

Paraísos (ou parasitas?) fiscais
O mapa dos paraísos fiscais foi em 2015 mais colorido que nos anos anteriores, pela entrada de mais países na lista desses nichos. Tal relação está integrada por:
Paraísos (ou parasitas?) fiscais
O mapa dos paraísos fiscais foi em 2015 mais colorido que nos anos anteriores, pela entrada de mais países na lista desses nichos. Tal relação está integrada por:
Por que é que o baixo preço do petróleo é uma má notícia para a economia global?
A queda do preço do petróleo devia ser uma boa notícia para a economia mundial. Afinal, os baixos preços do petróleo beneficiam os consumidores diretos: por exemplo, o setor dos transportes e a indústria petroquímica. E esse impacto positivo deveria traduzir-se numa injeção de adrenalina que traria crescimento e criação de emprego. Então, por que é que o baixo preço do petróleo é uma má notícia para a economia global?
É verdade que a queda nos preços do crude deveria ter um efeito positivo sobre os preços de todo o tipo de bens. O petróleo é uma matéria chave que direta ou indiretamente entra na produção de quase todas as mercadorias que se produzem hoje em dia. Mas isso não quer dizer que automaticamente o efeito do colapso no preço desta matéria se traduza em reduções nos preços dos produtos finais. Tudo isso depende da importância do crude na estrutura de custos de cada produto e da estrutura de mercado em cada ramo da produção.
Quanto à importância do petróleo na estrutura de custos há muitos mal-entendidos. Pensa-se, por exemplo, que o baixo preço do petróleo beneficia os produtores de energia elétrica. A realidade é que só 5 por cento da produção de energia elétrica no mundo é produzida pela queima de petróleo. E um dos países em que se concentra essa pequena percentagem é precisamente a Arábia Saudita, o principal causador do colapso de preços do crude. Nos Estados Unidos apenas 0,7 por cento da energia elétrica produzida provem da utilização de petróleo (enquanto 4,2 por cento são produzidas por turbinas eólicas). A redução do preço do crude não tem qualquer impacto na produção de energia elétrica.
Por outro lado, na atualidade o preço do petróleo não está ligado aos preços do gás natural ou do carvão, que são as matérias que realmente contam no plano da produção de energia elétrica. No mundo, 23 por cento da eletricidade é produzida em centrais que queimam gás natural (nos Estados Unidos essa percentagem atinge os 28 por cento). Entre os anos 1998-2009 os preços de gás natural, carvão e petróleo estiveram estreitamente associados e moviam-se na mesma direção. Mas esse vínculo foi-se rompendo gradualmente, em parte porque o preço do gás de xisto caiu enquanto o preço do petróleo foi aumentando até 2014. O preço do carvão tem mantido uma tendência para a baixa, desde 2011, devido à concorrência de outras fontes de energia e ao persistente excesso de oferta pelos produtores na China. Isto é, os preços dos combustíveis fósseis que realmente contam em matéria de produção de energia elétrica já vêm mostrando uma tendência para a baixa desde há seis ou sete anos. Esse comportamento não tem sido suficiente para contrariar as tendências recessivas da economia mundial.
Nos Estados Unidos, a queda do preço do petróleo está a provocar um colapso na economia das regiões onde se desenvolveu o malogrado boom da extração de petróleo de xisto com a tecnologia da fratura hidráulica. Um número importante de empresas que se financiaram em Wall Street, para desenvolver os seus agressivos planos de investimento, está hoje na bancarrota. As instalações de controlo da extração direta de petróleo de xisto caíram 70 por cento, desde que começou a queda do preço do crude há um ano e meio. E o impacto disto no setor financeiro é significativo. Por esse motivo, verifica-se uma estreita correlação entre as quedas na bolsa de valores e os anúncios sobre as reduções recorde do preço do crude. Tudo isto alimenta o debate sobre se o aumento na taxa de juro decretado pela Reserva federal foi prematuro ou não.
Mas não são só os dependentes do fracking que estão a sofrer nos Estados Unidos. Os jazigos de gás natural proveniente do xisto na China constituem uma das maiores reservas a nível mundial. Mas o milagre da produção na China será afetado pelos baixos preços do gás natural e pelas importações provenientes dos Estados Unidos.
Em geral, o colapso do preço do crude é visto mais como um mau sinal sobre o que vai acontecer na economia mundial. A queda acelerada do preço do petróleo no último ano coincidiu com reduções brutais nos índices das cotações bolsistas das principais praças financeiras do mundo. E aqui verifica-se algo inédito. A Arábia Saudita não pôde escolher um momento mais desfavorável para iniciar a sua guerra de preços com o fim de preservar a sua (dominante) faixa de mercado. No meio de uma recessão global, a descida nos preços do crude tem de se intensificar devido à redução na procura. Por isso hoje em dia a queda no preço do petróleo é um sinal de como a economia mundial se está a comportar mal.
Artigo de Alejandro Nadal, publicado em La Jornada a 27 de janeiro de 2016. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net
Não importa por onde comecemos a falar sobre as manifestações contra os aumentos da tarifa do transporte público de São Paulo; elas trazem características que provavelmente estarão presentes em todas as lutas sociais travadas nas ruas neste ano de 2016. E por isso é essencial entender o que está acontecendo, despindo-se de ideias pré-concebidas sobre os atores em questão. Podemos começar falando sobre a cobertura da imprensa, ou sobre a violência policial. Sobre a forma como se organiza o movimento, ou sobre a tática black bloc. Ou até mesmo sobre a ausência de espaços de diálogo entre o poder público e a sociedade. Todos são ingredientes já conhecidos, no senso comum, há pelo menos três anos.
O que temos de novo é o aprimoramento da repressão. O chacoalho que 2013 causou nas autoridades levou a uma escalada repressiva jamais vista. Um 2014 de Copa do Mundo e um 2015 de crise e ajuste fiscal também serviram para as aulas práticas dos agentes da “ordem”. E por falar em ajuste fiscal e crise econômica, o Movimento Passe Livre – responsável por convocar os atos – fez um levantamento de gastos em suas páginas da internet, no qual chegou à conclusão de que a crise existe em diversos setores, menos nos recursos da repressão.
Recentemente, foram comprados 6 blindados israelenses Plasan Sasa pela PM paulista. Segundo informações deste levantamento – feito a partir de dados divulgados por Metrô, SPtrans e imprensa – os veículos custaram 30 milhões de reais. Com essa verba seria possível comprar 100 ônibus, 272 ambulâncias, ou até mesmo financiar a tarifa zero por cerca de três dias para os 4,6 milhões de passageiros diários do metrô de São Paulo.
O aumento entraria em vigor no sábado, dia 9 de janeiro. Vamos aos fatos.
Primeiro ato: o caos
Na sexta-feira, 8 de janeiro, o primeiro ato se concentrou no Theatro Municipal, a partir das 17h. Cerca de 6 mil pessoas saíram de lá às seis e meia e marcharam em círculos, contornando o próprio Theatro Municipal e o Largo do Payssandu antes de ganharem o Vale do Anhangabaú. Enquanto passavam pelo Vale, a Tropa de Choque se posicionava na lateral do Terminal Bandeira, onde se encontram as avenidas 9 de Julho e 23 de Maio.
A multidão cruzou o Viaduto do Chá por baixo e buscou o acesso à avenida 23 de Maio. A tática do Movimento Passe Livre é exatamente essa. Trancar as ruas para chamar atenção à pauta. Concorde-se ou não, é desonesto afirmar que a ação policial foi decorrente da depredação de qualquer forma de patrimônio. O que se viu foi uma tropa de choque da polícia militar instruída a impedir a qualquer custo que a multidão trancasse a avenida 23 de Maio. E começou a chuva de bombas e balas de borracha, às 19h em ponto.
Uma parte da multidão subiu em direção à rua Augusta, outra parte voltou na direção do Theatro, e assim toda a manifestação foi se dissipando pelo centro de São Paulo. Estava aberta a temporada de caça. Policiais rondavam ostensivamente as ruas em busca de manifestantes. Nesse momento, e não antes como insistem os grandes meios, alguns manifestantes – e nem todos mascarados – quebraram vidraças de bancos e tentaram fazer barricadas no trajeto entre a entrada do Terminal Bandeira e a rua Martins Fontes.
Podemos entender a atitude de diversas formas. O que esta reportagem viu foi uma reação – ainda que impensada – à repressão. Os jovens veem nos bancos um símbolo de opressão. Talvez a ação tomada no calor do momento seja questionável, mas a análise não. Basta uma breve pesquisada a respeito dos inigualáveis lucros de Itaú, Bradesco e Santander em plena crise econômica e ano de ajuste fiscal. E o recente veto da presidenta Dilma em incluir a Auditoria da Dívida Pública nos próximos planos de governo só joga água no mesmo moinho.
O que a dívida pública tem a ver? Tem muito a ver com isso, e que nos perdoe a presidenta, mas que pênalti perdido foi esse? Já funcionou no Equador, por exemplo, nosso vizinho.
Relatos de agressões, abusos de autoridade e práticas questionáveis por parte da repressão começaram a pipocar nas redes sociais. Um deles, esta reportagem teve o desprazer de presenciar. A prisão dos quatro garotos, filmada também pelos Jornalistas Livres, na qual uma série de flagrantes foi forjada para justificar a ação. Os garotos foram conduzidos à base policial localizada na praça Roosevelt sob aplausos de um casal que frequentava a praça. Skatistas solidários aos garotos fizeram coro contrário, em repúdio aos aplausos.
Na segunda-feira seguinte, o MPL fez o chamado “trancamento de ruas”. Trancou a Faria Lima, na altura do Largo Batata como uma prévia da manifestação do dia seguinte. Também recebemos informações de trancamentos na Lapa. Na segunda-feira, 18 de janeiro, véspera do quarto ato, destacou-se o trancamento do terminal Parque Dom Pedro, o maior terminal de ônibus urbano da América Latina.
Segundo ato: a barbárie
O segundo ato contra o aumento das tarifas não começou às 17h, na Praça do Ciclista, como previa sua concentração. Diversas questões anteciparam as tensões. Um vídeo “viralizado” na internet que mostrava um policial infiltrado agredindo uma manifestante e logo sendo agredido por outros manifestantes; um enorme conflito entre poder público e movimento social a respeito do trajeto; e, para variar, a irresponsabilidade dos grandes meios de comunicação na cobertura dos fatos.
O vídeo citado gerou revolta em setores mais conservadores da sociedade, uma vez que foi lançado em página característica. Foram feitas prisões na casa dos manifestantes que foram filmados, em ações que fugiram do padrão exigido pelos códigos de justiça brasileiros. A não presença de oficiais de justiça com mandado de prisão ou algo do gênero pode vir a caracterizar uma ação ilegal por parte dos policiais envolvidos. Por outro lado, a grande imprensa não ficou atrás. Manchetes de jornais impressos chamando os manifestantes de “mimados”, “vândalos”, entre outros jargões, fez lembrar a mesma mídia de antes do grande massacre de 13 de junho de 2013, no qual muitos profissionais da imprensa foram atacados em nome de uma suposta “retomada” da Paulista, bradada no editorial de um desses famosos jornais.
Outra questão levantada pela imprensa corporativa foi a de questionar a pauta de modo superficial. “Mas como se revoltam por uma aumento de 30 centavos e não dizem nada sobre os bilhões roubados?” Sejamos francos e menos canalhas. É tão óbvio quanto coerente que quem se revolta com o aumento do transporte público também está revoltado com a situação de crise e corrupção como um todo. Além disso, o MPL já deixou bem claro que não tem a proposta de dirigir um movimento mais amplo, mas, sim, pautar a questão do transporte público dentro das movimentações sociais e populares, por ser uma pauta com a qual eles já possuem acúmulo de mais de dez anos de estudos e atuação.
Mais uma questão que abalou as relações entre a multidão e o Estado foi a respeito do trajeto a ser percorrido pelo ato. Os manifestantes haviam definido em reunião prévia que iriam para o Largo da Batata, em Pinheiros. A polícia militar fazia questão de que descessem para o centro da cidade e terminassem na praça da República. A distância para ambos lugares é praticamente a mesma a partir da Praça do Ciclista; acontece que além da decisão prévia sobre o destino do ato, a polícia havia preparado uma recepção, digna de autocracia, para os manifestantes ao longo da descida da Consolação e na chegada ao centro da cidade. O clima esquentava.
A multidão se recusou, em jogral, a seguir o trajeto determinado pela PM, que por sua vez decidiu que por isso a manifestação não poderia acontecer. Por volta das 18h30, a multidão se dirigia para a Avenida Rebouças e era barrada pela PM. Havia bloqueios feitos pelas tropas de Choque e do Braço na Consolação, no acesso da Paulista à Rebouças e na própria Paulista pouco antes da esquina com a Haddock Lobo. Em outras palavras, os pouco mais de 4 mil manifestantes estavam encurralados.
Na esquina da Paulista com a Consolação, próximo do acesso à Doutor Arnaldo, diversos jornalistas estiveram isolados da multidão pelo cordão policial e eram impedidos de trabalhar do outro lado. Isso antes e também logo depois das 19h, quando novamente começaram as bombas. Assim como na sexta-feira anterior, a repressão foi brava, mas nesse dia podemos dizer que foi um massacre. “Foi pior do que 2013”, afirmou o fotógrafo Sérgio Silva no calor do momento, ele que sentiu na pele (e no olho) a repressão de três anos atrás.
O saldo final foi incalculável. Esta reportagem acabou envelopada na rua Sergipe junto com grupos de manifestantes que tentavam dispersar. “Todo mundo aqui cala a boca e senta em cima da mão que eu estou mandando”, afirmou o policial do Choque, sem identificação. Muitos jovens secundaristas estavam ali, e nitidamente desesperados. Em um breve espaço de tempo, consegui sacar o cartucho de memória da câmera, substituí-lo por um vazio, e esconder o que continha as fotos do dia – não são raros os relatos de material jornalístico apagado ou apreendido em situações como essa.
Dois estudantes secundaristas tentaram argumentar e pediram calma aos policiais, que responderam com uma prisão por desacato e um espancamento em cada um. Um colega deles afirmou que eram estudantes do Fernão Dias, segunda escola a ser ocupada no ano passado. O nível de violência na ação e na postura dos policiais chamou a atenção de um professor da FAU que também acabou envelopado: “vou escrever um pós-doutorado sobre essa linguagem violenta com um relato disto que acabou de acontecer”, declarou. Vale lembrar que o envelopamento, ou “caldeirão de Hamburgo”, é uma tática proibida e já gerou polêmicas a seu respeito em fevereiro de 2014, durante manifestação crítica à realização da Copa do Mundo da FIFA que aconteceria dali a poucos meses.
