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  • Para os mais ricos, um sistema tributário privado que poupa bilhões

    Para os mais ricos, um sistema tributário privado que poupa bilhões

    WASHINGTON — Os magnatas de hedge fund Daniel S. Loeb, Louis Moore Bacon e Steven A. Cohen têm muito em comum. Eles conseguiram bilhões de dólares em capital, ganhando grandes fortunas. Eles têm investido grandes somas em arte e outros milhões em candidatos políticos.

    Além disso, cada um tem explorado uma desconhecida brecha fiscal que lhes economizou milhões em impostos. O truque? Encaminhe o dinheiro para Bermudas e o traga de volta.

    Com a desigualdade em seus níveis mais altos em quase um século e com o crescente debate público sobre se o governo deve responder à desigualdade por meio de impostos mais altos sobre a riqueza, os norte-americanos mais ricos têm financiado um aparato sofisticado e surpreendentemente eficaz para proteger suas fortunas. Alguns o chamam de “indústria de defesa da renda”, que consiste em um batalhão de renomados advogados, planejadores imobiliários, lobistas e ativistas anti-impostos que exploram e defendem uma variedade vertiginosa de manobras fiscais, que dificilmente estão disponíveis para contribuintes medianos.

    Nos últimos anos, esse aparato se tornou uma das mais poderosas vias de influência para os americanos ricos de todas as nuances políticas, incluindo Loeb e o Cohen, que contribuem rigorosamente com os republicanos, e o bilionário liberal George Soros, que defendeu impostos mais altos para os ricos, enquanto, ao mesmo tempo, usa das brechas fiscais para reforçar a sua própria fortuna.

    Todos fazem parte de um grupo seleto que fornece a maior parte das doações iniciais à campanha presidencial de 2016.

    Operando em grande parte fora da visão pública – no tribunal fiscal, através de secretos dispositivos legislativos e em negociações privadas com o Internal Revenue Service (IRS) – os ricos têm usado sua influência para constantemente minar a capacidade do governo em tributá-los. O efeito tem sido a criação de uma espécie de sistema tributário privado, estabelecido para apenas alguns milhares de americanos.

    O impacto sobre suas próprias fortunas foi categórico. Há duas décadas, quando Bill Clinton foi eleito presidente, os 400 contribuintes com rendimentos mais elevados na América pagaram cerca de 27 por cento de sua renda em impostos federais, de acordo com dados do IRS. Em 2012, quando o presidente Obama foi reeleito, esse número havia caído para menos de 17 por cento, porcentagem ligeiramente maior do que a de uma típica família com rendimento de $ 100.000 por ano, quando impostos sobre os salários estão incluídos nos dois grupos.

    O ultra-ricos “literalmente pagam milhões de dólares por esses serviços”, disse Jeffrey A. Winters, um cientista político da Universidade Northwestern que estuda elites econômicas, “e economizam dezenas ou centenas de milhões em impostos.”

    Algumas das maiores batalhas fiscais da atualidade estão sendo travadas por alguns dos mais generosos financiadores de candidatos de 2016. Eles incluem as famílias dos investidores de hedge fund Robert Mercer, que apoia os republicanos, e James Simons, que apoia os democratas; bem como o comerciante Jeffrey Yass, um doador de inclinação libertária que apoia os republicanos.

    A Empresa de Yass está contestando judicialmente o que o IRS julga ser dezenas de milhões de dólares em impostos não pagos. Renaissance Technologies, o hedge fund que Simons fundou e que Mercer ajuda a administrar, está atualmente sob revisão do IRS. De acordo com uma investigação do Senado, uma brecha na lei economizou ao fundo cerca de US $ 6,8 bilhões em impostos em aproximadamente uma década. Algumas dessas mesmas famílias também contribuíram com centenas de milhares de dólares a grupos conservadores que atacaram praticamente qualquer esforço para aumentar os impostos sobre os ricos.

    Para o mais rico, impostos mais baixos

    A taxa média de imposto para o ultra-rico caiu drasticamente.

    No calor da corrida presidencial, a influência de doadores ricos está sendo testada. Está em jogo o aumento do imposto sobre contribuintes com rendimentos elevados proposto em 2013 pela administração do Obama – o primeiro aumento substancial em duas décadas – e uma iniciativa do IRS de reprimir a evasão de imposto pelos mais ricos e com isso garantir que estas altas taxas se mantenham.

    Enquanto democratas como Bernie Sanders e Hillary Clinton se comprometeram a aumentar os impostos sobre eleitores ricos, praticamente todos os Republicano têm políticas avançadas que reduziriam consideravelmente suas cargas tributárias, por vezes, em até 10 por cento de suas rendas.

    Ao mesmo tempo, a maioria dos candidatos republicanos é a favor de eliminar o imposto sobre herança, uma medida que permite que os novos ricos, e os velhos, deixem suas fortunas intactas, solidificando a disparidade de riqueza em um futuro distante. E vários propuseram uma redução substancial, ou até mesmo a eliminação, das já bastante reduzidas taxas sobre os ganhos de investimento, o alicerce das mais lucrativas estratégias fiscais.

    “Há uma noção de que os ricos usam seu dinheiro para comprar políticos; mais precisamente, eles podem comprar as políticas e, especificamente, a política fiscal”, disse Jared Bernstein, um membro sênior do Centro sobre Orçamento e Prioridades Políticas que atuou como principal assessor econômico do vice-presidente Joseph R. Biden Jr. “É por isso que essas graves brechas existem, e por essa razão é tão difícil para fechá-las”.

    O Family Office

    Cada um dos 400 contribuintes com rendimentos mais elevados dos Estados Unidos levou para casa, em média, cerca de 336 milhões de dólares em 2012, último ano com dados disponíveis. Se a maior parte do dinheiro tivesse sido recebida como salário ou remuneração, como é para o típico americano, as obrigações fiscais desses contribuintes poderiam dobrar.

