainda que por padrões internacionais, com revistas e shopping centers.

    O quão prejudicial isso foi para o PT pode ser observado através da questão da moradia, onde necessidades individuais e coletivas mais visivelmente se intersectam. Nela, a bolha de consumo se transformou cada vez mais numa dramática bolha imobiliária, na qual vastas fortunas foram feitas por empreiteiros e empresas de construção enquanto o preço dos imóveis disparou para a maioria das pessoas que viviam nas grandes cidades e cerca de um décimo da população não tinham acesso a moradias adequadas. Entre 2005 a 2014, o crédito para a especulação imobiliária e construção civil aumentou vinte vezes; em São Paulo e no Rio de Janeiro os preços por metro quadrado quadruplicaram. Somente no ano de 2010, os aluguéis em São Paulo aumentaram 146%. E nesse mesmo período, havia cerca de 6 milhões de apartamentos desocupados, com sete milhões de famílias sem teto. E ao invés de aumentar a oferta de casas populares, o governo financiou construtoras privadas para construírem condomínios mediante um belíssimo lucro em áreas periféricas, cobrando aluguéis mais caros do que aqueles que os mais pobres poderiam pagar, ao mesmo tempo que ele apoiava as autoridades locais e os despejos feitos em ocupações. Diante de tudo isso, os movimentos sociais ganharam fôlego com os sem-teto e agora são uma das principais forças do Brasil: esses movimentos não estão dentro, mas sim contra o PT.

    Sem contar com uma força-tarefa popular capaz de lidar com a pressão das elites do país, Dilma sem dúvida torceu para que, após sua apertada reeleição, ao bater em retirada economicamente, com uma política inicial de apertar os cintos semelhante a que Lula fez nos seus primeiros anos no poder, ela poderia então reproduzir o mesmo tipo de virada de mesa. Mas as condições externas impediram qualquer comparação possível. A dança dos commodities já se foi e uma recuperação, seja lá quando vier, parece não ter sustentação. Pode se argumentar, observando esse contexto, que a extensão das atuais dificuldades não deve ser exagerada. O país está passando por uma severa recessão, com o PIB caindo 3,7% no último ano e provavelmente a mesma coisa acontecerá esse ano. Por outro lado, o desemprego ainda está longe de atingir os níveis da França, o que dirá da Espanha. A inflação é ainda mais baixa do que os anos de FHC e o país possui mais reservas. O déficit público é metade do déficit da Itália, ainda que com os juros brasileiros o custo de reduzi-la seja bem maior. O déficit fiscal ainda está abaixo da média dos Estados Unidos. Tudo isso tende a piorar. Todavia, a atual profundidade do abismo econômico não encontra respaldo no volume do clamor ideológico que existe sobre ele: a oposição militante e a fixação neoliberal possuem interesses em aumentar o grau de martírio do país. Mas isso, por sua vez, não reduz a escala da crise a qual o PT está agora envolto, que não é apenas econômica, mas também política.

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    Pode-se dizer que as origens desse dilema residem na estrutura da Constituição Brasileira. Em praticamente quase todos os países da América Latina, presidências inspiradas pelo modelo estadunidense coexistem com parlamentos aos moldes europeus: ou seja, Executivos superpoderosos de um lado e, do outro, Legislativos eleitos por um sistema proporcional de representação – e não no modelo distorcido de past-the-post, tal qual nos sistemas anglo-saxões.

    O resultado típico desse modelo, ainda que não seja invariável, é uma presidência com enormes poderes administrativos cuja fraqueza reside no fato de que nenhum partido consegue ter uma maioria parlamentar com poder significativo. Todavia, em nenhum lugar o Executivo se separou tanto do Legislativo como no Brasil. Isso é porque, acima de tudo, o país possui o mais frágil sistema partidário do continente. No Brasil, a representação proporcional toma forma de um sistema de lista aberta na qual os eleitores podem escolher qualquer candidato dentro de um enorme número de indivíduos que nominalmente estão dentro da mesma disputa, em legislaturas que geralmente recebem cerca de pouco mais que dois milhões de votos. As consequências dessa configuração são duais. Na maioria dos casos, eleitores escolhem um político que eles conhecem – ou acham que conhecem – ao invés de escolherem um partido do qual eles pouco ou nada sabem, enquanto os políticos, por sua vez, precisam obter uma grande quantia de dinheiro para financiar suas campanhas e garantir que os eleitores se identifiquem com eles. A grande maioria dos partidos, cujos números aumentam a cada eleição (atualmente há 28 partidos com representação no Congresso), não possuem qualquer coerência política, o que dirá disciplina política. O seu propósito é simplesmente assegurar favores dos chefes do Executivo diretamente para os seus bolsos e, claro, dar algum retorno para assegurar a reeleição de seus correligionários, oferecendo aos governos votos favoráveis nas diferentes câmaras.

    Quando o Brasil emergiu após duas décadas de Ditadura Militar em meados dos anos 1980, esse sistema foi criado por uma classe política que se moldara sobre ela. Objetivamente, a sua função era (e ainda é) neutralizar a possibilidade de que a democracia levasse à formação de algum tipo de vontade popular que ameaçasse a grandeza da desigualdade brasileira, ao anestesiar as preferências eleitorais num miasma de disputas subpolíticas por vantagens venais. Cabe ressaltar que o que acentua os problemas desse sistema é também sua massiva desproporção geográfica. Todo os sistemas federais exigem algum tipo de equalização dos pesos de cada região, geralmente envolvendo uma sobrerepresentação das áreas menores e rurais numa câmara mais alta, às custas das áreas maiores e mais urbanizadas, tal como o Senado dos EUA. Contudo, poucos países chegam perto do grau de distorção criado pelos engenheiros do sistema brasileiro, no qual a proporção dessa sobrerepresentação entre os pequenos e maiores Estados atinge uma proporção de 88 para 1 (nos EUA ela fica em torno de 65 para 1). E o problema não é apenas o fato de que as três mais pobres e atrasadas regiões controlam 3/4 dos assentos do Senado e contam com cerca de 2/5 da população (assombradas, na maior parte, pelos mais tradicionais ‘caciques’ que dominam as clientelas mais submissas). Mas de forma única, eles também comandam a Câmara dos Deputados. Ou seja, ao invés de corrigir esse problema conservador do sistema, a democratização o aumentou, criando inclusive novos estados com população pequena, desequilibrando ainda mais o cenário.

    Nesse cenário, ao contrário de outros países da América Latina que emergiram do domínio dos militares nos anos 1980, nenhum partido político significativo do período anterior à ditadura sobreviveu. Na verdade, o palco foi inicialmente ocupado por duas forças derivadas das invenções dos generais: o partido da oposição permitida, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e seu partido de situação, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – ridicularizados por serem vistos como os partidos do ‘sim’ e do ‘sim senhor’. O primeiro posteriormente renomeou-se como Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e boa parte do segundo se transformou em Partido da Frente Liberal (PFL). Com a saída dos militares, o primeiro governo estável de fato só aconteceu com a presidência de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, nascida de um pacto de uma dissidência do PMDB que ele ajudara a criar, nominalmente social-democrática, mas na realidade social-liberal (o PSDB), cujo eleitorado se concentrava nas regiões Sul e Sudeste. Ao lado do PSDB estava o nominalmente liberal, mas na realidade conservador PFL, cuja base se encontrava nas regiões Norte e Nordeste. Esse foi um pacto entre os oponentes moderados e os tradicionais ornamentos da Ditadura e conseguiu construir uma grande maioria no Congresso, agindo a serviço daquele que se tornaria o principal programa neoliberal do país, afinado com o Consenso de Washington. Enquanto candidato presidencial, Cardoso – tomado pelo grande capital como uma garantia contra radicalizações – recebeu enormes quantias de dinheiro: os ricos sabem reconhecer seus amigos. O custo relativo de suas campanhas, num país mais pobre, foi maior até mesmo que os gastos das campanhas de Clinton no mesmo período. Concorrendo contra ele estava Lula, diante de uma montanha de dinheiro que financiava a campanha de Cardoso. Mas assim que assumiu o cargo, FHC geralmente não precisou de dinheiro para comprar o apoio do Congresso – embora exista pelo menos uma notável exceção nessa afirmativa – pois sua coalizão com os clãs das oligarquias do Nordeste, ainda que sujeitas às suas disputas regionais, não era meramente oportunista, mas sim baseada numa parceria natural para objetivos comuns. O acordo foi estável e, nos anos recentes, foi muito elogiado por admiradores de Cardoso no Brasil e nos países anglófonos, considerado um modelo de ‘presidencialismo de coalizão’, tomado inclusive como um exemplo esperançoso para o resto do mundo, em lugares onde os modelos de governo europeu ou americano raramente conseguem vingar.

    Ainda assim, os cofres das campanhas de FHC estavam ‘limpos’ no sentido dos financiamentos americanos, onde os Super PACs compram votos, e sua coalizão era ideologicamente sólida, já que uma vez eleito, nem seus objetivos e tampouco os de seus aliados poderiam ser atingidos por outros meios. Tanto seu vice-presidente, Marco Maciel, assim como seu mais poderoso aliado no Congresso, Antônio Carlos Magalhães, eram verdadeiros eixos da política repressiva no Nordeste – ambos instalados pela Ditadura como governadores, o primeiro em Pernambuco e o segundo na Bahia, algo feito tão logo eles apoiaram a derrubada do regime democrático em 1964 – e sem nenhuma intenção de alterar esses métodos tradicionais. ACM, como gostava de ser chamado, bravateava: ‘Eu ganho eleições com um saco de dinheiro na mão e um chicote na outra’. Seu filho, Luís Eduardo, era o político favorito de Cardoso no Congresso, o delfim apontado para sucedê-lo e assim seria se não tivesse morrido precocemente. O próprio FHC, que por um bom tempo sustentou que a reforma do sistema partidário era uma prioridade para o Brasil e prometeu entrega-la, mudou de ideia tão logo chegou no Palácio do Planalto, afirmando que a maior prioridade era revisar a Constituição para que ele próprio pudesse ser reeleito para um segundo mandato. Abandonando qualquer tentativa de racionalizar ou democratizar a ordem política, ele presidiu – e para isso, sim, foi necessário – uma campanha direta de subornos a deputados para comprar uma super-maioria no Congresso requerida para passar a emenda da reeleição.

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    Quando Lula foi finalmente eleito em 2002, o PT estava numa posição diferente. Assim que ele passou a reassegurar que não atacaria bancos e empresas, e tão logo pareceu que sua vitória era certa, essas companhias passaram a financiá-lo, ainda que numa escala menor do que a de seu predecessor. Mas dentro do Congresso ele não possuía aliados naturais que tivessem muita expressão. O PT, apesar de toda a moderação da campanha de Lula na presidência, era visto – e ainda é – como um partido radical, posicionado à esquerda do verdadeiro pântano que domina o Legislativo. Lá, ele nunca conseguiu mais do que 1/5 dos deputados, somando uma votação três vezes menor do que a do próprio Lula. Como garantir algum tipo de maioria funcional para apoiá-lo em meio a esse verdadeiro marais? O método tradicional, concretizado numa escala heroica durante a primeira presidência civil após a Ditadura – a de José Sarney, outro antigo lacaio dos generais –, era o de comprar apoios distribuindo ministérios e cargos de confiança para aqueles que tivessem interesse e pudessem trazer consigo a maior quantidade de votos. Inicialmente isso ocorreu dentro das facções de seu próprio partido, o PMDB, a maior e mais fisiológica entidade política do país e que, uma década depois, tornara-se a fossa na qual desaguavam todas os riachos da corrupção política. O caminho clássico para o PT era então fazer acordos com essa criatura, alocando para eles uma boa parte de seus ministérios e agências estatais. Todavia, essa solução fora rejeitada pelo partido – há uma disputa sobre quem, dentro da cúpula, estava a favor e quem estava contra – pois havia receio de que as consequências seriam criar um peso-morto ideológico dentro do governo que poderia neutralizar o momentum progressista que se criara. Ao invés disso, a decisão foi de costurar um grupo de apoiadores de uma densa camada de partidos pequenos, sem conceder assim muito terreno para um deles em específico, mas pagando-os com dinheiro em troca de apoio na câmara num esquema de propina. De fato, o PT tentou compensar a falta de parceiros naturais (algo que FHC não teve que lidar) e sua recusa em retomar o sistema concebido por Sarney, criando assim um sistema de estímulos materiais para cooperações dentro do Congresso e por uma moeda de troca mais barata: ou seja, usando de mesadas para não usar de lugares específicos dentro do governo.

    Quando esse esquema veio à tona em 2005, o chamado escândalo do ‘Mensalão’ (ou seja, de pagamentos mensais aos deputados) fez com que Lula perdesse o apoio do eleitorado de classe média e por muito pouco não terminou precocemente com sua primeira presidência. Tão logo ele sobrevivera e fora triunfantemente reeleito no ano seguinte, o PT não teve outra escolha senão recuar e aceitar a solução que tanto temia em abraçar: o PMDB então entrou no bloco do governo, garantindo assim alguns importantes ministérios e postos centrais no Congresso, e assim permaneceu até o primeiro mandato de Dilma e no primeiro ano do segundo mandato. Contudo, isso não significa que a corrupção tenha diminuído e sim que ela aumentou drasticamente. Isso não apenas porque o PMDB era o campeão do saque dos recursos públicos em âmbitos municipais e estaduais (por décadas o partido inclusive abandonara as disputas presidenciais), mas também porque um gigantesco pote de mel, maior do que tudo que se podia imaginar, estava se concretizando com a expansão da Petrobrás, a empresa de petróleo estatal cujas atividades equivalem a 10% do PIB nacional; nesse momento, uma capitalização a tornaria a quarta mais valiosa empresa do mundo. A construção de novas refinarias, petrolíferas, poços, plataformas, complexos petroquímicos oferecia vastas oportunidades para retribuições e logo um esquema acabou sendo estabelecido. Leilões seriam tomados por um verdadeiro cartel composto pelas principais empreiteiras do país, mas os contratos eram cobrados a partir de grandes somas de dinheiro que iam direto para os bolsos dos diretores da Petrobrás e para os partidos políticos que estivessem envolvidos – calcula-se cerca de 3 bilhões de Dólares em subornos. Esse tipo de prática não era novidade na história da companhia, sendo que FHC preferiu fingir que ela não acontecia, e até a primavera de 2013, a companhia desfrutou da costumeira impunidade oriunda da riqueza e do poder no Brasil.

    O que mudou nisso tudo foram três efeitos pós-Mensalão. A delação premiada foi introduzida no Brasil; a prisão cautelar, um antigo poder judiciário usado para lotar as cadeias do país com pobres, tornou-se pela primeira vez um instrumento aceitável para dobrar aqueles de classes superiores; e as sentenças na primeira instância não podiam mais ser deferidas por intervenção do Supremo, o que permitia apressar as prisões. Os dois primeiros efeitos foram as mesmas armas que os magistrados italianos utilizaram para derrubar a classe política e empresarial italiana nos escândalos da Tangentopoli, nos anos 1990. Mas o terceiro efeito eles nunca conseguiram. Inclusive no Brasil foi criada uma forma de extrair confissões daqueles sob prisão preventiva: ameaçar a estender o mesmo tratamento à esposas e filhos. Em 2013, gravações feitas num caixa de uma empresa de lavagem de carros (um ‘lava-jato’) em Brasília levou à prisão de um contrabandista com longa ficha criminal. Mantido em Curitiba, na região Sul, para proteger sua família, esse ‘doleiro’ passou a revelar a escala do sistema de corrupção da Petrobrás, na qual ele havia sido um dos principais intermediários na transferência de recursos entre contratantes, diretores e políticos dentro e fora do país. Num primeiro momento, as acusações caíram sobre nove das principais construtoras e empreiteiras do Brasil, com seus famosos chefes e diretores sendo presos, junto com outros três diretores da Petrobrás, em investigações que atingiram ainda mais de cinquenta políticos, tanto deputados e senadores como até mesmo governadores.

