Categoria: Artigos

  • Dia Internacional da Mulher

    Dia Internacional da Mulher

    Mulheres reivindicando seus direitos
    Mulheres reivindicando seus direitos

    Em 1975, a assembleia geral da ONU declarou oficialmente o 8 de março Dia Internacional da Mulher.  A origem da data não está muito clara e existem várias versões. A mais verossímil é que foi o 8 de março de 1857, quando um grupo de trabalhadoras têxteis decidiu sair às ruas de Nova Iorque para protestar contra as míseras condições em que trabalhavam. Essa seria uma das primeiras manifestações de luta por seus direitos laborais. Distintos movimentos e eventos se sucederam a partir dessa data.

    Um dos eventos mais destacados ocorreu em 25 de março de 1911, quando se incendiou a fábrica de camisas Shirtwaist, em Nova Iorque. 123 mulheres e 23 homens morreram. A maioria era de jovens imigrantes com idades entre 14 e 23 anos. Foi o desastre industrial mais mortífero da história da cidade e motivou a introdução de novas normas de segurança e de saúde do trabalho nos EEUU.

    A data sempre esteve ligada a movimentos de esquerda em defesa da igualdade de gênero e da emancipação feminina.

    Em 28 de fevereiro de 1909, Nova Iorque e Chicago realizaram atos pelo ‘Dia da Mulher’, organizados por destacadas mulheres socialistas como Corinne Brown e Gertrude Breslau-Hunt.

    Na Europa, foi em 1910, na II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, celebrada em Copenhague com a participação de mais de 100 mulheres de 17 países, que se decidiu proclamar o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. A proposta dessa iniciativa partiu de defensoras dos direitos das mulheres como Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo. Não se marcou uma dia determinado, mas um mês: março.

    Como consequência desse encontro feminista de Copenhague, no mês de março de 1911 se celebrou por primeira vez o Dia da Mulher na Alemanha, na Áustria, na Dinamarca e na Suíça. Organizaram-se comícios nos quais as mulheres reivindicaram o direito de votar, de ocupar cargos públicos, de ter acesso ao trabalho e à formação profissional, de receber salário igual ao do homem pelo mesmo serviço e de não sofrer discriminação no emprego. Coincidindo com a primeira guerra mundial, a data ensejou protestos em toda a Europa contra a deflagração bélica, assumindo conotações pacifistas.

    A celebração foi-se ampliando progressivamente a mais países. A Rússia adotou o Dia da Mulher após a Revolução Socialista de 1917. Seguiram-lhe muitos outros países. Na China, o dia se comemora desde 1922; em Cuba, desde 1931. O ato cubano foi no Centro Operário, em Havana, organizado pela Central Nacional Operária de Cuba e pela Federação Operária de Havana. Na Espanha, foi celebrado pela primeira vez em 1936, sob a República espanhola em armas contra o ditador Franco.

    A inglesa Emily Wilding Davison (1872-1913), que se atirou à frente do cavalo do rei no célebre Derby de 1913, foi a primeira mártir do movimento sufragista, que conquistou, com a aprovação do Representation of the People Act de 1918, o voto feminino no Reino Unido, tornando o sufrágio universal.

    Fruto das lutas do movimento feminista (dito sufragista), o voto feminino no Brasil foi reconhecido plenamente no Código Eleitoral de 1932, embora ainda persistisse uma distinção de gênero: enquanto o voto do homem era obrigatório, o da mulher era facultativo. Mas a conquista do sufrágio universal no Brasil só se completou com a promulgação da Constituição de 1988, que, ao lado do voto obrigatório para os maiores de 18 anos e do voto facultativo para os maiores de 16 anos, estendeu o direito de voto (facultativo) aos analfabetos.

    Todavia, foi só em 1975, que a ONU instituiu o 8 de março como Dia Internacional da Mulher, com um objetivo, que hoje em dia continua vigente: lutar em prol da igualdade, da justiça, da paz e do desenvolvimento. “O Dia Internacional da Mulher se refere às mulheres comuns como artífices da história e se enraíza na luta plurissecular da mulher para participar na sociedade em pé de igualdade com o homem”, recorda a ONU.

  • A busca de sentido

    A busca de sentido

    filho_de_SaulOs horrores dos campos de concentração nazistas colocaram o século XX ao lado da Inquisição na Idade Média e aterrorizam e envergonham a humanidade até hoje. Alguns momentos do cinema buscaram retratar a sordidez humana desses centros de extermínio, mas nenhum deles chegou perto de O filho de Saul, de  László Nemes, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.  Mas o que torna essa obra tão poderosa? Entendo que há uma evolução na linguagem cinematográfica presente neste filme. É a narrativa na primeira pessoa. Toda a cena se dá com o protagonista em PP (primeiro plano). O espectador está sempre junto a ele, vivendo o seu terrível drama. O quadro fechado nos permite ver apenas trechos de imagens dramáticas, partes de corpos amputadas, incêndios, assassinatos… Se a opção tivesse sido o PA (plano Americano) o filme seria inviável para o público médio. A trilha sonora é muito importante num filme assim. Ouvimos os gritos, as vozes desesperadas, o choro das crianças, os disparos e montamos com a nossa imaginação os horrores que não visualizamos.

    Praticamente não há diálogos no filme, apenas troca de palavras quase sem sentido, ordens, gritos. O protagonista, que trabalha ajudando a se desfazerem dos cadáveres é também um prisioneiro condenado. Ele faz isso sabendo que será morto nos próximos meses. Seus colegas planejam um levante, mas ele imagina ter encontrado o corpo do próprio filho e busca um Rabino que o ajude na cerimônia de enterro. Mas isso não é permitido. Os cadáveres são incinerados. Ele esconde o corpo do menino e continua nessa busca insana. Fica para o espectador a dúvida se, de fato, o garoto era seu filho ou sua determinação é apenas em busca de um sentido diante do absurdo real.

    Flávio Braga é escritor

  • Bolsos cheios com a indústria armamentista

    Bolsos cheios com a indústria armamentista

    ArmasEUAA indústria e a comercialização de armas volta a ser um dos negócios mais rentáveis e prometedores, depois de deixar atrás a leve queda de 2012, quando houve um retrocesso de 91% na despesa militar mundial.

    Um recente relatório do Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (Sipri) indica que o comércio mundial de armas convencionais aumentou 14% entre 2011 e 2015 em relação aos cinco anos anteriores e que os Estados Unidos reafirmaram sua supremacia como principal exportador mundial.

    O texto também informa sobre o aumento das compras na Ásia, Oceania e no Oriente Médio, com a Índia, a Arábia Saudita e a China como maiores importadores nos últimos cinco anos.

    “Com o aumento dos conflitos e tensões regionais, os Estados Unidos mantêm sua condição de provedor líder de armas no nível global com uma margem clara”, afirmou a diretora do programa de despesa militar da instituição sueca, Aude Fleurant.

    Nesse sentido, apontou que o país do norte forneceu armas a pelo menos 96 países nos últimos cinco anos, com a Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos como principais destinatários.

    Northrop Grumman, BAE Systems, Raytheon, Boeing Defense, Almaz Antei, Airbus e outros grandes fabricantes de armas registram novos recordes de vendas, enquanto continuam as fusões e aquisições que dão lugar a impérios cada vez mais influentes no topo de órgãos internacionais, governos, bancos e meios de comunicação de todo o mundo.

    As vitórias da indústria da guerra são um segredo a poucas vozes. Mas, em que baseia seu triunfo?

    O setor de armas é especial e se rege por normas diferentes às das demais indústrias. Os fabricantes de armas são entidades privadas – ainda que algumas contam com participação estatal – que comercializam quase toda sua produção com governos do mundo inteiro.

    Essas corporações atuam de mãos dadas com o Estado ao desenhar, produzir e exportar, já que o orçamento público financia a maioria dos projetos de inovação militar que criam tecnologias cada vez mais mortais.

    É um negócio redondo no qual o dinheiro público serve, ao mesmo tempo, para financiar o desenho e a compra de aviões, fragatas, fuzis e tanques.

    “A indústria pede reiteradamente o apoio governamental para poder vender fora”, reconhece Eva Cervera, diretora do Grupo Edefa, o maior meio de comunicação em idioma espanhol especializado em Defesa.

    Por exemplo, a estadunidense Lockheed Martin, maior fabricante mundial de armamento, movimenta a cada ano mais de 34 bilhões de euros, cifra superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de 97 países e cinco vezes o orçamento das Nações Unidas para missões de paz.

    Neste negócio próspero, também se destaca o fato de inclusive países com grandes problemas econômicos investirem em armas, como é o caso da Grécia.

    Pouco antes de receber o primeiro resgate em 2010, o governo alemão ativou uma linha de financiamento especial para que as autoridades gregas pudessem pagar seus pedidos de armamento ‘made in Germany.

    A Alemanha, um dos países que mais pressão exerceu para que Atenas aplicasse duros cortes e medidas de austeridade, é o principal provedor de armas com destino ao país heleno, que dedica quatro porcento de seu PIB a objetivos militares.

    Outro detalhe significativo é a relação entre indústria armamentista e política: Nos Estados Unidos, as doações feitas por empresas militares a campanhas eleitorais são vitais para chegar à Casa Branca.

    Em 2013, os fabricantes de armas desembolsaram mais de 137 milhões de dólares para cair na graça dos congressistas estadunidenses, segundo o Centro para Políticas Responsáveis, com sede em Washington.

    A indústria da morte, como é qualificada por diversas organizações não governamentais (ONGs), também tira proveito dos milionários projetos de reconstrução pós-guerra, por isso algumas consultoras já preveem novos conflitos relacionados à mudança climática e à escassez de água e alimentos, e um suposto recorde nas vendas militares durante 2016.

    DADOS E OPINIÕES PREOCUPANTES

    Small Arms Survey, uma organização suíça que é referência internacional de grande destaque neste terreno, propõe que o mercado legal entre os Estados e o crime muitas vezes são as duas caras de uma mesma moeda, ao encobrir as vendas para grupos insurgentes ou proporcionando armas a regimes que violam claramente os direitos humanos.

    A Organização das Nações Unidas estima em mais de 400 bilhões de dólares o impacto econômico devido a mortes causadas por armas em todo o mundo.

    Sobre este tema, afirma que o armamento convencional de todo tipo (desde munição até tanques) move por ano cifras superiores a 85 bilhões de dólares no comércio entre países.

    Dessa quantidade, Small Arms Survey calcula em algo mais de 10 bilhões de dólares anuais o valor do comércio de armas pequenas e seus diversos componentes. A principal rubrica de despesas é destinada a munições, que representam um volume de cerca de 4,27 bilhões.