    Em vez disso, grande parte da renda vem de parcerias convolutas e fundos de investimento de alto nível. Outros ganhos são acumulados em obscuros fundos de família e empresas fantasmas no exterior, fora do alcance das autoridades fiscais.

    Os técnicos bem remunerados que elaboram estes arranjos trabalham arduamente em luxuosos escritórios de advocacia e em bancos de investimento de elite, bem como em diversos lugares obscuros. Mas, no fulcro das estratégias sobre como minimizar os impostos estão os chamados family offices, os personalizados departamentos de gestão de riqueza de americanos com centenas de milhões ou bilhões de dólares em ativos.

    Family Offices existem desde o final do século 19, quando os Rockefellers lançaram a instituição, e ganharam popularidade na década de 1980. Mas eles têm proliferado rapidamente na última década, como os rankings dos super-ricos, e o tamanho de suas fortunas, expandidas em proporções recordes.”

    “Temos tanta riqueza que é necessária a criação de uma estrutura como o family office”, disse Sree Arimilli, um consultor de recrutamento de indústria.

    Muitos family offices são dedicados a gerenciar e proteger a riqueza de uma única família, supervisionar tudo, desde a estratégia de investimento à filantropia. Mas o planejamento tributário é uma função central. Enquanto técnicas específicas que os conselheiros empregam para minimizar os tributos podem ser tediosamente complexas, eles geralmente seguem alguns princípios simples, como a conversão de um tipo de renda em outro tipo que é tributado a uma taxa mais baixa.

    Loeb, por exemplo, tem investido em uma resseguradora com sede em Bermudas. Uma seguradora para as companhias de seguros, que retorna e investe o dinheiro em seu hedge fund. Essa manobra transforma seus lucros de apostas no mercado de curto prazo, que tem uma taxa de aproximadamente 40 por cento, em lucros a longo prazo, conhecidos como os ganhos de capital, que são tributados em aproximadamente 20 por cento. Com isto, Loeb tem uma vantagem adicional que permite o adiamento da taxação sobre os rendimentos indefinidamente, o que faz com que a sua riqueza cresça mais rápido.

    A seguradora de Bermudas que Loeb ajudou a criar veio a público em 2013 e é ativa no negócio de seguros, não meramente um instrumento para esquivar de impostos. Cohen e Bacon abandonaram estratégias similares baseadas em seguros nos últimos anos. “Nosso investimento em Max Re não era um esquema orientado a tributos, mas sim uma resposta de investimento sólida ao interesse do investidor em uma carteira gerida de forma dinâmica, semelhante ao Berkshire Hathaway de Warren Buffett”, disse Bacon, que lidera a Moore Capital Management. “Os hedge funds eram uma minoria na carteira de investimentos, e os produtos da Moore Capital um subconjunto muito menor desta carteira alternativa.” Loeb e Cohen não quiseram comentar.

    Organizar a própria empresa como um partnership pode ser lucrativo em sua própria forma. Alguns dos partnerships, a partir do qual os ricos obtêm sua renda, estão autorizados a vender ações ao público, tornando mais fácil para sacar um pedaço do negócio, enquanto mantêm o controle. Mas ao contrário de empresas de capital aberto, eles não pagam imposto de renda de pessoa jurídica; os parceiros pagam impostos como indivíduos. E os impostos sobre o rendimento são muitas vezes reduzidos por grandes deduções, tais como a depreciação.

    No que se refere às grandes parcerias privadas, entretanto, o IRS muitas vezes tem dificuldade “para determinar se existe um abrigo de imposto, se uma operação fiscal abusiva está sendo usada”. De acordo com um relatório recente do Government Accountability Office, o IRS não tem permissão para recolher impostos não pagos diretamente desses partnerships, mesmo aqueles com centenas de parceiros. Em vez disso, a agência deve recolher de cada parceiro individual, exigindo da agência um comprometimento significativo de tempo e mão de obra.

    Os ricos também podem se beneficiar de uma série de deduções fiscais esotéricas e personalizadas que vão muito além de isentar um home office ou jantar com um cliente. Uma agressiva estratégia é colocar a renda em um tipo de fundo de caridade, gerando uma dedução que compensa o imposto de renda. O fundo em seguida, compra o que é conhecido como uma apólice de seguro de vida de colocação privada, que investe o dinheiro em uma base livre de impostos, frequentemente em uma série de hedge funds. O herdeiro da pessoa, também isento de impostos, pode herdar qualquer dinheiro que sobra após o pagamento da porcentagem de cada ano à instituição de caridade, muitas vezes, uma soma considerável.

    Muitas dessas manobras estão bem estabelecidas, e contribuintes ricos dizem que estão dentro de seus direitos para explorá-las. Outros existem em uma área legalmente cinzenta, as suas fronteiras são definidas pela disponibilidade dos contribuintes para defender as suas estratégias contra o IRS. Quase todos estão fora da faixa de preço do contribuinte médio.

    Entre tributaristas e contabilistas, “os melhores e mais brilhantes se destacam ao descobrirem como fazer delicados negócios”, disse Karen L. Hawkins, que até recentemente dirigiu o escritório do IRS que supervisiona os profissionais tributaristas. “Francamente, vai quase além da capacidade intelectual e de recursos da agência para pegar.”

    A combinação de custo e complexidade teve um efeito profundo, disseram especialistas fiscais. Qualquer que seja a taxa fixada pelo Congresso, as taxas reais pagas pela ultra-ricos tendem a cair ao longo do tempo à medida que exploraram suas inúmeras vantagens

    Da posse de Obama até o final de 2012, as taxas de imposto de renda federal sobre os indivíduos não se alteraram (excluindo impostos sobre os salários). No entanto, os mil mais bem pagos dos Estados Unidos passaram a pagar uma taxa de 17,6 por cento ao ano, taxa que anteriormente girava em torno de 20,9 por cento. Em contrapartida, o top 1 por cento, excluindo os muito ricos, passou a pagar um pouco mais de 24 por cento ao ano, valor pouco modificado.