    Os três principais partidos envolvidos – eles eram sete no total – foram o PMDB, o Partido Progressista (PP, um partido oriundo da Ditadura) e o PT. Quem ganhou mais no esquema ainda não está claro. Mas já que não existiam ilusões sobre os dois primeiros, foi a exposição do terceiro que realmente ganhou relevância política. O ‘Mensalão’ foi somente uns trocados em comparação com a enormidade do ‘Petrolão’, enquanto o primeiro não teve nenhum benefício privado para políticos do PT, o segundo, por sua vez, apagou completamente os limites entre fundos de campanha e enriquecimento pessoal. Dentre outros detalhes, veio à tona que o próprio chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu (o arquiteto por trás da formação do PT enquanto partido), que havia sido afastado por conta de seu envolvimento no ‘Mensalão’, havia insistido que uma parte do ‘Petrolão’ fosse dirigida para suas próprias contas bancárias. Se o grosso dessas retribuições eram utilizadas para financiar as campanhas e o aparato do partido, a presença contínua de grandes somas de dinheiro clandestino não tinha como não corromper aqueles que botavam suas mãos nele. O sociólogo Chico de Oliveira alertara, antes mesmo do ‘Petrolão’ ter sido descoberto, que o PT estava caminhando a passos largos para um processo de transfiguração numa aberrante espécie taxonômica de vida política, algo que não mais podia ser visto como uma metáfora. (O autor refere-se aqui ao ensaio “O ornitorrinco”, de Chico de Oliveira, publicado no volume da Boitempo Crítica à razão dualista/O ornitorrinco).

    Liderando o ataque ao ‘Petrolão’, a equipe investigativa de Curitiba se tornou, assim como os juízes e policiais de Milão que os inspiravam, verdadeiras estrelas midiáticas. Jovens, de cara limpa, queixos quadrados, beneficiando-se de seu treinamento legal em Harvard, o juiz Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol pareciam saídos direto de um desses seriados americanos de tribunais. Sobre o seu zelo no combate à corrupção e o valor do choque que aplicaram nas elites políticas e empresariais do país, não havia dúvidas. Mas assim como na Itália, objetivos e métodos nem sempre coincidiram. A delação premiada e a prisão preventiva sem acusações combinaram induzimento e intimidação: instrumentos obtusos em busca da verdade e da justiça, mas no Brasil eles estavam dentro da lei. Contudo, o vazamento de informações, ou às vezes até de suspeições, por parte dos investigadores para a imprensa, não é: eles são claramente ilegais. Na Itália, eles foram constantemente utilizados pela equipe de Milão e foram usados ainda mais ostensivamente pela equipe de Curitiba. Desde o início os vazamentos pareciam seletivos: eles almejavam o PT e, persistentemente, – ainda que não exclusivamente, pois os estilhaços se espalhavam – aparecendo nas principais revistas da bateria anti-governo, como a semanal Veja, que após semanas de exposição fez uma edição a ser lançada poucas horas antes da eleição de 2014 com as imagens de Lula e Dilma sob uma sinistra meia-luz com tons de vermelho e negro com a exclamação “Eles sabiam de tudo!”, alertando os eleitores para quem eram as verdadeiras mentes criminosas por trás do ‘Petrolão’.

    Mas será que o fato dos magistrados terem alimentado a mídia com vazamentos significa que seus objetivos eram os mesmos, ou seja, que eram fruto – tal como o PT sustentou – de uma operação comum? Pode-se dizer que o judiciário brasileiro, assim como seus colegas de promotoria e Polícia Federal, compartilha muito da identidade de classe média brasileira, cujas camadas eles pertencem, com suas preferências e preconceitos de classe típicos. Nenhum partido operário, por mais emoliente que seja, consegue atrair simpatia particular desse meio. Mas será que os vazamentos contra o PT são resultado de uma aversão militante, ou fruto de uma ideia de que não há melhor forma de enfatizar os horrores da corrupção do que pegar aquela que é a principal força política do país por mais de uma década, que inclusive é justamente aquela que a mídia, por suas próprias razões, estaria mais disposta a divulgar as revelações? Histórias que atingissem o PMDB seriam banais e o PSDB poderia ser poupado, em âmbito nacional, pois sendo um partido de oposição teria menor acesso aos cofres públicos, independente do seu domínio dentro dos estados.

    O escândalo da Lava Jato estourou de fato na primavera de 2014 e sucessivas prisões e acusações chegaram às manchetes durante a corrida presidencial no outono. A virada econômica de Dilma, tão logo eleita, pode ser vista em parte como conduzida pela esperança de aplacar a opinião neoliberal o suficiente para que a mídia moderasse seu discurso sobre o PT, que estava sendo tratado como uma gangue de ladrões. Mas se foi isso de fato, ela foi em vão. Superando até mesmo o PSDB na virulência de seus ataques, uma nova direita passou a ganhar proeminência nas manifestações massivas contra Dilma em março de 2015. No Brasil, o slogan tradicional da direita era “Deus, Família e Liberdade”, verdadeiros banners do conservadorismo que clamou pelo golpe militar que gerou a Ditadura de 1964. Meio século depois, os gritos dos manifestantes mudaram. Recrutados a partir de uma geração mais jovem de militantes de classe média, uma nova direita – e geralmente com orgulho de afirmar-se assim – passou a falar menos em termos de religiosidade, menos ainda em termos de família e reinterpretou o sentido de liberdade. Para eles, o livre mercado era a base necessária para todas as outras liberdades, concebendo assim o Estado como uma espécie de hidra de muitas cabeças. Essa política se iniciou não nas instituições da ordem decadente, mas sim nas ruas e nas praças, onde cidadãos poderiam se reunir contra um regime de parasitas e ladrões. Surfando na onda das manifestações massivas contra Dilma, os dois principais grupos dessa direita radical – ‘Vem Pra Rua’ e ‘Movimento Brasil Livre’ – modelaram suas táticas assimilando elementos do ‘Movimento Passe Livre’, um movimento de extrema-esquerda que desencadeou os protestos de 2013, inclusive com o MBL deliberadamente fazendo um acrônimo com o MPL. Ambas organizações da direita eram pequenas, mas dependiam de um intenso trabalho de mobilização de massas por meio da internet. O Brasil possui mais viciados em Facebook do que qualquer outro país, perdendo somente para os Estados Unidos, e tanto o ‘Vem Pra Rua’ como o ‘MBL’ e outros grupos da direita – o ‘Revoltados On-Line’ (ROL) é outro movimento proeminente – vem conseguindo mobilizar a população com muito mais sucesso do que a esquerda, embora seja importante levar em consideração o previsível perfil de classe de quem adentra na rede social de Zuckerberg. Até então, o efeito multiplicador desses grupos de direita tem sido muito maior.

    No horizonte de toda essa situação, há também a ambígua nébula de uma nova religião. Mais de 20% dos brasileiros atualmente são convertidos a alguma variedade de protestantismo evangélico. Seguindo o padrão da Igreja da Unificação do Reverendo Moon, muitas delas – certamente as maiores – são verdadeiros balcões de negócios que ficam ordenhando o dinheiro de seus fiéis para erigir verdadeiros impérios financeiros para os seus fundadores. A fortuna de Edir Macedo, o líder da Igreja Universal do Reino de Deus, cujo gigantesco ekitsch Templo de Salomão na região do Brás em São Paulo – próximo do menos grotesco, mas ainda impressionante templo da rival Assembleia de Deus, numa espécie de Wall Street religiosa – onde ocorrem performances de melodramáticos exorcismos nos telões e em que os fiéis cantam e oram, ultrapassa mais de 1 bilhão de Dólares. Parte desse império se associa também ao controle da segunda maior rede de televisão do país. Atualmente bastante próspera nas periferias, a organização de Macedo prega uma “teologia da prosperidade”, prometendo sucesso material na Terra, ao invés de mera salvação celestial. Diferente dos evangelistas americanos, as Igrejas Evangélicas no Brasil não possuem perfis ideológicos muito específicos além de assuntos como aborto e direitos LGBT. Macedo chegou a apoiar FHC como uma forma de impedir o comunismo, mas nas eleições seguintes apoiou Lula e desde então vem criando sua própria organização política. Mas muitas dessas igrejas operam no descrédito dos partidos brasileiros: elas são veículos a serem contratados, trocando votos por favores, com a diferença de que elas apoiam candidatos de qualquer partido – a bancada evangélica no Congresso, cerca de 18% dos deputados, inclui congressistas de 22 partidos. Seus principais interesses residem em garantir concessões de rádio e televisão, evasão fiscal para igrejas e acesso à zoneamento urbano para a construção de monumentos faraônicos.

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    Ao mesmo tempo, ainda que mais passivas e promíscuas do que seus iguais nos Estados Unidos, essas Igrejas formam um reservatório conservador para os agressivos líderes da direita no Congresso. Sintomaticamente, o presidente da Frente Evangélica é um musculoso pastor e ex-policial que senta na bancada do PSDB. Ali também se encontra o Presidente da Câmara dos Deputados, eleito em fevereiro de 2015 – esse sendo o cargo mais importante do Congresso e o terceiro da linha sucessória depois do vice-presidente –, o deputado Eduardo Cunha, um corretor da bolsa evangélico do Rio e líder da bancada do PMDB. Geralmente identificado como o mais perigoso inimigo de Dilma – ela inclusive tentou impedir sua eleição – seu jeito garboso e modos imperturbáveis escondem um excepcionalmente talentoso e cruel político, um mestre nas artes obscuras da manipulação parlamentar e na administração, uma pessoa a quem grandes números do chamado “baixo clero” do Congresso tornaram-se dependentes de seus favores desde que assumiu o cargo, enquanto outros vivem acuados diante de sua força sem conseguir enfrenta-lo. E tão logo as manifestações nas ruas clamaram pelo impeachment de Dilma, ele logo tornou-se o ponta de lança dentro do Legislativo que garantiria a saída da presidente, sob o pretexto de que antes das eleições ela havia transferido, de forma imprópria, fundos dos bancos estatais para contas federais.

    Atingindo um crescendo no mês de setembro, o movimento para depô-la atingiu números impressionantes, configurando diferentes forças e personagens que se entrecruzavam de diferentes formas, desde os “jovens turcos” do MBL e ROL posando para fotos com Cunha, até pilares da lei como Moro e Dallagnol (que também é evangélico) encontrando-se com políticos do PSDB e lobistas pró-impeachment, sem contar também com a imprensa atacando virulentamente o PT e o Planalto com novas denúncias diárias. Ou Dilma havia ilegalmente legado um déficit nas contas do Estado para seguir sendo reeleita, ou ela havia permitido grandes injeções de verbas ilegais para financiar sua campanha eleitoral…ou ambos – em qualquer caso, material suficiente para acelerar o processo de retirada dela da presidência enquanto afronta a probidade pública. Naquele momento, cerca de 80% da população queria que ela fosse embora.

    Nesse meio tempo, uma bomba explodiu. Em meados de outubro, as autoridades suíças notificaram o Procurador Geral da República em Brasília de que Cunha tinha nada mais do que quatro contas secretas na Suíça – e outra logo em seguida foi descoberta nos Estados Unidos – uma delas no nome de sua esposa, outra no nome de uma companhia empresa-fantasma em Cingapura que recebia direto de outra empresa-fantasma da Nova Zelândia. O valor total era de 16 milhões de Dólares, ou trinta e sete vezes mais a riqueza que ele havia declarado no Brasil. À disposição do casal também havia duas companhias locais – e, desafiando o escárnio, uma delas se chamava Jesus.com – além de uma frota de nove limusines e caminhonetes no Rio de Janeiro. As evidências de que ele acumulava propinas da Petrobrás começaram a se acumular. Mesmo para a mais obediente imprensa isso era demais. No Congresso, uma comédia às avessas tinha início. Segundo a Constituição Brasileira, o Presidente da Câmara possui o poder solene de dar início à moção de impeachment presidencial. Por meses o PSDB ficou cortejando Cunha, conferenciando com ele em conclaves íntimos sobre as táticas e o momento do processo. A revelação da sua caixa-forte na Suíça, com muito mais evidências do que aquelas que caíam sobre Dilma, tornou-se um profundo constrangimento para o partido. O que deveria ser feito? Cunha ainda controlava as chaves para o impeachment, que se fosse bem-sucedido poderia até mesmo anular as eleições de 2014 e garantir, assim, a vitória de Neves. O partido então se silenciou sobre as ondas que vinham de Berna, no que vale mencionar que o próprio Cunha ainda não havia se pronunciado e era tomado como inocente até que se provasse o contrário. Mas seus apoiadores na mídia não conseguiram conter os questionamentos: como pode o partido da moralidade dar cobertura para tamanha criminalidade? Diante do clamor, o PSDB foi forçado a bater em retirada e tirar o apoio ao Presidente da Câmara – um pequeno partido socialista independente [o PSOL], a essa altura do jogo, havia entrado com recurso para tirar Cunha da Câmara. Ao perceber que o PSDB deixara de lhe dar apoio, Cunha rapidamente fez um jogo de dupla-face. Negociando a portas fechadas, ele ofereceu trancar o impeachment de Dilma se o PT o protegesse das tentativas de anulação de seu mandato e expulsão do Congresso. E isso rapidamente aconteceu. Os ministros do PT, tanto desavergonhados quanto os políticos do PSDB, concordaram em auxiliá-lo a manter-se no cargo, desde que ele não fizesse nenhum movimento contra Dilma. Esse surreal carrossel foi demais para as bases do partido que estavam afastadas do Congresso e o acordo teve de ser cancelado. Por um breve momento, pareceu que a posição de Cunha era insustentável e a causa do impeachment estava tão desgastada pela sua exposição que havia, portanto, quase nenhuma chance de ela passar.

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    Nos bastidores, contudo, o principal repositório das esperanças de acabar com o PT não tinha desistido. Desde o início da crise, FHC tornou-se onipresente na mídia – sua imagem estava em toda parte, numa enxurrada de entrevistas, artigos, discursos, diários. Bastante estimado pelos barões da mídia e seus lacaios, sua renovada proeminência era fruto de um cálculo político mais imediato de ambas as partes. Apresentado como o estadista ancião da República, a cuja sabedoria se deve a estabilidade atingida, editores e jornalistas esforçaram-se para construí-lo como um pensador de renome internacional, a voz da sanidade e da responsabilidade diante das mazelas do país, inclusive com a imprensa e a academia anglófona cotejando-o, engolindo todo esse coro de sicofantia. A razão para toda essa apoteose é bastante simples: a presidência de Cardoso administrou ao Brasil uma generosa dose de administração pró-mercado, um remédio que parecia ser mais urgente do que nunca diante do escárnio populista do PT. O próprio Cardoso, que quando presidente lamentou a “enorme dificuldade” de que “o Brasil não gostava do sistema capitalista”, estava tranquilo em exercer esse papel. Mas ele também tinha uma questão pessoal no meio de todos esses holofotes. Quando ele saiu da presidência, seu índice de aprovação não era muito mais alto do que o de Dilma hoje, e por oito anos ele sofreu uma dura comparação com Lula, um presidente muito mais popular que repudiou seu legado e transformou o país de forma decisiva, assegurando ao PT mandatos que duraram o dobro do seu.

    Isso foi algo duro de suportar. Será que a aura do pensador poderia suportar a perda de seu prestígio como governantes? Objetivamente, o segundo mandato foi – e isso é bastante normal – menos popular do que o primeiro. Na busca pela presidência, Cardoso sacrificou não apenas suas antigas convicções, que inclusive eram marxistas e socialistas, mas com o tempo até mesmo seus padrões intelectuais. A banalidade dessa mudança chega a ser disparatada – bromas elogiosas para os efeitos da globalização e ansiedade com seus efeitos colaterais. Em raras ocasiões ele acabava sendo sincero: “Eu devo admitir que, ainda que meu lado intelectual seja forte, eu sou basicamente um Homo politicus”, disse ele certa vez. Mas subjetivamente, a vaidade – atingida pelo apelo político grandioso de um ex-operário sem educação formal – não permite que pretensões mais cerebrais sejam colocadas de lado. Tingido pelo verde e amarelo da Academia Brasileira de Letras, uma cópia tropical da versão original e pomposa dos franceses – com uma espada a seu lado, ele declarou que o sociólogo e o presidente nunca divergiram, demonstrando uma carreira coerente e uma administração criativa, inteiramente em sintonia uma com a outra.