    Essa entidade também aponta que os cinco principais exportadores de armas leves são Estados Unidos, Itália, Alemanha, Brasil e Áustria. Cada um destes países exporta pelo menos 100 milhões de dólares anuais.

    Os principais importadores são Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Austrália, França e Reino Unido, de acordo com informações do Escritório de Assuntos de Desarmamento das Nações Unidas, que estima que entre 40 e 60% do comércio de armas pequenas no mundo é ilícito.

    ESFORÇOS INFRUTÍFEROS

    Em abril de 2013, a Assembleia Geral da ONU aprovou o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA) com 154 votos a favor, três contra e 23 abstenções, que entrou em vigor no final de dezembro de 2014.

    De todos os países assinantes, até o momento só foi ratificado por 64, entre os quais não consta os Estados Unidos, país responsável por um terço das exportações militares mundiais e que conta com 88 armas por 100 cada habitantes.

    O acordo estabelece uma série de mecanismos para controlar o comércio. Por exemplo, as nações vendedoras revisarão todos os contratos de armamento para garantir que as armas não sejam destinadas a países submetidos a embargos ou que violam direitos humanos.

    Seu objetivo é conseguir um melhor monitoramento do destino de todo material militar, procura delimitar claramente as condições para outorgar licenças de exportação e garantir que as armas não sejam utilizadas contra a população civil.

    Importantes vozes o criticam por representar um lobby armamentista, enquanto outras consideram que pode limitar a política exterior da Casa Branca.

    A aprovação deste tratado foi uma longa batalha da sociedade civil e de diversas ONGs, como a Oxfam Internacional, que vem lutando por mais de uma década para que a comunidade internacional controle esse comércio.

    Mas, serve para que? Quando no Oriente Médio, por exemplo, certos Estados armam outros e grupos rebeldes cometem atrocidades contra a população civil?

    “Pela primeira vez, existe um instrumento internacional que é juridicamente vinculante e que obriga os países exportadores de armas a realizar uma avaliação antes de autorizar as vendas. E terão que respeitar os critérios fixados pelo TCA”, afirma Marc Finaud, especialista em desarmamento do Centro de Política de Segurança que promove a paz, a segurança e o desarmamento.

    Os critérios plasmados no TCA se sustentam no direito internacional humanitário, na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

    Não obstante, o objetivo de responsabilizar os agentes pelo comércio ilegal e impedir a venda de armas destinadas a grupos terroristas e ao crime organizado tem sido infrutífero até o momento.

    Por armas, o TCA entende que pistolas são iguais a mísseis, lança-mísseis, naves de guerra, tanques, peças de artilharia de grande calibre, aviões de combate, entre outros.

    Seu texto proíbe claramente que os governos utilizem qualquer armamento para levar a cabo genocídios, crimes de guerra ou contra a humanidade, e desses o mundo está cheio. A não ser que proliferem no futuro as zonas de paz, como a região da América Latina e Caribe se proclamou na II Cúpula de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), realizada em Havana em 2014.

    Cira Rodríguez César é chefe da Redação de Economia de Prensa Latina

  • “Ainda vamos sofrer bastante pelas décadas de abandono do combate ao Aedes Aegypti”

    “Ainda vamos sofrer bastante pelas décadas de abandono do combate ao Aedes Aegypti”

    Há fortes evidências de que a falta de políticas públicas e acesso ao saneamento básico, aliado a crises de abastecimento de água podem ter influenciado na proliferação do mosquito Aedes Aegypti, vetor tanto da dengue, quanto da zika e da chikungunya. Para entender melhor o contexto histórico no qual está inserida a atual epidemia, entrevistamos o historiador Rodrigo Magalhães, que em seu doutorado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) investigou a história do combate ao Aedes Aegypti em nível continental, ao longo do século 20

    saneamento-basico“Do final do século 19 até os anos 70, o foco é a febre amarela e todo combate que se desenha em torno do Aedes Aegypti tem como objetivo acabar com as epidemias de febre amarela, especialmente as urbanas. E foram essas campanhas que eu estudei mais a fundo. Elas foram bem sucedidas e resultaram na erradicação do mosquito Aedes Aegypti do Brasil em 1955”.

    Ele defende que além de todas as medidas individuais que as atuais campanhas pregam, é preciso que o poder público garanta um serviço regular e que realmente funcione de fornecimento de água encanada, porque, segundo ele, onde falta água as pessoas tendem a acumular o máximo possível em baldes, caixas e afins, que acabam tornando-se criadouros do mosquito.

    “Não foi à toa que em São Paulo teve uma grande epidemia de dengue no ano passado, no auge da crise hídrica. Isso ocorreu devido à falta de abastecimento, pois as pessoas estão acumulando água por necessidade. O governo precisa investir em saneamento básico já que as valas, poços e lixões são paraísos para o Aedes Aegypti se reproduzir”, conclui.

    Rodrigo Magalhães coloca que a situação é desesperadora e todos os esforços devem ser feitos no sentido de erradicar novamente o Aedes Aegypti, não só do território brasileiro, mas de todas as Américas. “Ainda vamos sofrer mais um tempinho com essas epidemias. Teremos de tomar nossos cuidados com repelentes e desmantelamento de criadouros, além de, principalmente, pressionar o poder público no sentido do combate ao Aedes Aegypti. Mesmo se tudo isso der certo, infelizmente ainda sofreremos um pouco mais até voltarmos a uma situação de normalidade no que se refere à proliferação dessas doenças”.

    Confira abaixo a entrevista completa com o professor Rodrigo Magalhães.

    Correio da Cidadania: Em se tratando da dengue, a epidemia mais antiga que podemos encontrar nos arquivos da imprensa data de 1986. Houve alguma epidemia antes desta, enfim, de quando exatamente pode-se falar em epidemias como as de dengue, zika, chikungunya e semelhantes?

    Rodrigo Magalhães: Essas três doenças são transmitidas por uma espécie de mosquito que é o Aedes Aegypti. Realmente, a primeira grande epidemia de dengue que temos notícia aconteceu em 1986 aqui no Rio de Janeiro, só que apesar disso a dengue já era identificada no país desde o final do século 19. Temos notificações de casos de dengue em Curitiba no final do século 19 e em outras cidades também. Acontece que nesse período, entre o final do século 19 e os anos 70 do século 20, a dengue ficou em segundo plano porque a grande preocupação que o mosquito Aedes Aegypti trazia era a febre amarela, uma doença que se mostrava realmente terrível e sobre a qual se conhecia muito pouco: o diagnóstico da doença era muito complicado porque ela se parecia com outras como a malária, seus sintomas eram muito semelhantes.

    Além disso, era uma doença que afetava bastante o comércio internacional e o trânsito de pessoas, pois ao menor indício de epidemia, os países vizinhos levantavam quarentenas. A febre amarela era o grande problema sanitário durante boa parte do século 20 e o Aedes Aegypti, como transmissor, passou a ser o inseto combatido.

    Do final do século 19 até os anos 70, o foco foi a febre amarela e todo combate que se desenhou em torno do Aedes Aegypti tem como objetivo acabar com as epidemias de febre amarela, especialmente as urbanas. E foram essas campanhas que eu estudei mais a fundo. Elas foram bem sucedidas e resultaram na erradicação do mosquito Aedes Aegypti do Brasil em 1955. Em 1958, a organização mundial da saúde atesta sua erradicação e, confirmada no Brasil, vários outros países do continente também conseguem. Isso até chegarmos a um momento em que no final dos anos 60 o mosquito está restrito a algumas regiões das Américas, como por exemplo parte do Caribe, América Central e o sul dos Estados Unidos.

    A campanha de combate ao Aedes Aegypti e a febre amarela foi bem sucedida, mas não terminada, não finalizada e assim não se conseguiu erradicar o mosquito nas regiões supracitadas, fazendo com que a partir daí ele começasse a reinfestar o restante do continente desde o final dos anos 60 e durante os anos 70. Já nos anos 70, começamos a ver o problema da dengue passar para um primeiro plano da saúde pública.

    A campanha continental de erradicação do Aedes Aegypti, embora não tenha conseguido eliminar o mosquito de todo o território das Américas, foi muito bem sucedida ao impedir a eclosão de epidemias urbanas de febre amarela. Ou seja, a febre amarela deixara de ser um problema. O mosquito ficou confinado e paralelamente também foi desenvolvida uma vacina contra a febre amarela, que deixou de ser um problema.

    Mas como esse mosquito não foi erradicado por completo – e isso é até uma redundância, porque erradicar é, de fato, “acabar de vez” – ele voltou a infestar novamente outros países, trazendo consigo a doença principal nos anos 70: a dengue. Temos diversas notificações da doença em várias partes do continente nesta década.

    Em 1981, tivemos a primeira grande epidemia de dengue do século, a maior de todas, em Cuba, e é até uma coisa inimaginável hoje: eram cerca de cem mil casos notificados por dia da doença. Enquanto isso, outros países iam enfrentando esse problema no começo dos anos 80 e, em 1986 tivemos a primeira grande epidemia de dengue do Brasil aqui no Rio de Janeiro, com uma quantidade absurda de casos notificados. 1986 foi o ano da primeira grande epidemia de dengue no Rio de Janeiro e lá se vão 30 anos, ou seja, são 30 verões em que convivemos com esse problema, culminando em 2016 com outras calamidades, como o vírus zyka e a febre chikungunya, também transmitidos pelo mosquito Aedes Aegypti.

    Correio da Cidadania: O que tem sido feito ao longo desses 30 anos por parte do poder público para prevenir e combater essas epidemias?

    Rodrigo Magalhães: Temos que voltar um pouco antes de 1986 porque é preciso ter as dimensões do que foi feito anteriormente e que culminou na erradicação do mosquito do país em 1958. Foi feito um trabalho minucioso, casa a casa, rua por rua, borrifando DDT, que era o principal inseticida na época. Para fazer o controle do mosquito, um serviço de vigilância epidemiológica foi muito bem implementado, identificava-se um caso de febre amarela assim que ele surgisse para que fosse possível combatê-lo, tratar o caso, erradicar a doença e vacinar a população das redondezas. Esse trabalho minucioso foi realizado no Brasil, em grande parte pelo Serviço Nacional de Febre Amarela (SNFA) no bojo da campanha continental para erradicação do Aedes Egypti. Esse trabalho foi muito bem realizado entre os anos 30 e 50, culminando, como falamos anteriormente, na erradicação do mosquito nesta década.