Após o envelopamento, o jovem Peterson Marques procurou a reportagem do Correio da Cidadania. Ele havia perdido os dentes da frente por causa da agressão policial. “Eu fui ajudar as meninas que estavam apanhando e comecei a apanhar também, na cara. Só percebi que tinha perdido os dentes quando fui cuspir”, contou. Ele foi para a Santa Casa, onde recebeu atendimento. No fechamento desta matéria, a última informação que temos é de que conseguiu um dentista que se ofereceu para fazer tratamento de canal e recolocar os dentes perdidos.
Além de Peterson, o pintor Douglas Ferreira, de 24 anos, foi atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha e correu risco de perder a visão. Apuramos que já não corre esse risco. Além dele, houve centenas de relatos de feridos dos quais o jornalista Alceu Castilho tomou nota e cujo link está disponível ao final desta reportagem.
A libertação dos três presos, o repúdio à ação da PM e o direito à livre manifestação se juntaram ao aumento da tarifa e deram o tom do ato que se realizou dois dias depois. Em contrapartida, governo do estado e prefeitura tentaram uma anticonstitucional liminar que impedisse manifestações – especialmente as do MPL, visto que em outras manifestações o tratamento é “diferenciado” – de serem realizadas sem uma aprovação prévia do comando da polícia militar em relação ao trajeto que percorrerá. É o poder público dando cada dia mais mostras da sua incrível capacidade de diálogo.
Terceiro ato: paz com armas, vozes cansadas
“Por favor, não jogue bomba”, dizia a camiseta de um manifestante, ainda na concentração no Theatro Municipal, e de certa forma expressava o clima de tensão que manifestantes, imprensa e transeuntes sentiam em relação à ação policial. Desde as 14h, três antes do início da concentração, a polícia já tomava toda a região do Vale do Anhangabaú e arredores da Praça Ramos – onde fica o Theatro Municipal, local de uma das concentrações do ato deste dia. Acompanhamos esta manifestação, que foi até o vão do MASP, passando pela avenida Brigadeiro Luis Antônio. A outra concentração foi no Largo da Batata, às 17h em Pinheiros.
Ainda no Theatro, o jogral de início do ato comemorou a soltura de três manifestantes presos nos atos anteriores, mas lembrou que ainda restavam dois. Havia uma presença mais intensa da mídia. O ato partiu no sentido da Secretária Estadual de Segurança Pública, poucas quadras de distância dali. Chegando lá, encontramos uma secretaria altamente guardada pela PM. Foi feito um jogral criticando a política de segurança e pedindo a desmilitarização da polícia e o respeito aos direitos de se manifestar. O ato seguiu sentido Brigadeiro Luis Antônio, por onde subiria até virar à direita na Paulista e encerrar em frente ao MASP, onde foi feito outro jogral.
Não houve muitos incidentes durante o trajeto, a não ser uma bomba que estourou fora do espaço da manifestação ainda no início da subida da Brigadeiro. Segundo manifestantes que estavam próximos, policiais as atiraram na direção de moradores de rua que ali estavam. “Houve um princípio de desespero e revolta, mas o povo se segurou e estamos seguindo. Hoje está bonito”, afirmou Luis Berti, livreiro. Também foi possível presenciar um policial da Tropa do Braço dando uma cacetada em um jovem que participava do cordão de isolamento dos manifestantes. Aparentemente sem motivo.
De qualquer maneira, é importante ressaltar mais uma vez que a presença ostensiva e explicitamente intimidadora da polícia ditou o passo tímido deste terceiro ato. Mas nem tudo foi só intimidação e provocação. Também houve vias de fato. Uma breve confusão de aproximadamente 15 minutos entre manifestantes que tentavam pular a catraca da estação Consolação, na linha verde do metrô, gerou bombas e tiros dentro da estação por parte dos agentes do Estado e alguns vidros quebrados por parte de manifestantes mais exaltados. Este fato foi tomado como um todo pela “rigorosa” cobertura dos grandes meios de comunicação.
Enquanto isso, na dispersão do outro ato, um fato ainda mais estarrecedor, que prossegue ignorado pelos mesmos rigores. Um grupo de manifestantes foi encurralado pela polícia na ponte Eusébio Matoso. Relatos dão conta de agressões físicas a manifestantes, incluindo até mesmo agressões sexuais. “Não havendo nenhum tipo de registro cinematográfico, espancaram todos com socos, chutes, spray de pimenta e cacetadas. Com as meninas a abordagem foi ainda pior: além de bater, as abusaram, colocando a mão em suas vaginas e tacando-as no chão, aos risos. Que tipo de instituição faz isso? Que tipo de instituição tem como parte do trabalho, além de espancar e desorientar pessoas por elas se manifestarem, também violentá-las sexualmente e, quem sabe, assassiná-las?”, desabafou a manifestante D.M. nas redes sociais. Nenhuma nota na grande imprensa.
E na semana em que publicamos essa primeira reportagem sobre os atos contra a tarifa, a dura vida paulistana continuará sacudida pelas manifestações contra o reajuste nos ônibus, trens e metrôs. Se a cidade vai parar ou a nova tarifa se imporá, os próximos dias dirão. De toda forma, continuaremos registrando os novos e candentes capítulos das disputas sociais e econômicas que marcam esse incerto período da história brasileira.
Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 20 janeiro de 2016
O atletismo é uma das modalidades desportivas mais baratas e de maior impacto social. Para praticá-lo, bastam um par de tênis, um local adequado, um bom treinador e disposição. Nessa capacidade democrática e inclusiva reside a sua força transformadora. Afinal, esporte não se resume ao garimpo de metais preciosos. Ele também é cidadania.
Refletir sobre a situação do atletismo na cidade-sede dos Jogos Olímpicos nos ajuda a entender como funciona uma cidade transformada em ativo financeiro, esvaziada de sentido público, em que interesses escusos das oligarquias política e econômica se combinam em detrimento dos direitos da maioria da população.
Em 2013, o Estádio de Atletismo Célio de Barros, templo do esporte no país e espaço onde centenas de promessas olímpicas e atletas amadores treinavam, foi fechado e parcialmente destruído.
O objetivo era viabilizar financeiramente a privatização do Complexo do Maracanã, então assumido por Odebrecht, IMX e AEG, por meio da construção de um grande estacionamento.
À primeira vista, ver a cidade-sede da Olimpíada fechar um equipamento esportivo de excelência para substitui-lo por vagas de garagem pode parecer uma contradição absurda.
Não é. A marca registrada do que chamo cidade-negócio é justamente a submissão do interesse público aos desejos de um reduzido grupo de companhias aliadas ao poder político. Essas empresas são grandes financiadoras de campanhas eleitorais, partidos e bancadas parlamentares.
A aliança não é fruto da simples cooptação da elite política pelo poder da grana. Os interesses são mútuos e se misturam, fundem-se numa só substância. Companhias que patrocinam candidatos passam a dirigir a cidade.
A Operação Lava Jato vem desvendando como funcionam esses esquemas e como eles agem na organização de megaeventos como Olimpíadas e Copa do Mundo.
Recentemente, a Procuradoria Geral da República acusou Eduardo Cunha e aliados de cobrarem propina em troca de favores a empreiteiras responsáveis por obras estratégicas dos Jogos. Além de barganhar benefícios financeiros, o grupo negocia mudanças em projetos de lei para atender aos interesses das empresas envolvidas no esquema, como a OAS.
O problema não está nos megaeventos e nos negócios em si, mas na forma como são realizados. Por isso, a alegria em receber grandes esportistas e assistir às competições não impede a crítica.
Alegria não é sinônimo de alienação. Tampouco é adversária da luta pelo resgate da soberania e do espírito público da cidade, entendida como o conjunto de cidadãos que a constroem cotidianamente, e não como ativo financeiro negociado por especuladores.
1. Governadores de dez estados reuniram-se em Brasília com o novo ministro da Fazenda, a respeito da iminente regulamentação da Lei que alterou o indexador das dívidas estaduais e municipais.
2. Enquanto a União é escorchada pelo serviço dívida, em favor dos bancos, transnacionais e rentistas, ela suga os entes federativos, desde a federalização das dívidas, em 1997, principal fator de estarem quebrados financeiramente.
3. Esse esquema faz parte do conjunto de medidas antinacionais, impostas pela oligarquia angloamericana, através do FMI e dos bancos mundiais, a que se submeteu o governo do PSDB, durante os anos 90, e não modificado sob o governo do PT.
4. Foi, de fato, o período mais sombrio da história do país, pois nele, com o falso pretexto de reduzir a dívida, foram arrancadas do patrimônio nacional empresas e bancos estatais de valor inestimável.
5. Qualquer preço que se discutisse, mesmo sob ótica reducionista, ignorando o incalculável valor estratégico desses patrimônios, só teria algum sentido se fosse em torno de muitas dezenas de trilhões de dólares.
6. Entretanto, os políticos foram cooptados, e o povo anestesiado por vários meios, sem falar na repressão e na mídia corrupta, para que se dessem favores inacreditáveis aos beneficiários das negociatas, desde a Lei da Desestatização, aprovada pelo Congresso em 12 de abril de 1991, proposta pelo Executivo, sob Collor.
7. Resultado: os patrimônios foram torrados (para o país), e a dívida pública continuou a crescer de forma exponencial, à taxa média de 18,65% ao ano (a.a.). De janeiro de 1995 a agosto de 2015, foi de R$ 135,9 bilhões para R$ 3,86 trilhões, ou seja, multiplicou-se por 28,4.
8. A Lei Complementar 148, de 25 de novembro de 2014, prevê que estados e municípios passem a ter suas dívidas corrigidas pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) ou pela taxa básica SELIC – o que for menor – mais juros de 4% a.a., no lugar do IGP-DI mais 6% a 9% a.a.
9. Embora isso pareça mitigar a angustiante situação financeira dos entes locais, não se abre qualquer chance de tirá-los do buraco, nem sequer de evitar que este se aprofunde ainda mais.
10. De fato, embora haja alguma redução nas taxas de correção e juros, estas permanecem absurdamente altas: a SELIC básica já está em 14,25% aa., e o INPCA, em alta, com expectativa acima de 10% aa. Além disso, aplicam-se sobre montantes já insuportáveis, em relação às receitas.
11. Os mecanismos de promoção ao subdesenvolvimento têm seu instrumento central na “Lei de Responsabilidade Fiscal”, outro presente de grego do FMI (Lei Complementar 101/2000). Ela obriga União, estados e municípios a sacrificarem todo tipo de despesa que não o serviço da dívida, em favor dele.
12. Prosseguindo em sua luta por modificar essas realidades, e alertando quanto a novos golpes do sistema dívida, a Coordenadora da Auditoria Cidadã, Maria Lúcia Fattorelli, entregou carta aberta aos governadores de Estados.
13. Destaco alguns pontos desse documento, que convém ser lido e estudado pelo maior número possível de brasileiros:
“Os estados e municípios têm recebido repasses federais decrescentes devido ao ajuste fiscal que faz destinar cada vez mais recursos ao pagamento da dívida pública federal. Em 2014, enquanto os juros e amortizações da dívida federal consumiram 45,11% dos recursos federais, os 26 estados, Distrito Federal, e 5.570 municípios receberam repasses de 9,19%.
Em 2015 a situação agravou-se ainda mais, e os gastos com a dívida devem atingir 50% do orçamento federal, devido ao aumento abusivo das taxas de juros e à prática de mecanismos que usurpam o instrumento do endividamento público, gerando dívida sem contrapartida alguma ao país.
Exemplos: 1) as operações realizadas pelo Banco Central de ‘swaps cambiais’, que de setembro/2014 a setembro/2015 geraram prejuízo de R$ 207 bilhões, impactando o endividamento público federal; 2) as de ‘mercado aberto’, cujo volume atinge quase R$ 1 trilhão e exige o pagamento de juros em moeda corrente, provocando a elevação dos juros de mercado e prejudicando a indústria e o comércio”.
14. Fattorelli recorda que, mesmo sem se ter feito a auditoria da dívida federal, determinada pela CF, a CPI realizada pela Câmara dos Deputados, em 2009/2010, apontou graves indícios de ilegalidades e ilegitimidades das dívidas externa e interna, federal, estaduais e municipais.
15. Ela indaga dos governadores se já calcularam quantas vezes os estados pagaram aquela dívida desde o final da década de 90, e quantos investimentos deixaram de ser realizados, porque os recursos foram absorvidos pelo pagamento da dívida ilegítima e inflada de forma ilegal.
16. Ademais, se eles têm consciência da origem espúria dessas dívidas, provenientes de passivos de bancos estaduais, no esquema ilegítimo do PROES. E se sabem que os estados recorreram a endividamento externo para pagar a União.
17. A Auditoria Cidadão denuncia, ainda, o arranjo inconstitucional implementado por diversos estados, criando empresas independentes, sociedades anônimas, que passam a gerenciar ativos públicos e a emitir debêntures: obrigação de mesma natureza de dívida pública, contando com garantia pública.
18. Finalmente, exige dos governadores resposta decente à população, que sofre a subtração de direitos essenciais, enquanto enfrenta desemprego, queda salarial e aumento de tributos, e assiste ao crescimento dos bilionários lucros dos bancos, batendo novos recordes a cada trimestre.
19. Recordo que, na biologia, nenhum ser vivo surge sem provir de outro, mas a política econômica permite a criação artificial de dívida. Isso porque está a serviço dos bancos e rentistas e, portanto, faz o Tesouro Nacional emitir títulos com taxas de juros absurdamente elevadas, sob o principal e falso pretexto de que isso conteria a inflação.
20. A enorme dívida pública interna resulta da capitalização desses juros. Provém, pois, de fraude incorporada à política financeira a cargo do Banco Central e de um certo COPOM (Conselho de Política Monetária).
21. No sistema vigente, de falsa democracia, e mesmo antes da “Nova República”, o Poder Executivo não exerce seus poderes. Tampouco o Congresso.
22. Talvez só um presidente, Sarney, tentou encarar a dívida pública de forma soberana (à época pesava mais a externa). Desvencilhou-se de Francisco Dornelles, sobrinho de Tancredo, que herdara deste no Ministério da Fazenda, e nomeou Dilson Funaro.