    “Nós temos dois sistemas fiscais diferentes, uma para os assalariados normais e outra para aqueles que podem pagar serviços de consultoria fiscal sofisticada”, disse Victor Fleischer, professor de Direito na Universidade de San Diego, que estuda a intersecção da política fiscal e da desigualdade. “No topo da distribuição de renda, a taxa efetiva de imposto vai para baixo, contrariando os princípios de um sistema de imposto de renda progressivo.”

    Uma Defesa muito Discreta

    Como ajudaram a promover um sistema fiscal alternativo, os americanos ricos têm sido agressivos em defendê-lo.

    Grupos comerciais que representam a companhia de seguros com sede em Bermuda que Loeb ajudou a criar, por exemplo, passaram os últimos meses alegando ao IRS que as regras propostas para dificultar as brechas encontradas nos seguros de hedge funds são muito onerosas.

    O maior grupo da indústria que representa fundos de capital privado gasta centenas de milhares de dólares a cada ano fazendo lobby sobre temas como a “comissão de desempenho”, a avó das brechas fiscais de Wall Street, o que torna possível para os gestores de fundos pagar a taxa de ganhos de capital, em vez de pagar a maior taxa de imposto sobre uma parte substancial de sua renda para o funcionamento do fundo.

    O acordo orçamental que o Congresso aprovou em outubro permite que, pela primeira vez, o IRS colete impostos não pagos de grandes partnerships em nível institucional – o que é muito mais fácil para a agência – graças a um dispositivo que os legisladores deixaram entrar no acordo no último minuto, antes que muitos lobistas pudessem se mobilizar. Mas as novas regras são relativamente fracas – estas instituições ainda podem optar por ter parceiros que pagam impostos – e não entram em vigor até 2018, dando aos ricos muito tempo para enfraquecê-las mais.

    Logo após o dispositivo ter passado, a Associação de Fundos Geridos, um grupo da indústria que representa proeminentes hedge funds, como os D. E. Shaw, Renaissance Technologies, Tiger Management e Third Point, começou a se reunir com membros do Congresso para discutir uma lista de desejos de ajustes. Os fundadores desses fundos têm todos doados pelo menos $ 500.000 dólares para candidatos a presidência de 2016. Durante a presidência de Obama, a própria associação veio a se tornar um dos grupos comerciais mais poderosos de Washington, gastando mais de US $ 4 milhões em lobby por ano.

    Comprando Poder

    Enquanto a influência do lobby para os ricos é frequentemente instaurada através de associações comerciais da indústria e advogados, algumas famílias ricas têm juntado esforços para fazer avançar os seus interesses mais diretamente.

    O imposto sobre herança tem sido o principal alvo. No início de 1990, uma executiva do Family office da Califórnia chamada Patrícia Soldano começou a fazer lobby em nome de famílias ricas para revogar o imposto, que não só economizaria dinheiro aos ricos, mas também facilitaria a preservação de seus impérios de negócios. A ideia pareceu para muitos agentes como irreal, uma vez que o imposto afetou apenas os americanos mais ricos. Mas os esforços de Soldano, financiados em parte pelas famílias Marte e Koch, lançaram as bases para a eliminação do imposto sobre herança de um ano, em 2010.

    O imposto foi restaurado, no entanto, atualmente, ele só se aplica a casais que deixam aproximadamente $ 11 milhões ou mais de doláres para seus herdeiros, frente àqueles que deixavam mais de US $ 1,2 milhão quando Ms. Soldano começou sua campanha. Isso afetou menos de 5.200 famílias no ano passado.

    “Se alguém tivesse me dito que estaríamos onde estamos hoje, eu nunca teria imaginado”, disse Soldano em uma entrevista.

    Algumas das vitórias mais profundas são pouco conhecidas fora do mundo insular dos ricos e dos seus gestores financeiros.

    Em 2009, o Congresso acordou que os partnerships de investimento, como os hedge funds, deveriam ser registradas junto à Securities and Exchange Commission (SEC), em parte, para que as autoridades reguladoras tivessem uma melhor compreensão sobre os riscos que eles apresentavam para o sistema financeiro.

    O recente dispositivo legislativo também teria exigido o registro de single-family offices, expondo as instituições altamente secretas ao escrutínio que seus clientes estavam ávidos para evitar. Alguns dos casos do IRS contra os ricos originaram-se com dicas da SEC, que muitas vezes está melhor posicionada para detectar fraude fiscal.

    No verão de 2009, vários executivos de family office formaram um grupo de lobby chamado “Coalizão do Investidor Privado” para combater a proposta recém-aprovada pelo Congresso. A coalizão ganhou uma isenção na lei Dodd-Frank de reforma financeira em 2010, em seguida, passou boa parte do próximo ano persuadindo a SEC a adotar em grande parte a sua definição preferida de “family office”.

    Tão ampla foi a brecha resultante que o hedge fund de $24,5 bilhões de Soros se beneficiou, convertendo a um family office após retornar o capital dos seus ainda investidores externos. O gerente de hedge fund Stanley Druckenmiller, um ex-parceiro de negócios de Soros, seguiu o mesmo caminho.

    A família Soros, que geralmente apoia os democratas, doou pelo menos US $ 1 milhão para a campanha presidencial de 2016. Mr. Druckenmiller, que favorece os republicanos, colocou um pouco mais de US $ 300.000 por trás de três diferentes candidatos republicanos.

    Um slide da apresentação da reunião anual 2013 da Coalizão do Investidor Privado creditou o sucesso às várias reuniões com membros do Senate Banking Committee, da House Financial Services Committee, da equipe do congresso e SEC. staff. “Tudo realizado discretamente”, o documento observou. “Temos mais do que queríamos e alguns extras que não solicitamos.”

    Um Fiscal Manco

    Depois de todas as brechas e todo o lobby, o que resta da capacidade do governo de cobrar impostos dos ricos é executado contra um obstáculo final: a crise enfrentada pelo IRS.