    O que aconteceu a partir de 1958, quando o mosquito foi erradicado, é que paulatinamente o trabalho minucioso foi abandonado. Lentamente, os órgãos criados para combater a febre amarela no Brasil foram sendo extintos, tendo seu número de pessoal reduzido, suas atividades diminuídas, ou seja, há o que eu chamo na tese de um desmonte de toda a infraestrutura nacional voltada para o combate ao Aedes Aegypti, o que acabou criando as condições para o mosquito reinfestar o país a partir de 1967. Ou seja, nove anos depois de o país se ver livre do mosquito, ele reapareceu em Belém, primeiramente, e a partir daí foi se espalhando para todos os estados, jogando no lixo o trabalho que havia sido realizado nas décadas anteriores.

    Houve uma nova tentativa nos anos 70, ele chegou a ser eliminado mais uma vez, mas voltou porque este trabalho não foi, como o anterior, coordenado com os outros países do continente. E aí vemos um problema, porque o Brasil faz fronteira com mais de 10 países na América do Sul. Não adianta nada fazer todo esse trabalho se também não for feito nos países vizinhos, porque a capacidade de reinfestação do mosquito é muito grande – ele voa através das fronteiras e infesta os territórios.

    O trabalho coordenado, depois de 1958 e da campanha continental, nunca mais foi feito. O que o Brasil tentou fazer a partir de então foi combater o mosquito, e consequentemente a doença, somente em períodos agudos de epidemia, apelando nos anos 80, por exemplo, para o “fumacê”, que são aqueles carros que passam nas ruas jogando grandes camadas de DDT para eliminar o mosquito – hoje uma técnica muito criticada pelos pesquisadores e infectologistas porque acaba criando resistência no mosquito, fazendo até com que haja um projeto para regular essa medida. Paralelamente temos, e estou até escrevendo um artigo a respeito, um lento deslocamento da saúde pública no Brasil através do qual o governo tenta culpabilizar a população por doenças como a dengue.

    Em outras palavras, o poder público tenta se redimir da responsabilidade sobre a doença e transmite a responsabilidade através de campanhas que apelam para a população “fazer sua parte”, não manter pneus usados no quintal, tirar água dos vasos de planta, combater poças de água, cobrir caixas de água etc. Tudo isso é muito importante, realmente, para eliminar criadouros do mosquito Aedes Aegypti.

    No entanto, não basta: é preciso que o governo também assuma sua responsabilidade na eliminação desses criadouros. Fazendo o que, por exemplo? Um serviço regular e que realmente funcione de fornecimento de água encanada, porque onde não tem água as pessoas tentam acumular o máximo de água possível em baldes, caixas e afins, que, por sua vez, acabam tornando-se criadouros do mosquito.

    Não foi à toa que São Paulo teve uma grande epidemia de dengue no ano passado no auge da crise hídrica. Isso ocorreu devido à falta de abastecimento, pois as pessoas estão acumulando água por necessidade. O governo precisa investir em saneamento básico porque existem valas, poços, lixões, que são paraísos para o Aedes Aegypti se reproduzir.

    Resumindo: são duas coisas que não foram feitas desde então e que são necessárias: coordenar esse trabalho no Brasil com os países vizinhos que também têm o mosquito. Além disso, é preciso que o poder público assuma sua responsabilidade no combate à espécie, principalmente no que se refere a políticas de saneamento básico, facilitando o fornecimento de água encanada. Com isso, já se reduziriam enormemente os criadouros externos do Aedes Aegypti.

    Correio da Cidadania: Qual sua análise em relação às epidemias dos últimos 30 anos no que se refere à diversos aspectos, tais como médicos, sociais, econômicos, temporais etc.?

    Rodrigo Magalhães: O mosquito Aedes Aegypti é bem democrático, digamos assim. Porque ele não afeta somente a ricos ou somente a pobres. Ele se reproduz onde tem água parada com uma facilidade muito grande. Ele pode se reproduzir na piscina de uma cobertura do Morumbi ou numa caixa d´água nas periferias de São Paulo, onde a água encanada não chega. É o “caráter democrático” do mosquito. O que acontece é que quanto maior a aglomeração de pessoas, quanto maior o número de pessoas vivendo juntas em um mesmo espaço, seja em um bairro ou uma cidade, maior a possibilidade de o mosquito picar mais pessoas em um espaço menor de tempo. Portanto e obviamente, as grandes aglomerações populacionais estão mais sujeitas à doença. Ou seja, os lugares onde há mais pessoas compartilhando o mesmo espaço e em condições mais precárias de saneamento são os mais afetados pela dengue.

    Se olharmos um mapa da epidemia de dengue do ano passado no estado de São Paulo veremos que as regiões periféricas foram muito mais afetadas, uma vez que esse problema da falta de água é fundamental para o crescimento de uma epidemia de dengue. É obvio que afetou o estado como um todo, com o racionamento, mas afetou muito mais os lugares onde o fornecimento de água já não era tão bom e passou a inexistir, obrigando as pessoas a se deslocar por distâncias maiores para carregarem seus baldes de água. E é claro que não vão levar um ou dois baldes por dia, elas vão acumular a maior quantidade possível de água para suas residências disporem desse elemento fundamental para sua sobrevivência. Ao fazer isso, criam verdadeiras maternidades para o Aedes Aegypti.

    Soma-se a grande densidade populacional que existe nas periferias de São Paulo e temos uma grande crise de epidemia de dengue como a que houve na capital paulista. Resumindo: em um lugar onde o Estado não cumpre com sua responsabilidade de fornecer serviços de saneamento básico e abastecimento de água encanada regular, somado à uma grande densidade populacional, tem-se um ambiente propicio à eclosão de epidemias de doenças transmitidas pelo mosquito Aedes Aegypti.

    Correio da Cidadania: Pensando no caso paulista, o que poderia ser feito para amenizar o quadro, haja vista que a crise hídrica sofre uma invisibilidade midiática tremenda?

    Rodrigo Magalhães: O ideal era que não se chegasse a essa situação. Seria ideal que o serviço não só do estado de São Paulo, mas de todos os estados e do Governo Federal adotassem medidas preventivas para evitar que chegássemos à situação de epidemia. Como isso não foi realizado e como desde os anos 80 se criou uma tradição de se combater doenças apenas quando chegam ao seu pico máximo, ou seja, só se combate a dengue quando a epidemia está matando a torto e a direito, altamente disseminada, deixou-se chegar a essa situação. Agora não tem mais jeito. O único caminho, na minha opinião, é combater sem tréguas o mosquito Aedes Aegypti, onde quer que ele esteja.

    Não vamos conseguir, ainda, desenvolver uma vacina contra a dengue, e mesmo que conseguíssemos, vacina não combate epidemia. Ela previne, mas durante surtos epidêmicos não tem uma capacidade muito grande, uma vez que as pessoas já estão expostas ao vírus. Nesse contexto, onde não temos ainda uma vacina e vivemos um cotidiano de epidemia, o caminho realmente é combater o Aedes Aegypti e seus criadouros. A mídia e a propaganda governamental insistem em combater os criadouros, e isso é muito importante para impedir que o mosquito nasça. Mas e os mosquitos que já nasceram e estão voando por aí e picando as pessoas?

    É um trabalho sem trégua que deve ir nessas duas direções: combater os criadouros, tanto os residenciais com ajuda da população quanto os públicos que dependem de uma atuação do Estado, e fazer um trabalho de conscientização da população, que eu particularmente até acho bem feito, mas mantenho minha ressalva sobre a forma como a propaganda é feita, que dá a entender que a culpa é exclusivamente da população. É importante que o Estado reconheça seu papel e se insira, também, na tarefa.

    Correio da Cidadania: E como avaliar um novo ingrediente dessa conjuntura que são os mosquitos transgênicos? Isso pode trazer alguma situação de melhora nesse combate?

    Rodrigo Magalhães: O mosquito transgênico nasceu da ideia de se combater determinada doença sem eliminar toda uma espécie. Voltando no tempo, durante a campanha continental que eu estudei houve uma grande resistência de algumas categorias profissionais em relação a erradicar o mosquito, tendo em vista dois pontos: o primeiro que o mosquito ainda não estava devidamente estudado; o segundo por prejuízos ao meio ambiente ao erradicar uma espécie. Assim, desde os anos 60 sempre se procuraram outros caminhos no combate à crise, que não levassem à erradicação do Aedes Aegypti. Olhando por uma perspectiva histórica, nenhum dos caminhos propostos funcionou.

    Mais recentemente, tivemos duas tentativas: pesquisadores da Fiocruz inocularam uma bactéria que impede o mosquito de transmitir a doença. A outra é exatamente o mosquito transgênico, que está sendo implantado em Pernambuco, a fim de esterilizar e impedir que o mosquito, mesmo existindo, transmita a doença. Mas é apenas uma iniciativa, e somente uma possibilidade. Tem gente séria trabalhando nisso e a proposta merece ser olhada com atenção.

    No entanto, a questão do mosquito transgênico entra em discussão, assim como tudo que é transgênico: os estudos ainda são muito incipientes, são estudos que estão só começando e ainda não se tem uma medida de como afeta a saúde da população. Nesse caso, por exemplo, a picada do mosquito não irá mais transmitir a dengue, mas qual o potencial de essa picada transgênica no que se refere a outros danos à saúde humana? Não há ainda estudos conclusivos.

    É uma possibilidade e pode até funcionar em um contexto agudo de epidemia como o que estamos vivendo, mas na minha opinião não resolve o problema maior, que é a existência do Aedes Aegypti em um mundo que já mudou bastante. Nosso lixo é diferente do lixo dos anos 70, pois se degrada com menor rapidez, possibilitando um maior acúmulo. Tal acúmulo, por sua vez, leva a um acúmulo de água. É o cenário perfeito para a reprodução do Aedes Aegypti, enquanto o caminho é a eliminação dele.

    Segundo pesquisas recentes, o mosquito tem capacidade de transmitir mais de cem doenças e aqui ainda estamos lidando com apenas quatro delas: a febre amarela, dengue, zika e chikungunya, apenas quatro em um cenário de mais de cem doenças que o mosquito pode trazer. Em outras palavras, é uma espécie que traz um perigo muito grande para a humanidade, de modo que não há outro caminho. Desequilíbrio por desequilíbrio já existe. O próprio aumento de densidade do Aedes Aegypti está ligado ao extermínio dos seus predadores naturais que já não existem. É extremamente necessário combater esse mosquito e reduzir seu número em grande quantidade, ou até eliminá-lo.

    Correio da Cidadania: Como avaliar a maneira como a população lida com a situação no que se refere ao combate do mosquito vetor? Como que a recepção das notícias e informações sobre o tema têm afetado a população?