23. Este, entretanto, não durou muito, devido às pressões dos banqueiros angloamericanos. Nem sequer na vida, provavelmente envenenado. Depois, Sarney entregou os pontos e pôs na Fazenda moleques de recados dos banqueiros.
Adriano Benayon é doutor em economia pela Universidade de Hamburgo e autor do livro Globalização versus Desenvolvimento
Fonte: Correio da Cidadania, 19/01/2016
Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.
O superávit da Seguridade Social – que abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência – foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira – condena a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado “A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005″.
Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.
Eis a entrevista.
A idéia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?
A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state (Estado de Bem – Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo.
O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.
No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.
Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.
A que números você chegou em sua pesquisa?
Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).
Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.
Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras como juros e amortização da dívida pública.
Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.
Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?
Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.
Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias.
E são recursos que retornam para a economia?
É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.
De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?
A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficou conhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo para as de menor.
Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?
É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.
O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar outras despesas?
A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamandoo de “Orçamento Fiscal e da Seguridade Social”, no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o “rombo” da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?
Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?
Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente consolidados.
Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?
Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.
A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?
Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínima para a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.
Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada através de certos indicadores.
Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?
A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre “crise” da Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.
Fonte: Instituto Humanitas, com Jornal da UFRJ, 13/01/2016
Introdução
1. Esquerda versus direita
2. Desestabilização macroeconômica e problemas estruturais
3. A “não saída” econômica
4. A saída política: impedimento de Dilma
5. Derrotar o Lulismo é preciso
6. Síntese
Introdução
Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) causaram a desmoralização, a pulverização e a destruição da esquerda brasileira. Parte da esquerda, inclusive no PT, sempre soube que a opção “Lula et caterva” era uma aposta de alto risco. A esquerda perdeu a aposta. Perdeu, perdeu. Mais do que uma derrota, a opção Lula foi um grave erro estratégico. O processo de reconstrução da esquerda brasileira ainda não começou e será longo, muito longo (duas décadas, talvez). Esse artigo objetiva ser uma contribuição para esse processo.
O artigo também é uma reação às análises e aos posicionamentos políticos no campo da esquerda que são contrários ao impedimento de Dilma (1). A posição expressa no artigo é diametralmente oposta: o impedimento (ou a renúncia) de Dilma é uma condição necessária para o início do processo de solução da crise sistêmica e para a reconstrução da esquerda brasileira.
O artigo defende a agenda dos protestos populares:
1) impedimento de Dilma − figurante supérfluo com desempenho medíocre, conduta grotesca e deficiência cognitiva;
2) derrota e isolamento do PT − desmoralização, apodrecimento e antifuncionalidade para a esquerda brasileira;
3) combate frontal à corrupção − condição para a desestabilização do sistema patrimonialista e a redução do poder das oligarquias políticas e dos setores dominantes (bancos, empreiteiras, agronegócio e mineração);
4) investigação, indiciamento, julgamento, condenação e prisão de Lula − condição para a reconstrução das forças políticas de esquerda.
Mais especificamente, o artigo defende também a tese de que a esquerda brasileira tem mais razões do que a direita para participar dos protestos populares e lutar pelo impedimento de Dilma e a punição de Lula.
1. Esquerda versus direita
Nesse texto não cabe uma discussão sobre a dicotomia clássica esquerda versus direita cuja origem é a assembleia de 27 de agosto de 1789, no começo da Revolução Francesa. Essa discussão leva a labirintos filosóficos, políticos e históricos (3). Entretanto, algum rigor conceitual é necessário para que a análise seja consistente. A precisão conceitual pode ser obtida, em certa medida, se observarmos três procedimentos:
1) hipóteses simplificadoras;
2) reduzido número de marcadores;
3) tipologia flexível.
As hipóteses simplificadoras são: o regime político é a democracia e o modo de produção é o capitalismo. Essas duas hipóteses excluem forças políticas antidemocráticas de esquerda (stalinista) e de direita (fascista) e sistemas econômicos em que a maior parte dos meios de produção é controlada pelo Estado. Portanto, as instituições-chave (Estado e mercado) operam sob o regime político da democracia e sob o modo de produção do capitalismo.
Os marcadores usados são: papel do mercado, papel do Estado e funções econômicas do Estado (estabilizadora, reguladora, alocativa e distributiva). Há o “Estado mínimo” dos liberais e o “Estado forte” dos socialistas; há o “mercado autorregulado” da direita e o “mercado fortemente regulado” da esquerda. Na questão distributiva, os socialistas são sanguíneos e defendem a forte intervenção estatal, enquanto os liberais são igualmente sanguíneos a favor de uma intervenção fraca ou nula. Há, ainda, espaço para o Estado com “tamanho moderado” e para o mercado “moderadamente regulado” dos socialdemocratas ou social-liberais.
A tipologia é flexível e abarca os seguintes campos políticos: esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita. Os dois primeiros podem ser incluídos na categoria de forças progressistas enquanto os dois últimos estão na categoria genérica de forças conservadoras. O “centro” é a zona de sombra entre progressistas e conservadores. A distinção entre progressistas e conservadores é definida pela propensão a mudanças e, principalmente, pela natureza e pela fonte das mudanças.
Os principais marcadores usados são as instituições: mercado e Estado. Essas instituições são fundamentais para se configurar os campos da esquerda e da direita. De um lado, a esquerda tende a valorizar mais a atuação do Estado; de outro, a direita tende a valorizar mais o livre funcionamento do mercado. O mercado é entendido como o locus de encontro da oferta e da demanda por bens, serviços e fatores de produção. O Estado, por seu turno, é a instituição que tem a capacidade de regular a relação entre os homens e os homens, os homens e a natureza e os homens e as coisas e, ademais, é a instituição que tem o monopólio da força, da tributação e da moeda.
Consequentemente, o Estado exerce funções econômicas: estabilizadora (estabilização macroeconômica: crescimento, emprego, inflação, contas públicas e contas externas); reguladora (regulamentação das atividades econômicas, como os serviços de utilidade pública); alocativa (orçamento público: educação, saúde, defesa, transporte etc.); e distributiva (tributação e gasto fiscal, financiamento etc. – foco em classes e grupos sociais).
O QUADRO 1 apresenta uma tipologia de forças políticas: os campos (esquerda, centro e direita); ideologias (conservadorismo, liberalismo, social-liberalismo, socialismo etc.), instituições (intensidade na atuação das instituições fundamentais, mercado e Estado) e a intensidade no uso das funções econômicas do Estado (estabilizadora, reguladora, alocativa e distributiva).
Naturalmente, a tipologia apresentada é muito simplificadora, o que implica riscos sérios. Entretanto, sua função é simplesmente de cunho didático para que os conceitos-chave usados no artigo fiquem mais precisos. No Brasil, por má-fé ou ignorância, frequentemente esses conceitos são usados para se desqualificar posições divergentes. O resultado é o debate medíocre via desqualificação de pessoas, grupos e posições, com o desvio da argumentação sobre conteúdo.
Má-fé e ignorância determinam argumentos do gênero: “essa análise é de esquerda e, portanto, está viciada, é fora de moda e deve ser desconsiderada”; ou, então, “essa proposta é neoliberal e, portanto, é de direita e deve ser rejeitada”. A situação em um país atrasado como o Brasil é mais grave, visto que, na ausência do risco moral, atores políticos se identificam como de esquerda e, ao mesmo tempo, defendem ideias de direita e vice-versa.
Fora do espaço da política a situação não é muito diferente. Para ilustrar, há empresário que defende, como parte da ideologia liberal, a redução do protecionismo e da regulamentação para o conjunto da economia. Porém, quando se trata do seu interesse específico, ele é ardoroso defensor do protecionismo e da regulação, que garantem seus lucros anormais. O conflito valores versus interesses é tratado com doses cavalares de hipocrisia no reino das conveniências.
Na ausência do risco moral, políticos, empresários e intelectuais abusam descaradamente dos rótulos: há aqueles que “mamam nas tetas do Estado” e se declaram sanguíneos liberais; e há autodenominados socialistas serviçais das oligarquias políticas e econômicas de regiões marcadas pela grande exploração da classe trabalhadora.
A classificação do campo político é facilitada com a avaliação da natureza e da intensidade das funções econômicas do Estado. Por exemplo, políticas que efetivamente afetam a distribuição da riqueza envolvem uma forte intervenção do Estado por meio não somente da tributação como também da rigorosa punição dos sonegadores. Esse tipo de política enquadra-se mais precisamente no campo da esquerda.
Por outro lado, o programa de transferência de renda conhecido mundialmente como de renda mínima ou renda-cidadã (no Brasil é conhecido como Bolsa Família) tem na origem a visão liberal clássica, que é favorável ao assistencialismo funcional que objetiva reduzir a violência e o esgarçamento do tecido social provocados pela miséria e pela desigualdade. Esse tipo de política distributiva tem alcance reduzido, visto que não afeta a distribuição funcional da renda nem a distribuição de riqueza. Governos tanto de direita como de esquerda usam esse tipo de programa social como “linha de menor resistência”.
Na América Latina há diferentes experimentos de modelos de desenvolvimento, com ideologias distintas, no entanto, todos os países adotam programas de transferência de renda: Peru (Juntos), Chile (Chile Solidario), Brasil (Bolsa Família), Honduras (Programa de Asignación Familiar), Colômbia (Famílias em Acción), Venezuela (Madres del Barrio) etc. Ou seja, o governo socialista da Venezuela adota o mesmo tipo de programa assistencialista que o governo conservador da Colômbia. O alcance dos programas é determinado, em grande medida, pela conjuntura internacional, que afrouxa ou restringe as finanças públicas. Portanto, esse tipo de medida assistencialista não permite classificar o governo como sendo de direita ou de esquerda.
Nesse sentido, o caso do Brasil é curioso. A direita rotula o governo do PT como sendo de esquerda porque adota o programa Bolsa Família. A esquerda, por seu turno, avalia que esse programa, ainda que contribua para a redução da miséria no país, é uma forma de se evitar o enfrentamento do conflito de classes e a mudança efetiva da estrutura de distribuição de riqueza, renda e poder. Consequentemente, o governo do PT jamais poderia ser considerado de esquerda porque, na realidade, a função distributiva do Estado é muito limitada: programa Bolsa Família, benefícios da previdência e outras medidas que são paliativas, porém, não são estruturantes. Na perspectiva da esquerda, os governos do PT estão aplicando, na melhor das hipóteses, uma versão (truncada) do social-liberalismo (3).
Essas divergências classificatórias indicam a necessidade de uma análise rigorosa de questões, às vezes muito específicas, para que haja melhor entendimento da realidade do campo político dominante. O fundamental é não cair nas armadilhas criadas pela má-fé e pela ignorância.
Na seção 1 a abordagem simplificadora destaca o papel de duas instituições: Estado e mercado.
Esquerda, direita, centro, centro-esquerda e centro-direita valorizam distintamente o papel dessas instituições na sociedade e na economia. Para simplificar o exercício de classificação de campos políticos e ideológicos, são adotadas duas hipóteses: regime político democrático e modo de produção capitalista.
Essas hipóteses permitem a exclusão das forças políticas de extrema-esquerda e de extrema-direita na tipologia apresentada. De modo geral, essas forças negam a democracia, o capitalismo e o mercado e, de outro lado, veneram o Estado. É imediata a lembrança dos regimes stalinista e nazista.
A ideologia dos stalinistas significa múltiplas rejeições: democracia, capitalismo e mercado; por outro lado, têm veneração pelo Estado (sob domínio total do partido único). A ideologia dos nazistas (nacional-socialismo) envolve: tolerância negativa com a democracia; tolerância qualificada em relação ao mercado (sob forte controle governamental) e ao capitalismo (capitalista como mal necessário); e a veneração do Estado (Estado-nacional sob domínio do partido único).
A extrema-esquerda e extrema-direita têm em comum a negação da democracia e a veneração do Estado. Portanto, estão fora da nossa tipologia. Algumas situações concretas da atualidade, que estão “fora curva”, também não podem ser enquadradas por essa tipologia: a ditadura teocrata do Irã; a monarquia despótica da Arábia Saudita; e o comunismo totalitário da Coréia do Norte. A tipologia também não serve de base para a classificação do Capitalismo de Estado conduzido pelo Partido Comunista (partido único, regime totalitário) na China.
Entretanto, a tipologia pode ser útil para se mapear campos políticos e ideologias no Brasil. A bitola informada pela tipologia abarca casos de capitalismo atrasado, Estado patrimonialista e corrupto, sociedade invertebrada, democracia truncada e instituições frágeis; ou seja, o caso do Brasil.
2. Desestabilização macroeconômica e problemas estruturais
A herança trágica do primeiro governo Dilma inclui profunda desestabilização macroeconômica. Essa desestabilização também é ampla, visto que abarca o front interno (recessão, aumento do desemprego, desmoronamento do investimento, déficit público e pressão inflacionária não desprezível) e o front externo (déficit muito alto da conta de transações correntes e elevado e crescente passivo externo financeiro líquido). A questão técnica relevante é um ajuste simultâneo (interno e externo) com o agravante de que os desequilíbrios são todos muito fortes e alguns com tendência de piora (recessão, desemprego etc.).
A questão política relevante é que, há alguns anos, estamos atolados em uma séria crise de legitimidade do Estado (descrença na capacidade de o governo Dilma resolver os problemas de curto, médio e longo prazos). Da mesma forma que os protestos populares de 2013, os atuais protestos decorrem, em grande medida, dessa crise. A mediocridade esférica do governo Dilma resulta no fato de que ele é avaliado como ruim por capitalistas e trabalhadores, por ricos e pobres, pela direita e pela esquerda.
A questão estrutural relevante é que o país continua na armadilha do Modelo Liberal Periférico (MLP) introduzido no governo FHC e ampliado e aprofundado nos governos Lula e Dilma. Esse modelo coloca o país em uma trajetória de instabilidade e crise, cujo final é, invariavelmente, a instabilidade política e a crise institucional.
A conjuntura internacional excepcionalmente favorável funciona como “antiinflamatório”, porém, aumenta ainda mais a vulnerabilidade externa estrutural do país, como ocorreu durante o governo Lula. O MLP implica graves problemas estruturais: o deslocamento da fronteira de produção na direção do setor primário-exportador; a reprimarização do padrão de comércio exterior; a desnacionalização do aparelho produtivo; o atraso do sistema nacional de inovações; e o agravamento da dominação financeira.