    Presidente Obama estabeleceu como prioridade a luta contra a evasão fiscal dos ricos. Em 2010, ele assinou uma lei tornando mais fácil a identificação de americanos que mantiveram ativos afastados em contas bancárias suíças e abrigos na Ilhas Cayman.

    Seu IRS convocou o Global High Wealth Industry Group, conhecido coloquialmente como “o pelotão da riqueza”, para fiscalizar os retornos de americanos com renda de pelo menos US $ 10 milhões de dólares por ano.

    Mas, enquanto essas medidas têm ajudado o governo a recuperar bilhões, os esforços da agência têm ocorrido diante de escândalo, pressão política e cortes no orçamento. Entre 2010, ano anterior ao que os republicanos assumiram controle da Câmara dos Deputados, e 2014, o orçamento do IRS caiu quase US $ 2 bilhões de dólares em termos reais, ou quase 15 por cento. Isso fez com que o IRS reduzisse cerca de 5.000 posições de alto nível de aproximadamente 23.000, segundo a própria agência.

    Taxas de auditoria para o clube dos $ 10 milhões estiveram fortes nos primeiros anos do programa Global High Wealth, mas caíram desde então.

    O desafio político para a agência tornou-se especialmente evidente em 2013, após a agência submeter organizações conservadoras sem fins lucrativos a uma revisão fiscal devido à atividade política desses grupos isentos de impostos. (Altos funcionários deixaram a agência como resultado da controvérsia.)

    Vários ex-funcionários do IRS, incluindo Marcus Owens, que já dirigiu a divisão de Organizações Isentas de Impostos da agência, disseram que a controvérsia danificou bastante a disposição da agência para investigar outros contribuintes, mesmo fora da divisão de isentos.

    “O cumprimento do IRS está ausente ou enfraquecido” em certas áreas, disse ele. Owens acrescentou que seu antigo departamento, que proporciona algum tipo de fiscalização ao dinheiro usado por instituições de caridade e organizações sem fins lucrativos, foi dizimado.

    Grupos como FreedomWorks e Americans for Tax Reform, que são, em parte, financiados pelas fundações de famílias ricas e grandes empresas, têm solicitado a destituição do comissário da IRS. Eles são sustentados por grupos endinheirados de advocacy como o Clube para o Crescimento (Club for Growth), que tem apoiado principalmente campanhas contra os republicanos que votaram a favor do aumento dos impostos.

    Em 2014, o Club for Growth Action Fund arrecadou mais de US $ 9 milhões de dólares e gastou a maioria desse dinheiro ajudando candidatos críticos ao IRS. Cerca de 60 por cento do dinheiro arrecadado pelo fundo veio de apenas 12 doadores, incluindo o Mercer, que deu ao grupo $ 2 milhões nos últimos cinco anos. Mercer e sua família imediata também doaram mais de US $ 11 milhões para vários super PACs apoiando o senador Ted Cruz de Texas, um declarado crítico do IRS e um candidato à presidência.

    Outro doador de destaque é o Sr. Yass, que ajuda a administrar uma empresa comercial chamada Susquehanna International Group. Ele doou $ 100.000 de dólares para o Club for Growth Action Fund em setembro. Mr. Yass faz parte do conselho do Instituto Cato – de orientação libertária – e, como Mercer, parece acreditar nas ideias de Estado mínimo, o que em parte motiva seus gastos com política.

    Mas ele também pode ter mais do que um interesse passageiro na criação de um ambiente político que põe em cheque o IRS. Susquehanna está atualmente desafiando uma resolução proposta pelo IRS; uma filial da sua empresa efetivamente repatriou mais de US $ 375 milhões em rendimentos de subsidiárias localizadas na Irlanda e nas Ilhas Cayman, em 2007, criando uma grande obrigação fiscal. (A filial trouxe o dinheiro de volta para os Estados Unidos em anos posteriores e pagou impostos sobre os dividendos; o IRS, no entanto, afirma que a empresa deveria ter pago a taxa de imposto de renda ordinária, a um custo de dezenas de milhões de dólares a mais.)

    Em junho, Yass doou mais de US $ 2 milhões para três super PACs alinhados ao senador Rand Paul de Kentucky, que tem sugerido que todos os rendimentos tenham uma tributação a uma taxa fixa de 14,5 por cento. Essa mudança, por si só economizaria aos seus financiadores ricos, como Yass, milhões de dólares.

    Paul, também um candidato à presidência, ainda chamou o IRS de uma “agência de desonestos” e circulou uma petição em 2013 pedindo o equivalente fiscal de mudança de regime. “Seja, pois, agora resolvido”, lê-se na petição: “nós, os abaixo assinados, exigimos a abolição imediata do Internal Revenue Service”.

    Mesmo que essa campanha seja um tiro no escuro, os contribuintes mais ricos continuarão a desfrutar de vantagens sobre todos os outros.

    Para os ultra-ricos, “o nosso código fiscal é como um barril furado”, disse J. Todd Metcalf, Chefe do conselho fiscal dos democratas no Comitê de Finanças do Senado. “A menos que você tampe todos os buracos ou obtenha um novo barril, irá vazar.”

    Nicholas Confessore contribuiu com a reportagem e Kitty Bennett contribuiu com a pesquisa.

    Fonte: The New York Times
    Tradução para o português: Frederico Henriques

  • O fetiche das ideias

    O fetiche das ideias

    Juliano Medeiros
    Juliano Medeiros

    Dias atrás o professor e filósofo Vladimir Safatle publicou artigo no jornal Folha de São Paulo onde questiona a existência de uma onda conservadora no Brasil. O artigo traz uma série de considerações sobre o momento político que vivemos, estimulando um importante debate sobre como encarar as transformações que o país tem vivido. Além disso, o artigo tem dois méritos inquestionáveis: cobrar uma posição mais clara daqueles que acreditam que há um fortalecimento do conservadorismo no Brasil e, ao mesmo tempo, apontar as responsabilidades da esquerda neste processo. No entanto, apesar de festejado por muitos, o artigo tem fragilidades que merecem ser debatidas. Num momento tão complexo como o que vivemos, não temos o direito de estimular análises superficiais da realidade.