    Rodrigo Magalhães: Talvez esse seja o único ou um dos únicos lados positivos dessa epidemia. A propaganda massiva, o fato da epidemia estar na mídia, com alertas sobre os perigos nos jornais, televisões e etc.. isso vem para conscientizar a população sobre os cuidados que ela deve ter com a saúde pública. Então, vemos as pessoas muito mais preocupadas com os seus reservatórios domésticos de água, tomando medidas em suas residências e até no exterior delas: aqui no Rio de Janeiro a televisão tem mostrado pessoas que cuidam não só da sua residência mas também da rua onde moram.

    Nesse sentido, essa propaganda desesperadora e apocalíptica que tenta culpabilizar a população até que teve um efeito benéfico uma vez que a população se conscientizou do seu papel individual na melhoria das condições da saúde pública na sua localidade. Essa propaganda, mesmo com todas as críticas que possamos fazer à seu método, vem de certa forma despertando uma consciência de cidadania compartilhada onde a pessoa se enxerga como responsável pelo seu bem estar no que se refere à saúde pública. Isso é fundamental. O que não pode acontecer é que esse efeito sirva para retirar, como falei anteriormente, a responsabilidade do Estado. Isso não pode acontecer!

    É preciso sim que se incentive essas campanhas de conscientização, de redução de criadouros e tudo mais, sem que se esqueça da responsabilidade maior que é do poder público. Sobre o combate em si o que vemos observando é que esta campanha vem cumprindo um papel importante no combate ao Aedes Aegypti. Temos localidades onde a incidência de dengue, zika e chikungunya já vem diminuindo devido a esse trabalho de conscientização. Reitero: por mais importante que seja essa atuação popular, somente o trabalho feito nas residências não é suficiente para que consigamos sair dessa situação de epidemia que vivemos no momento.

    Correio da Cidadania: Quais as perspectivas para os próximos anos a respeito da erradicação tanto da epidemia, quanto do mosquito em si? Inclusive levando em consideração a recente “declaração de guerra” feita pelo Governo Federal contra o Aedes Aegypti?

    Rodrigo Magalhães: Estamos pagando o preço por décadas de abandono desse trabalho de combate ao mosquito. A recente declaração de guerra do Governo Federal ao mosquito é bastante bem vinda, ainda que tardia.

    Sendo assim, ainda vamos sofrer bastante com essas epidemias até que sua incidência se reduza e até que consigamos de fato combater e reduzir consideravelmente a população de Aedes Aegypti. Como já falamos, a situação atual vem acompanhada de uma complexidade muito maior do que a do período que eu estudei. O lixo que produzimos é diferente e o ambiente urbano é maior e mais complexo, portanto, hoje é muito mais difícil de se combater o Aedes Aegypti.

    Sempre me perguntam se eu acredito que podemos erradicar o mosquito novamente. Podemos conseguir, ou não, erradicá-lo. Nos anos 40 se tentou, não se conseguiu, mas houve um efeito benéfico para a saúde pública, que foi frear as epidemias urbanas de febre amarela. O que penso é que devemos recuperar esse norte: o objetivo tem que ser o de combater a espécie, onde quer que ela exista. Se vamos conseguir, é outra história. Porém, no caminho entre tomá-lo como meta e conseguir atingir o objetivo, tenho certeza que vamos chegar a uma série de sucessos no campo da saúde pública e um deles será, certamente, a redução e o controle dessas epidemias e doenças que estamos vivenciando hoje.

    A perspectiva para os próximos anos não é muito boa. Teremos dois anos até que a vacina para a dengue fique pronta, mais uns três anos para a vacina do zyka vírus ser elaborada, fora o período de testes. Assim, ainda estaremos mergulhados na epidemia. Mas, como disse anteriormente, vacina não combate epidemias, apenas as previne.

    Por um lado, o que me deixa um pouco pessimista é que se anteriormente, sob uma situação menos complexa, levamos 40 anos para erradicar o Aedes Aegypti, agora em 2016, quando nós decidimos novamente erradicá-lo em um cenário muito mais complexo, quanto tempo levaremos? Esse é o aspecto pessimista. Por outro lado, há um aspecto otimista: hoje em dia temos muito mais tecnologia, informação e comprometimento da população do que tínhamos nos anos 40 e 50.

    É importante equilibrar tanto o lado pessimista quanto o lado otimista, e já que ainda vamos sofrer um tempinho com essas epidemias, teremos de tomar nossos cuidados com repelentes e desmantelamento de criadouros, além de, principalmente, pressionar o poder público no sentido do combate ao Aedes Aegypti que ainda é um grande problema. Mesmo se tudo isso der certo, infelizmente ainda sofreremos um pouco até voltarmos a uma situação de normalidade no que se refere a tais doenças.

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 27 de fevereiro de 2016

  • Aprendendo a sonhar

    Aprendendo a sonhar

    O_abraço_da_serpenteO abraço da serpente, filme colombiano do diretor Ciro Guerra é uma primorosa obra de arte, mas também um estudo antropológico e uma visão histórica da colonização na América Latina.

    A base para o roteiro foram anotações de Theodor Koch- Grünberg, um etnólogo alemão que estudou os nativos do rio Xingu, Negro e Orinoco. Mas o filme, como toda obra de arte poderosa, vai muito além, podendo ser visto como um estudo da relação do homem com a natureza num plano muito mais “astral”, para usar um termo caro a geração beat.

    O “branco” colonizador que invadiu as florestas queria as riquezas naturais e, na região específica abordada, o alvo era a borracha. Os homens e mulheres quase pelados morando em ocas e se guiando pelas estrelas eram, para o colonizador, selvagens mais próximos dos animais do que de “deus”. Era preciso torná-los cristãos, nem que fosse pela força do chicote. E assim foi feito. A maioria das tribos pereceu ou se transformou.

    O filme trabalha dois momentos em paralelo: a viagem de Theodor na primeira década do século XX e, quarenta anos após, a viagem de um segundo explorador que está atrás de uma planta que ensina a sonhar. Pode-se fazer uma analogia com o Santo Daime, preparado de vegetais que foi descoberto na floresta amazônica e hoje tem seguidores aos milhares no mundo inteiro. O personagem que une os dois “brancos” é Karamakate, um xamã perdido de seu povo, que vive só.

    A obra permite um longo estudo crítico; não é o caso do presente texto, mas vale o registro de alguns momentos. O branco e o índio deslocam-se numa canoa em algum ponto perdido da selva em busca da planta e a correnteza está forte. O índio sugere que ele jogue as bagagens no rio e ele se recusa, indignado. Acaba livrando-se do peso, mas o que fica claro é o apego do “civilizado” à propriedade, as “suas coisas” como o pesquisador nomeia as malas que carrega. Outro ponto interessante é o único personagem brasileiro da narrativa, um falso Cristo explorando a boa fé dos índios.

    Imperdível, O abraço da Serpente. A trilha sonora também é espetacular. O primeiro filme colombiano que assisti e um dos melhores de minha vida!

    Flávio Braga é escritor

  • O velho álibi do combate ao terrorismo

    O velho álibi do combate ao terrorismo

    A pretexto de combater o terrorismo, o “PL Antiterror” poderá criminalizar ainda mais as manifestações e os movimentos sociais

    Conduta de outros países que aprovaram leis semelhantes justifica receio com o PL 2016/2015
    Conduta de outros países que aprovaram leis semelhantes justifica receio com o PL 2016/2015

    Contestado por diversos setores da sociedade civil, sobretudo por movimentos sociais, o Projeto de Lei (PL) 2016/2015, conhecido como “PL Antiterrorismo”, foi aprovado na quarta-feira 24 pela Câmara de Deputados e agora será encaminhado para sanção presidencial. De autoria do governo federal, o PL já havia sido aprovado no Senado e na própria Câmara em primeiro turno.

    Ainda que os diversos atentados que têm ocorrido ao redor no mundo nos últimos anos despertem uma sensação de insegurança, é essencial que nos esforcemos para reunir o maior número possível de informações e análises a fim de subsidiar um debate aprofundado a respeito do tema “terrorismo” na sociedade.

    Nesse sentido, as experiências de alguns países em relação a leis antiterroristas podem servir como objetos de estudo bastante interessantes.

    Posteriormente aos eventos que se seguiram ao 11 de Setembro nos Estados Unidos, foi possível observar um amplo esforço de diversos países (muito embora em contextos bastante diferentes) na elaboração de leis específicas que visavam a coibir atos terroristas. Inglaterra, Austrália e Canadá são alguns exemplos de nações que buscaram rapidamente se adequar a essa tendência.

    Desde então, paralelamente a esse processo, organismos internacionais vêm alertando para a necessidade de cautela na implementação de leis antiterroristas, chegando inclusive a questionar se esse tipo de legislação é eficaz e realmente imprescindível.

    Uma primeira recomendação nos posicionamentos desses organismos é a de que qualquer lei que vise combater o terrorismo deve respeitar todos os documentos e convenções internacionais de direitos humanos. T

    al recomendação consta, por exemplo, no documento Informe sobre Terrorismo y Derechos Humanos, publicado em 2002 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e, mais recentemente, na Declaração Conjunta sobre Programas de Vigilância e seu Impacto na Liberdade de Expressão, assinada pelas Relatorias para Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da ONU.

    A recorrência desse tipo de recomendação em muitos documentos analisados revela uma preocupação em relação às leis antiterroristas: a de que, ao buscar coibir o terrorismo, a legislação acabe por criminalizar grupos que tenham uma tradição de contestação política e que, historicamente, sejam alvos do aparato repressor do Estado. No Brasil, esses grupos podem ser ilustrados pelos movimentos sociais.

    À luz dessa constatação, a ONU recomendou, por diversas ocasiões, que os países que haviam adotado leis antiterroristas as readequassem de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos.

    Em 2005, por exemplo, a ONU concluiu que a lei antiterrorista do Canadá, aprovada em 2001, partia de definição excessivamente ampla, recomendando que o país deveria “adotar uma definição mais precisa de atos terroristas a fim de garantir que indivíduos não sejam alvos por questões políticas, religiosas e ideológicas”.

    A legislação australiana também foi objeto de menção por parte da ONU. Segundo o organismo, a Austrália “deve garantir que sua legislação e práticas contra o terrorismo estejam em plena conformidade com o Pacto (Internacional de Direitos Civis e Políticos). Em particular, deve-se mencionar o caráter excessivamente vago da definição de ato terrorista no Código Criminal de 1995, de forma a garantir que sua aplicação seja restrita a ações indiscutivelmente terroristas.”