    Por anos ele teve motivos para reclamar que, enquanto oposição, o próprio PSDB foi insuficientemente leal à memória de seu líder máximo, evitando qualquer defesa mais vigorosa de sua modernização nacional e seu corajoso programa de privatizações. Agora, contudo, diante da crise do ‘lulopetismo’ – seu uso mais desdenhoso, implicando algo ainda focado nas bases, mais demagógico do que o mero suporte petista, ou ‘petismo’ – fica claro o quão certo Cardoso esteve todo esse tempo. Se houve algo de bom durante o governo do PT, isso se deve à herança deixada por FHC. Se houve algo desastroso e terrível, então a culpa não é dele, pois havia alertado a todos o que aconteceria. Era tempo de erguer novamente as bandeiras de 1994 e 1998, sem qualquer inibição, colocando assim um fim ao desgoverno do PT. Ainda que ele mesmo não tivesse evocado o impeachment, ele o reconhecia como um processo legítimo, desde que tivesse base legal para isso. E ainda que não tivesse, Dilma ainda poderia ser removida politicamente. Mas – e aqui os cálculos de Cardoso mostram-se diferentes daqueles feitos pela nova geração de políticos do PSDB no Congresso, ansiosos para tomar o poder rapidamente – era melhor esperar pelo Judiciário, que poderia ser tido como um instrumento para que a Justiça Política fosse cumprida.

    Essa confiança vinha das íntimas conexões entre os juízes mais veteranos e estava longe de estar errada. Indicado para presidir o caso contra Dilma no Supremo Tribunal Eleitoral estava Gilmar Mendes, um parceiro próximo indicado pelo próprio Cardoso para o Supremo Tribunal Federal, ocupando este lugar até os dias de hoje – e que nunca fez nenhum segredo sobre o seu desgosto para com o PT. Mas Dilma era o alvo menos importante. Para FHC, o alvo crucial a ser destruído era Lula e não apenas por questão de vingança, embora isso tenha sido muito saboreado no âmbito privado, mas porque havia risco, dada sua antiga popularidade, de que ele voltasse em 2018 – supondo que Dilma sobrevivesse até então, algo que assustava o PSDB e seu programa de orientar o país novamente para uma modernização responsável. E tão logo as deixas de Cardoso começaram a encontrar eco, uma série de vazamentos feitos pela força tarefa da Lava Jato passaram a aparecer na imprensa, implicando Lula em dúbias transações financeiras de tipo pessoal: viagens em jatos empresariais, palestras remuneradas por empreiteiras, apartamentos confortáveis, melhorias num sítio, sem falar nos ganhos obscuros de um de seus filhos. Logo em seguida veio a apreensão de um amigo milionário fazendeiro, acusado de repassar as retribuições de um contrato da Petrobrás para o tesoureiro do PT. Aparentemente, a rede estava se fechando sobre ele.

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    Rapidamente, durante a primeira semana de março, uma força-tarefa da Polícia Federal chegou na porta da casa de Lula às seis da manhã, levando-o sob custódia para ser interrogado no aeroporto de São Paulo. A imprensa, informada de antemão, estava esperando do lado de fora para invadir com suas câmeras, esperando obter o máximo de publicidade. O pretexto para todo esse show é de que se Lula fosse convidado a dar esclarecimentos, ele poderia ter se recusado. Na semana seguinte, a maior manifestação no Brasil após a Ditadura – de acordo com a polícia, com 3,7 milhões de pessoas nas ruas – clamou por justiça contra Lula e impeachment para Dilma. Três dias depois, Dilma apontou Lula como ‘chefe da Casa Civil’ de seu governo – algo equivalente a um Primeiro Ministro. Como ministro, Lula teria imunidade perante as acusações de Moro em Curitiba, possibilitando que ele, assim como os demais membros do governo, respondesse somente ao Supremo Tribunal. Moro não perdeu tempo. Na mesma tarde, ele publicou as gravações de uma conversa telefônica entre Lula e Dilma, na qual ela disse a ele que mandaria os papéis necessários para que ele assinasse e assumisse, “se necessário”. Sua fala foi ambígua. Mas o escândalo midiático foi ensurdecedor: aqui, pega com a boca na botija, estava uma manobra para fugir da Justiça e salvar Lula, deixando-o longe do alcance da lei. Dentro de 24 horas, um juiz em Brasília impediu a nomeação – um juiz que, como se soube mais tarde, havia postado imagens nas redes sociais de quando ele estava nas manifestações pelo impeachment, ostentando alegremente uma camiseta do PSDB. Mas esse juiz rapidamente foi apoiado por Gilmar Mendes e, naquela mesma noite, o PMDB anunciou que estava saindo do governo, no qual ele controlava a vice-presidência e outros seis ministérios, pavimentando o caminho para uma rápida deposição de Dilma no Congresso.

    Nessa dramática escalada da crise política, o protagonista central era o Judiciário. A noção de que a operação de Moro estava agindo de forma imparcial em Curitiba, inicialmente defensável, acabou sendo prejudicada com a cobertura gratuita e espetaculosa da imprensa sobre a condução coercitiva de Lula, o que acabou ainda sendo seguida por uma mensagem pública saudando as manifestações a favor do impeachment: “o Brasil está nas ruas”, anunciou o juiz. “Sinto-me tocado”. Contudo, ao publicar as gravações da conversa entre Lula e Dilma, horas depois do grampo ter sido anulado pela Justiça, ele violou a lei duas vezes: violou o sigilo das interceptações, ainda que fosse permitido o grampo, e sem falar também no princípio da confidencialidade que supostamente protegia as comunicações da chefe do Executivo. Ficou tão evidente que essas coisas eram ilegalidades que logo Moro foi repreendido pelo juiz do Supremo responsável por Moro, mas sem qualquer sanção efetiva. Ainda que “inapropriado”, seu superior notou delicadamente que a ação do juiz havia atingido seu objetivo.

    Na maioria das democracias contemporâneas, a separação dos poderes é uma ficção bem-educada, com os Supremos Tribunais – no que o caso americano é uma importante exceção – curvando-se perante os governos. Os contorcionismos do Tribunal Constitucional Alemão – geralmente visto como exemplo de independência judicial – ao sustentar as violações do país tanto noGrundgesetz e no Tratado de Maastricht e favorecer os diferentes regimes de Berlim pode ser visto como uma norma geral. No Brasil, a politização do Judiciário é uma tradição longínqua. A figura inverossímil de Gilmar Mendes é talvez um caso extremo, ainda que seja revelador. Como presidente, Fernando Henrique Cardoso defendeu seu amigo de acusações criminais ao lhe promover como Ministro antes de elevá-lo ao STF – e Mendes agora se volta contra Dilma por ela fazer o mesmo com Lula. Ao colocá-lo no posto e tentando evitar chamar atenção, FHC entrava pelo prédio sorrateiramente pelo edifício da garagem, encontrando Mendes no estacionamento. Bastante militante em relação ao PSDB – ‘tucano demais’, considerando que a ave é o símbolo do partido – até mesmo para Eliane Catanhêde, uma respeitável jornalista de direita, Mendes geralmente era visto almoçando com proeminentes líderes do partido após ter sido absolvido das acusações e o juiz não hesitou em utilizar dinheiro público para ‘alistar’ seus subordinados a partir de uma escola privada de advocacia que ele possui, algo feito enquanto ele já era juiz no maior tribunal da nação. Seus ataques contra o PT são constantes.

    Sergio Moro, por sua vez, é de uma geração mais jovem e vinho de outra pipa. Os Estados Unidos, país que ele visita com regularidade, é sua principal referência. Um sujeito trabalhador e provinciano, ele considera que nada deve aos sistemas de patronagem e compadrio. Mas vale destacar que, quando Moro tinha pouco mais de 30 anos, ele demonstrou também sua indiferença com os princípios básicos das leis e das regras num artigo exaltando o exemplo dos magistrados italianos nos anos 1990, “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, nos termos que antecipariam seus procedimentos uma década depois. Recusando-se a pesquisar na literatura mais extensiva sobre a Tagentopoli, ele utilizou somente duas eulogias feitas pela equipe de Milão e que foram traduzidos para o inglês, citados sem qualquer dose de reflexão crítica, inclusive confiando no depoimento de um chefe da máfia que vivia com um salário do Estado enquanto delator, ainda que ele tenha sido rejeitado pela corte. A presunção da inocência não poderia ser tida como ‘absoluta’, tal como ele declarara: ela era apenas um ‘instrumento pragmático’ que poderia ser desfeita de acordo com a vontade do magistrado. Ele celebrou os vazamentos seletivos para a mídia como forma de ‘pressão sobre os acusados’, usados quando ‘os meios legítimos não podem ser atingidos por outros métodos’.

    O perigo de ter um Judiciário atuando nesse espírito é o mesmo no Brasil do que foi na Itália: uma campanha absolutamente necessária contra a corrupção se torna tão infectada com o desdém pelo devido processo, com um conluio tão inescrupuloso com a mídia, que ao invés de instalar qualquer nova ética de legalidade, ela acaba confirmando o longo desrespeito social pela lei. Berlusconi e seus herdeiros são a prova viva disso. Todavia, a cena no Brasil se difere da situação na Itália por dois aspectos. Não há nem Berlusconi ou Rinzi no horizonte brasileiro. Moro, cuja celebridade agora excede qualquer um dos seus modelos italianos, sem dúvida está sendo solicitado para suprir o vazio político, caso a Lava Jato faça de fato uma limpeza sobre a velha ordem. Mas o medíocre destino de Antonio di Pietro, o mais popular dos magistrados de Milão, pode ser lido como um aviso para Moro, por mais puritana que seja a sua aparência, evitar a tentação de envolver-se na política. O espaço para uma ascensão meteórica também tende a ser menor, pois há uma diferença crucial entre as duas cruzadas contra a corrupção. O assalto feito pela Tagentopoli foi direcionado contra os principais partidos do país, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, que estiveram no poder durante trinta anos. A Lava Jato, por sua vez, não parece estar focada nos partidos tradicionais do poder político no Brasil que, diga-se de passagem, estão bastante divididos, mas sim nos sistemas que possibilitaram que eles chegassem lá. Nesse ponto, ela parece mirar somente num alvo e, sendo assim, mais manipuladora.

    Tal manipulação pode ser acentuada naquilo que se considera como a segunda diferença entre a Itália dos anos 1990 e o Brasil de hoje. Quando a Tagentopoliatingiu o sistema político, a mídia italiana formou um cenário homogêneo. Jornais independentes passaram a apoiar o Judiciário de Milão em toda parte. O chefe do conglomerado midiático do Olivetti, De Benedetti, cujo jornal recebeu a maior parte dos vazamentos, acusou duramente os democratas cristãos e socialistas ao mesmo tempo em que ficou quieto sobre as implicações em outros partidos. O império de jornais e televisão de Berlusconi enalteceu e instigou os magistrados. E o resultado foi que, com o passar do tempo, havia ainda mais questionamentos sobre as ações de diferentes esferas do Judiciário – muitas delas bastante corajosas, enquanto outras eram mais dúbias – do que no Brasil. Ali a mídia tem sido bastante monolítica e partidária em sua hostilidade anti-PT e nada crítica quanto à estratégia de vazamentos e pressões vindas de Curitiba, do qual a imprensa age como sua porta-voz. O Brasil possui alguns dos melhores jornalistas do mundo, cujos textos vem analisando a atual crise num nível intelectual e literário que vai além do que fazem o Guardian ou o New York Times. Mas tais vozes são sufocadas por uma enorme floresta de conformistas que nada mais fazem do que ecoar as visões de patrocinadores e editores.

    Comparar a cobertura da mídia sobre qualquer vazamento que prejudique o PT com o tratamento dado às informações ou rumores que afetam a oposição é uma forma de medir a extensão da sua política de dois pesos e duas medidas. Enquanto a Lava Jato estava se desenrolando, veio à tona um pujante exemplo. Em 1989, num dos mais famosos momentos decisivos da história moderna brasileira, Lula – que na época era visto como um perigoso radical pelas elites – estava perto de assegurar uma vitória em sua primeira corrida presidencial, quando dias antes da eleição, uma ex-namorada sua apareceu na televisão em nome de Collor, paga pelo próprio irmão de Collor, acusando Lula de querer que ela abortasse de um filho de ambos. Aquele momento, amplificado até o limite pela mídia, foi fundamental na sua derrota eleitoral. Dois anos depois, Cardoso – na época um proeminente senador do PSDB, já cotado como futuro candidato à presidência – ficou conhecido no meio político por ter uma amante trabalhando na mesma rede de televisão que prejudicou a campanha de Lula, a TV Globo. Quando ela teve um filho do ex-senador, ela saiu do país e foi mandada para Portugal. Em meados de 1994, depois de ter sido Ministro da Fazenda, Cardoso estava disputando a presidência e o trabalho dela passou a ser somente nominal, ainda que a Globo seguisse pagando seu salário. Tão logo FHC foi eleito, seu braço direito, o jovem Magalhães, instruiu ela a não retornar para o Brasil por medo de comprometer sua reeleição. Quando a Globo a tirou da folha de pagamento, um trabalho ficcional foi feito para ela, fazendo pesquisas de mercado na Europa para uma cadeia de lojas duty-free que recebera do próprio FHC direitos monopolísticos nos aeroportos brasileiros. Por meio dessa firma, ela teria lavado cerca de cem mil dólares via uma conta bancária nas Ilhas Cayman – teria sido pensão alimentícia ou suborno para ficar calada? A história veio à tona em fevereiro, em meio ao furacão das denúncias sobre as reformas no sítio de Lula. A mídia fez de tudo para que isso recebesse o mínimo possível de cobertura. A firma agora está sob investigação por transação criminosa. Cardoso protesta sua inocência. E ninguém espera que ele sofra qualquer inconveniência.

    Será que isso pode ser generalizado para toda a oposição? Moro lançou seus grampos incendiários no dia 16 de março. Uma semana depois, a polícia de São Paulo invadiu a casa de um dos executivos da Odebrecht, a maior empreiteira da América Latina, cujo diretor recém havia sido sentenciado por 19 anos pelo crime de suborno. Na casa os policiais encontraram uma lista com 316 políticos com quantias de dinheiro ligadas aos seus nomes. Estavam inclusas figuras tradicionais do PSDB, do PMDB e de vários outros partidos – um verdadeiro panorama da classe política brasileira. Objetivamente falando, essa lista produzia muito mais barulho do que a conversa entre Lula e Dilma. Mas era um barulho menos conveniente: diretamente de Curitiba, Moro rapidamente tomou uma posição contrária, ordenando que as listas fossem colocadas sob sigilo para impedir qualquer especulação. Ainda assim, o alarme havia soado: a Lava Jato poderia sair do controle. Se Dilma tinha que cair, era preciso fazê-lo antes que as listas da Odebrecht pudessem ameaçar seus próprios acusadores. Poucos dias depois, o PMDB anunciara que abandonava o governo e começaria uma contagem de votos a favor do impeachment. Os 3/5 de votos necessários na Câmara dos Deputados, algo que parecia muito difícil de atingir no início das discussões, agora estava mais perto do alcance. A opinião pública passou a perceber a farsa de um Congresso cheio de ladrões, tendo Cunha à sua frente, solenemente derrubando uma presidente por crime de responsabilidade fiscal.