Políticas macroeconômicas oportunistas (apreciação cambial), irresponsáveis (contenção dos preços de serviços públicos, desoneração fiscal de setores como a automobilística) e, até mesmo, criminosas (expansão exponencial do crédito doméstico e o sobreendividamento a taxas de juros absurdas) dão algum fôlego para os governantes e, inclusive, são determinantes nos ciclos político-eleitorais.
Entretanto, tais políticas provocam a acumulação de desequilíbrios que geram pressão inflacionária, deterioram as contas públicas e as contas externas, e reduzem a capacidade de expansão dos investimentos por um longo período (como consequência, por exemplo, o sobre-endividamento do Estado, das famílias e das empresas).
A situação se agrava em decorrência das políticas de gastos públicos que envolvem péssima alocação de recursos, corrupção e vazamento de renda para o exterior. Esse é o caso dos gastos nos projetos da Copa do Mundo e das Olimpíadas, das obras de infraestrutura com duvidosa relação benefício-custo, e da megalomania, irresponsabilidade, incompetência e corrupção nos gastos do setor público e das estatais (caso conspícuo: pré-sal e Petrobrás).
Como se não bastassem as graves restrições estruturais, o governo Dilma caracteriza-se, desde o início em 2011, por um déficit de governança. Mesmo quando há boas ideias e projetos, o governo mostra-se incompetente na execução. O déficit de governança evidencia-se claramente na atual política de ajuste macroeconômico. Poucos meses depois de definida a meta de superávit fiscal, o governo teve que redefini-la. O “melô da meta” divulgado na internet tem grande simbolismo (segundo Dilma, ela não fixa a meta, depois que ela atinge a meta, ela duplica a meta!).
Além do déficit de governança há a nulidade de liderança de Dilma. Na realidade, Dilma é um “figurante supérfluo” dentro do Estado brasileiro. O figurante supérfluo tem desempenho desastroso, conduta grotesca e deficiência cognitiva. Não há como recuperar a credibilidade do Estado brasileiro com Dilma na presidência.
A avaliação é que estaremos ainda piores no longo prazo se ficarmos focados na estabilização assentada em políticas fiscais e monetárias restritivas. Essas políticas tendem a agravar as restrições estruturais que influenciam a estabilização macroeconômica no curto prazo, a capacidade de recuperação no médio prazo e o desenvolvimento no longo prazo.
Os desequilíbrios macroeconômicos brasileiros, após a eclosão da crise global em 2008, resultam tanto dos erros de política dos governos Lula e Dilma como da vulnerabilidade externa estrutural do país, que se agravou durante esses governos. A situação de instabilidade e crise do Brasil deve se estender por muito tempo em função dos erros e das vulnerabilidades.
Os principais problemas estruturais do país, no âmbito do Modelo Liberal Periférico e das relações econômicas internacionais do país, são:
1) deslocamento da fronteira de produção na direção do setor primário-exportador, principalmente a partir do governo Lula;
2) desnacionalização da economia com as privatizações, as concessões e a penetração do investimento externo;
3) atraso do sistema nacional de inovações;
4) elevado passivo externo financeiro.
O fato de grande relevância é que o setor dominante (setor primário-exportador) “suga” recursos (capital, mão-de-obra qualificada e tecnologia) de outros setores mais dinâmicos. Ademais, há o agravante da crescente dependência da economia brasileira em relação à demanda por importações de commodities pela China. Há também o crescente volume de investimentos chineses na economia brasileira, assim como a maior oferta de financiamento externo por parte de bancos chineses.
O atrelamento do vagão brasileiro à sublocomotiva chinesa agrava a vulnerabilidade externa estrutural do Brasil e compromete a capacidade do país de se proteger da instabilidade da economia mundial e das pressões bilaterais. Para ilustrar, o recente acordo bilateral Brasil-China é patético: chineses oferecem financiamento para que compremos seus bens e serviços e nos ensinam a jogar peteca; por outro lado, o Brasil exportará minério de ferro, soja e petróleo e facilitará privatizações na logística, o que interessa às empresas chinesas importadoras de commodities do país.
O Brasil redescobre, em pleno século 21, sua vocação para colônia. Portanto, o país consolida seu papel de figurante no cenário mundial.
Certamente, as críticas acima são mais condizentes com a perspectiva da esquerda (abordagem estruturalista, de longo prazo, associada aos conflitos de classes e setores) do que com a perspectiva da direita, em particular, a visão liberal que enfatiza o equilíbrio fiscal no curto prazo.
3. A “não saída” econômica
Os problemas mais graves são estruturais e afetam as esferas comercial, produtiva, tecnológica e financeira das relações econômicas internacionais do país. As tendências nos últimos anos têm sido no sentido do agravamento dessas restrições, que aumentam a vulnerabilidade externa estrutural do país e, portanto, reduzem sua capacidade de resistência a fatores desestabilizadores externos.
Na situação de manutenção de falhas estruturais, é lamentável o debate brasileiro sobre estabilização macroeconômica (ajuste simultâneo interno e externo). Mais especificamente, é débil o debate que envolve, de um lado, os meninos afoitos da ortodoxia (despachantes e candidatos a economistas-chefe dos bancos), que defendem políticas fiscal e monetária restritivas e advogam reforminhas (por exemplo, na previdência) que aumentam as oportunidades de ganhos dos bancos, porém, não afetam questões estruturais. De outro, há as raparigas em flor do keynesianismo, que defendem políticas macroeconômicas expansionistas e fazem o discurso vazio do aumento de produtividade e dos gastos em educação, sem questionar a alocação de recursos e o viés da fronteira de produção.
O debate torna-se ainda mais equivocado quando a esse grupo se junta turma que, desde a eclosão da crise, argumenta que as reservas internacionais garantem a blindagem do país frente às pressões internacionais. Essa turma desconhece três fatos evidentes:
1) as reservas foram acumuladas, não como resultado do superávit da conta de transações correntes, e sim como resultado do atrativo de juros muito altos;
2) as reservas internacionais brasileiras têm custos fiscal e cambial muito elevados;
3) reservas implicam blindagem de papel crepom frente às múltiplas fontes de vulnerabilidade externa estrutural do país;
4) descontando as reservas internacionais, o passivo externo financeiro líquido supera US$ 650 bilhões.
Que diferença substantiva há entre um superávit primário de 0,5% ou 2%? Que diferença fundamental há entre uma taxa Selic de 10% ou 15%? Abusando da metáfora: para quem está com metástase, que diferença faz a dose diária de 500 mg ou de 1.000 mg de paracetamol?
Muito mais relevante do que a dosimetria da estabilização é a natureza e a qualidade das políticas macroeconômicas, bem como o foco do aumento de produtividade e a alocação de recursos fora do setor primário-exportador. Qualquer macroeconomista bem adestrado, e com boa formação técnica na questão do desenvolvimento – isto é, na dinâmica curto prazo-longo prazo –, pode perguntar: quais são o sentido e natureza do equilíbrio simultâneo (externo e interno) quando a economia está na armadilha do modelo de crescimento empobrecedor?
Atualmente, o ajuste fiscal tipo “corte e costura” é errático e ineficaz. Esse ajuste tem custo elevado e está baseado no recorte de gastos com critérios pouco claros e marcado pelo varejo clientelista e corrupto do balcão da pequena política. Há, ainda, o agravante da aleatoriedade e o oportunismo na geração de receita tributária. Aumentar impostos indiretos sobre a atividade dos bancos implica imediatamente a transferência desse ônus fiscal para a população em razão das práticas de abuso do poder econômico por parte dos bancos.
Na perspectiva da esquerda, o ajuste via tributação implica progressividade sobre os rendimentos do trabalho e maior incidência de impostos sobre os ganhos do capital, principalmente, dos setores dominantes (bancos, agronegócio, mineração e empreiteiras). Por que não se criar um tributo sobre a exportação de commodities?
No que se refere ao ajuste monetário, cabe mencionar que um número cada vez menor de países usa o regime de meta de inflação. Segundo o FMI, atualmente menos de 18% dos países-membros do Fundo usam esse tipo de regime. No Brasil, o regime cambial é ambíguo e a política cambial também é errática e ineficaz.
Há momentos em que a política cambial está focada no controle da inflação; há momentos em que ela está direcionada para o ajuste das contas externas; e há momentos em que o governo perde total controle sobre a trajetória dessa variável-chave da gestão macroeconômica. A situação brasileira é ainda mais grave quando há inconsistência entre as políticas macroeconômicas, em particular, entre a política de crédito e a política monetária.
Certamente, a discussão acima está distante da perspectiva da direita liberal e, por outro lado, é compatível com a abordagem e as recomendações de diretrizes de estratégias e de políticas da esquerda.
4. A saída política: impedimento de Dilma
A atual onda de protestos populares é a única fonte de otimismo nos últimos meses. É um sopro de esperança.
Além das vulnerabilidades e fragilidades estruturais próprias do Modelo Liberal Periférico, o Brasil tem se viciado em errar, errar de novo e errar pior. Falhas de mercado, falhas de governo e falhas estruturais se multiplicam. Agrega-se a isso o déficit de lideranças, o invertebramento social e a degradação institucional. Sem perspectivas de mudanças, a avaliação é que o Brasil se encontra na situação de que “nada é tão ruim que não possa piorar”.
A crise de legitimidade do Estado é muito séria. Conciliação e reforminhas não resolverão o problema. Precisaremos de décadas para superar a herança maldita de FHC, a herança desastrosa de Lula e a herança tragicômica de Dilma. Com esperança negativa, só resta ao povo brasileiro o mecanismo desafio-resposta. Cabe partir, imediatamente, para o processo de ruptura com essas heranças. A onda de protestos populares é uma das ferramentas nessa direção.
A ruptura exige, para começar:
1) a reversão do viés favorável ao setor primário-exportador da matriz de produção;
2) a rejeição do secular vício brasileiro de conciliação e reforminhas, baseado na covardia atávica que, por seu turno, gera o argumento de que a “correlação de forças” não é favorável à mudança estrutural.
O viés e o vício levam ao “navegar é preciso”, ao sabor dos ventos (das circunstâncias, sem estratégia). O navegar sem rumo leva na direção de uma estrutura de produção cada vez mais retrógrada e vulnerável e na direção de uma sociedade cada vez mais corrupta, violenta e bárbara.
A ruptura exige também o defenestramento dos incompetentes, a prisão dos corruptos e corruptores, o afastamento dos covardes e a desmoralização da canalhocracia de direita, de centro e de esquerda, no setor público e no setor privado.
Em setembro do ano passado consultei conhecidos e amigos no campo de esquerda (socialistas democráticos) sobre o voto para a presidência no segundo turno. O resultado foi empate: metade votou em Dilma e metade votou nulo. Eu defendi o voto nulo.
A avaliação pelo voto em Dilma baseou-se em alguns argumentos importantes (mas não necessariamente verdadeiros), inclusive, na ideia de que “cabe votar no menos pior”. Por outro lado, o voto nulo ancorou-se, principalmente, no argumento de que tanto Lula quanto Dilma fizeram governos que, na sua essência, não foram muito diferentes dos governos que tucanos e similares fariam (o imperativo do Modelo Liberal Periférico). O bloco no poder é o mesmo, o modelo é o mesmo e as políticas são essencialmente as mesmas.
Havia outro argumento: a nulidade da liderança de Dilma e a mediocridade esférica do primeiro governo e, certamente, do segundo – com a acumulação dos problemas e o agravamento das restrições. A previsão (e a aposta) era que o fenômeno da eclosão da crise de legitimidade do Estado de 2013 se repetiria. Questão de tempo!
Os tucanos ou qualquer outro grupo político não fariam mudanças no modelo e, muito provavelmente, haveria aprofundamento e alargamento do MLP. A diferença seria a contenção da crise de legitimidade do Estado. Os protestos populares teriam uma agenda mais focada nos problemas econômicos (desemprego, perda de renda, fragilização da seguridade social etc.).
Se for para manter o MLP, o fato é que os tucanos têm mais credibilidade, condições objetivas e subjetivas, e talvez competência (malgrè Aécio e et caterva), para fazer as políticas restritivas de ajuste e o aprofundamento do MLP do que a coalizão que sustenta o governo Dilma.
Sou a favor do impedimento da Dilma. Não importa quem ou que grupos políticos assumirão. O fundamental é a contínua e crescente pressão das ruas. Os grupos políticos estão todos contaminados e a institucionalidade apodrecida. Quem sabe, seguindo o padrão argentino, não logremos defenestrar Dilma e, em seguida, os Temer, Cunha, Renan e outros tipos da mesma espécie? Ingenuidade? Talvez sim, talvez não.
Naturalmente, há risco de aparecerem “salsicheiros”, demagogos, farsantes e aventureiros. Mas, pelo menos, cria-se a oportunidade para o aprofundamento da democracia, o fortalecimento das instituições, reinvertebramento da sociedade e a reaglutinação das forças de esquerda. Vale destacar que a reconstrução da esquerda brasileira exigirá décadas. O impedimento de Dilma é uma oportunidade ímpar para se começar mais rapidamente esse processo.
A recomendação de se opor ao impedimento em troca do compromisso de Dilma, da base aliada e dos setores dominantes de promoverem mudanças estruturais é, na melhor das hipóteses, ingênua e incoerente. Dilma é um figurante supérfluo (desempenho desastroso e conduta grotesca, e a presidente tem o agravante da deficiência cognitiva).
Sua permanência implica caminho errático e instável e, consequentemente, isso permite ao bloco de poder consolidar e promover a sua agenda conservadora (privatização, previdência privada, redução dos direitos trabalhistas, desnacionalização etc.). Isso já está acontecendo, tendo em vista o vácuo de poder. No “barata voa”, os setores dominantes consolidam e ganham posições e os oportunistas tiram suas “casquinhas” (inclusive, enriquecimento pessoal)!