    Certamente, a cautela reservada a esse tipo de análise não é em vão: a criminalização de movimentos sociais e manifestações populares é prática recorrente em muitos países e regiões ao redor do mundo. Um dos instrumentos mais efetivos para este fim é a interpretação extensiva de normas que, em tese, possuíam outros objetivos.

    Em setembro de 2014, os relatores especiais da ONU para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos no Combate ao Terrorismo e para o Direito à Liberdade de Associação advertiram a Etiópia para que deixasse de utilizar sua legislação antiterrorismo com o intuito de suprimir direitos humanos de seus cidadãos. De acordo com os relatores, o governo do país estava detendo pessoas arbitrariamente e distorcendo a aplicação da lei.

    Pouco tempo depois, em abril de 2015, o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos expressou preocupação em relação à lei de combate ao terrorismo na Malásia, que havia sido aprovada havia pouco.

    Sob o pretexto de combater militantes fundamentalistas islâmicos, por exemplo, a legislação, por sua excessiva amplitude, permitia a detenção por tempo indefinido de suspeitos sem direito a julgamento e concedendo poderes amplos às autoridades sem as salvaguardas necessárias para prevenir abusos.

    Nota-se que tanto as recomendações em documentos internacionais quanto as críticas concretas emitidas por representantes de organismos de direitos humanos apontam para uma mesma avaliação: a edição desenfreada de dispositivos legais, derivada de uma sensação de insegurança frente à violência de atos terroristas, não parece eficiente para atacar o problema, acabando na verdade por servir a um propósito diferente: o de intensificar a criminalização de movimentos sociais e manifestações populares.

    Um questionamento recorrente no âmbito internacional se dá sobre a necessidade ou não de se criar um ordenamento jurídico específico para combater o crime de terrorismo. Isso ocorre porque muitas leis vigentes nos países que adotaram tal legislação – e também no Brasil – já punem as condutas as quais as leis antiterrorismo pretendem combater.

    O argumento é o de que a legislação comum já oferece os mecanismos necessários à punição de práticas como dano, incêndio, explosão, sendo que seu uso é preferível à edição de novas leis que carregam consigo um potencial lesivo a direitos fundamentais, e que, além do mais, não garantem serem eficazes.

    A relevância de todo esse contexto para o Brasil, que acaba de ver sua lei antiterrorismo aprovada no Congresso, é enorme. Muitos dos elementos que vêm preocupando os organismos internacionais em relação às leis antiterrorismo na maior parte dos países que as aprovaram estão no PL 2016/2015.

    A existência de definições amplas e vagas sobre o que é uma prática terrorista, a desproporcionalidade das penas previstas, a caracterização de ações historicamente usadas por movimentos sociais como elementos que configuram um ato terrorista (como ocupações de prédios públicos), a punição de atos preparatórios e da “apologia ao terrorismo”, entre outros pontos, formam um quadro bastante preocupante em relação às exigências previstas em documentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

    Atentos a isso, especialistas da ONU e da OEA para a liberdade de expressão já se manifestaram contrários ao projeto, principalmente quanto à sua tramitação sob regime de urgência.

    Mesmo a ressalva que consta na versão final do projeto aprovada na quarta-feira 24 na Câmara, que visa proteger movimentos sociais, sindicais e manifestações políticas, entre outros (art 2º, parágrafo 2º), não é garantia de que a lei antiterrorismo não será usada contra esses grupos, já que estará sujeita à interpretação subjetiva do Judiciário.

    Além disso, em termos de contexto interno, a criminalização de protestos e movimentos sociais observada em todo o País representa mais um alerta de que a aprovação dessa lei tem grandes chances de ser instrumentalizada no sentido oposto ao da proteção dos direitos humanos, contribuindo para a supressão da liberdade de expressão, de opinião e de manifestação.

    A aprovação do PL 2016/2015, ainda que a pretexto de combater o terrorismo, enseja um preocupante risco de nos lançarmos em um período de flerte com um autoritarismo temerário e indesejável. E quem perde com isso é a democracia.

    *Paula Martins é diretora-executiva da ONG Artigo 19 e Camila Marques é coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da mesma organização

    Fonte: Carta Capital,  25/02/2016

  • Jogos Olímpicos no Brasil: A cidade na vitrine e os cidadãos do lado de fora.

    Jogos Olímpicos no Brasil: A cidade na vitrine e os cidadãos do lado de fora.

    “Todo o processo que envolve a promoção desses eventos aprofunda e acelera uma reorganização da cidade que busca garantir o que chamamos de ‘cidade mercadoria’, um produto que se deseja vender e não um lugar onde se realiza a cidadania”, explica a economista.

    Foto: Renato Sette/ http://og.infg.com.br

    Foto: Renato Sette/ http://og.infg.com.br

    A promoção de megaeventos esportivos no país tem gerado uma série de protestos e controvérsias, principalmente em função da falta de transparência na gestão dos processos de preparação das cidades-sedes e da administração dos recursos públicos, que poderiam ser destinados a atender demandas sociais, mas acabam sendo canalizados para o financiamento de grandes obras de infraestrutura.

    Conforme explica a economista Sandra Quintela, em entrevista por telefone à IHU On-Line, esse modelo de investimento tem se repetido desde a realização dos Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, em 2007, passando pela Copa do Mundo, em 2014, até a chegada das Olimpíadas neste ano, gerando um grande desequilíbrio no orçamento público.

    “No caso das Olimpíadas, a cidade do Rio de Janeiro quadriplicou seu orçamento nesse último período, não a partir da arrecadação de impostos, mas por um processo de endividamento do município. Agora os recursos estão chegando para a realização das obras, há um incremento da construção civil e de outras áreas, mas o impacto que isso vai gerar nas contas públicas em médio e longo prazos ainda não temos condições de mensurar”, analisa.

    Além do desequilíbrio financeiro, a economista cita o processo de privatização das cidades como sendo o resultado mais perverso do modo de conduzir a promoção desses eventos no país. “A reorganização das metrópoles a partir desses megaeventos esportivos visa exatamente privilegiar a especulação imobiliária e a privatização da cidade em todas as dimensões, por um processo brutal de exclusão e gentrificação em nome da ‘cidade produto’, da ‘cidade mercadoria’, que precisa ser vendida como vitrine para esses eventos”, frisa.

    E a economista vai mais além. Ressalta que a gestão que tem sido realizada acaba interferindo na própria atividade esportiva e na sua relação com o público. “O modelo que está sendo trabalhado por esses organismos privados — como FIFA e COI — é o da mercantilização dos esportes. Dessa forma o espírito esportivo está cada vez mais relegado a segundo plano e o que importa é o lucro, o que se ganhará e o que se realizará com esses megaeventos esportivos. Por isso, acredito que a discussão é muito mais profunda, pois é necessário discutir a natureza e o caráter desses megaeventos esportivos, porque de esporte, de fato, eles têm muito pouco”, alerta.

    Sandra Quintela é economista do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul – PACS e integrante da Rede Jubileu Sul Américas.

    Sandra Quintela Foto: diarioliberdade.org

    Sandra Quintela
    Foto: diarioliberdade.org

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Você poderia fazer um balanço dos investimentos do Estado brasileiro em megaeventos, desde os Jogos Pan-Americanos até este momento em que o país se prepara para receber os Jogos Olímpicos de 2016? Quais foram os montantes investidos nesses eventos?

    Sandra Quintela – Nós acompanhamos este processo desde 2005. Então é uma trajetória de 11 anos observando essa organização na cidade do Rio de Janeiro, desde os Jogos Pan-Americanos, passando pela Copa do Mundo até as Olimpíadas. O que percebemos é uma dificuldade muito grande de acessar o volume de recursos investidos e as Olimpíadas têm sido o caso mais sério.

    Nos Jogos Pan-Americanos foram gastos cerca de 3,7 bilhões de reais, na Copa do Mundo foram gastos 25,5 bilhões de reais e o custo atual das Olimpíadas, que ainda não está fechado, pois há várias obras que não estão inclusas na Matriz de Responsabilidade dos Jogos, está na ordem de 39,08 bilhões de reais, valor que foi divulgado no final do mês de janeiro deste ano. É possível ver que o valor de investimento foi aumentando ao longo do tempo, e no caso das Olimpíadas, estamos a cinco meses do início da realização dos jogos e ainda não sabemos qual será o custo total da promoção deste evento.

    Quando foi divulgada a promoção dos Jogos Pan-Americanos, seu custo estava estimado em cerca de 1 bilhão de reais e depois de sua conclusão passou a ser de 3,7 bilhões de reais, por causa de obras superfaturadas etc. Quanto à Copa do Mundo, já estamos vendo os elefantes brancos que foram construídos, os quais não têm mais nenhuma serventia. São os casos dos estádios construídos em Manaus, Cuiabá e Brasília — até existem projetos para transformá-los em presídios etc. No caso das Olimpíadas, precisa-se de um pouco mais de tempo para analisar por que os dados ainda não estão completos.

    IHU On-Line – Que impactos econômicos têm sido gerados pela realização de megaeventos esportivos nos últimos anos no Brasil? É possível prever por quanto tempo tais impactos ainda podem continuar refletindo na economia do país?

    Sandra Quintela – Vamos começar com a questão do impacto financeiro, por exemplo, da realização da Copa do Mundo no Brasil, com o custo de 25,5 bilhões de reais. Esperava-se que durante o período do evento o volume de turistas contribuísse para o incremento da economia nacional, porém isso não se deu durante a Copa. Várias das análises econômicas otimistas que se faziam antes desse evento foram, logo em seguida, desconstruídas por balanços realizados por jornais de grande circulação e por economistas apontando que o retorno econômico de tamanho investimento não se deu.

    Isso se traduz em um processo ao mesmo tempo cruel e sutil, que é a construção desses megaestádios com obras de infraestrutura associadas a eles, como autopistas, pontes e viadutos para acessar esses espaços; isso gerou uma grande especulação imobiliária nas cidades-sedes da Copa e a remoção de expressivos contingentes populacionais, pois foram mais de 750 mil pessoas deslocadas de áreas em função das obras para o evento. Nós elaboramos três relatórios sobre violações dos Direitos Humanos nessas ações e, junto aos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas no Rio de Janeiro, já estamos trabalhando no quarto dossiê especificamente sobre as Olimpíadas.