    Quais são as chances de Dilma resistir a esse desfecho e as perspectivas caso o impeachment não aconteça? As esperanças do Planalto residem em duas contingências: de que com suficiente apoio no Congresso se possa bloquear o impeachment, oferecendo assim mais ministérios e cargos para partidos menores que não conseguiriam acesso ao governo antes, visando com isso reverter a saída do PMDB; e a outra, de que com muitas manifestações em defesa do governo possam desestimular as grandes manifestações feitas a favor do impeachment. Ambos objetivos exigem o retorno de Lula para Brasília, de onde ele poderia – ainda que lhe seja negado o direito de ocupar formalmente o ministério – informalmente cumprir ambas tarefas que lhe foram atribuídas, ou seja, de aproximar-se de deputados relutantes para o campo governista e de estimular o apoio popular vindo das ruas. Mas o cenário está mudando e isso tudo parece cada vez mais distante. As relações entre Lula e Dilma se fragilizaram desde que ela optou pela austeridade após sua reeleição. Culpando-a pela falta de habilidade política e pela sua recusa em aceitar conselhos, Lula falaria, no âmbito privado, que “ela foi minha Chefe da Casa Civil e ela ainda age como uma, e não como uma presidente”, ou então que “ela é como se fosse a minha filha, que sempre diz pra mim que me ama, mas nunca presta atenção no que eu falo pra ela”. Mas é duvidoso se faria alguma diferença a flexibilidade tática, ainda que importante, diante das dificuldades enfrentadas por ela. Desde o início, sua segunda presidência foi pega em um círculo vicioso de escândalos políticos e indicadores econômicos deteriorados, cuja interação forma um obstáculo nada fácil de superar para recuperar sua autoridade. O problema da Petrobrás, com inúmeras delações, vem gerando demissões em massa de trabalhadores; o mesmo vem acontecendo com as empreiteiras cujos diretores e executivos estão na cadeia. A incerteza sobre onde soprará a Lava Jato tem feito os investidores mais temerosos e deixado o mercado financeiro assustado: em novembro, o chefe do fundo bilionário BTG-Pactual, o maior banco de investimento do continente, a menina dos olhos do Financial Times e do Economist, foi levado algemado para a delegacia. No Congresso, o corte de gastos neoliberal e o aumento tributário proposto pelo governo foi derrubado pelo próprio neoliberal PSDB, buscando criar todo um constrangimento político: o orçamento de 2016 sequer foi aprovado. Mesmo que um virtuoso trabalho de base feito nos corredores do poder possa conseguir colocar temporariamente o impeachment em xeque, ele não conseguiria resolver o temível impasse do atual governo.

    A mobilização popular para impedir a saída de Dilma, da forma como está pensada, também tem problemas. Mas isso está conectado diretamente aos legados dos governos do PT. O partido está numa frágil posição para convocar seus beneficiários para defende-lo por pelo menos três razões. A primeira é simplesmente porque se a corrupção fez com que a classe média perdesse a simpatia que o partido antes desfrutou, a austeridade alienou a base de classes populares que tinham conquistado. As manifestações feitas para impedir o impeachment foram, até agora, muito menos impressionantes do que aquelas feitas por aqueles que querem que ele aconteça. Os manifestantes têm sido arregimentados principalmente entre funcionários públicos e sindicatos: os pobres ainda não têm comparecido nessas manifestações. A força rural do Nordeste onde o PT se consolidou estão ainda socialmente dispersos, enquanto as grandes cidades do Sul e Sudeste são as fortalezas da nova direita no momento. Há também a inevitável desmoralização do partido conforme sucessivos escândalos surgem com o seu nome, criando um sentido de culpa coletiva difusa, ainda que não explícita, mas que enfraquece qualquer espírito de luta. E por fim, mas fundamentalmente, na época que Lula chegou ao poder, o partido tornou-se uma máquina eleitoral, financiada principalmente por doações de grandes corporações, ao invés de – como ele era em seu início – pelas doações de membros e simpatizantes, com eles inclusive aderindo passivamente ao nome de seu líder, sem qualquer vontade de construir uma ação coletiva com os eleitores. A mobilização ativa que fez o PT ser uma força nas regiões urbanas e industriais do Brasil tornou-se uma memória distante conforme o partido passou a ganhar força em regiões sem indústrias, enraizadas numa tradição de submissão à autoridade e medo da desordem. Isso foi uma cultura política entendida por Lula e que ele não fez nenhuma tentativa séria de termina-la. Segundo sua própria visão, ele considerava que mudar isso teria um custo potencial alto demais. Para ajudar as massas ele buscou harmonia com as elites, para as quais qualquer polarização vigorosa era um tabu. Em 2002 ele finalmente ganhou a presidência, na sua quarta tentativa, com um slogan de “paz e amor”. Em 2016, diante de um linchamento político, ele ainda seguiu falando essas palavras para uma multidão que esperava por algo mais combativo.

    Tal descompasso entre partir para o ataque e o discurso de responsabilidade é uma marca comum de um padrão que, desde a virada do século, vem distinguindo a política do Brasil em relação à América Latina. O país não é o único que viu um conflito de classes se tornar uma crise. Mas em nenhum lugar isso foi tão unilateral como no Brasil. Mesmo quando Lula estava no auge de seu prestígio enquanto estava na presidência, sempre houve uma assimetria entre as políticas moderadas e comodistas do PT e a hostilidade de uma classe média enragé e da mídia contra ele. Nos últimos dezoito meses, essa expressão de abominação unilateral se tornou ainda mais violenta. Um vereador [Roberval Fraiz, de Araraquara] do PMDB no interior de São Paulo falou publicamente que Lula deveria ser morto como uma cobra, tendo que pisar em sua cabeça. No Rio Grande do Sul, no Sul do país, uma pediatra se recusou a atender uma criança de um ano porque a mãe era uma ‘petista’, e foi absolvida de infração ética pelo Conselho Regional de Medicina e pela Associação de Médicos. O juiz do Supremo Tribunal, Teori Zavascki, responsável por ter repreendido Moro, foi presenteado com uma série de faixas e cartazes que o chamavam de “traidor” e “pilantra do PT”, enquanto manifestantes cantavam sua canção símbolo que fala que o “capitalismo veio pra ficar”. Conforme aproxima-se do Dia D do impeachment, os militantes fanáticos vêm recebendo endereços de deputados indecisos ao redor do país e intimidando-os, acampando em frente de suas casas. Meticulosamente deve-se dizer que o mercado de ações vem mantendo um ritmo: ele subiu quando Lula foi preso, caiu quando ele foi feito ministro e subindo novamente quando a sua posse foi impedida.

    Um golpe teatral (um coup de théâtre) ainda é possível, com uma virada de eventos salvando Dilma no último minuto, mesmo que não pareça que isso irá acontecer. A maior probabilidade é de que se forme um regime liderado pelo vice-presidente que a abandonou, o veterano sepulcral do PMDB – comparado com o mordomo de um filme de terror – Michel Temer. De fala mansa e cerimonioso, ele preparou o caminho alguns meses atrás, criando um programa para deixar claro que o país estaria seguro assim que ele assumisse. Seu pacote trata-se de um plano de estabilização convencional, agilizando privatizações, reforma da previdência e abolindo os gastos mandatórios constitucionais em saúde e educação, acompanhados de promessas de cuidar dos menos afortunados. Se Dilma sofrer o impeachment, tendo uma maioria de 3/5 do Congresso lhe apoiando, Temer não teria nenhum problema em formar um governo de coalizão junto com PMDB, PSDB e uma grande quantidade de partidos nanicos, colocando uma pitada de tecnocratas em ministérios centrais. Já que tal combinação poderia passar uma série de leis, às quais Dilma não pode, e isso garantiria o retorno da confiança do mercado, isso certamente traria melhorias aos indicadores econômicos feitos pelos mercados financeiros, não importa o quanto isso custaria aos pobres. Mas dada a conjuntura global adversa e a teimosa baixa taxa de investimentos que persiste no Brasil desde o fim da Ditadura, é difícil ver qualquer alívio para o país num horizonte futuro.

    Politicamente também a estabilidade não estaria garantida. Uma questão óbvia que surge é se será que o choque do impeachment irá sufocar o que resta do espírito de luta daqueles que apoiam Dilma, ou o contrário, ou seja, que isso provoque uma resistência ainda mais feroz contra as elites do país. Ambas alternativas não são fáceis para a fileira dos vitoriosos – se eles de fato conseguirem o impeachment da presidenta. Um juiz do Supremo Tribunal Federal ordenou que Cunha também colocasse em votação o impeachment de Temer, usando da mesma referência legal do impeachment da Dilma, já que quando ela estava fora do país, ele também assinou os decretos de responsabilidade fiscal que são atribuídos a ela – algo que pegaria desprevenido aqueles que querem derrubá-la e esperam instalar Temer como presidente rapidamente. Caso esse ataque seja evitado, outro curioso problema se avizinha. Ainda está pendente no Supremo Tribunal Eleitoral uma acusação de que a campanha de 2014 de Dilma e Temer violaram o regulamento eleitoral, uma acusação trazida pelo PSDB quando ainda esperava forçar uma situação de novas eleições. Se levada adiante, a ação derrubaria ambos. O processo não pode mais ser retirado e seria um constrangimento se o impeachment de Dilma fosse concretizado e Temer tomasse o poder. Mas desde que Gilmar Mendes torne-se presidente do Supremo em maio, a Justiça brasileira provavelmente superará essa questão sem dificuldade. Mas, claro, uma interrogação maior surge sobre qual o impacto subsequente que a Lava Jato poderia ter sobre os deputados pró-impeachment. Acelerar o procedimento do impeachment serviu para desviar os olhares da opinião pública sobre a lista da Odebrecht. Mas essas listas podem ser apagadas da consciência da população após o impeachment? Dentro de suas fileiras, toda a classe política está em risco. Será que a Justiça brasileira também poderia minimizar essa dificuldade, nos interesses, digamos, de uma reconciliação nacional?

    Que o Partido dos Trabalhadores tenha se juntado, por uma transformação ocorrida internamente, às deformadas fileiras do resto da fauna política brasileira – PMDB, PSDB, PP e o restante da corja – não pode ser negado. Até agora, dois presidentes do partido, dois tesoureiros, um presidente e um vice-presidente da Câmara dos Deputados e o líder do partido no Senado foram todos presos, afundados na lama da corrupção que desconhece fronteiras políticas. De forma emblemática, o último dos notáveis e com a delação mais volumosa, o senador Delcídio do Amaral era um refugiado do PSDB, uma importante engrenagem do partido de FHC nas operações da Petrobrás. Mais da metade do Congresso está na lista de pagamento das empreiteiras, cujas doações financiam suas campanhas eleitorais. A degradação do sistema político se tornou tão evidente que no outono passado o STF – que está longe de ser algum tipo de areópago da integridade imparcial – finalmente decidiu que o financiamento privado de campanha era matéria inconstitucional e proibiu as empresas de doarem para as campanhas. O Congresso imediatamente reagiu com emendas constitucionais para permitir as doações, mas o assunto segue congelado na Câmara. Se confirmada a decisão do Supremo sem ser driblada, a decisão permitirá uma espécie de revolução no funcionamento da democracia brasileira: a única coisa inequivocamente positiva em meio a toda essa crise.

    O Partido dos Trabalhadores acreditou, durante determinado período, que ele poderia se valer da ordem institucional brasileira para beneficiar os pobres sem prejudicar os ricos – e até mesmo contando com a ajuda deles. E de fato houve benefícios aos pobres, tal como eles se propuseram. Mas uma vez aceito o preço de entrar num sistema político moribundo, a porta para voltarem atrás fechou-se. O próprio partido passou a definhar, tornando-se um enclave do Estado, sem qualquer autocrítica ou direção estratégica, tão cego que chegou a ostracizar André Singer, seu melhor pensador, para colocar uma mistura de marqueteiros e relações públicas, tornando-se tão insensíveis que passaram a conceber o lucro, não importa de onde viesse, como condição para o poder político. Suas conquistas ainda permanecerão. Mas se o partido terá o mesmo destino, isso é uma questão em aberto. Na América do Sul, um ciclo está chegando ao fim. Por uma década e meia, sem a pressão direta dos Estados Unidos, fortalecidos peloboom das commodities, e amparando-se em grandes reservas de tradição popular, o continente foi a única parte do mundo em que movimentos sociais rebeldes coexistiram com governos heterodoxos. No despertar de 2008, há agora cada vez mais desses movimentos. Mas não há mais nenhum desses governos. Uma exceção global está chegando ao seu fim e sem nenhum sinal de mudança positiva no horizonte.

    * Artigo publicado originalmente na edição de Abril da London Review of Books. A tradução é de Fernando Pureza, para o Blog Junho.

    NOTA

    * André Singer escreveu a principal análise sobre esse conjunto de medidas e seu desenrolar no artigo ‘Cutucando onças com varas curtas’ (Novos Estudos 102, jul. de 2015), um ensaio que pode ser lido como um epílogo de seu estudo sobre a trajetória do PT, Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador (Cia das Letras, 2012), que investiga a mudança do seu eleitorado após 2005, conforme ele perdera o apoio das classes médias e passou a ganhar a confiança dos pobres, que antigamente, com medo de desordem, votavam contra o partido. Numa combinação de sobriedade crítica e lealdade ao PT, Singer é talvez seu mais preparado intelectual – e talvez possa se argumentar que seja o mais impressionante pensador social de sua geração na América Latina. Secretário de comunicação de Lula durante o primeiro mandato, desde que ele se tornou professor universitário acabou sendo mentalmente descartado pelo PT, que não demonstrara nenhum interesse sobre o seu trabalho.

    ***

    Perry Anderson é um historiador inglês nascido em 1938. Professor da UCLA, Estados Unidos, foi editor da New Left Review, a principal revista de esquerda do mundo anglófono. Ensaista político, Anderson é conhecido por seu trabalho em história intelectual, e filia-se à tradição do Marxismo Ocidental do pós-1956. É autor, entre outros, de Espectro, Afinidades seletivas e o mais recente A política externa norte-americana e seus teóricos, além de ser colaborador da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.

    Fonte: Blog da Boitempo

  • Guilherme Boulos e as saídas à esquerda

    Guilherme Boulos e as saídas à esquerda

    “Nós não devemos ter a menor dúvida de que o que está em curso no país é um golpe”, enfatizou Guilherme Boulos em sua fala ocorrida na última sexta-feira, dia 15, no “Encontro pela Democracia e por mais direitos” promovido pela Fundação Lauro Campos com o apoio do Núcleo de Direitos Humanos, do Centro Acadêmico Florestan Fernandes e do Centro Acadêmico do Borba, todos da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

    Para o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), é necessário se ater ao que ele chamou de o “pacote do golpe”. O projeto do Michel Temer, denominado de “Ponte para o Futuro”, é o projeto que sequer o neoliberalismo de FHC teve a ousadia de propor, “é o pacote das contrarreformas estruturais da burguesia brasileira que representa uma política de terra arrasada no país”. Em pauta, as reformas trabalhistas, entendidas como o estímulo às terceirizações, o ataque ao décimo terceiro, à licença maternidade, às férias; assim como a busca pela desindexação do aumento do salário mínimo e o esfacelamento do sistema previdenciário.

    Para Boulos, Michel Temer seria o ator político ideal que poderia implementar esse pacote de reformas, já que ele “não foi eleito por ninguém e não vai pretender reeleição para ninguém. Ele não precisa prestar contas para a sociedade brasileira: ele vai precisar prestar contas para o Congresso Nacional de ratos, que significa fazer uma boa distribuição de cargos, e prestar contas para o empresariado e para a burguesia financeira do Brasil, que é quem está sustentando com sua mão invisível o golpismo”.

    boulos

    Continuando, apontou qual é o desafio para a esquerda que o atual cenário coloca: “é preciso identificar que há o esgotamento de um ciclo, há algo que chegou ao seu limite. Não há mais espaço para pacto conservador nesse sistema. A polarização da sociedade brasileira não é algo passageiro, e não é passageiro porque se esgotou um ciclo econômico, que é o ciclo do ganha-ganha, o ciclo da conciliação, que trouxe ganhos para os setores mais pobres deste país, é verdade, mas sem enfrentar um único privilégio da burguesia brasileira”. Boulos identificou também que há o esgotamento do sistema político brasileiro: “se há algo de progressivo na Operação Lava Jato, no meio de tanta arbitrariedade e abuso, é que ela demonstrou aquilo que a esquerda brasileira diz há 30 anos: que este sistema político é refém dos negócios privados, comandado por uma lógica de financiamento de campanha que faz com que o Estado brasileiro sirva aos mesmos donos, independentemente de quem ganha”.