5. Derrotar o Lulismo é preciso
A herança desastrosa de Lula é pior do que a herança maldita de FHC ou a herança tragicômica de Dilma. O Lulismo significa:
1) a traição e o aborto de um projeto de transformação que foi gestado durante mais de duas décadas por distintas forças da esquerda brasileira;
2) o transformismo e o apodrecimento do Partido dos Trabalhadores, que foi construído com diretrizes socialistas e democráticas – transformismo sem retorno que gerou desmoralização e apodrecimento;
3) a desmoralização, o enfraquecimento e a pulverização da esquerda brasileira − uma notável parte se submeteu ao oportunismo, à venalidade, à corrupção e à covardia, e aqui não se trata somente dos atuais condenados no Mensalão, no Petrolão e Operação Lava Jato (atuais e futuros condenados), que são pontas de iceberg;
4) a covardia com a submissão de parte da esquerda aos setores dominantes e às oligarquias políticas sob o argumento hipócrita da correlação de forças desfavorável;
5) a consolidação do poder das oligarquias econômicas e políticas retrógradas com o pretexto de se manter a governabilidade;
6) o aumento do poder econômico e político dos setores dominantes − bancos, agronegócio, mineração e empreiteiras, que são grandes financiadores de campanhas eleitorais e fontes de enriquecimento pessoal;
7) o invertebramento da sociedade civil − cooptação, fragilização e a corrupção de organizações representativas da sociedade civil como a UNE, CUT, MST etc., que levou à desmoralização de algumas de suas lideranças e das próprias organizações;
8) a ilusão da inclusão social − pobres travestidos de nova classe média com TVs de 2 metros de comprimento que morrem nos corredores dos hospitais, são humilhados pelas empresas prestadoras de serviços públicos, são vítimas da violência crescente e sofrem a humilhação de terem concluído o curso médio deficiente ou o curso superior igualmente deficiente e fazem o trabalho de semianalfabetos; pobres que caíram no “canto de sereia” criminoso do crédito fácil, que compram carros em 72 meses para passar 5 horas por dia no trânsito sob ameaça permanente de assalto e homicídio etc.;
9) o aumento da vulnerabilidade externa estrutural do Brasil nas esferas comercial, produtiva, tecnológica, monetária e financeira;
10) o aprofundamento do Modelo Liberal Periférico − desindustrialização, desnacionalização e concentração de capital (ver os livros A Vulnerabilidade Econômica do Brasil (M. Carcanholo), A Economia Política do Governo Lula (L. Filgueiras) e Desenvolvimento às Avessas (R. Gonçalves);
11) a crescente dominação financeira − o patrimônio líquido dos 3 maiores bancos privados praticamente duplica em relação ao patrimônio líquido das 500 maiores empresas do país durante os governos do PT; dominação financeira que faz com que despachantes dos grandes bancos sejam nomeados para altos escalões da gestão econômica;
12) a reversão do Brasil ao status de colônia com a dominação do setor primário-exportador e o atrelamento da economia brasileira à economia chinesa − o Brasil torna-se um vagão de terceira classe na economia mundial, com perda de poder econômico;
13) a degradação das instituições − universidades públicas inchadas, com condições precárias, salas de aula em contêineres, etc.; balcanização do aparelho de Estado; aporcalhamento do Legislativo;
14) o alargamento e o aprofundamento de um sistema político patrimonialista, clientelista, nepotista e corrupto − a origem do Mensalão, Petrolão, Lava Jato etc.;
15) a fragilização, talvez sem retorno, da maior empresa do país (Petrobrás) e das grandes empreiteiras nacionais que protagonizaram casos de má governança pública, má governança privada e corrupção em alta escala ̶ empresas tão valorizadas pelos nacionalistas de direita e de esquerda e que correm risco crescente de privatização (Petrobrás), desnacionalização (Petrobrás e empreiteiras) e, até mesmo, quebra; há indivíduos na esquerda e na direita com o pesadelo de que a Petrobrás foi comprada pelos chineses por US$ 1,00 após megadesvalorizações cambiais, megavazamentos de óleo nas costas brasileiras, retorno negativo dos poços do pré-sal etc.;
16) a seleção adversa que promoveu o oportunismo (neopetismo) e gerou um figurante supérfluo (Dilma), que logo no início do primeiro mandato já evidencia a herança tragicômica, a crise de legitimidade do Estado brasileiro e o risco crescente de crise institucional.
Certamente, os marcadores do Lulismo agridem mais os valores e interesses da esquerda do que os valores e os interesses da direita.
6. Síntese
A conclusão central da seção 1 é que tipologias de campos políticos e de ideologias têm que ser flexíveis. Há um infinito número de tons de cinza, visto que há infinitas combinações de branco e preto. Somente os “cinzentos cegos” rejeitam a existência do branco e do preto. Os campos da política e da ideologia são cinzentos visto que há infinitas combinações de interesses (política) e de valores (ideologia). Há combinações mais próximas do tipo ideal de esquerda ou mais próximas do tipo ideal de direita. Somente os “cinzentos cegos” rejeitam a dicotomia clássica esquerda versus direita. A dicotomia clássica “esquerda versus direita” é parte da realidade no século 21.
Essa ênfase na dicotomia clássica é importante e necessária porque ela permite a identificação clara da abordagem analítica dominante que é adotada nas seções seguintes, que examinam a crise brasileira. A abordagem abarca: método da Economia Política (interação entre economia e política); ênfase nas questões estruturais; e dinâmica dos conflitos de interesses (classes, grupos, setores, etc.).
Mais especificamente, as análises, as críticas e as propostas discutidas nas seções 2-5 são, de modo geral, próprias ao campo político da esquerda. Ou seja, as questões econômicas, políticas e institucionais são abordadas a partir de uma perspectiva de esquerda. Isso não exclui, naturalmente, o fato de que algumas questões também são de interesse e agridem os valores no campo da direita.
Na seção 2, o argumento central é que a discussão sobre a profunda e ampla desestabilização macroeconômica no Brasil é medíocre. A principal razão é que ela negligencia os determinantes estruturais da crise brasileira, o papel dos setores dominantes e os conflitos de interesses. O Modelo Liberal Periférico (MLP), introduzido no governo FHC e aprofundado e ampliado nos governos Lula e Dilma, é determinante da vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira e das suas fragilidades. Certamente, há o agravante dos erros de política econômica.
A seção 3 trata da hipótese de que não há saída econômica possível para o país se o foco continuar sendo a política de ajuste macroeconômico de curto prazo. Esse ajuste está centrado nas políticas fiscal e monetária restritivas. Além das falhas de governo e de mercado, o Brasil sofre de falhas estruturais. O MLP condena o Brasil a uma trajetória de instabilidade e crise no curto e no médio prazos e ao desenvolvimento às avessas no longo prazo. O estrutural condiciona o conjuntural. No âmbito da economia, é preciso mudar o modelo, em geral, e o viés favorável ao setor primário-exportador, em particular. Não se trata de uma questão abstrata; muito pelo contrário, é o imperativo de mudanças de estratégia, políticas, estruturas de produção e institucionalidade.
A seção 4 trata da saída política da crise no curto e médio prazos. Essa saída requer o impedimento da presidenta Dilma − figurante supérfluo (desempenho medíocre, conduta grotesca e deficiência cognitiva). Esse figurante supérfluo agrava a crise de legitimidade do estado e, portanto, tem grande responsabilidade pela crise sistêmica.
Na seção 5 argumenta-se que o Lulismo é uma grave restrição para a solução da crise sistêmica brasileira. O Lulismo é uma das causas principais do processo de desenvolvimento às avessas. O Lulismo impede a reaglutinação das forças progressistas no país e, ademais, sua destruição é necessária para a reconstrução da esquerda brasileira.
A solução para a crise sistêmica brasileira requer:
1) impedimento de Dilma − figurante supérfluo;
2) derrota e isolamento do PT − desmoralização, apodrecimento e antifuncionalidade para a esquerda brasileira;
3) combate frontal à corrupção − condição para a desestabilização do sistema patrimonialista e a redução do poder das oligarquias políticas e dos setores dominantes (bancos, empreiteiras, agronegócio e mineração);
4) investigação, indiciamento, julgamento, condenação e prisão de Lula − condição para a reconstrução das forças políticas de esquerda.
Esses são os temas prioritários na agenda dos protestos populares. A realidade gerou a luz! No que se refere à realidade e as soluções para a crise sistêmica brasileira, o fato é que parte do povo tem uma compreensão mais clara e precisa do que aquela expressa por muitos políticos e analistas, inclusive, da esquerda.
É má-fé o uso pejorativo de adjetivos como “udenista” e “moralista”, tendo em vista o propósito de desqualificar o protesto popular focado no combate à corrupção. Há um fato, um único fato: corrupção é ilícito penal. Na história recente brasileira só há agravantes. Não há criminosos de esquerda nem de direita. Há criminosos que devem ser punidos!
O apoio das forças políticas de centro e de direita para a agenda popular não é razão para se tentar desqualificar ou rejeitar os protestos populares, pacíficos e democráticos e, menos ainda, a própria agenda. O argumento de que essa agenda é apoiada pelos conservadores ou pela direita é, na melhor das hipóteses, um erro analítico que pode ser um erro histórico. A esquerda deve participar dos protestos e apoiar a agenda.
O ponto central é que a esquerda tem muito mais razões para apoiar a agenda popular do que a direita! O combate às heranças maldita de FHC, desastrosa de Lula e tragicômica de Dilma deixa um único sopro de esperança: quem sabe, em 10 ou 20 anos, as forças progressistas ̶̶ e, principalmente, a esquerda brasileira ̶̶ consigam se reconstruir e reaglutinar.
Dlma é figurante supérfluo enquanto Lula é protagonista no drama do desenvolvimento às avessas do Brasil. Lula é um personagem dramático − descendente do Salsicheiro de Aristófanes, do Falstaff de Shakespeare, do Tartufo de Molière e do Pai Ubu de Jarry. No cenário mambembe da política brasileira, o que temos é um drama grotesco!
No Brasil a esquerda precisará de décadas para se reconstruir. O impedimento de Dilma e a punição de Lula são condições necessárias para a reconstrução da esquerda brasileira. Precisamos começar imediatamente esse processo, visto que a degradação do Brasil é econômica, social, política, ambiental, institucional e ética!
Notas:
1) Há alguns artigos no campo progressista e da esquerda que são críticos (contundentes ou adamados) em relação ao governo, porém, contrários ao impedimento de Dilma. Ver, por exemplo, as ótimas análises de Luiz Filgueiras, Notas para a análise de conjuntura (18/08/2015) e Eduardo C. Pinto, Dilma: de “coração valente” a “presidenta acuada” (16/08/2015). Por outro lado, há artigos analiticamente muito frágeis e politicamente contraditórios como, por exemplo, Samuel P. Guimarães, A ofensiva conservadora e as crises (17/8/2015).
2) Para um resumo interessante e atualizado da dicotomia clássica “esquerda versus direita”, ver Juan J. Sebreli, El Malestar de La Política. Buenos Aires: Sudamericana, 2012, p. 337-355.
3) É curioso também que a direita critica os governos do PT por adotarem o modelo nacional-desenvolvimentista. Na realidade, tanto os governos Lula como os governos Dilma aplicam o Nacional-Desenvolvimentismo às Avessas, conhecido como modelo NADA. O NADA é, precisamente, a troca de sinais do modelo desenvolvimentista usado nos países desenvolvidos e nos países latino-americanos (cópia infiel). Ver, R. Gonçalves, Desenvolvimento às Avessas (Rio de Janeiro: LTC, 2013).
Reinaldo Gonçalves é professor titular da UFRJ e autor do livro Desenvolvimento às Avessas (Rio de Janeiro: LTC, 2013). Durante quase duas décadas foi membro do PT. O autor sente, cada vez mais, arrependimento e vergonha dessa filiação. A desfiliação ocorreu em fevereiro de 2005.
Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
Diante do encerramento de um ano conturbado, sob o signo de uma infinidade de crises, apressa-se uma análise geral de todo o complexo quadro político e a reflexão de suas causas, cujas consequências se fazem presentes a olhos vistos. Para isso, publicamos a entrevista feita pelo jornalista Alexandre Haubrich com Plínio de Arruda Sampaio Júnior, economista e professor da Unicamp.
Além de analisar a conjuntura política desde ano de 2015, Plínio discutiu a atual crise da esquerda, decorrente da falência do pacto lulista, e propõe uma união em torno do “partido das lutas reais”, uma ideia que engloba diversos setores políticos e sociais.
“O melhorismo de Lula passou muito longe de qualquer proposta socialdemocrata. Lula não reformou nada. Ao contrário. Seu governo aprofundou o subdesenvolvimento. O PT representa a ‘esquerda da ordem’ – a ordem comprometida com a reprodução do capitalismo dependente. O custo da crise será jogado nas costas dos trabalhadores. Sem grandes transformações sociais, não há como evitar o avanço da barbárie. O fundamental é criar força política para que a economia e a sociedade sejam organizadas em função das necessidades efetivas do conjunto da população”.
Sampaio Júnior acredita em um processo de “Revolução Brasileira” que requer, como primeiro passo, a realização de duas tarefas fundamentais: a revolução democrática e a revolução nacional. “A forma da revolução também já foi esboçada nas Jornadas de Junho de 2013. A força propulsora da transformação social é a revolta avassaladora do povo contra seus opressores. Isso já existe de maneira difusa e fragmentada. Falta unificar os sujeitos dispersos em torno de um programa revolucionário. Falta criar instrumentos políticos que permitam transformar a energia difusa das massas inconformadas em força política condensada. Falta organizar o partido das lutas reais”.
Leia abaixo, na íntegra, a entrevista que perpassa por esses e outros temas mais.
Quais as diferenças mais importantes entre esse início de segundo governo Dilma e os três primeiros governos do PT?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: O segundo governo Dilma sofre as consequências das graves contradições acumuladas nos três governos anteriores. Os problemas foram exacerbados pela metástase da crise econômica mundial e pela absoluta falta de liderança e criatividade da presidente. A exaustão do ciclo de crescimento impulsionado pela bolha especulativa internacional destruiu as bases do chamado neodesenvolvimentismo, deixando como legado uma crise econômica de grande envergadura e difícil solução.
O fim da “paz social”, cujo marco pode ser associado às revoltas urbanas que paralisaram o país em 2013, solapou o sustentáculo do chamado lulismo, escancarando uma monumental crise política institucional, cuja essência reside na falência espetacular do sistema de representação que sustentava a Nova República. As falsas soluções do modo petista de governar estouraram nas mãos de Dilma, provando que é impossível resolver os problemas fundamentais da sociedade sem enfrentar suas causas estruturais – a segregação social e a dependência externa. A fantasia construída por Lula desmanchou nas mãos de Dilma.