    A posição de Safatle sustenta-se em duas constatações e uma hipótese. A primeira constatação é que o fortalecimento das posições conservadoras na sociedade brasileira deve-se à “decomposição” das esquerdas, notadamente aquelas que se enredaram em compromissos com a ordem do capital a ponto de comprometerem sua própria identidade. A segunda constatação é de que o Brasil sempre teve grande parcela de sua população identificada com ideias claramente conservadoras e isso não é propriamente uma novidade. Ambas as constatações nos parecem corretas.

    Em seguida Safatle formula uma hipótese que contraria suas próprias constatações: a “onda conservadora” seria apenas uma narrativa cômoda, um discurso útil que, como tal, não encontra base concreta na realidade. Daí o título bombástico de seu artigo: a “falsa” onda conservadora. Ou seja, uma onda conservadora que, na verdade, não existe. Acontece que, contraditoriamente, Safatle admite que posições conservadoras ganharam força no conjunto da sociedade, chegando inclusive a atribuir esse fenômeno à incapacidade das esquerdas de apresentarem uma alternativa global à visão de mundo representada por essas ideias. Mas esse não é, exatamente, o ponto fraco do artigo de Safatle. O problema de fundo está em tomar a ofensiva do conservadorismo como um fenômeno restrito ao mundo das ideias. O marxismo ocidental já foi muito criticado por sua falta de vínculos com a prática, por ser um “marxismo de filósofos” que dava as costas para a realidade. Não podemos cometer este erro num momento tão decisivo para o Brasil.

    Lauro Campos dizia que, como resultado do trabalho intelectual da burguesia, o indivíduo alienado erige um ponto de vista particular, limitado, que acaba eliminando e obscurecendo outros pontos de vista. Isto é, como falsa consciência, a ideologia impede que sejam observadas as determinações que constituem a totalidade dos fenômenos sociais. Romper com o particularismo, ou com o fetiche das ideias em relação às determinações econômico-sociais, é a melhor forma de superar aquele ponto de vista exclusivo, parcial.

    Por isso, o avanço do conservadorismo não pode ser medido apenas pelo fortalecimento das “ideias conservadoras”. Esta é uma visão unilateral do fenômeno. Em outras palavras, seria um erro interpretar a presente ofensiva do conservadorismo apenas como fenômeno de natureza político-ideológico quando, na verdade, é sua expressão material que representa a verdadeira possibilidade de retrocessos.

    A onda conservadora não encontra sua forma final nas posições de Silas Malafaia, Jair Bolsonaro ou Marco Feliciano. Esses indivíduos e suas visões de mundo, como adverte corretamente Safatle, sempre tiveram alguma penetração na sociedade brasileira. O que estamos vendo, possivelmente, é uma amplificação dos discursos de ódio devido à inexistência de forças de contenção como as que existiram nos anos 80 e 90. Considerar que a onda conservadora se expressa fundamentalmente na forma de “discurso do ódio” reforça a visão unilateral que Safatle reproduz em seu artigo. Ao contrário, a ofensiva do conservadorismo não se restringe à sua dimensão político-ideológica. É no campo das determinações materiais que ela se expressa mais concretamente. Trata-se, em última instância, de uma ofensiva do capital para retomar seus níveis de acumulação e colocar em marcha um novo ciclo de expansão do sistema capitalista. Por isso é necessário eliminar as conquistas democráticas que representam entraves a esta estratégia, tais como a legislação ambiental, os direitos indígenas, o sistema de proteção trabalhista e previdenciário, o controle do Estado sobre setores estratégicos da economia ou dos serviços públicos, dentre outras. Ao contrário do que pensa Safatle, a ofensiva conservadora não se resume a uma torrente de ideias atrasadas, retrógradas, anti-iluministas: sua expressão material pode ser percebida em dezenas de iniciativas que tem como objetivo retroceder em relação aos direitos hoje existentes para “destravar” um novo ciclo expansivo do capitalismo brasileiro.

    Com isso, podemos afirmar, por exemplo, que a Agenda Brasil, oferecida por Renan Calheiros à presidente Dilma, é uma expressão muito mais concreta da ofensiva do conservadorismo que os discursos de Bolsonaro ou Malafaia. Assim como o são a PEC 215, que pretende extinguir a demarcação de terras indígenas, permitindo assim a expansão da fronteira agrícola; o PL 4330, que permite a utilização desenfreada do trabalho terceirizado; a proposta de retroceder ao regime de concessão na exploração do petróleo; e mesmo as medidas do ajuste fiscal de Dilma e Levy, que retiraram direitos trabalhistas e previdenciários, ampliaram as privatizações e o arrocho sobre as contas públicas, diminuindo a capacidade de investimento do Estado enquanto reajustam as taxas de remuneração dos especuladores através dos juros da dívida pública. Ou seja, a ofensiva conservadora se expressa concretamente na retirada de direitos, especialmente aqueles que podem representar barreiras à reprodução do capital em tempos de crise.

    O exemplo da redução da maioridade penal é eloquente. Votada pela Câmara dos Deputados depois de vinte anos de tramitação, a aprovação veio acompanhada, poucos dias depois, de duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que preveem a redução da maioridade laboral, de 16 para 14 anos. Como se vê, mesmo quando o que está em questão é um tema aparentemente de natureza jurídico-penal, os interesses do capital não tardam a surgir.