    Sobre as saídas possíveis para esse cenário, são duas: “a saída à direita para o esgotamento do sistema político é este processo de impeachment e o ‘neoparlamentarismo’ que já falam por aí. A saída à direita para o esgotamento da política do ganha-ganha é a austeridade e a retirada dos direitos sociais”.

    Já saída à esquerda, defendida por ele, “é propor uma inversão do ajuste fiscal, é retomar a pauta das nossas reformas estruturais, é colocar o tema tributário, é colocar o tema da dívida pública. É trazer esse debate de forma viva. Porque se a gente ficar a vida inteira dizendo que não tem correlação de força para fazer, a gente nunca vai construir a correlação de força para fazer”.

    A saída à esquerda para o esgotamento do sistema político brasileiro é radicalizar a democracia: “vamos falar de uma democracia que não seja controlada pelo poder econômico. Vamos falar de uma democracia que tenha participação popular efetiva nas decisões não só de quatro em quatro anos no voto, que tenha instrumentos de participação popular que assegure a participação das mulheres, que assegure a participação dos negros. Falemos de uma democracia que não seja uma democracia racista que extermina a juventude negra, que não seja uma democracia machista que impede o direito das mulheres sobre seu corpo, que não seja uma democracia homofóbica que bloqueia o direito à diversidade sexual, vamos falar de democracia de verdade”.

    “Eles estão passando uma ideia que o governo Temer é um governo de pacificação nacional, baseados na ideia de que terão maioria parlamentar. Nós temos que furar isso: pode ter governabilidade no parlamento, mas não terá governabilidade nas ruas”, encerrou Guilherme Boulos.

  • Chico Alencar: “Na política brasileira, está em jogo, acima de tudo, repactuação do poder e estancamento da Lava Jato”

    Chico Alencar: “Na política brasileira, está em jogo, acima de tudo, repactuação do poder e estancamento da Lava Jato”

    “Acima de tudo, a crise é do modelo político e econômico brasileiro e, nesse momento conjuntural, se traduz em mera luta pelo poder. Mas na verdade o que está em questão é o Modelo Liberal Periférico. Tem-se o cenário de inflação, desemprego, desinvestimento e, consequentemente, queda de arrecadação dos entes federados e da própria União. É o ponto central. Se estivéssemos no cenário econômico de dois anos atrás não haveria possibilidade alguma de prosperar qualquer pedido de impeachment”, analisou.

    Na entrevista, realizada enquanto o deputado transitava no plenário da câmara em meio ao que chamou de “festival de cinismo”, Chico Alencar lamenta o grau de rebaixamento atingido pela política brasileira e afirma que acima de tudo está em jogo uma repactuação do poder, que visa inclusive estancar a Operação Lava Jato.

    “O Brasil é o país das transições intransitivas. O governo é péssimo, fazemos oposição, mas quem quer tirar a Dilma e por o Temer quer aplicar aquele velho princípio de mudar pra continuar como está. E inclusive quer obstaculizar a Lava Jato. Querem impor, eles mesmos, um novo programa de ataque aos direitos dos trabalhadores, desvinculação de receitas da União na Educação e Saúde etc.”, resumiu.

    A entrevista completa com o deputado federal Chico Alencar pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Como avalia a crise política que sacode o Brasil e mantém o governo Dilma na paralisia? Qual a complexidade de todo esse quadro, numa visão de perspectiva também histórica?

    Chico Alencar: Acima de tudo, a crise é do modelo político e econômico brasileiro e, nesse momento conjuntural, se traduz em mera luta pelo poder. Mas na verdade o que está em questão é o Modelo Liberal Periférico, dependente, que prioriza os ganhos do capital financeiro. Daí os valores estratosféricos da dívida pública, daí a própria Dilma vetar a auditoria da dívida, daí a queda dos preços das commodities no mercado internacional afetar tanto nossa dinâmica interna.

    Assim, tem-se o cenário de inflação, desemprego, desinvestimento e, consequentemente, queda de arrecadação dos entes federados e da própria União. É o ponto central. Ninguém tem dúvida de que se estivéssemos no cenário econômico de dois anos atrás não haveria possibilidade alguma de prosperar qualquer pedido de impeachment.

    Por outro lado, nosso padrão político com o atual Congresso, que se recusa a reformá-lo (tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado), é o mais rebaixado possível. Ele é voltado ao toma lá dá cá, aos interesses fisiológicos. O presidencialismo de coalizão obriga o presidente a negociar com esse Congresso pra ter maioria; há uma grande crise das lideranças, que não lideram e, salvo raras exceções, os partidos são todos fragmentados. Os partidos são mais escritórios de negócios pra disputar nacos do orçamento público do que agremiação com proposta, doutrina, visão de mundo, projeto de Brasil.

    E no meio de tudo o poder do dinheiro avassala. A Lava Jato está desnudando tudo, o que é muito positivo. Apesar das inequívocas arbitrariedades do Sérgio Moro, é uma operação preciosa porque está colocando a nu o padrão e o modelo de financiamento da política no Brasil, que é corrupto e corruptor.

    O imediato é a disputa pelo poder. O PMBD, que sempre participou de todos os governos, agora quer o governo por inteiro, para depois recompor o novo pacto das elites. Trata-se de um rearranjo. Setores econômicos mais poderosos, inclusive vinculados aos governos Lula e Dilma, agora pulam fora porque tal governo não lhes é mais funcional. E a Dilma tem dificuldade de articulação política, o que se soma à conjuntura de crise econômica, com seus elementos internacionais. Assim, todos aqueles que estiveram aliados aos negócios, Fiesp à frente, e participaram do neo-desenvolvimentismo que Lula e Dilma implementaram, agora abandonam o governo. Inclusive o BNDES foi o grande agente financiador de muitas obras dessas empreiteiras, no Brasil e no exterior.

    Agora, ao lado de setores expressivos da grande mídia, estão todos “contra” e fazem uma poderosa articulação para colocar o Michel Temer lá. Mas nem de longe o PMDB é solução; é parte do mesmo problema.

    Correio da Cidadania: O que pensa do processo de impeachment da presidente e o que comenta da comissão de impeachment, com mais de 30 parlamentares também investigados no comando dos trabalhos?

    Chico Alencar: Dos 65 deputados da comissão, 38 são investigados. Por ações judiciais diversas, nem todos são processados por corrupção, diga-se. Mas um detalhe: o que vejo, agora mesmo aqui dentro do plenário, é um festival de cinismo. Tem notório corrupto indignado com a corrupção; tem legalista de primeira hora aprovando burlas à lei e à Constituição; tem gente que apoiou a ditadura, passou a ser democrata radical e acha que democracia radical é tirar a Dilma… O rito do impeachment de fato tem abrigo constitucional, mas é muita hipocrisia, haja estômago.

    E o Brasil é o país das transições intransitivas. O governo é péssimo, fazemos oposição, mas quem quer tirar a Dilma e por o Temer quer aplicar aquele velho princípio de mudar pra continuar como está. E inclusive quer obstaculizar a Lava Jato. Acham que já “cumpriu” sua função, de colocar o carimbo de corrupção no PT (não sem razão), tirar a Dilma e dizer “chega”, porque depois o normal seria pegar tucanos, mais gente do PMDB etc.

    A investigação não pode parar e tem de ir fundo, mas o pacto de rearranjo do poder implica também na contenção da Operação Lava Jato. Aliás, aquele procurador suspeito de ser contra o PT – Carlos Fernando dos Santos Lima – falou com todas as letras, em evento público em São Paulo, que se deve reconhecer que o PT, tão incriminando nas investigações, permitiu ao Ministério Público e à Polícia Federal agirem com mais autonomia, o que não ocorria há anos – palavras dele. E tem de ser assim, quem errou, quem se lambuzou, tem de pagar.

    Correio da Cidadania: Como analisa a suposta saída do PMDB do governo e a postura do vice Michel Temer, dentro da dinâmica “rompe-não-rompe”, ministros que não entregam os cargos etc.?

    Chico Alencar: É o PMDB. Por excelência o partido do poder no Brasil. O projeto nacional do PMDB é estar no governo. Sempre. Portanto, tem muita dificuldade em sair do poder. Quando declara formalmente que vai sair faz esse papel patético. É assim desde que acabou a ditadura e em toda a Nova República. Com exceção do Henrique Eduardo Alves, não saiu ainda.

    Fica, de um lado, um acordão em torno do Temer, para uma nova configuração do poder, e de outro lado, o varejão que o governo faz pra sobreviver, oferecendo cargos a pequenos políticos e mantendo aqueles do próprio PMDB que não quiserem se desligar do governo.

    Claro, de novo estamos falando do padrão atual da política. Mudar de governo não quer dizer mudar o sistema e tudo aquilo que gera tantos problemas ao Brasil de hoje.

    Correio da Cidadania: E o que pensa, nesse sentido, da repactuação de cargos e ministérios pretendida pelo governo em favor de partidos como PP e PR, caso os ministros do PMDB realmente entreguem seus cargos?

    Chico Alencar: É o rearranjo em parâmetros rebaixados. Não tem nada a ver com projeto ou programa. É puramente a tentativa de sobrevivência do governo, em situação crítica e necessitado de pelo menos 171 apoios no Congresso pra sobreviver ao impeachment.

    E mesmo que a Dilma sobreviva terá de repaginar o governo todo. Assim, espero que nós e a sociedade consigamos avançar numa reforma política profunda, numa reforma tributária que taxe os mais ricos, o patrimônio, as grandes fortunas. Aí mudaria tudo.

    Com Michel Temer, em vez de “Ponte Para o Futuro” (nome da agenda apresentada pelo partido), teremos uma Pinguela Para o Passado. Ataque aos direitos trabalhistas, prioridade do negociado sobre o legislado, retirada da indexação do salário mínimo ao crescimento do PIB… É o arrocho, a ortodoxia que Dilma tentou implantar ao lado do Levy durante 2015 inteiro. Foi aí que ela cometeu estelionato eleitoral em relação ao que disse na campanha. E o PSDB, ao se opor a tais medidas de arrocho e ajuste fiscal duro, também praticou estelionato eleitoral (risos).

    Querem impor, eles mesmos, um novo programa de ataque aos direitos dos trabalhadores, desvinculação de receitas da União na Educação e Saúde etc. Obviamente, vai inclinar forças ultraconservadoras, a ultradireita parlamentar, assanhadíssima com o impeachment, o que significará muito mais repressão e tensão social.

    O futuro não é nada promissor, qualquer seja a saída, embora nós do PSOL defendamos, em nome da democracia e não da Dilma, o cumprimento do seu mandato. Se teve caixa 2 e o TSE cancelar a chapa Dilma-Temer, tudo bem, é outro departamento. Mas o impeachment não tem sustentação política, jurídica ou orçamentária.

    Correio da Cidadania: Quanto à oposição conservadora, como enxerga, mais especificamente, sua atuação neste momento, dentro e fora do Congresso?

    Chico Alencar: Ela opera no passionalismo, na raiva, no ódio, mal escondendo sua reação às cotas, aos direitos das mulheres etc. Toda a pauta regressiva está subjacente. E vemos nas ruas e carros de som coisas muito reacionárias mesmo, com elementos de fascismo. Eu mesmo ouvi carros de som falando “vamos expulsar os socialistas e os comunistas do Brasil”, “vamos acabar com essa história de direitos homossexuais”, “vamos acabar com cotas pra botar negro na universidade”. São coisas que eu mesmo ouvi quando vieram protestar em frente ao Palácio.

    Correio da Cidadania: E o que dizer sobre Eduardo Cunha, ainda pontificando na política parlamentar, mesmo diante de denúncias bastante robustas de recebimento de propinas, contas na Suíça etc.?

    Chico Alencar: O Cunha na cadeira de presidente da Câmara é a nobre expressão do cinismo mais abjeto, das incongruências totais. Ele é réu, a cada dia surgem novas denúncias, como nessa própria quinta-feira. Ele tenta atrapalhar e obstruir ao máximo o Conselho de Ética, usa do cargo pra manipular tudo. E tem uma rede de cumplicidade com deputados, que devem alguma coisa pra ele, que é impressionante. Eduardo Cunha deslegitima as funções da Câmara dos Deputados, é uma coisa vergonhosa. Algo que chancela o chamado cretinismo parlamentar.

    O pior é que ele não reconhece nada, não fala nada, simplesmente se dá ao luxo de ignorar todas as críticas e denúncias pesadas. Quando subimos à tribuna falamos do “deputado-réu” e ele vira de costas, fica digitando no celular, fingindo que não é com ele… Eu nunca vi isso. Mas é claro que não tem o menor futuro. Pode até demorar, mas ele não tem o menor futuro como figura pública e já está indo para o lixo da história. No entanto, já fez um estrago.

    Correio da Cidadania: A Operação Lava Jato tem cheiro de pizza?

    Chico Alencar: Ela incomoda todo o sistema político, seja governo ou a oposição de direita, conservadora. O sonho de todos é que ela pare, deixe de avançar. Mas pode contribuir muito.

    Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, sexta-feira, 8 de abril de 2016

  • “A diabetes é uma desadaptação do ser humano à sociedade que criámos”

    “A diabetes é uma desadaptação do ser humano à sociedade que criámos”

    Em entrevista ao esquerda.net, José Manuel Boavida, diretor do programa nacional para a diabetes, salienta o papel da cidadania, destacando que em Portugal fundou-se a primeira associação de diabéticos do mundo, e aponta que a alimentação é uma “questão fundamental” e “está nas mãos de 4 ou 5 multinacionais”, “que modificam muitos dos nossos comportamentos”.

    Nesta entrevista ao esquerda.net, publicada no Dia Mundial da Diabetes – 14 de novembro – José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”. Em Portugal, “temos hoje mais de um milhão de pessoas com diabetes, entre os 20 e os 80 anos, e temos cerca de 30% de pessoas em risco de virem a ter diabetes”, refere. José Manuel Boavida fala também do papel da cidadania na prevenção e tratamento da doença e aborda a alimentação, como “uma questão fundamental que é pouco falada”.

    José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”
    José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”

    Qual é a situação atual da diabetes em Portugal, particularmente os efeitos dos últimos anos de austeridade?

    José Manuel Boavida: A diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém, não só no mundo dito mais desenvolvido mas também nos países em vias de desenvolvimento. Os países que hoje têm mais diabetes são os países como a China, a Índia, o Paquistão, o Egito, o Brasil, coisa que não era de maneira nenhuma expectável e a maior parte das pessoas, que não sabe, pensa ainda que são os EUA e os países que são normalmente apontados como os países da obesidade e da diabetes. Não é verdade.

    A diabetes é um problema de uma desadaptação do homem a esta sociedade que criámos. Obviamente que uma situação de crise agrava esses problemas. O acesso à alimentação torna-se um acesso a uma alimentação mais barata e, normalmente, mais hipercalórica e menos saudável. Todo o stress ligado às situações de desemprego, de afastamento, de isolamento social, são situações que são também criadoras de diabetes, diabetogénicas.

    E temos também uma sociedade que deixa de pensar as cidades do ponto de vista da mobilidade das pessoas, do desenvolvimento da atividade física. Afastámos o exercício, a atividade física, do trabalho, pelo próprio desenvolvimento da sociedade, e tudo isso condicionou estes três elementos: a alimentação, a atividade física e o stress são considerados hoje em dia os elementos fundamentais do desenvolvimento da diabetes.