O segundo governo Dilma te surpreende?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: Para quem observa a realidade de uma perspectiva crítica, era bastante previsível que, para a classe trabalhadora, o segundo governo Dilma seria ainda mais desastroso do que o primeiro. A campanha de 2014 foi uma disputa fechada entre candidatos comprometidos com o status quo, em que cada um procurava se qualificar diante da burguesia nacional e internacional como o mais apto para fazer o “ajuste” da economia e da sociedade brasileira às exigências do capital em tempos de crise econômica mundial.
Quando disse que não faria “ajuste” contra os trabalhadores nem que a vaca tossisse, a candidata Dilma camuflava seus compromissos com os donos do poder. Mentia consciente e deslavadamente. Seu programa eleitoral se enquadrava integralmente na agenda liberal. As grandes empreiteiras, mineradoras, empresas de agronegócios e instituições financeiras sabiam disso e não pouparam recursos para financiar a sua eleição. Também não lhe faltou apoio da comunidade internacional (eufemismo para designar imperialismo). Era, portanto, previsível que a segunda Dilma estaria comprometida até o pescoço com o “ajuste” neoliberal*.
Reconheço, no entanto, que não esperava que a rendição à pauta reacionária fosse tão rápida, descarada e incondicional. A característica que mais surpreende do segundo governo de Dilma é sua absoluta inépcia para enfrentar os problemas do povo, patente na gigantesca covardia da presidente para se contrapor aos poderosos e na sua total falta de sensibilidade para com o sofrimento dos trabalhadores. O marqueteiro que inventou a marca de fantasia “coração valente” certamente queria ocultar a verdadeira personalidade política de Dilma. É o metier deles.
Qual o momento de inflexão que pode ter levado à ofensiva conservadora que temos visto na sociedade brasileira?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: A guinada conservadora foi duplamente condicionada. Por um lado, a sociedade brasileira recebeu os ventos conservadores do “regime de austeridade” que se impôs sobre o mundo capitalista a partir de 2010. A “solução americana” para a crise econômica supõe uma brutal ofensiva sobre o trabalho com os retrocessos democráticos correspondentes.
O rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores requer um padrão de dominação mais duro e autoritário. Não por acaso, as agências internacionais de risco incluem em sua análise a presença ou não de leis antiterroristas que criminalizam a luta social. Por outro lado, o giro conservador responde à necessidade de conter os ventos de mudanças provocados pelas revoltas urbanas de 2013.
A polarização da luta de classes, provocada pela exaustão do ciclo de crescimento e pela falência do lulismo, fica patente quando se observa o conteúdo da luta de classes no último período. Para os de baixo, o “melhorismo” dos anos Lula foi pouco. A juventude foi às ruas para exigir políticas sociais e reformas democráticas. Para os de cima, o “melhorismo” petista foi muito. Sentindo que seus privilégios seculares podem ser ameaçados, a plutocracia brasileira range os dentes a afia as unhas.
A classe dominante brasileira sabe que o ajuste ortodoxo implica grandes sacrifícios para a população e vê com muito medo a emergência do povo na história. Juventude lutando pela mobilidade urbana, estudantes ocupando escolas para exigir ensino público, trabalhadores fazendo greve por salários e direitos, índios lutando pela sua terra e seus rios, protestos contra falta d’água, sem tetos ocupando terrenos, etc., tudo isso é altamente subversivo e aterroriza as classes dominantes.
Quais as raízes das crises econômica e política? Alguma veio antes da outra?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: As crises econômicas e políticas condicionam-se reciprocamente, mas possuem dinâmicas próprias que não podem ser reduzidas uma à outra. A crise econômica é determinada em última instância pela necessidade de “ajustar” a economia brasileira à posição ainda mais subalterna na divisão internacional do trabalho. A crise política, evidente na falência do sistema de representação, é determinada pelo fim da paz social.
A primeira fica patente no fiasco do chamado neodesenvolvimentismo. É nada mais e nada menos do que uma nova rodada de modernização dos padrões de consumo que aprofundou o caráter subdesenvolvido e dependente da economia brasileira. A segunda é caracterizada pela exaustão do melhorismo lulista, cuja essência consistia em aproveitar a pequena folga gerada pelo crescimento econômico para reforçar as políticas assistencialistas e mitigar (não reverter) o processo de concentração de renda característico do modelo econômico brasileiro.
A crise política extrapola o problema da crise insolúvel do governo Dilma. É o regime político instaurado na Nova República que já não agrada nem aos de baixo, que exigem que as promessas da Constituição Cidadã sejam cumpridas, nem aos de cima, que precisam erradicar o que resta de conteúdo democrático da Carta de 1988 para terem condições de aprofundar a reversão neocolonial exigida pelo ajuste liberal.
Enfim, o fim do ciclo petista precipitou o debacle do pacto de poder civil que institucionalizou a transição lenta, segura e gradual iniciada pela ditadura militar. A recomposição do padrão de dominação é uma condição necessária, ainda que insuficiente, para a solução da crise econômica, a qual depende em última instância da redefinição do papel do país na nova divisão internacional do trabalho.
O Brasil entrou numa era de grande turbulência econômica, política e social. Não há solução rápida e indolor para os efeitos altamente antissociais, antinacionais e antidemocráticos da crise capitalista sobre a sociedade brasileira.
Que relações são possíveis estabelecer entre o avanço conservador na política e as “soluções” que o governo tem encontrado para a crise econômica?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: A relação é direta. A solução da crise capitalista requer um rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores, ou seja, uma ofensiva sobre os salários e os direitos sociais. Em última instância, é a sobrevivência das cláusulas progressistas da Constituição de 1988 que está em questão. A gravidade do ataque pode ser dimensionada quando se leva em consideração as tendências que regem a reorganização do sistema capitalista mundial. Ao contrário do que se propalou no auge do delírio neodesenvolvimentista, o Brasil não está “emergindo” como uma potência mundial. Isso foi um blábláblá.
Na realidade, a economia brasileira está sendo rebaixada para uma posição ainda mais subalterna na nova divisão internacional do trabalho. A rapidez e profundidade do processo de desindustrialização evidenciam a precariedade de nossa situação. A incúria, o descaso, a irresponsabilidade vistas em Mariana – uma tragédia anunciada – mostram do que a nossa burguesia é capaz – e o quanto ela é incapaz de resolver os problemas nacionais.
O que vem pela frente pode ser imaginado quando se leva em consideração o salário e os direitos que correspondem a quem trabalha numa “feitoria” moderna.
Qual a melhor forma de os trabalhadores e a esquerda se organizarem para enfrentar tanto o avanço conservador em geral quanto o ajuste fiscal?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: A luta de classes se polariza entre dois partidos: o partido do “ajuste” e o partido “contra o ajuste” – o polo conservador e o polo da transformação democrática. As formas mais eficazes de barrar a ofensiva do capital serão definidas concretamente no processo da própria luta. Algumas diretrizes gerais podem, contudo, ajudar na tarefa de reorganização da classe trabalhadora.
Para vencer o partido do “ajuste” é preciso, em primeiro lugar, sair da arapuca que reduz a política a escolhas binárias, deixando a sociedade brasileira entre a cruz e a caldeirinha – a opção do ajuste duro e franco e a opção do ajuste um pouco menos duro e dissimulado. Enquanto o horizonte político estiver monopolizado pelas alternativas da ordem liberal, o raio de manobra dos trabalhadores é mínimo. Para sair desse antro estreito, é preciso superar qualquer esperança de uma vida melhor sem romper com os parâmetros da ordem global.
Isso coloca a necessidade de radicalizar a crítica e criar instrumentos políticos necessários para a mudança. É o processo de luta e aprendizado que faz avançar a constituição de um sujeito histórico capaz de abrir novos horizontes para a sociedade. Em termos práticos, os trabalhadores precisam compreender que para derrotar o ajuste, precisam derrotar a política econômica; para derrotar a política econômica, precisam derrotar o modelo econômico; e para derrotar o modelo econômico, precisam mudar as bases do Estado brasileiro e criar alternativas econômicas concretas. Não é uma tarefa fácil, mas é a tarefa histórica que se coloca.
O que representa o aceite do pedido de abertura do processo de impeachment?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: O princípio de revogação de mandato é em tese muito positivo. Quando mobilizado pela população para depor governantes que usurpam a vontade popular, é um instrumento que fortalece a vida democrática. Quando mobilizado como arma de chantagem política ou pura e simples conspiração, é um recurso que desmoraliza a política e acelera a decomposição do sistema de representação.
O processo de impeachment, deflagrado por Eduardo Cunha e apoiado por Michel Temer e Aécio Neves, enquadra-se na segunda alternativa. A luta fratricida para ver quem fica no Planalto será um show de horror e deve aprofundar a desmoralização do Congresso Nacional. Qualquer paralelo com o processo que apeou Collor do governo não tem cabimento. A saída de Collor abriu caminho para a consolidação do pacto de poder civil que, aos trancos e barrancos, durou duas décadas, pondo um ponto final na longa transição da ditadura militar. Foi um arranjo político que se revelou altamente funcional para dar sustentabilidade à liberalização da economia brasileira. A situação atual é completamente diferente. A sociedade brasileira não está no momento final de uma longa crise econômica e política, mas no seu início. Trocar seis por meia dúzia não resolverá nada.
Para os trabalhadores, a pior coisa que pode acontecer é ser mobilizado como massa de manobra das facções em luta. Qualquer que seja o desfecho do processo de impeachment em curso, não mudará nada de substantivo na vida do povo. O partido do ajuste continuará no poder. O processo será um circo que desviará a atenção da população do principal: barrar o ajuste neoliberal. Se a presidente for deposta, vai acontecer apenas um roque entre quem está no governo e quem está na oposição.
Não é improvável que, durante o processo de impeachment, as duas alas do partido do ajuste fechem um acordo de cavalheiros em torno das medidas regressivas e repressivas exigidas pelo ajuste. O impeachment não resolve nenhum dos problemas fundamentais responsáveis pela crise econômica e política. Se Dilma for deposta, em pouco tempo, o movimento da crise moerá o novo governo, qualquer que ele seja.
Que papel tem desempenhado o PMDB em meio à crise política?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: O PMDB é o partido dos grandes negócios. Sua presença no aparelho de Estado é uma questão de vida ou morte. Ele não possui ideologia alguma. É composto por um batalhão de operadores que fazem a intermediação entre os negócios do Estado e os negócios privados. O partido é um caleidoscópio. Muda de posição conforme a situação. Fará o que for necessário para não perder sua participação nas tenebrosas transações que surgem no interior do Estado.
Na luta entre a esquerda da ordem – polarizada em torno do PT – e a direita da ordem – polarizada em torno do PSDB – ele atua como fiel da balança. No momento em que os caciques do PMDB desembarcarem do governo, a sorte de Dilma estará selada. A julgar pela atitude imediata do vice-presidente frente à situação aberta pelo encaminhamento do processo de impeachment, ele já sonha com a faixa presidencial. Não se faz pacto com o diabo impunemente.
A socialdemocracia no Brasil chegou ao seu limite?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: A socialdemocracia não chegou ao limite porque ela na verdade nunca existiu no Brasil. Não há bases objetivas e subjetivas para uma política reformista no Brasil. De um lado, o capitalismo brasileiro depende de um padrão de acumulação que se sustenta na superexploração do trabalho e na presença dominante do capital internacional.
Nessas condições, não há espaço objetivo para políticas que procurem enfrentar a segregação social e a dependência externa – as duas causas fundamentais das mazelas do povo. De outro lado, a sobrevivência do capitalismo dependente requer um padrão de dominação que funciona como uma democracia restrita, hermeticamente fechada às demandas das classes subalternas.
Nessas circunstâncias, não há espaço real para que a luta política institucional avance a ponto de colocar em risco as estruturas do capitalismo dependente – a segregação social e a dominação imperialista. A intolerância em relação à mobilização do conflito social como forma de conquista de direitos coletivos – a essência de um regime político democrático – fecha as portas para qualquer tipo de experiência reformista.
No Brasil, o compromisso da burguesia com a democracia acaba no momento em que ela coloca em risco seus privilégios. O melhorismo de Lula passou muito longe de qualquer proposta socialdemocrata. Lula não reformou nada. Ao contrário. Seu governo aprofundou o subdesenvolvimento. O PT representa a “esquerda” da ordem – a ordem comprometida com a reprodução do capitalismo dependente.
Como vês a formação das frentes, como a Povo Sem Medo e a Brasil Popular, na atual conjuntura?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: A iniciativa do Povo Sem Medo de organizar a população para enfrentar o ajuste neoliberal é positiva, mas insuficiente. O ajuste não é uma política do ministro Levy que pode eventualmente ser derrotada com a sua substituição por um nome mais palatável. É um engodo imaginar que o governo Dilma esteja em disputa. Dilma é totalmente subserviente ao grande capital e atua de acordo com os ditames do ajuste neoliberal.
Portanto, é impossível ser contra o ajuste e apoiar veladamente o governo. O fato de Dilma ser um mal menor quando comparada a Aécio e Temer não muda em nada a situação. Enquanto os que combatem o ajuste ficarem presos à disjuntiva do “menos pior”, o partido “contra o ajuste” – o partido das vítimas do capitalismo – não tem como se firmar como uma referência capaz de abrir novos horizontes para a sociedade brasileira. Os que lutam contra o ajuste não podem ter o rabo preso com o Estado.
A Frente Brasil Popular é uma iniciativa desesperada dos governistas para tentar salvar Dilma. Composta de movimentos sociais e sindicatos atrelados ao Estado, ela não deu nenhum sinal de que terá vigor para liderar grandes mobilizações de massa. O agravamento da crise econômica e do desemprego deve diminuir ainda mais sua capacidade convocatória. Não creio que consigam ir além do esperneio.
Que alternativas os partidos de esquerda e os movimentos conseguem oferecer hoje? Estão prontos para fazer esse enfrentamento?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: A esquerda precisa organizar os trabalhadores para resistir à nova ofensiva do capital e criar uma alternativa ao capitalismo. Sem luta, o custo da crise será jogado nas costas dos trabalhadores. Sem grandes transformações sociais, não há como evitar o avanço da barbárie. O fundamental é criar força política para que a economia e a sociedade sejam organizadas em função das necessidades efetivas do conjunto da população.
O ponto de partida é superar qualquer ilusão de que os graves problemas da população brasileira possam ser resolvidos com crescimento e melhorismo. O crescimento e o melhorismo mitigam os problemas do povo, mas são funcionais para a reprodução do subdesenvolvimento e da dependência. O compromisso da esquerda é com a “revolução brasileira”.