    O impacto financeiro da Copa se reflete no processo de endividamento dos municípios e dos estados, pois dos 25,5 bilhões gastos na Copa, apenas 1,4% veio da iniciativa privada; o restante foi pago com dinheiro público, o mesmo recurso que ou é destinado à educação, saúde e saneamento, ou à construção de elefantes brancos, como são alguns dos estádios. A fonte é a mesma, o Estado, através dos impostos e tributos que todos nós pagamos, e quando não há dinheiro a saída é a criação de novas dívidas.

    No caso das Olimpíadas, a cidade do Rio de Janeiro quadriplica seu orçamento nesse último período, não a partir da arrecadação de impostos, mas por um processo de endividamento do município. Agora os recursos estão chegando para a realização das obras, há um incremento da construção civil e de outras áreas, mas o impacto que isso vai gerar nas contas públicas em médio e longo prazos ainda não temos condições de mensurar. Já existe uma grande preocupação aqui no Rio de Janeiro, pois as contas do Estado já estão um caos, os funcionários públicos ainda não receberam o 13º salário de 2015 e não sabemos até que ponto isso está atrelado às contas que sobraram de 2014. Será que não são “cadáveres que estavam no armário” referentes às despesas com a realização da Copa do Mundo? Essa é uma pergunta para qual ainda não encontramos resposta.

    Enfim, o impacto se dá muito mais nos níveis municipal e estadual e os recursos federais ficam um pouco diluídos em várias rubricas. Porém, dentro desse contexto, o que é muito mais grave é o processo de especulação imobiliária que se dá a partir desses investimentos públicos.

    IHU On-Line – E qual é o impacto desses megaeventos na organização das metrópoles brasileiras? Como as metrópoles são reestruturadas para receber tais eventos?

    Sandra Quintela – Na verdade a Copa do Mundo e as Olimpíadas serviram como uma ótima desculpa para os planos das elites que governam as cidades. Todo o processo que envolve a promoção desses eventos aprofunda e acelera uma reorganização da cidade que busca garantir o que chamamos de “cidade mercadoria”, um produto que se deseja vender, e não um lugar onde se realiza a cidadania. Vemos que é uma desculpa que legitima o modelo de cidade centrado exatamente em um padrão de desenvolvimento que beneficia a especulação imobiliária e a privatização da vida no espaço urbano.

    Nesse sentido é fundamental um engajamento cada vez maior na luta pelo direito à cidade, pois as cidades estão se tornando ambientes destinados especialmente para determinados setores da sociedade, que são os grupos mais privilegiados. Hoje, por exemplo, se uma pessoa da zona oeste do Rio de Janeiro quiser ir à praia, ela vai precisar pegar três ônibus. Trata-se de um processo de gentrificação que vem se aprofundando, e o Rio de Janeiro em particular é uma síntese do que representou um megaevento como a Copa do Mundo, porque aqui as coisas se deram em escala bem maior.

    A reorganização das metrópoles a partir desses megaeventos esportivos visa exatamente privilegiar a especulação imobiliária e a privatização da cidade em todas as dimensões, por um processo brutal de exclusão e gentrificação em nome da “cidade produto”, da “cidade mercadoria”, que precisa ser vendida como vitrine para esses eventos.

    IHU On-Line – Que áreas sociais (saúde, educação, segurança…) estão sendo mais relegadas em função da canalização de recursos públicos para esses megaeventos esportivos? E quais setores estão sendo privilegiados? Como está equalizado o orçamento público?

    Sandra Quintela – No Rio de Janeiro, de 2007 a 2016 praticamente triplicou o volume de recursos destinados ao orçamento público em segurança. Passou de 2,5 bilhões de reais para 7 bilhões reais de investimentos só para a segurança. Eu especifico o caso do Rio de Janeiro porque foram promovidos aqui os Jogos Pan-Americanos, a Copa do Mundo e agora serão as Olimpíadas, então é um exemplo que pode ser uma síntese do que aconteceu na promoção desses megaeventos no Brasil.

    Se analisarmos hoje o peso da segurança no orçamento público do governo do Estado do Rio de Janeiro, veremos que representa cerca de 15% do total, a educação tem aproximadamente 10% e a saúde tem 8%. Em 2007 o investimento em educação tinha uma fatia de 15% do orçamento estadual e hoje perdeu 5% desse valor, enquanto a verba destinada à segurança aumentou em três vezes o seu montante. Assim, é possível perceber que, em detrimento dos investimentos sociais, como saúde e educação, os recursos públicos são canalizados para a segurança pública, algo que é gritante no Rio de Janeiro, pois se vê nas ruas um processo de militarização intenso.

    Por exemplo, agora a guarda municipal está fazendo as remoções das comunidades da campo de golfe. Essa é uma nova tarefa e uma nova função para a guarda municipal que até então não tinha sido exercida e isso também é reflexo desses altos investimentos em segurança.

    Estão previstos para as Olimpíadas cerca de 2,5 bilhões de reais em investimentos na segurança, porém dentro desse valor não estão inclusos os salários dos profissionais dessa área, como os policiais militares, civis, federais etc. E esse é um problema que está aí, mesmo havendo essa tendência ao aumento do peso da segurança pública no orçamento estadual, principalmente.

    IHU On-Line – De que modo poderia ser realizado o planejamento de recursos que propiciasse a promoção dos megaeventos esportivos sem desequilibrar o orçamento público do Brasil?

    Sandra Quintela – Em primeiro lugar esses megaeventos esportivos é que deveriam se adequar à cidade, e não a cidade ter de se adequar a eles. Deveria se inverter essa lógica, mas o que acontece hoje é a subversão das lógicas da administração pública e do interesse público para atender aos interesses do Comitê Olímpico Internacional – COI e da Federação Internacional de Futebol – FIFA. Lembrando que estas são organizações privadas, financiadas por megaempresas internacionais. Portanto, primeiro é preciso rever o modo de pensar a preparação desses eventos.

    Em particular no Rio de Janeiro, o que tem sido feito de alterações em termos urbanísticos tem servido única e exclusivamente para atender aos interesses da especulação imobiliária, isso está muito claro e evidente, e um exemplo é o transporte público. Estão sendo construídos corredores de ônibus das linhas BRT, que passam por áreas com muita vegetação e que estão abrindo as veias para especulação imobiliária para condomínios, loteamentos etc., principalmente na zona oeste do Rio de Janeiro.

    Também estamos vendo um desperdício muito grande de recursos públicos. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, já tinha um campo de golfe e agora se construiu um novo campo e em uma área de restinga, ou seja, uma área de preservação ambiental, apenas para atender aos interesses da especulação imobiliária na Barra da Tijuca. Outros exemplos de desperdício são o Estádio de Atletismo Célio de Barros e o Parque Aquático Júlio Delamare — são áreas tanto de treinamento para atletismo como para natação —, que estão fechados desde antes da Copa do Mundo. São centros de treinamento de excelência de atletismo e natação que não foram reabertos desde antes da Copa porque a ideia era destruir tudo e construir o complexo Maracanã, mas houve muita luta e isso não foi feito.

    Assim, o modelo que está sendo trabalhado por esses organismos privados — como FIFA e COI — é o da mercantilização dos esportes. Dessa forma o espírito esportivo está cada vez mais relegado a segundo plano e o que importa é o lucro, o que se ganhará e o que se realizará com esses megaeventos esportivos. Por isso, acredito que a discussão é muito mais profunda, pois é necessário discutir a natureza e o caráter desses megaeventos esportivos, porque de esporte, de fato, eles têm muito pouco.

    IHU On-Line – Em outros países que já sediaram megaeventos esportivos se repete o contexto brasileiro quanto ao planejamento dos investimentos?

    Sandra Quintela – Para a Copa do Mundo da França não foram construídos megaempreendimentos. Para a Copa da Alemanha tampouco, por exemplo, o estádio em que foi realizado o jogo da final, em Berlim, é o mesmo estádio de 1930, ele não foi destruído e reconstruído.

    Por outro lado, o que está acontecendo aqui no Brasil também está ocorrendo agora no Catar — inclusive com denúncias de trabalho escravo — e na Rússia. Então, esse “filão” de descobrir a Copa do Mundo nos países da periferia do capital talvez propicie uma acumulação ainda maior para esses organismos internacionais privados — FIFA e COI — que são os donos da patente dos eventos.

    Na Grécia houve a mesma coisa e todos os equipamentos gregos construídos estão abandonados, pois lá se repetiu o modelo brasileiro e até hoje eles estão pagando o preço daquelas Olímpiadas de 2004. O que quero dizer é que em alguns países, principalmente aqueles da periferia do capital, o modelo brasileiro foi repetido, e nos países centrais isso não ocorreu, pois se tratou mais de uma adequação dos equipamentos já existentes.

    IHU On-Line – Especificamente sobre as Olimpíadas, que serão realizadas em breve, de que modo você avalia a questão da transparência na condução dos processos de planejamento e gestão de recursos, tendo em vista a crise orçamentária pela qual passa o Estado do Rio de Janeiro?

    Sandra Quintela – Transparência não existe. A Copa do Mundo foi muito mais transparente nesse sentido do que as Olímpiadas. As Olímpiadas são uma “caixa-preta”, que ninguém sabe ao certo o que vai acontecer, pois a matriz de responsabilidade que eles apresentam está muito aquém do que tem sido realizado, porque há muitas obras que estão fora do que foi previsto.

    Nas Olímpiadas também está sendo violada a Lei de Acesso à Informação, porque não estão sendo concedidas informações solicitadas, não há nenhum tipo de prestação de contas, transparência e participação popular em absolutamente nenhuma das decisões. Portanto, as Olímpiadas realmente culminarão com o fim do ciclo de megaeventos esportivos no Brasil e também com a “megafalta” de transparência.

    IHU On-Line – Você poderia falar um pouco sobre a iniciativa de elaboração do boletim “Rio de Gastos”, a respeito dos Jogos Olímpicos 2016?

    Sandra Quintela – Durante o processo da Copa realizamos dois estudos sobre os gastos durante o evento e vimos a importância deles, em função da repercussão e pelo fato de este tema ser pouco trabalhado, ou, quando é abordado, as discussões não são aprofundadas.

    Nossa intenção é tratar da questão do recurso público, saber onde ele está sendo empregado, para que modelo de cidade está servindo etc. Então, fizemos dois estudos relacionados aos gastos da Copa, colocamos à disposição dos Comitês Populares da Copa e, junto com a Rede Jubileu Sul Brasil, fizemos uma cartilha explicando quem paga a conta da Copa.

    A partir dessa experiência, no Pan-Americano acompanhamos o Fórum Popular de Orçamento, observando os gastos com esse evento. Com isso foi possível verificar que era importante continuar trabalhando esse tema dos gastos nas Olímpiadas porque, primeiro, não há transparência; segundo porque são dados muitas vezes complexos, que se referem às esferas federal, estadual e municipal, logo há certa dificuldade em se fazer uma síntese desses gastos. Então o interesse foi acompanhar e divulgar os investimentos públicos, os orçamentos e também os impactos dos megaeventos.