    Mas, é evidente que isto se insere numa sociedade que é hoje o resultante dos mais capazes, que foram selecionados pela espécie, que são os sobreviventes. E, portanto, estes sobreviventes são pessoas muito resistentes e que estão preparados mais para as épocas de fome do que para as épocas de abundância e esta é a contradição e o grande problema do desenvolvimento da diabetes.

    A diabetes em Portugal. Neste momento os números, do ponto de vista de percentagens, são também agravados pela emigração da população jovem, pelo envelhecimento, e portanto, os números têm vindo a aumentar – aumentaram cerca de 2% nos últimos cinco anos, o que demonstra bem o impacto: temos hoje mais de um milhão de pessoas com diabetes, entre os 20 e os 80 anos, e temos cerca de 30% de pessoas em risco de virem a ter diabetes.

    Em primeiro lugar, é evidente que é preciso tratar as pessoas com diabetes, mas em segundo lugar, é preciso dirigirmo-nos àqueles que estão em risco de a vir a desenvolver, porque são esses que hoje podem atuar, corrigindo alguns destes problemas. Aqui também numa perspetiva de que a correção não é individual. Ou seja, se estamos à espera só de que os comportamentos individuais modifiquem as condições nunca iremos muito longe. Poderemos conseguir grandes vitórias isoladas, mas temos de ter uma visão social, porque a diabetes é claramente uma doença social, é uma doença da sociedade moderna e da desadaptação do homem a esta sociedade moderna.

    Para combater e para responder ao problema da diabetes qual é o papel da cidadania, tanto mais que nesta sexta-feira se comemora o Dia Mundial da Diabetes?

    José Manuel Boavida: Portugal tem aí um exemplo grande, que fundou a primeira associação de diabéticos do mundo. E essa associação foi criada numa altura em que se descobriu um medicamento que era caríssimo, que era inacessível às pessoas e houve um conjunto de pessoas que se juntaram e formaram a Associação Protetora dos Diabéticos e foi ela que dava a insulina, mas sempre numa perspetiva de autonomia, de integração social das pessoas, de devolução, que era o termo utilizado na altura, de devolução das pessoas com diabetes à sociedade. Ou seja, as pessoas vinham, aprendiam a tratar-se e a insulina era-lhes enviada pelo correio, que é uma forma absolutamente revolucionária de encarar a doença e de encarar a situação das pessoas. Há frases dos anos 20 [do século XX] absolutamente fantásticas como, por exemplo, do professor Pulido Valente, influenciado pelo doutor Ernesto Roma, que foi o fundador desta associação, em que diz que o papel do médico é menos tratar o doente do que ensiná-lo a tratar-se ele próprio. Isto dá bem a imagem de como a diabetes encara a cidadania e a participação ativa das pessoas no seu próprio tratamento. E, já desde esse processo se desenvolveram núcleos de apoio à associação pelo país. Com a crise económica e com as guerras mundiais esses núcleos fecharam, mas nos anos 80 começaram a surgir novos núcleos associativos pelo país.

    Hoje há mais de cinquenta associações de pessoas com diabetes pelo país fora que, normalmente, comemoram este dia mundial com organizações que vão desde colocar os edifícios camarários a azul, monumentos a azul, palestras, encontros, marchas, convívios, discussão sobre os seus próprios problemas e as suas dificuldades.

    Este movimento associativo teve um grande impulso no tempo da Maria de Belém como ministra da Saúde, em que se reivindicou o acesso aos materiais de autocontrole. Ou seja, serem as próprias pessoas a poderem determinar os seus valores de açúcar e assim adaptarem a alimentação, o exercício físico e a medicação consoante os valores que têm. Esse processo reivindicativo correspondeu depois a uma manifestação na Assembleia da República, que foi vitoriosa e criou um fôlego que hoje se transforma no que são hoje as comemorações do Dia Mundial.

    Este ano o Dia Mundial da Diabetes foi preparado por um grande encontro que decorreu no Estoril que são os fóruns da diabetes. Esses fóruns da diabetes – já vamos no oitavo ano consecutivo – reúnem associações de todo o mundo. A Marisa Matias já esteve em três destes fóruns e tem estado associada a este processo. Este ano, o embaixador da diabetes foi o Ricardo Araújo Pereira, que conseguiu, com o seu humor, transmitir também muita força, que é necessária para a situação atual, para que, além do viver com a doença, as pessoas sejam capazes de encarar com coragem, com força, com determinação, e encontrar as saídas necessárias para uma sociedade melhor e mais humana.

    Por fim, gostava que falasses sobre a ligação da diabetes com a alimentação e com o modo como comemos hoje.

    José Manuel Boavida: A questão da alimentação é uma questão fundamental que é muito pouco falada. Hoje, a alimentação está nas mãos de 4 ou 5 multinacionais, com forças absolutamente incríveis e que modificam muitos dos nossos comportamentos.

    Há o primeiro lóbi que é o lóbi dos cereais, que transformou todo o movimento dos pequenos almoços: se nos recordarmos do que era o pequeno almoço há 20 anos e agora a panóplia que existe de produtos para o pequeno almoço, que estão cheios de sal, que estão cheios de açúcar, e que são dados às crianças como modo absolutamente saudável e rico do ponto de vista alimentar com minerais, com ferro, com isto e com aquilo – tudo publicidade enganosa. Não quer dizer que não sejam produtos bons, mas são produtos manufaturados, com imensos produtos aditivos, que não sabemos a sua influência porque nunca foram estudados.

    Nos últimos 20 anos foram introduzidos na alimentação mais de 4.000 produtos, que na sua grande maioria são estudados pelo efeito sobre o cancro, mas que não são estudados pelo efeito sobre a obesidade ou sobre a diabetes ou sobre as hormonas e muitos deles terão aqui um papel bastante importante.

    O segundo grande lóbi é o lóbi da carne e temos Portugal como um bom exemplo do que é a cultura intensiva da vaca, que ocupa espaços agrícolas em grande terreno e uma cultura da carne de vaca que era uma coisa que também não existia há 30 anos – a vaca era introduzida na alimentação em pequenas quantidades.

    Depois existe enfim toda a panóplia dos refrigerantes. Hoje, infelizmente, não entramos em casas de pessoas, muitas vezes com mais dificuldades, onde o refrigerante não seja considerado algo que apesar de tudo lhes dá algum prazer. O problema é que esse prazer está ligado claramente à obesidade, à diabetes e portanto às doenças do coração, em geral. Poderíamos continuar por aqui e percebermos que há uma transformação da própria alimentação. Os alimentos são cada vez mais calóricos. O aumento de preço dos produtos como os refrigerantes é praticamente nulo, nos últimos dez quinze anos, enquanto o aumento do preço dos vegetais, da fruta, dos produtos mais complexos é exponencial.

    Em Portugal, por exemplo, um dos alimentos que mais tem desaparecido nos últimos anos é as leguminosas, é o feijão, o grão, ervilhas e favas que foram os alimentos que sempre constituíram a base da alimentação ao longo de anos no mundo e tem vindo a reduzir-se drasticamente.

    Obviamente que depois temos outro problema que tem a ver com a alimentação: o dia a dia e a falta de tempo. Hoje, por exemplo, as pessoas preferem os fritos que são muito mais rápidos do que os cozidos. Antigamente, estava a panela ao lume, todo o dia, ia preparando a comida em lume brando, ia cozendo devagar e agora queremos isso em cinco minutos, porque as pessoas não têm tempo. Ou então, comermos com ajuda do micro-ondas, nada melhor que pré-feitos e aí vem outro lóbi que é o da indústria dos alimentos pré-fabricados, que é só aquecer e comer e a que vemos a juventude recorrer.

    Já não vou falar da fast-food, que é mais do que falada, mas toda a compreensão de como esta sociedade se desenvolve de uma forma anárquica, virada unicamente para o lucro, e sem consideração nenhuma nem pela espécie humana nem pela saúde das populações é claramente marcante.

    É neste sentido que é fácil o caminho da culpabilização das pessoas. As pessoas são gordas porque comem demais… as pessoas são gordas porque têm uma genética de resistência à fome e da sobrevivência que lhes faz com que absorvam bem os alimentos e que se lhes dão alimentos que não são bons obviamente se tornam gordas.

    É preciso enquadrar bem esta questão da alimentação. É um debate para o qual penso que todos os movimentos se devem aproximar, devem aprofundar, porque é complexo e tem forças enormes por detrás dela que é necessário enquadrar. A publicidade é um dos aspetos menores disso. Mas não é por acaso que entre as notícias dos canais televisivos, nos noticiários da noite, aparecem anúncios de chocolates para crianças, que é influência sobre os pais e sobre os avós. Esta subtileza de todos estes lóbis é extremamente pouco subtil, mas infelizmente extremamente eficaz e, portanto, temos que encontrar formas de a combater decididamente.

    Entrevista realizada por Carlos Santos e Nino Alves para esquerda.net

    Fonte: Esquerda.Net, 14 de novembro, 2014

  • O pacificador

    O pacificador

    Lula discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e pela democracia em São Paulo no dia 18 de março de 2016
    Lula discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e pela democracia em São Paulo no dia 18 de março de 2016

    A convite da professora Natalia Brizuela, participei há cerca de duas semanas do lançamento do dossiê especial da revista Film Quarterly (vol. 69, no. 3) dedicado ao legado do cineasta Eduardo Coutinho. O evento ocorreu no intervalo da apresentação de dois documentários de Coutinho, Boca de Lixo (1993) e Peões (2004), no prédio recém-inaugurado do Berkeley Art Museum and Pacific Film Archive (BAMPFA). Natália pediu-me pra introduzir o filme Peões ao público presente no mais novo museu da Universidade da Califórnia em Berkeley. Rapidamente, fiz alguns comentários sobre o método etnográfico “radical” de Coutinho e sua habilidade de condensar os dilemas da visão social de mundo dos subalternos em entrevistas traspassadas por um profundo sentido de dignidade humana.

    Além disso, busquei contextualizar historicamente o tema de Peões, isto é, o filme que, rodado em 2002, ano da eleição de Lula da Silva, Coutinho dedicou à trajetória da classe operária fordista do ABCD paulista. Observei como o documentarista foi hábil em restituir a agência histórica aos próprios trabalhadores. Afinal, tendo em vista o sucesso de Lula da Silva e da burocracia sindical de São Bernardo, muitas vezes não nos lembramos que foi aquela classe operária semiqualificada retratada nas telas por meio de algumas trajetórias individuais exemplares a verdadeira protagonista do ciclo das greves de 1978, 1979 e 1980. Os peões explicam o ativismo de Lula da Silva, mas Lula da Silva não consegue explicar o ativismo dos peões.

    Lembrei ao público que após o golpe de 1964, a ditadura civil-militar interveio nos sindicatos, perseguindo as lideranças comunistas do ABCD paulista e substituindo-as por antigos pelegos diversas vezes batidos nas eleições sindicais e usualmente alinhados aos setores conservadores da igreja católica. Paulo Vidal foi o mais bem-sucedido desses pelegos. Conhecido por entregar militantes de esquerda pra polícia e ameaçar quem falasse em greve, Vidal foi o predecessor de Lula da Silva na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O “sindicalismo autêntico”, como ficou conhecida essa corrente sindical, nada mais era do que uma tentativa extemporânea de negociar com as multinacionais da região pequenas concessões materiais ao estilo do business unionism estadunidense (sindicalismo de negócios) no qual a nova burocracia de São Bernardo espelhava-se.

    Batendo de cara com o total desinteresse das empresas em negociar com os trabalhadores, afinal, o golpe de 1964 serviu exatamente pra barrar as concessões materiais ao operariado conquistadas pelas greves do período populista, e pressionados pelo aumento da mobilização das suas próprias bases, a escolha de Lula da Silva como sucessor de Paulo Vidal em 1976 marcou o momento da renovação das velhas práticas pelegas de controle da insatisfação operária pela burocracia sindical. Diante da inevitabilidade da greve, Lula da Silva soube se reinventar politicamente, passando de instrumento do assistencialismo sindical à principal liderança de um movimento operário intempestivo e, até certo ponto, imprevisível.

    No entanto, o documentário de Coutinho mostra uma dimensão ainda mais sutil dessa história. Na realidade, o filme captou a relação dialética entre a insatisfação, os desejos e as iniciativas políticas dos peões, verdadeiros sujeitos de sua própria história, e a tentativa de controlar esta agência empreendida por Lula da Silva. Recorrendo a outros filmes da época, em especial, o já clássico Linha de Montagem (1982) de Renato Tapajós, Coutinho revelou por meio de detalhes – o choro, a ansiedade, a chantagem emocional e o pedido do voto de confiança –, o nascimento de uma liderança política ainda desconfiada de sua própria força. Ao mesmo, tempo, o cineasta mostrou como nesses instantes de fragilidade de Lula da Silva, os dilemas dos próprios operários em seu “fazer-se” história condensavam-se e encontravam um sentido mais ou menos consciente.

    Sabemos que daí surgiu um líder cuja legitimidade deriva do controle da insatisfação popular por meio de negociações que lentamente garantem pequenas concessões aos trabalhadores. Uma força social reformista a afiançar o armistício entre a autonomia dos subalternos e a presunção dos dominantes. Quando isso não é possível, sua utilidade tende a declinar até o ponto em que o estabelecimento de um novo pacto volte a ser uma opção crível. No mundo do trabalho, o colapso do armistício entre as classes geralmente vem sob a forma de uma onda grevista.

    De fato, de acordo com os últimos dados do Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG-Dieese), os trabalhadores brasileiros protagonizaram em 2013 uma onda grevista inédita na história do país, somando 2.050 greves. Isto significou em crescimento de 134% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 877 greves. Este número superou o ano de 1990, configurando um novo recorde na série histórica do SAG-Dieese. Em termos de horas paradas, tivemos 111.342 horas paradas, em 2013, representando um crescimento de 28% em relação ao ano anterior. Trata-se do maior número desde o ano de 1990, quando foram registradas 117.027 horas paradas.

    Assim, o país superou o declínio grevista das últimas duas décadas e o movimento sindical readquiriu certo protagonismo político. Em várias capitais, as greves bancárias tornaram-se rotineiras. Além disso, professores, funcionários públicos, metalúrgicos, operários da construção civil, motoristas e cobradores reconciliaram-se com a mobilização sindical entre 2013 e 2015. Um notável protagonismo da esfera privada tornou-se saliente, consolidando a tendência iniciada em 2012. Proporcionalmente, as greves da esfera privada representaram 54% do total, superando as greves da esfera pública.

    No tocante às greves ocorridas na esfera privada, por exemplo, a maior parte das greves defensivas (46%) esteve diretamente associada ao descumprimento de direitos sociais e trabalhistas por parte dos empregadores. Em comparação com o ano de 2012, nota-se um importante aumento (21,6%) na proporção do número de greves relacionadas ao pagamento de salários atrasados, um indício claro da deterioração das condições gerais de reprodução do regime de acumulação. Com um crescimento de 332% em relação a 2012, em apoio à tendência identificada acima, vale destacar a verdadeira explosão de greves ocorrida no domínio que acantona com mais frequência os grupos de trabalhadores não qualificados ou semiqualificados, terceirizados, sub-remunerados, submetidos a contratos precários de trabalho e mais distantes de certos direitos trabalhistas, isto é, o setor de serviços privados.

    Além de oito greves nacionais realizadas pelos trabalhadores bancários, nota-se, também, um particular ativismo existente entre os trabalhadores em turismo, limpeza, saúde privada, segurança, educação e comunicação. No entanto, a maioria das greves foi deflagrada por trabalhadores dos transportes. Além disso, é possível notar uma tendência semelhante quando observamos os trabalhadores do serviço público. Tanto em termos de administração direta quanto em relação às empresas estatais, o aumento mais expressivo das greves deu-se nos municípios.