Quais os elementos que já temos para desencadear a Revolução Brasileira e quais ainda nos faltam?
Plínio de Arruda Sampaio Júnior: A revolução brasileira está em curso. Ela é impulsionada pelas lutas reais de todos que se batem com intransigência contra a intolerância dos ricos em relação a qualquer mudança que represente uma ameaça a seus privilégios. Em perspectiva histórica, ela deve ser entendida como o desfecho de um longo processo histórico, impulsionado pela necessidade de concluir a longa transição do Brasil Colônia de ontem para o Brasil Nação de amanhã. Seu ponto culminante é a superação definitiva das estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais responsáveis pelas mazelas do povo.
O desfecho da revolução brasileira requer, como primeiro passo, a realização de duas tarefas fundamentais: a revolução democrática e a revolução nacional. A primeira tem o objetivo de eliminar o regime de segregação social em todas as suas dimensões; a segunda, a finalidade de superar o colonialismo em todas as suas dimensões. Os dois processos se condicionam reciprocamente.
As condições objetivas que determinam a revolução brasileira já estão maduras há algum tempo e ficam patentes na relação perversa entre desenvolvimento capitalista e reversão neocolonial. Em outras palavras, é a absoluta incapacidade de a burguesia brasileira defender os interesses nacionais e resolver os problemas fundamentais da população que coloca a revolução brasileira na ordem do dia. A revolução social é o único meio de evitar o avanço da barbárie.
As condições subjetivas da revolução brasileira ainda precisam ser construídas. O sujeito da revolução está aí para quem quiser ver. São os trabalhadores sem terra que lutam por um lugar ao Sol, são os sem tetos que lutam por moradia, são os estudantes e os professores que defendem a escola pública, é a juventude que exige mobilidade urbana, são os índios que lutam pela sua sobrevivência, são as mulheres que batalham contra a exploração dobrada, são os trabalhadores que não aceitam a retirada de direitos sociais, enfim, é o povo brasileiro que luta por uma vida digna.
A forma da revolução também já foi esboçada nas Jornadas de Junho de 2013. A força propulsora da transformação social é a revolta avassaladora do povo contra seus opressores. Isso já existe de maneira difusa e fragmentada. Falta unificar os sujeitos dispersos em torno de um programa revolucionário. Falta criar instrumentos políticos que permitam transformar a energia difusa das massas inconformadas em força política condensada. Falta organizar o partido das lutas reais. Isto está sendo construído lentamente por todos que lutam com intransigência em defesa dos interesses estratégicos dos trabalhadores. É impossível prever quando tal construção sofrerá um salto de qualidade. Se demorar muito, o Brasil afundará num dantesco mar de lama.
Nota:
*Para que não pareça profeta de fatos acontecidos, remetemos o leitor para o Editorial do Correio da Cidadania escrito no dia de sua vitória no segundo turno.
Alexandre Haubrich é jornalista do site Jornalismo B; a entrevista foi feita para ao Jornal do Sintrajufe/RS em 08/12/2015
Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
Com cara de velho, começa o novo ano, com notícias pra lá de similares a janeiro de 2015: ministro ultraliberal na Fazenda e tarifaços pelo país. Pra não falar do processo de impeachment e desdobramentos da Operação Lava Jato, que prometem manter a letargia do país frente à crise geral de seu modelo de desenvolvimento. Ainda assim, novas janelas sempre se abrem quando as contradições se agudizam, como demonstra a juventude. Para tratar do que nos espera em 2016, o Correio da Cidadania entrevistou Ruy Braga.
“Apesar das ações de mudança na política econômica, com a nomeação de Nelson Barbosa para o Ministério da Fazenda, é mais provável a continuidade da orientação geral do segundo governo de Dilma: a de garantir a transição de um regime de acumulação apoiado fundamentalmente na superexploração do trabalho assalariado para aquilo que podemos chamar de regime de acumulação apoiado centralmente em estratégias de espoliação social. Em suma, significa retrocesso nos direitos trabalhistas e sociais”, apontou o sociólogo do trabalho como “solução da crise”.
Quanto à instabilidade político-institucional, prejudicial ao grosso da população independentemente de quem seja o governante de turno, Ruy Braga prevê uma boa possibilidade de respiro ao governo, diante de toda a falta de credibilidade do protagonista do processo de impeachment.
“Mesmo eu que sempre sustentei uma postura de oposição de esquerda a Dilma e anulei meu voto no segundo turno das últimas eleições presidenciais devo admitir que não há a menor comparação entre as duas figuras. Um governo PSDB-PMDB seria um desastre enorme para os trabalhadores, ainda pior do que o governo de Dilma. E, como não seria um governo capaz de trazer de volta o clima de pacificação social da era Lula, não serviria tampouco para muitos setores burgueses que dependem dos mercados internos. Ou seja, com Cunha não há solução. Por isso, parece-me que o processo de impeachment, basicamente, está fadado ao fracasso. O fato de tal processo fracassar fortalece o polo vencedor, que é o do governo federal”, pontuou.
No entanto, Ruy Braga é enfático em afirmar que o modelo que consagrou as gestões petistas acabou e não poderá ser reproduzido, o que põe em xeque o próprio lulismo e sua estratégia de conciliação virtuosa de interesses opostos.
“Nesses momentos de contração cíclica, a política e suas decisões tendem a alargar os espaços para a espoliação social: dos direitos sociais, dos salários, do tempo de trabalho das pessoas, dos recursos naturais, espoliação de tudo aquilo que é público e que estava até então à margem, ou relativamente fora, do modelo de exploração anterior. Minha previsão é que iremos assistir a um aprofundamento da mercantilização do trabalho, do dinheiro e do meio ambiente em uma escala ainda maior do que nos últimos 14 anos. Não há dúvida de que precisamos de uma alternativa radicalmente diferente do que está aí”, disse o sociólogo, explicando o novo modelo de desenvolvimento, ou acumulação, posto em marcha já em 2015.
E já que, em sua visão, não se pode esperar mais nada das “encasteladas” direções dos movimentos, sindicatos e lideranças de sustentação do consenso recente, resta apostar naquilo que surge descolado de velhos grupos e aparatos. “Eu deposito todas as minhas fichas e esperança nos setores jovens, nos filhos da classe trabalhadora que hoje estão nas escolas, no ensino no médio, naqueles estudantes que inundaram o mercado de trabalho no último período, nos jovens que estão à procura do primeiro emprego e nos setores mais atingidos pelo subemprego. E tais segmentos coincidem com os setores jovens, negros e femininos da classe trabalhadora brasileira. Uma saída politicamente progressista para a crise brasileira passa necessariamente pela mobilização desse jovem precariado urbano”, apontou.
A entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Após um ano que parece não ter existido na vida útil do país, 2016 começa sob o mesmo clima de pessimismo de 2015, inclusive no que se refere à depressão econômica. O que você espera deste ano que recém-começa?
Ruy Braga: Apesar das ações de mudança na política econômica, com a nomeação de Nelson Barbosa para o Ministério da Fazenda, é mais provável a continuidade da orientação geral do segundo governo de Dilma: a de garantir a transição de um regime de acumulação apoiado fundamentalmente na superexploração do trabalho assalariado para aquilo que podemos chamar de regime de acumulação apoiado centralmente em estratégias de espoliação social. Em suma, significa retrocesso nos direitos trabalhistas e sociais. Fala-se em nova rodada de reforma da Previdência, mudança na idade de aposentadoria, diminuição de determinados direitos constitucionais, em especial aqueles vinculados à obrigatoriedade de investimentos públicos em áreas sociais, aprofundamento da orientação rentista, estruturada sobretudo no mundo das finanças e suas chantagens etc.
Do ponto de vista da estrutura social, não vejo até o momento delinear-se uma alternativa progressista no interior do governo que privilegie os interesses dos trabalhadores. O mais provável é o aprofundamento dessa estratégia de espoliação social a fim de garantir os lucros dos capitalistas.
Por outro lado, a crise política entra num momento de stand by, mas com evidente distensão, levando-se em conta que a grande chantagem que marcou o ano 2015, isto é, a ameaça do impeachment, deixou de existir com o início do processo na Câmara. Aos meus olhos, isso coloca o governo numa posição um pouco melhor, pois ele irá se reorganizar em torno de uma causa politicamente legítima, isto é, a reação a uma tentativa de golpe parlamentar “paraguaio” implementada por um presidente da Câmara que é, notoriamente, um político corrupto.
Significa que haverá, na minha opinião, uma reorganização das forças governistas em torno do poder da presidência da República em defesa de seu mandato. Isso tende a atrair setores que estavam se desgarrando do governo ou em flagrante crise com o governo. Muitos militantes socialistas serão novamente atraídos para o polo da legalidade. Assim, a posição governista sairá fortalecida do processo de impeachment.
Portanto, diria que 2016 será um ano diferente de 2015. O governo federal deverá retomar alguma capacidade de iniciativa na cena política. Ou seja, será um governo mais ativo do que foi ano passado. No entanto, do ponto de vista econômico, a tendência é que se consolide um regime de acumulação via espoliação, totalmente deletério do ponto de vista dos trabalhadores.
Correio da Cidadania: Quanto ao processo de impeachment de Dilma, vimos que continua o vai e vem, isto é, altas tensões em revezamento com aparentes apaziguamentos. Além disso, a possível queda de Eduardo Cunha foi empurrada para fevereiro, o que talvez sugira uma dinâmica parecida de alianças e rupturas entre os grupos políticos dominantes. O que espera de todo esse tabuleiro de peças em movimento? Acredita num grande acordo nacional em prol da estabilidade, nos moldes propostos pelo cientista político André Singer, conforme artigo publicado recentemente?
Ruy Braga: Diria o mesmo que Florestan Fernandes: o pacto conservador brasileiro é implacável. Numa conjuntura política marcada especialmente pela polaridade Dilma-Cunha, temos uma comparação grotesca. Eduardo Cunha não se configura como alternativa de absolutamente nada. A tendência é vermos a presidência sair fortalecida.
Mesmo eu que sempre sustentei uma postura de oposição de esquerda a Dilma e anulei meu voto no segundo turno das últimas eleições presidenciais devo admitir que não há a menor comparação entre as duas figuras. Um governo PSDB-PMDB seria um desastre enorme para os trabalhadores, ainda pior do que o governo de Dilma. E, como não seria um governo capaz de trazer de volta o clima de pacificação social da era Lula, não serviria tampouco para muitos setores burgueses que dependem dos mercados internos. Ou seja, com Cunha não há solução. Por isso, parece-me que o processo de impeachment, basicamente, está fadado ao fracasso. O fato de tal processo fracassar, fortalece o polo vencedor, que é o do governo federal.
Nesse sentido, 2016, provavelmente, será um ano marcado pela retomada de uma certa capacidade de ação política do governo. Esse é meu principal prognóstico. Será um ano marcado pela tentativa do governo de retomar alguma margem de ação política. E provavelmente Cunha cairá nos próximos meses, pela situação absolutamente grotesca de se ter um comprovado corrupto à frente da Câmara federal.
Correio da Cidadania: O ministro Joaquim Levy, após o desgastante ajuste fiscal, acaba de deixar o governo, sendo substituído por Nelson Barbosa. Porém, pelo que você disse no início, não se pode esperar uma orientação macroeconômica relevantemente distinta para 2016.
Ruy Braga: Não, porque basicamente não foi construído projeto alternativo. O que temos hoje é o esgotamento cabal do modelo de desenvolvimento apoiado em um certo ritmo de acumulação dos motores tradicionais da economia brasileira, como a produção de commodities, os investimentos da construção pesada, a expansão do agronegócio, os investimentos na área de energia e petróleo, e principalmente, o consumo popular, com acesso de uma massa crescente da população ao crédito, o que provocou um aumento exponencial no endividamento das famílias, agora em índices recordes no país.
Essa fórmula não vai se repetir nos próximos 10 anos. Não há, adiante, no cenário internacional, uma perspectiva de retomada na China, na Índia, mesmo em países da Europa. Ao contrário, a desaceleração chinesa é ainda pior do que se imaginava ano passado. A retomada norte-americana é importante, mas ainda muito modesta. Além disso, o desempenho econômico dos Estados Unidos está muito ligado ao crescimento chinês… Isso tudo faz com que, muito provavelmente, o mercado mundial no próximo período cresça a taxas muito moderadas, diferentemente dos últimos 14 anos.
Naturalmente, a economia brasileira, que se especializou em exportar commodities, fica numa situação delicada. Por outro lado, a estrutura social brasileira está marcada por uma enorme sobre-capacidade produtiva. Os principais setores da economia têm muito estoque e muita capacidade ociosa. Os empresários olham para suas empresas e perguntam: “por que vou investir se dentro da minha própria fábrica tenho uma enorme capacidade ociosa que não é efetivamente absorvida pela demanda?” Trata-se de uma questão clássica para o marxismo: o problema da contração cíclica.
As famílias estão endividadas, precisam se preocupar em primeiro lugar com a realidade mais incerta do mercado de trabalho e o aumento do desemprego e do subemprego, que significa fundamentalmente a compressão de sua renda. As famílias quando estão muito endividadas adotam outras estratégias. Não estão consumindo, estão pagando suas dívidas como podem. Ou seja, elas estão vivendo da mão pra boca. Os únicos setores que de fato não foram, até o momento, ao menos atingidos pela queda de consumo são os bens de subsistência mais elementares. Isso tudo faz com que o modelo lulista – o regime de acumulação do último período – tenha se esgotado. E não há nada no lugar, nada esboçado, não há uma alternativa crível ao colapso do atual modelo.
É importante entender que o capitalismo funciona assim: quando se tem momentos da economia marcados por expansão, tem-se alguma margem de manobra em termos de concessões, em especial, concessões trabalhistas, direitos sociais… Normalmente, tais períodos de expansão são apoiados – não exclusivamente, mas principalmente – sobre os setores assalariados da classe trabalhadora, isto é, sobre a exploração do trabalho assalariado. No caso de uma estrutura social semiperiférica e tardia como a brasileira, sobre a exploração do trabalho assalariado barato, eu acrescentaria.