    Isso não significa, é claro, que o aumento dos casos de homofobia, racismo, xenofobia, violência contra a mulher, intolerância religiosa e defesa de regimes ditatoriais, não componham uma agenda conservadora que prevê retrocessos também no campo das liberdades individuais. O que estamos afirmando, ao contrário, é que esta agenda não existe por si própria: ela se alimenta de condições históricas e sociais geradas pela ofensiva do capital sobre o trabalho. As determinações falsas, defeituosas, alienadas, que constituem a ideologia, correspondem à dinâmica defeituosa, conflitiva e contraditória em que se objetivam as relações sociais em torno da produção, isto é, do conflito entre capital e trabalho, essência determinadora de fenômenos sociais mutuamente dependentes. Abrir mão deste legado interpretativo é aderir completamente ao subjetivismo.

    O artigo de Safatle tem dois méritos inegáveis, a saber, destacar a responsabilidade das esquerdas no avanço das posições conservadoras – em especial aquela que, depois de 14 anos no poder, pouco fez para conter essas posições – e chamar a atenção para o fato de que o conservadorismo não é fenômeno recente no Brasil. Mas ele não soube extrair as conclusões corretas de suas constatações, circunscrevendo a ofensiva conservadora a um produto puramente ideológico, e portanto, falso. Infelizmente, Safatle e sua visão idealista da realidade tem muitos adeptos. Que a esquerda seja capaz de superar o fetiche das ideias e colocar, mais uma vez, a luta de classes no centro de suas análises.

    Juliano Medeiros é historiador e membro da Executiva Nacional do PSOL

     

  • “Velho Chico”, cansado, já não pode ir ao mar

    “Velho Chico”, cansado, já não pode ir ao mar

    Retrato de um desastre ambiental brasileiro. Oceano já avança 24 quilômetros na calha do Rio São Francisco, exangue. Peixes de água doce perecem. Populações penam.
    Retrato de um desastre ambiental brasileiro. Oceano já avança 24 quilômetros na calha do Rio São Francisco, exangue. Peixes de água doce perecem. Populações penam.

    O ‘Velho Chico’ está cansado e não tem forças para caminhar até Atlântico. As águas salobras do mar já invadiram sua calha 24 quilômetros adentro, exatos 10% do trecho final com maior oferta de turismo sustentável e que tem colocado a região como o terceiro maior fluxo turístico de Alagoas. Há três anos a situação se complicou de vez, a estiagem e o desmatamento ao longo de se seus trechos mais altos no Sudeste reduziram drasticamente a vazão do rio.

    A denúncia da agonia do baixo São Francisco surgiu no 1º Seminário Internacional de Turismo Caminhos de São Francisco, ocorrido no começo deste mês, e promovido pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS), Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Alagoas, Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, na cidade de Piranhas, em Alagoas. E foi feita para a secretária estadual de desenvolvimento econômico e turismo, Jeanine Pires.

    “A água do mar entrou e o rio está azulado, na foz em Piaçabuçu estamos com dificuldades para ter água doce. Já tem tubarão, tartaruga marinha e outras espécies que só tem no mar. O pilombeta que é um peixe comum neste trecho do rio está desaparecendo”, alertou o ambientalista e integrante da Associação Olha o Chico, de Piaçabuçu, Jasiel Martins.

    O peixe símbolo, o surubim, que tem uma enorme escultura na praça central de Piranhas, está ameaçado de extinção e praticamente sumiu do rio. A situação era de conhecimento do governo de Alagoas, que tem investido pesadamente no projeto Caminhos do São Francisco, com a grande alternativa turística sustentável e modelo para o país.
    Uma rede de empresários do segmento turístico tem buscado fazer sua parte, pois sabem que o Rio São Francisco é o grande maestro na regência deste novo momento para a economia regional. No hotel Pedra do Sino, em Piranhas, o proprietário Francisco de Assis Clemente, já fez tubulações independentes para captar a água dos quartos, inclusive do ar condicionado, para reaproveitamento. Também tem buscado saídas no uso de energia solar e na captação da água da chuva. “Temos que manter o foco na sustentabilidade”, afirmou.“ A questão da crise hídrica não é só o Estado eu irá resolver, os pescadores tem alertado para a questão do rio. Só vejo uma solução se for global, precisamos cumprir as metas estabelecidas em acordos internacionais tanto pelo governo federal como pelos Estados”, comentou Jeanine Pires.

    A consciência preservacionista vai desde a conservação dos casarios históricos das 12 cidades do eixo do programa Caminhos do São Francisco até um processo de resistência cultural. O empresário Flávio Ferraz, dono da Pousada Trilha do Velho Chico, chegou como turismo do Recife e acabou ficando e empreendendo em Piranhas. E a pegada ambiental é hoje fundamental para a sobrevivência de seu negócio.

    “Eu optei pelo turismo de esporte e de aventura. Os meus clientes tem essa consciência, usamos aqui reaproveitamento da água e energia solar, além da fossa verde. Seja na área dos quartos ou no espaço do camping. O que preocupa é ver o rio nesta condição, tem lugar que já temos que sair do caiaque e levar a embarcação no braço até outro ponto para continuar a navegação”, falava com ar sério, mesmo quando brincava com seu cão, de nome Chicão.

    Júlio Ottoboni é jornalista diplomado, pós graduado em jornalismo científico. Tem 30 anos de profissão, atuou na AE, Estadão, GZM, JB entre outros veículos. Tem diversos cursos na área de meio ambiente, tema ao qual se dedica atualmente.

    Fonte: Outras Palavras

  • Energia eólica e os desafios socioambientais

    Energia eólica e os desafios socioambientais

    Heitor Scalambrini Costa
    Heitor Scalambrini Costa

    A partir de 2007, ano a ano, o crescimento da geração eólica no país chama a atenção.  Se há nove anos a potencia instalada era de 667 MW, em 2015 chegou a 8.120 MW, ou seja, um aumento de 12 vezes. Verifica-se também que vários municípios brasileiros sofreram mudanças radicais com alterações bruscas em suas paisagens e no modo de vida de suas populações. Essas mudanças representam o início de um novo ciclo de exploração econômica, o chamado “negócio dos ventos”.