    Nesse sentido, a atividade sindical ampliou-se para categorias diferentes daquelas já tradicionalmente mobilizadas. Aqui também a atividade grevista avançou na direção dos grupos de trabalhadores mais precarizados do Estado. Em termos gerais, considerando tanto a esfera privada quanto a pública, é possível identificar uma expansão do movimento do centro para a periferia em uma espécie de transbordamento grevista. Além da presença cada vez mais saliente das reivindicações defensivas nas pautas sindicais, este avanço das greves para a periferia dos diferentes setores econômicos revela uma forte aproximação do precariado urbano em relação à mobilização sindical.

    Diante do atual ciclo de greves, desconfio que, entre as incontáveis explicações para a atual crise política, a mais subestimada talvez seja essa: as classes dominantes simplesmente não precisam de uma burocracia sindical incapaz de controlar suas próprias bases. Sobretudo, no momento em que o único projeto realmente crível para os dominantes consiste em restaurar a acumulação capitalista aprofundando a espoliação social por meio do ataque aos direitos dos trabalhadores. Em suma, aos olhos dos dominantes, Lula da Silva tornou-se uma liderança embaraçosa, passível de ser encarcerada por uma razão qualquer, justificável ou não.

    Mas o que a burguesia brasileira parece ter subestimado na atual crise é exatamente aquilo que Eduardo Coutinho revelou tão bem em seu filme: os dilemas do “fazer-se” história dos subalternos condensam-se num significante ambivalente. E no último dia 18 de março, Lula da Silva ressurgiu à frente de uma multidão formada por 100 mil pessoas em plena Avenida Paulista. Diante de um golpe legislativo-midiático-judiciário em curso contra sua afilhada política, ele relembrou um país dividido e conflagrado qual seu papel histórico: ser o grande pacificador da luta de classes. Será suficiente para barrar o golpe? Aposto que não. Afinal, na atual crise orgânica brasileira, soluções mediadas perderam seu lugar. O cimento ideológico da redução da pobreza não é mais eficiente diante do quadro de aumento do desemprego e aprofundamento das desigualdades entre as classes. De fato, estamos diante do retorno ruidoso da luta de classes no país.

    No entanto, tendo em vista a atual volatilidade política, Lula da Silva soube entregar sua mensagem ao país. Dentro ou fora da prisão, se o golpe da direita avançar, ele irá liderar a resistência legalista. E se as classes dominantes decidirem improvisar uma solução negociada, novamente, será ele a afiançar o pacto conservador. Apoiando-se na mobilização dos trabalhadores organizados, sobretudo, Lula da Silva é transforma-se em uma força política incontornável. E o que quer que aconteça nos próximos meses no país, será ele – e não Sérgio Moro – que estará no centro do palco pronto a se reinventar politicamente, tal como ocorreu em 1978 em São Bernardo.

    * * *

    PARA APROFUNDAR A REFLEXÃO… 5 DICAS DE LEITURA DA BOITEMPO
    A legalização da classe operária, de Bernard Edelman, uma análise didática e aprofundada sobre como a institucionalidade jurídica burguesa enquadra e cerceia a luta popular procurando domesticar ferramentas como as greves e as representações trabalhistas em sindicatos, e partidos.
    A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, o estudo desbravador de Ruy Braga que analisa as novas configurações da luta de classes no Brasil de hoje e indicava já em 2012 como a despeito da relativa “satisfação” acusada pelas eleições presidenciais e da aparente estabilidade do modo de regulação proporcionada pelo “transformismo” petista, a hegemonia lulista encontrava-se assentada em um terreno historicamente movediço.
    Hegemonia às avessas: Economia, política e cultura na era da servidão financeira, organizado por Ruy Braga, Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, volume clássico do Cenedic sobre a forma avessa de dominação que configura a era lulista, inspirado em uma releitura de Gramsci e no artigo homônimo de Chico de Oliveira. Vem aí, em 2016, o novo volume do Cenedic sobre o Brasil atual Desigual e combinado: capitalismo e Modernização Periférica no Brasil do Século XXI, coletânea organizada por André Singer e Isabel Loureiro com reflexões de Ruy Braga, Maria Elisa Cevasco,Wolfgang Leo Maar, Cibele Rizek, Ana Amélia da Silva entre outros.
    De que lado você está, de Guilherme Boulos, é um livro de intervenção de leitura obrigatória para pensar (e transformar) o Brasil de hoje, com reflexões de fôlego sobre a conjuntura nacional recente que mostra a zona cinza em que a disputa polarizada se encontra.
    Revista Margem Esquerda #22, com homenagem a Eduardo Coutinho, escrita por Felipe Bragança, além de dossiê especial dedicado aos 50 anos do Golpe.

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    Ruy Braga

    Ruy Braga

    Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

    Fonte: Blog da Boitempo, 28/03/2016

  • ‘Governo arruinou a Petrobras; Brasil já perdeu janela aberta pelo Pré-Sal pra se alavancar’

    ‘Governo arruinou a Petrobras; Brasil já perdeu janela aberta pelo Pré-Sal pra se alavancar’

    PetrobrasO Brasil continua paralisado em meio à briga de clãs que disputam o poder central. Um show de retóricas, seja à esquerda ou à direita do espectro político, na defesa de pontos de vista cujas grandes diferenças jamais ficam claras. A questão do petróleo e em especial do Pré-Sal não escapa à lógica, mas será que os projetos governistas e oposicionistas sobre sua exploração econômica são tão diferentes? Foi sobre isso que conversamos com o cientista político e consultor em economia Pergentino Mendes de Almeida.

    “Tivemos uma janela de, teoricamente, usar o Pré-Sal para alavancar (desculpem o palavrão!) este país e lançá-lo para uma posição firme, independente, com indústria própria, agricultura robusta e diminuição da desigualdade social. Teria de ter sido um empreendimento iniciado rapidamente, com união nacional, entusiasmo e exaltação da confiança pública no país. Não foi”, criticou Pergentino. Mediante as atuais circunstâncias do país e também da Petrobras, o consultor considera apropriado o PLS 131 do senador tucano José Serra, que basicamente significa acelerar a venda do petróleo, mesmo em meio à baixa de seu preço.

    A seguir, o entrevistado deixa claro que considera o gerenciamento dessa riqueza uma repetição da lógica colonial, a exemplo da era açucareira do Nordeste, e que no fim das contas tudo dependerá de como se resolverão as contendas do momento. “Precisamos desenvolver a tecnologia adequada, e isso a Petrobrás pode fazer: ela tem engenheiros competentes e capazes. Mas aí entra a política. Onde está o dinheiro? E mais: seria possível desenvolver tecnologias inovadoras num ramo isolado como o petróleo, sem uma política industrial e megaeconômica, diversificada, de longo prazo? Corremos o risco, se fôssemos nos basear na economia do petróleo e do Pré-Sal apenas, de termos de pagar para produzir e exportar petróleo”.

    Pergentino considera ainda ilusória a promessa de financiamento da educação a partir da renda do pré-sal. “As coisas ficam mais bonitinhas de se olhar, mas o contingenciamento de verbas e a margem para pagamento dos juros aos bancos e para a manutenção das nossas reservas cambiais são esquecidos. E é precisamente aí que estão as prioridades escolhidas pelo governo brasileiro. Ou melhor, pela banca internacional, já que são eles que mandam aqui. O Brasil vem depois, colhe as sobras, que sempre são poucas para as necessidades. O dinheiro do Pré-Sal, se houvesse, vai sumir nesse sorvedouro. A prioridade são os juros bancários. Afinal, isto é o Capitalismo Financeiro”.

    A entrevista completa com Pergentino Mendes de Almeida pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como enxerga a aprovação no Senado do PLS 131, de iniciativa de José Serra, que visa desobrigar a participação de ao menos 30% da Petrobrás em todos os consórcios de blocos do Pré-Sal?

    Pergentino Mendes de Almeida: Se é para se explorarem as reservas do Pré-Sal, a justificativa apresentada pelo Senador José Serra ao seu PLS 131 parece-me oportuna. Por que deixar essa riqueza enterrada? Não faz sentido, o Capital vai nos asfixiar em CO2 se puder. O PL 131 é a última chance de conseguir alguma vantagem para o Brasil. Quero deixar claro logo de início que tenho pontos de vistas mais ou menos divergentes dos que norteiam o centro, a direita e a nossa pseudo-esquerda, populista e fascistóide. Para simplificar: a pergunta é de simples resposta, se vale a pena aproveitar recursos que temos (claro que sim!), mas a resposta contém detalhes onde reside o diabo.

    Tivemos uma janela de, teoricamente, usar o Pré-Sal para alavancar (desculpem o palavrão!) este país e lançá-lo para uma posição firme, independente, com indústria própria, agricultura robusta e diminuição da desigualdade social. Teria de ter sido um empreendimento iniciado rapidamente, com união nacional, entusiasmo e exaltação da confiança pública no país. Não foi. O resto do mundo está trabalhando para a implantação inevitável de tecnologias alternativas mais sofisticadas, a fim de reduzir as emissões de CO2, com a inevitável e paulatina perda da importância do petróleo. Agora está ficando tarde, temo.

    É hora de recuperarmos a Economia e a Petrobras para que esta tenha capacidade de atuar com eficácia. O problema é que eles podem ir adiante, antes de resolvermos os problemas legais da regulamentação do Pré-Sal e de recebermos as sondas e plataformas encomendadas e por encomendar. No mundo todo, para todos os países, os atrasos na entrega desses equipamentos são normais, de cinco a oito anos, às vezes mais de dez anos. O pré-sal, conforme as previsões iniciais, poderia constituir uma alavancagem para o desenvolvimento nacional e as finanças públicas. Mas a coisas me parecem mais complicadas do que vemos, hoje, a partir de nossa perspectiva míope.

    A era do petróleo atingiu seu pico. De hoje em diante, a longo prazo, tende a decair. Quando jovem, participei da campanha “O Petróleo é nosso”. Isso quer dizer monopólio da Petrobrás. Getúlio Vargas foi suicidado por causa disso e da Vale do Rio Doce. O que aconteceu desde então, em que pé estamos depois de vários mandatos de um partido que se diz de esquerda, mas que não passa de um populista a serviço da banca? A Petrobrás está arruinada. A Vale só deu lucro depois de entregue à iniciativa privada e o governo contribuiu para isso. O resgate do Pré-Sal exige mais dinheiro do que tem a Petrobrás e uma política macroeconômica mais bem azeitada, a longo prazo. A Petrobrás está arruinada. Ela publica que está “vendendo ativos para poder investir”. Para mim, isso quer dizer que ela está desinvestindo, em vez de investir.

    Mas o tema tem sido tratado de uma maneira tão ufanista que me faz duvidar do muito que se disse a respeito. A questão virou um tema político, no sentido mais rasteiro do termo, e isso me deixa meio cético com relação a todas as expectativas oficiais. O mais sensato diagnóstico a respeito, durante as discussões no Senado, enquanto os governadores e prefeitos se reuniam para pressionar a seu favor a distribuição e o adiantamento dos royalties, foi uma tirada do Lula: “a pescaria nem começou, mas a turma já tá brigando pelo pirão”.

    Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos favoráveis ao projeto, levando em conta o atual momento de baixa internacional dos preços do petróleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: O mercado é volátil, ele sobe e desce. Parece que a coisa tende a ficar inviável para nós. Eis uma situação que me deixa confuso: já li, em fontes diversas, citações (rumores?), de que o preço mínimo do barril de petróleo para viabilizar o Pré-Sal seria de 80 dólares (quando estava a 120), ou 60, ou 40 dólares, como agora. O preço do barril no mercado atingiu a casa dos 30 dólares. É previsível que haverá períodos de baixa (prejuízo) e alta (lucros), mas onde fica o nosso ponto de equilíbrio?

    Lembremo-nos de que estamos falando em águas profundas, mais profundas do que as empresas de petróleo estão habituadas a explorar, e a distâncias maiores da costa, maiores distâncias do que os poços do Caribe ou do Alaska, exemplos de catástrofes ambientais nas mãos de respeitabilíssimas megaempresas do ramo, Exxon e BP. Isso significa maiores custos, seguros muito mais caros, recursos provavelmente mais caros, em termos de equipamento e logística – e mais tempo.

    Precisamos desenvolver a tecnologia adequada, e isso a Petrobrás pode fazer: ela tem engenheiros competentes e capazes. Mas aí entra a política. Onde está o dinheiro? E mais: seria possível desenvolver tecnologias inovadoras num ramo isolado como o petróleo, sem uma política industrial e megaeconômica, diversificada, de longo prazo, adequada ao crescimento harmônico de toda a economia? O que os governos do PT fizeram até agora foi distribuir recursos públicos para os pobres comerem, e isso pode ser louvável; porém, o mais importante seria estimular a produção e o investimento – ou seja, o emprego e a diversificação e fortalecimento de nossa economia. Comida você come e descarrega o que sobrou dela. Emprego é um pouco melhor. Pelo menos você conta com algum rendimento do mês seguinte, depois de gastar o salário deste mês.

    O PT fez o contrário. Tornou o dólar atrativo para especular e comprar empresas nacionais, alienou nossa indústria e concedeu créditos e isenções fiscais aos bancos e à indústria automobilística, para facilitar a remessa de lucros destinados a aliviar os coitados dos países ricos, quando entraram em recessão. Estamos cada vez mais especializados em exportar commodities e destruir o meio ambiente. Enquanto isso, nossa indústria está se desmoronando. Caminhamos para a mesma situação do Brasil-Colônia, nos tempos da cana-de-açúcar do Nordeste.

    Naquela época, os brasileiros (brancos lusos) eram o povo mais rico da Terra em termos de patrimônio per capita. Os escravos e índios eram parte de seu ativo, não eram gente. Corremos o risco, a longo prazo, se fôssemos nos basear na economia do petróleo e do Pré-Sal apenas, de termos de pagar para produzir e exportar petróleo. O que, aliás, já ocorre quando vendemos gasolina abaixo do preço do mercado e do barril de petróleo bruto. A doença venezuelo-holandesa já começou antes da pescaria.

    Correio da Cidadania: E o que pensa dos argumentos que dizem se tratar de um crime contra o futuro do financiamento da educação, afirmando que se trata de uma perda de 25 bilhões de reais/ano?

    Pergentino Mendes de Almeida: Considerando tudo o que eu disse antes, você pode imaginar a importância que atribuo à Educação. Dez vezes mais do que hoje atribuímos à superior, dez vezes o valor da superior para o médio e dez vezes mais para o ensino básico. É uma pirâmide de carências proporcional à pirâmide de distribuição de renda. Diz-se que o rendimento do Pré-Sal seria destinado à Educação. Isso não me comove. O sistema das finanças públicas tem por valor absoluto a ideia de que todo o dinheiro do Estado fica unificado no Tesouro, afinal, é tudo dinheiro do governo. Juntando tudo num só cofre, nas mãos dos nossos políticos, eles vão falar de superávit primário, não do nominal.

    As coisas ficam mais bonitinhas de se olhar, mas o contingenciamento de verbas e a margem para pagamento dos juros aos bancos e para a manutenção das nossas reservas cambiais são esquecidos. E é precisamente aí, nos juros, nos interesses dos bancos e dos especuladores que estão as prioridades escolhidas pelo governo brasileiro. Ou melhor, pela banca internacional, já que são eles que mandam aqui. O Brasil vem depois, colhe as sobras, que sempre são poucas para as necessidades.

    Por que cada parcela do orçamento, reservada para uma finalidade social considerada importante, não compõe um fundo específico que deve gerar dividendos e prestar contas, por exemplo, aos trabalhadores, no caso do FGTS, às escolas e professores nos fundos para Educação e assim por diante? Eu sei que estou falando besteira, não sou economista nem contador, portanto, tenho o direito de dizê-las. Mas mesmo que eu tivesse, ou tenha razão, os políticos e os tecnocratas rejeitariam a proposta. O dinheiro do Pré-Sal, se houvesse, vai sumir nesse sorvedouro. A prioridade são os juros bancários. Afinal, isto é o Capitalismo Financeiro.