    Porém não estamos trabalhando só a questão dos investimentos. Num dos estudos sobre meio ambiente nós apontamos que a empresa Dow Chemicals — que foi responsável por um acidente terrível de Bhopal, na Índia — é a responsável pela política de sustentabilidade das Olímpiadas, por exemplo. Então, estamos tratando também de outras informações que estão invisibilizadas pela grande imprensa, que trata as Olímpiadas só como algo “legal”.

    Percebe-se que a grande imprensa não cumpre o papel que deveria, de apresentar denúncias e essas análises. Portanto, observamos a necessidade dessa produção independente de informações, análises e denúncias que pudessem romper um pouco esse bloqueio midiático em torno desses sistemas.

    A partir do foco nos gastos, trabalhamos muito a ideia de que esses investimentos e megaeventos são violadores sistemáticos dos Direitos Humanos e isso está obscurecido no cenário atual. Nosso objetivo com essa publicação é contribuir para mostrar a disparidade de gastos com equipamentos e serviços olímpicos em comparação com o que o governo gasta com áreas que deveriam ser prioritárias, como assistência social e Direitos Humanos. O próximo volume, que será lançado em breve, aborda essa questão das políticas de segurança e de todos os gastos relacionados à segurança pública no Rio de Janeiro.

    IHU On-Line – O que representa, a curto e longo prazos, a participação das Parcerias Público-Privadas no investimento desses megaeventos esportivos? Em que implicam no orçamento, na gestão dos serviços e espaços públicos das cidades-sedes e no acesso da população ao que é ofertado dentro desta modalidade?

    Sandra Quintela – A Parceria Público-Privada – PPP é uma ótima marca para escamotear o dinheiro público, pois se fala em “parceria público-privada”, então o que aparece – um argumento muito usado nos discursos dos governantes – é que o Estado não está entrando com nada e o que está sendo feito é pela iniciativa privada.

    Isso foi um discurso muito forte, por exemplo, durante o processo de construção dos estádios e da infraestrutura para a Copa, dizendo que “o governo não está gastando nada, tudo é ligado à iniciativa privada, seja pelas PPPs ou por outros tipos de concessões”. Só que quando acaba a Copa e vem a consolidação dos gastos, chegamos ao número, que já falei antes, de quase 99% de gasto público.

    No caso das Olímpiadas, esse discurso também está sendo muito utilizado. A PPP, na realidade, contribui para o processo de privatização da cidade. Aqui no Rio de Janeiro nós temos o Porto Maravilha, a região portuária do Rio, que é a maior PPP do Brasil, onde está cada vez mais evidente um processo radical de privatização dos espaços públicos. A gestão de toda aquela área é hoje realizada por empresas privadas, consórcios, e isso viola uma série de direitos à cidade, como falamos antes.

    Assim, observamos que esse discurso das Parcerias Público-Privadas escamoteia o gasto público. As PPPs têm uma contrapartida – por parte da iniciativa privada – que nem sempre, no caso do Estado, é monetária. Por exemplo, há terrenos gigantescos – caso do campo de golfe, a Vila Olímpica e outros – que são doados pelo Estado, e, ainda, os serviços todos contratados são do Estado e ficam a serviço daquela iniciativa.

    Também, muitas vezes, em termos orçamentários, o que aparece como desoneração ou contraprestação pública é da PPP, que não tem nenhuma transparência nos contratos. Portanto, as contas não são claras, pois é montada uma arquitetura orçamentária, com conceitos que vão sendo introduzidos no orçamento e que ninguém entende, mas que na realidade estão escamoteando ali os recursos públicos que são lançados para obras, onde, a princípio, dizem que não existe nenhum dinheiro público.

    Aqui temos Parceria Público-Privada para a construção do Parque Olímpico, que inclui a vila dos atletas. Essa parceria, que depois do Porto Maravilha é a maior já realizada, prevê que após a realização dos jogos, 75% dessa área – que é uma área de 1,18 milhão de metros quadrados – serão destinados para empreendimentos habitacionais de alto padrão, a serem comercializados pela concessionária. Então, o Estado entra praticamente com tudo, a empresa entra com a construção e depois se apropria dessas edificações – apartamentos de alto padrão –, ao lado da Vila Autódromo, que está sendo removida à força.

    IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

    Sandra Quintela – Passadas as Olímpiadas será necessário fazer um estudo mais detalhado dos impactos e do legado deixado por esse evento, porque, assim como a Copa, só será possível fazer uma melhor análise do quanto foi gasto e de quais parcerias foram público-privadas após tudo finalizado. Isso será fundamental nas Olímpiadas, que é uma caixa-preta terrível, em que as obras não estão inclusas na matriz de responsabilidade.

    Por enquanto, o que estamos vendo no Rio de Janeiro são megaeventos esportivos que servem para dividir ainda mais a cidade e colocá-la a serviço de interesses privados, consolidando uma lógica de cidade que exclui quem vive nela, e isso é o mais grave em nossa opinião.

    Fonte: IHU, 22/02/2016

  • “Todos os argumentos em favor da reforma da previdência visam sua privatização e financeirização”

    “Todos os argumentos em favor da reforma da previdência visam sua privatização e financeirização”

    Denise Gentil, doutora em economia pela UFRJ
    Denise Gentil, doutora em economia pela UFRJ

    A pauta política do ano começa a esquentar e um dos principais tópicos em discussão é a Reforma da Previdência, sempre bombardeada pelos setores corporativos como deficitária – sob benção do próprio governo. Para discutir mais esse tema repleto de informações dadas pela metade, entrevistamos Denise Gentil, economista e pesquisadora, que acabou de concluir sua tese de doutorado sobre o que considera o falso déficit da Previdência.

    “A reforma é uma completa insensatez. O gasto com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas”, afirmou, em tom introdutório.

    A seguir, Denise mostra em números como a seguridade social brasileira tem contas sustentáveis, mas, como em qualquer setor da economia, está colocada a serviço da manutenção das margens de lucro do empresariado, o que obviamente se oculta dos debates midiáticos.

    “São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público. Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita que não são computadas nesse cálculo, como a COFINS, a CSLL e a receita de loterias. Quando todas as receitas são computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015”, expôs.

    Além de desconstruir a argumentação “liberal-privatizante”, como denomina a proposta, Denise Gentil propõe outros pontos de vista em questões como idade mínima de aposentadora e a própria noção de solidariedade da seguridade social, além de defender fórmulas variadas para a aposentadoria dos trabalhadores de diversas regiões e características do país.

    A entrevista completa com Denise Gentil pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Como enxerga a volta da proposta de Reforma da Previdência neste início de ano, em meio a uma grave crise econômica?

    Denise Gentil: É uma completa insensatez. O gasto com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas.

    O governo Dilma, no entanto, mudou completamente o rumo da política macroeconômica e tem enfrentado muito mal a crise externa. A economia brasileira tem sido desativada de seus mecanismos de crescimento de forma programada. Houve redução do crédito, queda brutal do investimento público, elevação da taxa de juros, menor aporte de recurso para as estatais (principalmente Petrobrás), redução inclusive do gasto social, enfim, um pacote recessivo que reforça as consequências nefastas da crise mundial.

    Para culminar, o governo, na angústia de ser solícito e atender às pressões do sistema financeiro, achando que, com isso, vai se equilibrar minimamente no jogo de poder onde tem perdido sistematicamente, lança como estratégia política a Reforma da Previdência. Considero um suicídio político. O governo atira contra sua base eleitoral correndo o risco de perder apoio onde ainda lhe resta algum.

    Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos dominantes em favor dessa reforma previdenciária?

    Denise Gentil: São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público. O orçamento público se transformou num instrumento a serviço dos interesses do sistema financeiro. Temos a mais elevada taxa de juros do mundo e a dívida pública é o mecanismo mais brutal de apropriação privada dos recursos públicos. Em lugar nenhum há uma transferência tão violentamente explícita de renda aos bancos, fundos de investimento e fundos de pensão como no Brasil.

    É um escândalo que nosso país tenha gasto R$501 bilhões com juros no ano de 2015, justamente num ano em que o orçamento público deveria estar a serviço da recuperação da economia. São 8,5% do PIB destinados a uma classe de rentistas que apenas acumula riqueza sem nada devolver à sociedade. Não investe, consome pouco e remete renda ao exterior.

    Mas os bancos não querem apenas os juros da dívida. Na área da saúde, o sucateamento do SUS empurra as pessoas para os planos de saúde privados ofertados também pelos bancos. Na área de educação, o patrocínio do governo às empresas privadas é de enorme generosidade. Agora, como se ainda não fosse o suficiente, a base da proposta de Reforma da Previdência visa dificultar o acesso a direitos sociais e comprimir o valor dos benefícios. O governo alardeia que a previdência pública não tem sustentação financeira. Usa a mídia para divulgar amplamente essa idéia como se fosse uma verdade inabalável. O resultado é que está empurrando as pessoas para os planos de previdência privada complementar o que os bancos oferecem. É mais do mesmo.

    É um amplo processo orquestrado de privatização, que o governo Dilma está levando adiante de forma muito mais radical. É preciso entender a reforma da previdência não como uma necessidade conjuntural de ajuste fiscal ou de enfrentamento de uma trajetória demográfica, mas antes como um projeto do mundo das finanças. O ajuste fiscal é apenas um pretexto para justificar os interesses ocultos por trás desse grande acordo entre Estado e o poder financeiro.

    Correio da Cidadania: O que você comenta a respeito da ideia do “déficit da previdência”, tão propalada pelos veículos de comunicação?

    Denise Gentil: Tenho defendido a ideia de que o cálculo do déficit previdenciário não é correto, porque não está de acordo com os preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de seguridade social. O cálculo do resultado previdenciário que tem sido oficialmente divulgado pelo governo leva em consideração apenas a receita de contribuição previdenciária ao INSS dos empregados, empregadores e contribuintes individuais, diminuindo dessa única fonte de receita o valor dos gastos com benefícios previdenciários. O resultado dá em déficit.

    Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos de prognósticos (loterias). O artigo 195 da Constituição Federal assegura que essas receitas financiam a Previdência, a Saúde e a Assistência Social, mas não são levadas em consideração. Quando todas as receitas de contribuições sociais são computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015.