    Várias são as razões que tem atraído estes empreendimentos a nosso país. Além da crise econômica mundial de 2008 que provocou uma capacidade ociosa na Europa, e assim equipamentos chegaram até nós com preço vantajosos; sem dúvida a “qualidade dos ventos”, em particular na região Nordeste é outro grande atrativo. E é neste território, onde hoje se concentra 75% de toda potencia eólica instalada no país.

    Determinados Estados criaram políticas próprias de incentivo à energia eólica, com Isenções fiscais e tributárias, concessão de subsídios, flexibilização da legislação ambiental (p. ex. Pernambuco aboliu os estudos ambientais  EIA/RIMA). Associados aos financiamentos de longo prazo do BNDES (e mais recentemente da Caixa Econômica Federal), e ao preço irrisório da terra, estas tem sido as razões principais para atrair os empreendedores. É o resultado da combinação destes fatores que possibilita que a energia eólica ofereça preços imbatíveis nos leilões realizados pela Aneel. Tornando assim à segunda fonte energética mais barata. Esta situação esconde o fato dos custos ambientais e sociais decorrentes da implantação dos complexos eólicos serem altos, embora não sejam contabilizados nos “custos” da geração, pois não são pagos pelos empreendedores, e, sim, por toda a sociedade.

    Ao mesmo tempo em que esta atividade econômica teve uma rápida expansão, gerou impactos, conflitos e injustiças socioambientais. São visíveis os impactos provocados por esta fonte renovável, chamada por muitos de energia limpa. Define-se por energia limpa aquela que não libera, durante seu processo de produção, resíduos ou gases poluentes geradores do efeito estufa e do aquecimento global. Ou ainda, que apresenta um impacto menor sobre o ambiente do que as fontes convencionais, como aquelas geradas pelos combustíveis.

    Todavia nas “definições” de energia limpa não são levadas em conta as questões sociais e mesmo ambientais causados pela produção industrial da eletricidade eólica que necessita de grandes áreas, e um volume considerável de água, devido ao alto consumo de concreto para a construção das bases de sustentação das turbinas. Impactos sobre o uso de terras é quantificado pela área ocupada, sendo que em geral, as turbinas eólicas ocupam 6 a 8 ha/MW, a um custo médio de R$ 4,5 milhões/MW. Sem duvida, poderia ser argumentado que estas áreas sejam compartilhadas, como ocorrem em outras partes do planeta, ou seja, utilizada concomitantemente para outros propósitos, como agricultura, criação de pequenos animais, …. Mas isto não vem acontecendo.

    Logo, o modelo adotado de implantação dessa atividade econômica no Brasil é em si, causador de inúmeros problemas ao meio ambiente e as pessoas. Os parques eólicos têm deixado profundos rastros de destruição na vida das comunidades atingidas (exemplos não faltam).  Não somente com a instalação dos aerogeradores, mas desde a obtenção do terreno (pela compra, ou pelo arrendamento), sua preparação (desmatamento, terraplanagem, compactação, abertura de estradas de acesso dos equipamentos), a construção das linhas de transmissão. Destrói territórios, desconstitui atividades produtivas e desestrutura modos de vida de subsistência.

    Tem agravado a situação a velocidade em que os parques eólicos estão sendo instalados, sem o devido acompanhamento e fiscalização, sem que requisitos socioambientais sejam atendidos e cumpridos.

    Na questão da terra necessária para produzir energia em larga escala, os empreendedores vão comprando, ou arrendando as terras da população local. São na verdade desapropriações feitas pela iniciativa privada como parte de estratégias agressivas para implantação dos complexos eólicos, que acabam inviabilizando a sobrevivências de outras atividades econômicas locais, como a pesca artesanal, a cata de mariscos, a agricultura familiar, a criação de animais, ….  Assim comunidades inteiras são afetadas na sua relação com o território e muito pouco, ou quase nada recebem em troca.

    Várias situações marcaram e ainda marcam a presença de empresas eólicas. O discurso do ambientalmente correto esconde práticas socialmente injustas das empresas do grande capital, evidenciadas cada vez mais com o passar do tempo. Para implantação dos parques e complexos as empresas utilizam de diferentes expedientes como a celebração de contratos draconianos com proprietários e posseiros, a compra de grandes extensões de terras, a apropriação indevida de áreas com características de terras devolutas e de uso coletivo.

    Os contratos celebrados põem em dúvida os princípios de lisura e transparência da parte das empresas. Os trabalhadores se sentem pressionados a assinarem os contratos sendo proibidos de analisarem o conteúdo de maneira independente, sempre induzidos por algum funcionário das empresas.

    Quem continua a viver nessas regiões quase sempre enfrenta a impossibilidade de continuar a produção local, de manter seu modo de subsistência. A atividade eólica, tanto costeira ou interiorizada acaba com as condições de sobrevivência no lugar e em seu entorno, gerando poucos empregos de qualidade para os moradores da região, e deixando lucros bem limitados. Tudo isso depois da euforia da etapa de instalação dos equipamentos, com as obras civis, que acabam atraindo por tempo determinado, trabalhadores locais e de outras regiões. Depois das obras concluídas vem à rebordosa, com as demissões. Assim tem acontecido. Cria-se a ilusão de prosperidade com o apoio da propaganda enganosa. O discurso da geração de renda e emprego faz parte da estratégia.

    Com relação à agressão ambiental têm sido atingidas áreas costeiras com a destruição de manguezais, restingas, remoção de dunas, provocando efeitos devastadores para pescadores, marisqueiras, ribeirinhos. Tais situações tem  sido constatadas no Ceará e Rio Grande do Norte.

    Em estados como Bahia, Piauí e Pernambuco a exploração desta atividade ocorre no interior, em áreas montanhosas, de grande altitude, no ecossistema Caatinga e Mata Atlântica (ou o que sobrou dela). E também nos brejos de altitude, existente em Pernambuco e na Paraíba, verdadeiras ilhas de vegetação úmida em meio ao ecossistema seco da Caatinga, onde a vegetação existente são resquícios da Mata Atlântica primária, proliferando mananciais de água que formam os riachos abastecedores de bacias hidrográficas. Portanto são áreas onde se deveriam incentivar a conservação, preservação e a recuperação destes ecossistemas naturais, dos seus mananciais  e cursos de água.