    Correio da Cidadania: A propósito, como enxerga a atual crise financeira da Petrobrás, permeada por casos de corrupção de grande monta em diversas diretorias e setores da empresa? Nesse sentido, a empresa teria perdido de fato a capacidade de exploração do petróleo, como, por exemplo, na própria camada do Pré-Sal, justificando um projeto como o do senador Serra?

    Pergentino Mendes de Almeida: Catastrófica. Há século e meio um ditado do bom senso nunca foi desmentido: o primeiro melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada; o segundo melhor negócio é uma empresa de petróleo mal administrada. Pois o PT conseguiu desmontar a nossa maior empresa e desmentir a sabedoria secular desse ditado. É uma proeza e tanto! É claro que, nesta altura dos acontecimentos, tanto faz. A situação até que justifica o PLS 131 do senador José Serra. A Petrobras precisa se recuperar e deixar de ser um peso morto na exploração do Pré-Sal, pois não tem substância financeira para arcar com 30% de todos os investimentos necessários.

    Além disso, ela tem, a meu ver, outras prioridades a atender. Como é que ela se pode propor, na sua propaganda institucional, a ser uma empresa de energia, quando não tem alcance para salvar sequer o petróleo que já tem e as refinarias que já comprou? De quais energias estamos falando? Eu acredito no corpo técnico da Petrobras, mas não na sua administração.

    Correio da Cidadania: Qual é a seu ver o sentido maior, hoje, de exploração do Pré-Sal, considerando a conjuntura atual nacional e também a internacional?

    Pergentino Mendes de Almeida: É ganhar uns trocados ou uma pequena fortuna – se tudo correr bem. Mas já sabemos que nem tudo está correndo bem para nós aqui e para o mundo em geral. E nem uma pequena fortuna, com as atuais políticas, iria melhorar as condições sociais do povo brasileiro. Poderia valer a pena se tudo tivesse sido planejado a longo prazo, dentro de um pensamento holístico, e começado há uns dez anos. Agora passou a janela. Mais uma vez.

    A Era do Petróleo e da produção abundante de CO2 para gerar energia chegou ao pico e tende a retrair-se. Não acho que a extração de petróleo vai acabar de vez, ele ainda será necessário para as indústrias de corantes, plásticos, cosméticos, perfumaria e medicamentos. Mas deverá ser suplantada por um conjunto de fontes alternativas de energia para transporte, iluminação, comunicações etc. Quem não ficou rico com o petróleo até agora não fica mais, principalmente com a complexidade e custos crescentes da tecnologia necessária. Uma coisa é certa e aceita, ainda que entre quatro paredes, pelas empresas exploradoras do petróleo: o futuro exige a redução de emissões de CO2 , custe o que custar. E ponto. O que elas podem fazer é ganhar um tempinho.

    As grandes multinacionais do petróleo sabem disso e preparam-se para uma nova fase de geração de energia. A Shell, os Emirados, a Arábia Saudita investem pesado em pesquisa de fontes alternativas. Talvez a Shell seja a organização com resultados mais avançados – no nível experimental. Ok, suponha então que você é a Shell e dispõe do conhecimento e da tecnologia necessários para mudar tudo. Agora pense: por que lançar uma inovação tecnológica neste momento, solução que está pronta e segura na sua prateleira (onde entram as leis de patentes, a batalha crítica na ONU e OMC!), quando ela irá desmantelar todo o seu sistema altamente lucrativo, que funciona de modo eficiente há mais de um século? Por que desperdiçar a rede de distribuição, caminhões-tanque, torres de petróleo, tanques de armazenamento, gasodutos, contratos com distribuidores e fornecedores, valor da marca, além das relações com os produtores, que custaram guerras históricas e invasões para se consolidarem, enquanto todo esse aparato continua rendendo lucros?

    Note, o investimento feito desde o século 19 pela Shell, Exxon, BP e todas as outras já foi amortizado há muitas décadas, agora é só usufruir. Nenhum investidor é suicida (isto é, do ponto de vista da economia capitalista) para abandonar o jogo enquanto está ganhando.

    Ou seja, o Brasil não apenas deixou sua maior empresa ser engolida por interesses particulares, como ainda perde o bonde da inovação tecnológica em que a própria Petrobrás poderia ser líder.

    Agora surgem ameaças de cantos inesperados, que não faziam parte do jogo. Carros sem motorista, movidos a energia elétrica: o Modelo Google já funciona em algumas cidades nos Estados Unidos. A Ford negocia um acordo com o Google para eventual produção em massa. A GM se adiantou e acabou de lançar um modelo inteiramente elétrico, possante e com autonomia de 300 km com uma só carga elétrica. A Toyota já vende o seu híbrido elétrico no mercado. A Nissan começou agora.

    As novas gerações não estão mais dando o mesmo valor à posse de um reluzente carro como nós sempre demos. Por que não alugar um veículo elétrico apropriado à sua viagem, pagando só pelas horas de utilização, como você hoje faz com as bicicletas do Itaú? Na França e nos Estados Unidos (se não me engano, também no Japão) a experiência está em curso. E está dando certo.

    Por falar em energia atômica, ninguém sabe que os Estados Unidos estão desenvolvendo usinas atômicas de IV Geração, capazes de superar em custos, benefícios, eficiência, facilidade de instalação, mobilidade (sim, mobilidade!) tudo o que chamamos hoje de usinas nucleares. De acordo com um depoimento do Departamento de Energia ao Senado norte-americano, o que se procura é criar um sistema tal que torne obsoletas todas as demais formas de obtenção de energia por meio de uma nova tecnologia nuclear avançada.

    Essa nova tecnologia oferece a segurança que as atuais usinas não oferecem, são menores e fáceis de transportar e montar, e produzirão energia mais barata in loco. Mas serão de domínio norte-americano. O objetivo declarado nesse depoimento é transformar os Estados Unidos num monopólio mundial de energia. Isso introduz uma outra variável geopolítica importante: a esfera jurídica e a tendência à globalização, com poucas, enormes e diversificadas corporações ditando suas políticas internacionais em todas as áreas de atividade, na indústria, no comércio, nos serviços, nas políticas nacionais subordinadas a elas.

    Daqui a vinte, trinta anos, o mundo não será o mesmo. Que fique claro: quase todas as alternativas de geração de energia mencionadas acima têm seus problemas, inclusive ambientais, mas estes são solucionáveis pela tecnologia. Juntas, darão conta do recado. Existe um potencial nelas que não é abertamente reconhecido. Alguns cientistas acreditam que a energia eólica, a solar e a das marés poderiam eventualmente satisfazer, conjuntamente, todas as necessidades globais de energia. Nem todos concordam, mas o ponto que quero salientar é que nesse campo existem mais coisas entre o céu e a terra do que as grandes corporações deixam entrever.

    O ponto a salientar é que pouco provavelmente uma só delas venha a substituir o petróleo ou o gás natural, próximo protagonista de nossa história. O que podemos esperar é a adoção de um mix de tecnologias de produção de energia, do qual o petróleo ainda participará, em proporções decrescentes. A única “surpresa” que pode salvar o planeta em um cenário diferente é a invenção de uma tecnologia que permita controlar a fusão nuclear. Pode acontecer amanhã, na semana que vem ou daqui a dez anos, ou nunca. Mas existem investimentos não desprezíveis tentando descobrir a fonte praticamente infinita e limpa de energia.

    Em qualquer caso, o problema de transmissão tornar-se-á numa questão estratégica de repercussões mundiais. Acho que aqui também deverá ocorrer uma verdadeira revolução tecnológica. Compondo esse problema logístico já existe um outro ainda pior. O volume de CO2 na atmosfera hoje já é suficiente para gerar enormes desafios e perigos futuros. Não há mais como evitá-los. Agora é tarde. Teremos de desenvolver sistemas viáveis de sequestro e captura de carbono do ar.

    Correio da Cidadania: O que pensa, nesse sentido, dos argumentos mais radicados no ambientalismo, que condenam de lado a lado as fórmulas propostas para a extração do óleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: Não os conheço todos, mas não vejo como estancar, neste século, a extração de petróleo. Quero dizer, na prática.

    Correio da Cidadania: E o que comenta sobre os argumentos de corte geopolítico que condenam o projeto?

    Pergentino Mendes de Almeida: Também não os conheço bem. Não sei que alternativas são propostas. Mas qualquer alternativa deverá ser realista: vivemos no mundo da especulação do capitalismo financeiro, que é uma espécie de “socialismo” a favor do capital. Nenhum país rico, nenhuma economia evoluída na Europa, América, Ásia, foi capaz de desenvolver o seu sistema capitalista sem forte e constante apoio dos governos. Isso vale para todas as potências ditas liberais, inclusive os Estados Unidos. O que desejo salientar é que o problema é muito mais complexo sob todos os ângulos: geopolítico, econômico, financeiro, técnico etc. Não se pode buscar uma resposta simples.

    Acredito que o problema reside exatamente aí: há uma falta de visão de conjunto a longo prazo, para beneficio de toda a sociedade e para a modernização, diversificação e ampliação de nossa indústria, que, infelizmente, está sendo sucateada e vendida ao capital estrangeiro. Não é à toa que nem se menciona mais o termo clássico da Economia, “Produto Nacional Bruto”; fala-se em “Produto Interno Bruto”. As vendas de Volkswagen no Brasil contam como nosso produto interno, mas são produto nacional da Alemanha. A Toyota do Brasil é um ativo do Japão, não do Brasil, e daí por diante.

    Correio da Cidadania: Qual deveria ser, em sua visão, a relação do Brasil e seus governos com essa riqueza finita? Qual seria o modelo ideal de gestão do petróleo?

    Pergentino Mendes de Almeida: Primeiro, quero dizer que não considero, na prática, o petróleo uma riqueza finita. Sempre que aumenta o preço do barril de petróleo, o volume das reservas mundiais certificadas aumenta também. Estão sempre um pouco acima da curva de consumo. O que vai limitar a indústria do petróleo é a necessidade de reduzir o volume de CO2 na atmosfera, além do fato de que as fontes alternativas de energia em desenvolvimento hoje podem ser mais eficientes do que o petróleo.

    A vantagem do petróleo é que ele sempre foi barato; antes da crise dos anos 1970, da organização da OPEP, o preço do barril variava pouco acima de um dólar – o mesmo barril que hoje está perto dos 30 dólares e que deveria subir para 100 dólares a fim de compensar o Pré-Sal e várias outras fontes alternativas de energia. Por outro lado, considere que estamos falando numa economia fortemente sustentada. Mas estamos falando de uma economia sobre quatro rodas, com motor a explosão, movido a combustível fóssil. Isso é uma tecnologia relativamente rudimentar. Um motor a combustão interna com gasolina utiliza pouco mais de 10%, 15% da energia contida na gasolina queimada. O que significa que quase 80% do consumo de gasolina é um subproduto indesejável: calor (que precisa ser arrefecido no radiador) e poluição. No futuro isso deve mudar contra o petróleo, como aconteceu com as fontes de energia, ainda existentes, mas já superadas: a lenha e depois o carvão.

    Quanto a um modelo ideal de gestão do petróleo, não podemos considerá-lo isoladamente de todo o resto que mencionei aqui. Temos de pensar a longo prazo. Um século é pouco para planejarmos e as incertezas são inúmeras. O Brasil deveria explorar todos os seus recursos para gerar uma economia autônoma e diversificada. Deveria usar tudo o que tem para incrementar a indústria de base, a indústria pesada, os portos, as estradas, os estaleiros, o saneamento, a criação de empregos úteis. E isso num tempo em que tudo é robotizado e a mão de obra participa cada vez menos do produto gerado.

    Temos de gerar empregos e adotar métodos modernos de produção, o que parece contraditório. Alguns países conseguiram isso. Ou melhor, praticamente todos os países ditos desenvolvidos passaram por esse teste, mas só conseguiram superá-lo pela presença ativa do Estado. É o que chamo de “socialismo” a favor do Capital, principalmente o financeiro. Como fazê-lo de modo decente é o nosso problema. O Pré-Sal pode ajudar ou não (espero que sim).

    Meu ideal seria o governo investir pesadamente na criação de polos de excelência onde ainda podem existir bolsões de oportunidade para atender as necessidades do futuro, que serão diferentes das da nossa história. Seria necessário concatenar e concentrar nossos recursos, esses sim, finitos demais, para investir no aproveitamento de oportunidades que arrastassem consigo os setores industrial, agrícola, comercial. Ainda que, a exemplo dos países liberais, tivéssemos de passar por um período protecionista – digamos, para que não me apedrejem, protecionista “contido”, racional, consentido e planejado. Mas não para beneficiar os amigos do Rei.

    Correio da Cidadania: Considera que ao tentar acelerar a venda do petróleo o Brasil também perde no sentido de se preparar para promover e financiar outras formas de geração de energia, limpas e renováveis?

    Pergentino Mendes de Almeida: Acho que sim, e essa é a arapuca em que costumamos sempre cair. Foi assim no tempo do Brasil-Colônia, com o açúcar; e depois o café e o algodão, até o Juscelino fatiar o que o Getúlio havia preparado, para entregar ao capital estrangeiro. Quem sabe é exatamente nessa área, a das energias limpas e renováveis, que reside uma dessas oportunidades de darmos um salto para a frente – que os norte-americanos chamariam de “leapfrog”. Temos de ser ambiciosos e acreditar, é necessária uma revolução cultural aqui, no bom sentido.

    Tome a energia eólica. O Norte e o Nordeste do Brasil estão na faixa mundial das monções – ou seja, uma energia constante, inesgotável e infalível, enquanto o planeta girar. Podemos exportar energia para outros continentes, como se considera hoje um projeto de exploração da energia solar do Saara para o Norte da África e toda a bacia das nações mediterrâneas e centrais da Europa. E o Sol, que castiga o nosso sertão? E as possíveis oportunidades tecnológicas que podem ser criadas a partir daí?

    Hoje exportamos doutores para as grandes universidades mundiais, que podem se dar ao luxo de escolher os melhores para retê-los, em benefício dos seus países. Depois nos vendem suas conquistas. E a Educação? E a Saúde? Os desafios são enormes, na proporção do nosso atraso, mas não custariam mais do que nos custam a inércia histórica, a burocracia, a dívida nacional subordinada ao Capital Financeiro e a corrupção, combinadas.

    Correio da Cidadania: O que a aprovação do PLS 131 significa frente ao atual momento político, econômico, social e ambiental do país, de modo mais geral?

    Pergentino Mendes de Almeida: Não sei. Depende do que se pode fazer com ele. Seria muito mais proveitoso, como sugeri acima, numa gestão eficiente a longo prazo, que tivesse atuado com agilidade há dez anos. Mas isso não aconteceu e não vejo qual a eficiência com que podemos contar dos nossos políticos e governo atuais. Se der uns trocados, como mencionei acima, nas mãos de quem ficariam e para quê? A bola de cristal agora precisa ser sintonizada na política, assim rasteira, e na Política, com P maiúsculo.

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 30/03/2016

  • Castelo de cartas marcadas

    Castelo de cartas marcadas

    House_of_CardsA série House of Cards, da Netflix, é comentada por políticos e jornalistas como exemplo do tipo de política que a democracia burguesa pratica. Não com essas palavras, é claro. Mas soubemos por informantes da Casa Branca que Obama é fã da ficção televisiva. Na semana passada, o senador Aécio Neves comentou que a série é superada pela realidade brasileira, o que indica que ele também a assiste. Metade do planeta por via da Smarth TV pode acessar a história de Frank Underwood, o carreirista que chega à presidência dos EUA usando todos os tipos de expediente.

    House of Cards é uma adaptação do romance homônimo escrito pelo inglês Michael Dobbs, inspirado em Shakespeare. O bardo já nos havia prevenido que o poder é adquirido após uma luta que corrompe os oponentes até o imprevisível.

    Mas como diversão e mesmo reflexão vale a pena assistir a Kevin Spacey derrubando seus antagonistas por todos os meios, inclusive o assassinato. Ele é um MacBeth… Um Nixon… Ainda não tivemos alguém desse nível no Brasil… Felizmente…

    Flávio Braga é escritor