Momentos de contração cíclica, como o que vivemos hoje, impõem uma série de desafios que tendem a fazer com que as empresas dependam cada dia mais daquilo que eu, nas trilhas de Rosa Luxemburgo, chamaria de “acumulação política de capital”. Ou seja, dependem da violência política dos governos. Inclusive dependem de que ele desloque suas estratégias de acumulação para aquilo que é, exatamente, a espoliação das concessões feitas no momento anterior, isto é, durante a expansão do ciclo econômico. Se no período anterior houve aumento da massa salarial, agora teremos um ataque à massa salarial. Se no período anterior observou-se algum avanço, mesmo moderado, em termos de direitos, na sequência eles serão atacados etc.
Nesses momentos de contração cíclica, a política e suas decisões tendem a alargar os espaços para a espoliação social: dos direitos sociais, dos salários, do tempo de trabalho das pessoas, dos recursos naturais, espoliação de tudo aquilo que é público e que estava até então à margem, ou relativamente fora, do modelo de exploração anterior.
Minha previsão é que iremos assistir a um aprofundamento da mercantilização do trabalho, do dinheiro e do meio ambiente em uma escala ainda maior do que nos últimos 14 anos. Em suma, teremos pela frente, ainda que sob diferentes roupagens, uma intensificação dos ataques aos interesses dos trabalhadores. Do ponto de vista dos direitos, do assalariamento ou do emprego. A tendência é que se aprofunde a degradação das condições de trabalho, com a diminuição do emprego, aumento do subemprego, diminuição dos salários…
Não podemos esquecer que o último período foi marcado, apesar de todas as dificuldades, por um aumento real da massa salarial. Ela cresceu, o que significa que há mais renda nas famílias trabalhadoras. Isso já está sendo atacado. O aumento do desemprego é o jeito mais típico de disciplinar a classe trabalhadora e aprofundar as condições de exploração. Não há dúvida.
E não há plano B. Não existe uma guinada generalizada na direção de outra alternativa econômica, com investimento massificado em setores capital-intensivos etc. No máximo, vamos exportar mais carros por conta do novo patamar do dólar. Mas, como algo alternativo, não há nada inovador no horizonte. A única coisa que está no horizonte é atacar os pequenos e moderados ganhos da classe trabalhadora no período anterior para se tentar um processo mais acentuado de acumulação.
A esquerda socialista precisa entender que no capitalismo desenvolvimento significa acumulação, isto é, aprofundamento da exploração. De novo: desenvolvimento = acumulação. E acumulação implica bases sociais, implica práticas econômicas e implica formas de intervenção na vida política. Pra garantir a acumulação crescente, será preciso atacar os trabalhadores. Não há alternativa, não há mediação possível na atual situação. Se os setores governistas esperam por uma reedição da arbitragem lulista entre as classes, vão ter que esperar sentados.
Correio da Cidadania: Em entrevista ao Correio concedida em março de 2015, você dizia que o esfacelamento do modelo econômico poderia paralelamente levar o chamado “lulismo” junto. Como enxerga esse processo histórico recente diante do novo ano?
Ruy Braga: Na minha opinião, acabou o lulismo porque acabou o consenso. O lulismo foi basicamente uma estratégia de política de pacificação social, apoiada em dois tipos de consentimento, distintos, porém, complementares: um mais passivo, das massas, que aderem ao governo seduzidas pela relativa desconcentração de renda entre os segmentos do mundo do trabalho, aumento da formalização no mercado de trabalho, o crédito popular e políticas públicas importantes que tiraram milhões de trabalhadores da miséria. Houve uma pequena margem de concessão aos trabalhadores, e agora ela está sendo atacada. Por outro lado, houve um consentimento ativo das direções dos movimentos sociais do país formados desde a redemocratização, época que marcou o surgimento de dois grandes movimentos, o sindical, hegemonizado pela CUT, e o MST. As lideranças dos anos 1980 e 1990 foram seduzidas pelos milhares de cargos no aparelho de Estado e pela possibilidade de enriquecimento proporcionadas pelas posições nos conselhos gestores dos fundos de pensão.
Em suma, ambos, e de resto a maior parte dos movimentos, foram seduzidos pelo governo federal, o que significa uma pacificação do polo de resistência a certas políticas, inclusive algumas antipopulares, ao longo dos últimos 12 anos. O atual momento significa que o lulismo como estratégia de pacificação social acabou, porque não há consenso capaz de garantir a reprodução das bases sociais dessa estratégia de pacificação. Do ponto de vista das massas populares, há um progressivo afastamento da orientação geral do governo. Do ponto de vista das lideranças dos movimentos, existe um aprofundamento dessa crise, pois as direções sentem-se desconfortáveis com os ataques do governo aos trabalhadores.
Há uma crise de representação apoiada no aumento das tensões entre as direções dos movimentos e o governo. Isso foi visível no último período, com críticas da CUT ao Ministério da Fazenda e às políticas adotadas pelo Levy. Isso é normal e confirma as características do poder sindical, que em algum nível precisa oferecer contrapartidas às suas bases, já que trabalha sem a estabilidade da forma de dominação apoiada na propriedade, algo tipicamente capitalista. Assim, o poder sindical é mais permeável à pressão dos de baixo.
Portanto, como não há consenso, não há lulismo, por assim dizer. O lulismo, como modo de regulação do conflito Capital x Trabalho, esfacelou-se. E no seu lugar não apareceu uma alternativa politicamente estável. Há uma grande confusão, não se sabe efetivamente qual será o novo modo de regulação e se de fato existirá um modo de regulação capaz de estabilizar o conflito Capital x Trabalho no país. Penso que não. Creio que esse modo de regulação vai se nutrir do esfacelamento do modo anterior.
Quer dizer, a meu ver, por um lado, as classes populares continuarão bastante afastadas do governo e, por outro, as bases governistas, principalmente o movimento sindical, continuarão gravitando em torno do governo e estabelecendo algum tipo de pressão. Uma parte dessas bases, sem dúvida, será atraída por qualquer migalha que o governo oferecer, qualquer pequena concessão. E uma parte, principalmente os setores do movimento social e sindical mais próximos de suas bases, se sentirá progressivamente mais pressionada pelo ativismo esporádico dos subalternos.
Parece-me que hoje em dia não é possível mais falar em regulação no país, porque não se tem as bases sociais capazes de garantir a estabilidade do modelo de desenvolvimento e que, no fundamental, passa por concessões às massas. Temos uma enorme confusão e um horizonte que, muito provavelmente, continuará marcado por ataques aos direitos dos trabalhadores, que por sua vez tentarão defender seus direitos.
A polarização e o retorno da luta de classes ao país produzem a instabilidade. A priori, não se sabe para onde vai dar o barco. E parece ser essa a grande marca do momento presente: a incerteza, o aumento dos conflitos, a reprodução difícil e problemática da legitimidade das direções dos movimentos sociais diante de suas bases.
Correio da Cidadania: O que achou das movimentações à esquerda do espectro político neste 2015 e o que se poderia, ou deveria, esperar de grupos, movimentos e partidos que ainda pretendem pautar outro projeto de país?
Ruy Braga: O ano de 2015, do ponto de vista de tais mobilizações, foi marcado por dois polos. Por um lado, aumento da escala e intensidade da mobilização dos setores médios tradicionais, o que fez os setores populares viverem relativa defensiva ao longo de todo o ano. E tal defensiva esteve marcada por uma desorientação das direções tradicionais dos movimentos populares do Brasil, por conta da inflexão reacionária e conservadora do governo Dilma, tendo à frente o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy. E agora, no último quarto de 2015, nós vivemos uma relativa reorganização das forças de esquerda em torno da defesa da legalidade, por conta do processo de impeachment estabelecido pelo presidente da Câmara, o que garantiu certo fôlego ao governo.
Assim, ao mesmo tempo, tem-se nas ruas a defesa do governo, dada a ausência de alternativas críveis capazes de solucionar a crise, e por outro lado os setores populares, movimentos sociais e sindicais na defensiva, se posicionando criticamente contra as medidas de austeridade do governo federal e contra o impeachment. No final do ano, vimos uma reaglutinação dos setores governistas em defesa da legalidade, que evidentemente atraiu parte importante do movimento crítico, inclusive da oposição de esquerda, frente à situação grotesca de se ter um processo de impeachment estabelecido nesses moldes.
Pensando nos movimentos sociais, foi algo mais pendular. Até setembro, relativa defensiva com intensificação da crítica ao governo, e no final do ano aumento da mobilização que desaguou na manifestação do dia 16 de dezembro, com relativo sucesso, estruturada em torno da legalidade.
No entanto, destaco que as condições socioeconômicas mais profundas, isto é, desestruturação dos pilares do último período e o aumento do desemprego, têm minado a força que a classe trabalhadora vinha acumulando até 2013. O sistema de acompanhamento de greves do DIEESE acabou de divulgar os dados de 2013, que são impressionantes: houve mais de 2 mil greves, com flagrante retomada da atividade grevista em todo o país, principalmente nos setores privados e empresariais, também com participação dos funcionários públicos e forte presença de setores-chaves da economia brasileira, como metalúrgicos e petroleiros. Isso fez com que se acumulasse forças em termos de massa salarial e poder político.
Mas a partir de 2014, com a deterioração do mercado de trabalho e aumento importante do desemprego em 2015, a tendência é a erosão de parte dessa força acumulada e enfraquecimento de tal capacidade de mobilização. Portanto, me parece que essa guinada mais à esquerda dos movimentos, em especial sindical, está relativamente dissociada do processo de erosão da força social da classe trabalhadora quando se pensa nas condições gerais do poder popular.
O cenário é bastante contraditório. Penso que teremos um período marcado por certa defensiva das classes trabalhadoras por conta do aumento do desemprego, mas uma retomada da capacidade de organização dos setores governistas em torno da presidência da República. Por outro lado, entendo que, tendo em vista a deterioração econômica, os setores mais explorados e mais dominados deverão ter um certo papel protagonista na luta política futura, superior ao momento anterior. Em suma, acho que os setores da classe trabalhadora sindicalmente organizados recuarão, comparativamente falando, e os movimentos sociais como o MTST avançarão relativamente.
Correio da Cidadania: É possível pautar outro modelo ao lado de setores governistas ou só o rompimento total com o lulismo e o petismo pode criar credibilidade suficiente na população para esta finalidade?
Ruy Braga: Não há dúvida de que precisamos de uma alternativa radicalmente diferente do que está aí. Isso porque o lulismo como modo de regulação acabou e como regime de acumulação colapsou, pois não há espaço no horizonte para se aumentarem as concessões aos trabalhadores, e sim o contrário, um ataque cada vez mais profundo aos trabalhadores. As forças governistas são incapazes de imaginar uma alternativa porque estão encasteladas no Estado e farão de tudo para garantir essa posição privilegiada, inclusive contra os interesses dos trabalhadores.
Parece que os setores de oposição à esquerda do governo, a despeito de terem assistido um relativo fortalecimento no último período, ainda são demasiadamente frágeis pra apresentar uma proposta crível. No entanto, é a única alternativa possível no médio prazo: apostar nos setores de esquerda intransigentes ao governo federal e na conformação de um polo alternativo à dualidade entre PT x PSDB que se estabeleceu nos últimos 25 anos. É a minha aposta.
Não há alternativa possível dentro do governismo. Terá de ser construída fora do governismo, naquilo que eu chamaria de terceiro campo, capaz de organizar a luta de classes no país de maneira progressista para os trabalhadores. Acredito que o próximo período será marcado por agudas lutas de classes: política, econômica, cultural e ideologicamente.
Portanto, não há mais espaço para as mediações construídas pelo lulismo, com seus campos intermediários e hibridismos políticos. Não há mais tal espaço. O que existe, na verdade, é a necessidade de uma atitude mais radical. Nesse sentido, os setores da chamada “extrema esquerda” têm um amplo campo pra trabalhar. Resta saber se serão capazes de organizar a indignação que cresce no interior das classes trabalhadoras e subalternas no país.
Correio da Cidadania: Lava Jato, crise na Petrobrás, tragédia da Samarco, desemprego em alta, crises hídricas e energéticas cada vez mais à espreita, ataques à educação pública, um cotidiano barbaramente militarizado… Para onde parece rumar o Brasil?
Ruy Braga: Eu deposito todas as minhas fichas e esperança nos setores jovens, nos filhos da classe trabalhadora que hoje estão nas escolas, no ensino no médio, naqueles estudantes que inundaram o mercado de trabalho no último período, nos jovens que estão à procura do primeiro emprego e nos setores mais atingidos pelo subemprego. Aquilo que tem a ver, basicamente, com setores da classe trabalhadora que vivem entre esses dois polos: de um lado, o aprofundamento da exploração econômica e de outro a possibilidade real de exclusão social. E tais segmentos coincidem com os setores jovens, negros e femininos da classe trabalhadora brasileira, que têm mostrado uma enorme capacidade de automobilização. Vimos isso nitidamente em junho de 2013, estamos vendo hoje com o aumento da mobilização dos estudantes do ensino médio público e a onda de ocupação de escolas em São Paulo, em Goiás etc.
O grande desafio para uma saída progressista da crise brasileira passa necessariamente pela construção de pontes entre esses setores jovens e automobilizados, que têm muita vitalidade combativa, e também foram melhor formados, pois têm mais escolaridade que a geração anterior. E, ao mesmo tempo, se veem imersos em condições muito ruins de contratação, renda, trabalho, experimentando na pele as contradições do modelo de desenvolvimento brasileiro, cuja capacidade expansiva se esgotou. Uma saída politicamente progressista para a crise brasileira passa necessariamente pela mobilização desse jovem precariado urbano.
O desafio é esse: articular os setores combativos que encarnam a agenda da defesa dos direitos sociais, da saúde, da educação, do transporte público de qualidade, da renda, do mercado de trabalho formal, dos direitos previdenciários. Essa geração é quem encarna tais condições, ao lado de setores mais desorganizados da classe trabalhadora. O grande desafio é como politizar a luta toda, que evidentemente é política, como toda luta social, mas também no sentido de se construírem projetos alternativos ao que, fundamentalmente, vimos até hoje. Ou seja, um projeto alternativo ao lulismo.
Nesse sentido, a despeito de 2015 ter sido péssimo em termos econômicos, de desemprego, de crise hídrica, com essa enorme tragédia da mineradora (que mostra o significado da acumulação por espoliação do meio ambiente), e que terminou simbolicamente com o incêndio no Museu da Língua Portuguesa, enfim, um ano completamente terrível para as classes populares brasileiras, também assistimos a emergência política de uma geração que vai dar o que falar. E aposto minhas fichas exatamente nessa nova geração.
Valéria Nader é economista e editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista
Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 9 de janeiro de 2016