    A pesquisa que realizei leva em conta todos os gastos com benefícios, com pessoal e custeio dos ministérios (Saúde, Assistência Social e Previdência). Essa informação favorável não é repassada para a população, que fica com a noção de que o sistema previdenciário brasileiro enfrenta uma crise de grandes proporções e necessita de reforma urgentemente. O cálculo é propositalmente feito para difundir um suposto déficit e gerar o descrédito do sistema público de Previdência para se conseguir a aprovação de reformas que reduzem benefícios.

    Essas ideias foram tão reiteradamente repetidas que o cidadão comum, as pessoas do meio acadêmico, os homens de negócios e a burocracia do governo passaram a incorporá-las como se fossem verdades definitivas. A ANFIP faz estudos anuais, com elevado grau de detalhamento, divulgando o resultado superavitário da Seguridade Social há mais de vinte anos. Nunca vi uma matéria na televisão que propagasse os estudos da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) que, aliás, são de alto nível.

    Há um outro ponto que gostaria de destacar. O governo Dilma privilegiou desonerações tributárias em larga escala como um dos eixos principais de estímulo ao crescimento e, em menor escala, à recuperação da indústria, a despeito da conhecida limitação desse instrumento para tal fim. A renúncia de receitas em 2014 alcançou a cifra de R$253 bilhões ou 5% do PIB, dos quais R$136 bilhões (2,6% do PIB) pertenciam à Seguridade Social.

    Em 2015, a desoneração total chegou a R$282 bilhões e representou um valor maior do que a soma de tudo o que foi gasto, em 2014, em Saúde (R$93 bilhões), Educação (R$93,9 bilhões), Assistência Social (R$71 bilhões), Transporte (R$13,8 bilhões) e Ciência e Tecnologia (R$6,1 bilhões) pelo governo federal. Em 2015, do total do valor das renúncias de receitas tributárias, 55% pertenciam à Seguridade Social, isto é, R$157,6 bilhões.

    Não é aceitável que o governo conceda esse patamar estratosférico de desonerações e agora proponha cortar gastos. Não é minimamente razoável que o governo force o entendimento de que faltam recursos para manter o sistema de proteção social quando abre mão de montantes gigantescos de receita a favor da margem de lucro das empresas.

    Correio da Cidadania: O que pensa da proposta de idade mínima pra aposentadoria? Qual fórmula te parece mais justa nesse sentido?

    Denise Gentil: Não sou favorável ao estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição. Quem se aposenta nessas condições normalmente começou a trabalhar muito cedo e, no caso dos que têm menor renda, sacrifica seus estudos e sua escolaridade fica prejudicada. Por isso tais pessoas ganham salários menores, têm saúde mais precária e vivem menos. Estabelecer uma idade mais elevada para a aposentadoria seria punitivo para os que começaram a trabalhar muito cedo.

    Normalmente, as pessoas que se aposentam por tempo de contribuição formam dois tipos de grupo. Alguns acabam voltando a trabalhar depois de aposentados e, portanto, voltam a contribuir para o INSS; estes, não são um peso para o orçamento da União, pelo contrário, gerarão mais arrecadação do que será gasto com suas aposentadorias. Outros que se aposentam mais cedo, por tempo de contribuição, o fazem compulsoriamente, porque não conseguem manter seus empregos, na maioria das vezes por defasagem entre os avanços tecnológicos e sua formação ultrapassada, ou por problemas de saúde devido ao aparecimento de doenças crônicas que certos ofícios normalmente ocasionam, ou ainda por desemprego causado por períodos recessivos. Estes aposentados já são punidos (com redução do valor da aposentadoria) pelo fator previdenciário.

    As perdas de renda são grandes principalmente para as mulheres. Tratar a todos com se fossem iguais, como se o mercado de trabalho fosse homogêneo e como se tudo ocorresse da mesma forma na região Norte e Sudeste, é injusto. Mas o fundamental em tudo isso é que forçar a aposentadoria para uma idade mais alta não implica necessariamente em manter o trabalhador contribuindo para a previdência, porque poucos vão conseguir ter um posto de trabalho com o avanço da idade. Pode, ao contrário, significar que eles perderão a condição de segurados, principalmente em recessões prolongadas.

    Correio da Cidadania: Você acredita na necessidade de alguma reforma da Previdência? De que tipo?

    Denise Gentil: A reforma realmente necessária teria que permitir a aposentadoria de trabalhadores urbanos mais pobres e informais com regras semelhantes às dos rurais. Aqueles que não conseguiram um emprego formal no meio urbano durante sua vida ativa deveriam se aposentar com um salário mínimo, comprovando o tempo de trabalho. A reforma deveria ser inclusiva, criando mecanismos de proteção mais amplos e não afastando as pessoas da previdência pública com regras duras e renda baixa para os aposentados.

    Deveríamos caminhar no rumo de um sistema previdenciário para todos, inclusive para os que não contribuíram, mas trabalharam a vida toda. Estes necessitam da aposentadoria na velhice e poderiam receber o piso básico simplesmente porque são cidadãos brasileiros e não podem ser desamparados. Se não contribuíram diretamente para a previdência, pagaram impostos indiretamente, principalmente aqueles embutidos nos preços.

    Nós precisamos de uma reforma edificante, que traga mecanismos compensatórios para a exclusão do mercado de trabalho, que discuta uma agenda positiva com a sociedade, que proponha laços de solidariedades entre as gerações e entre as classes e que fortaleça a cidadania.

    Correio da Cidadania: Quais seriam as principais consequências na vida da população, caso se aprove a reforma agora discussão?

    Denise Gentil: Ainda não se sabe exatamente a amplitude que essa reforma terá. Quando o debate começa no fórum da previdência e as propostas vão surgindo, as coisas vão ficando perigosas porque as disputas se acirram e a atuação dos lobbies fica muito mais forte. Haverá também a enorme pressão política dos meios de comunicação. As forças conservadoras da burocracia do governo emergem, trazendo propostas de reforma draconianas. O desfecho é pouco previsível. Para a classe trabalhadora isso é um pesadelo, um tormento que se repete incessantemente.

    O resultado que se quer alcançar com reformas de corte liberal-privatizante é a redução da renda das aposentadorias, do piso e do teto, e ao mesmo tempo elevar o grau de dificuldade para as pessoas conseguirem se aposentar para que elas passem o menor tempo possível recebendo uma renda do governo. Quanto menor o período de aposentadoria, isto é, quanto mais próximo do fim da vida, melhor. Essa é a estratégia. Com benefícios menores, as pessoas que tiverem condições de pagar serão empurradas para os planos de previdência complementar num banco privado, porque a renda que receberão do sistema público não garantirá a sobrevivência em condições semelhantes às da fase ativa.

    A previdência pública tende a se responsabilizar apenas por um piso básico de valor mínimo para atender precariamente os mais pobres. Assim, a tendência é de transferir a responsabilidade da renda futura para os indivíduos e famílias, retirando cada vez mais o amparo do Estado. O sistema previdenciário vai ampliar as assimetrias e exclusões existentes no mercado de trabalho e a pobreza entre os idosos voltará a crescer. O governo Dilma não consegue sustentar os avanços sociais conquistados na primeira década deste século. A impressão que se tem é que tudo não para de desmoronar.

    Correio da Cidadania: Em sua visão, quais seriam os resultados macroeconômicos da reforma previdenciária, tal como proposta?

    Denise Gentil: O resultado político é desastroso, mas já que a pergunta é sobre o efeito macroeconômico, talvez seja melhor começar por aí. O resultado econômico de se fazer redução de gasto público, aliás, de qualquer tipo de gasto, sempre será um menor crescimento. E crescimento mais baixo significa queda da taxa de emprego, dos lucros e salários e, por tudo isso, menor será a arrecadação de tributos. Fazer ajuste fiscal agrava o resultado fiscal. Reduzir gasto social é condenar a economia à recessão, particularmente em momentos de crise externa.

    O governo diz que a redução do gasto previdenciário vai abrir espaço para o investimento público. Isso é uma grande bobagem. Redução de gasto em governos muito conservadores, como é o caso do governo Dilma, sempre significará elevação de superávit primário e não maior investimento. Além disso, um governo que realmente deseje realizar investimentos de grande porte não usa a arrecadação dos tributos para esse fim, porque nunca seriam suficientes. Para se fazer investimentos expressivos o governo tem de tomar empréstimos, lançar títulos públicos no mercado, emitir moeda e, sobretudo, fazer grandes acordos para coordenar um bloco de interesses, nacionais e internacionais, numa determinada direção.

    Essa fórmula é mais velha que a roda no mundo das finanças públicas. Só tem dinheiro para fazer investimentos de grande impacto quem tem um projeto de inserção internacional. País nenhum na história do capitalismo mundial cresceu economizando migalhas de seus recursos internos, mas realizando grandes projetos estratégicos que implicam em elevar a dívida pública. Portanto, não será “economizando” com gastos sociais que o governo arranjará uma fonte de recursos para ampliar os investimentos.

    Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader é economista e editora do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

  • Adeus ao “macho”

    Adeus ao “macho”

    Carol_filmeDesde a segunda metade do século XX, Hollywood colocou-se como provedora do perfil moral do Ocidente. Leva à tela os comportamentos que são aceitos pela maioria de nossa classe média e burguesa. Um dos conceitos trazidos pelo cinema americano foi o perfil de macho e fêmea diante do amor e do sexo. Gays e lésbicas só existiam como estereótipos quase sempre satirizados. Isso está mudando.

    O primeiro sinal quanto ao desejo de mulheres pelo seu próprio gênero é o filme Carol, concorrente ao Oscar, do diretor Todd Haynes. O filme é baseado no livro “The Price of Salt” de Patricia Highsmith de 1952. A autora, que pessoalmente tinha preferência por mulheres casadas, é autora de livros policiais famosos e essa investida no campo da sexualidade é a sua única obra que não havia chegado às telas.

    Há ainda, A garota dinamarquesa, de Tom Hopper, que reconstitui a vida do homem que fez uma das primeiras operações para troca de sexo, na década de vinte.  Eddie Redmayne interpreta um pintor que se descobre mulher ao posar para sua esposa, também pintora.

    Até agora os gays e lésbicas eram caracterizados como efeminados (no caso dos homens) e brutos (no caso de mulheres). Algo como cães de raça ou feras no zoológico. Pairava sobre eles uma “anormalidade suportada”. É isso o que está mudando.

    O interessante vai ser observar como os conservadores de todo o mundo e especialmente os americanos vão se comportar diante dessa mudança.  Eles acabarão tendo que engolir “viados” e “sapatonas” desfilando na tela diante de seus olhares contrariados.

    Flávio Braga é escritor