    Todavia, o movimento das administrações municipais, estaduais e federal caminha em sentido contrário ao de proteger estes santuários da vida. Além da omissão e conivência incentivam e promovem o desmatamento de áreas de proteção permanente em nome do “desenvolvimento econômico”, da geração de emprego e renda, justificando a destruição ambiental e a vida das populações nativas em nome do interesse público (?).

    A produção de energia elétrica a partir dos ventos hoje é uma atividade econômica, cujo modelo de exploração implantado, causa inúmeros problemas afetando diretamente a qualidade de vida das pessoas. Contribuindo mais e mais para ampliar um fenômeno que já atinge uma parte importante do território nordestino a desertificação. A produção de energia eólica é necessária, desde que preserve as funções e os serviços dos complexos sistemas naturais que combatem as consequências previstas pelo aquecimento global. Mas também se preserve as populações locais e seus modos de vida.

    Afinal a quem serve este modelo de implantação em que o estado cooptado se omite e não fiscaliza? O que se constata são aspectos negativos que poderiam ser evitados, desde que houvesse o interesse e uma maior preocupação dos governantes quanto aos métodos e procedimentos, uma avaliação mais rigorosa dos licenciamentos que levasse em conta a análise de alternativas locacionais e tecnológicas, assim minimizando os impactos desta fonte energética.

    Logo, não se pode considerar, levando em conta como estão sendo implantados os atuais projetos eólicos, nem que sejam socialmente responsávei, nem que sejam ambientalmente sustentáveis. Longe disso.

    Heitor Scalambrini Costa é professor da Universidade Federal de Pernambuco

  • ‘Belo Monte é muito criminoso, chocante e indignante’

    ‘Belo Monte é muito criminoso, chocante e indignante’

    Antonia Melo
    Antonia Melo

    A usina de Belo Monte, ainda em processo de construção, já gerou enormes impactos em Altamira e certamente é um dos grandes símbolos do desenvolvimentismo lulista, que agora agoniza pelos quatro costados. No entanto, seu rastro de destruição e atropelos deixará marcas eternas na pele dos afetados, que desde os anos 80 resistem ao megaprojeto hidrelétrico. Antônia Melo, militante de longa data contra Belo Monte, acabou de perder sua casa para a truculência do “Consórcio Construtor Lava Jato” e concedeu uma entrevista carregada de emoção ao Correio da Cidadania.

    “Praticamente não podemos sair na rua à noite, a criminalidade e a violência estão muito altas, mais de 100 mil pessoas chegaram à cidade por causa do empreendimento, de maneira que a cidade está inchada, os serviços públicos não dão conta da demanda, não foram criadas estruturas pra receber a grande população que veio. Os órgãos de segurança, justiça, educação pioraram, há muita evasão escolar, já que muitas crianças tiveram de mudar pra assentamentos distantes da cidade e ficaram sem escola, posto de saúde…”, enumerou, numa lista de prejuízos que, dado o histórico, é de se duvidar que sejam reparados

    Para além das mazelas já verificáveis, Antônia atacou toda a teia de corrupção público-privada, grande assunto nacional de 2015, e reiterou todo o jogo que passa ao largo dos interesses da população e diz muito mais respeito a projetos de poder. Além disso, criticou a falta de consciência ambiental dos que argumentam em favor da obra, exatamente quando governos do mundo inteiro se reúnem em Paris para mais uma tentativa de contenção das sequelas de um modelo econômico sabidamente predatório ao meio ambiente.

    “A energia não vai servir a nós. Essa usina só nos destrói e arranca nosso couro. É um projeto à base de propina e garantia de vitórias eleitorais desses governos, de PT, PMDB, PSDB, o diabo que seja. Pra isso que servem. Entregam nossa vida, nossos recursos naturais, acabam com tudo pra ganharem dinheiro dessas empresas em suas campanhas, ainda por cima por meio de BNDES e do Tesouro, e se manterem no poder. Não é nada pro povo. E a população tem de saber, especialmente do Sul e Sudeste, que já estamos no Século 21, no qual o grande assunto é o meio ambiente”, afirmou.

    Por fim, mas não menos marcante, fez um implacável ataque ao que se tornou o Partido dos Trabalhadores, o qual ela própria ajudou a fundar na cidade, inclusive sendo candidata em tempos tão longínquos quanto mais esperançosos. Agora, resta a decepção, a destruição e uma vida a ser reorganizada. Ainda assim, destacou que a luta contra a usina continua.

    “Entraram no poder pra fazer igual ou pior que todos. O que dizer? Belo Monte é um total desrespeito conosco, fomos tratados como meros objetos descartáveis. O PT teve tudo pra fazer a diferença, mas não fez. Foi tudo ao contrário. E agora temos um país em crise, com uma situação de dívidas e tudo mais. Taparam o sol com a peneira pra aproveitar o poder, pegar dinheiro que não era deles… Não tem perdão, não tem perdão”, desabafou a líder do Movimento Xingu Vivo Para Sempre.

    A entrevista completa com Antônia Melo, gravada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida na íntegra a seguir.

    Correio da Cidadania: Primeiramente, o que você pode nos contar do episódio que marcou a perda da sua casa?

    Antônia Melo: É uma situação que já vinha mexendo com minha vida há muito tempo, até que fui expulsa de casa. Mas precisamos nos manter firmes pra enfrentar todo o processo comandado pela Norte Energia. Morava num bairro que as empresas consideram periférico, mas na verdade é perto de tudo no centro da cidade de Altamira, perto de todos os serviços necessários. Não precisava pagar transporte para me locomover a bancos, igreja, escola, hospital, comércio, enfim, sempre tive tudo perto da casa onde morei mais de 30 anos.

    Porém, a área é considerada de risco pela hidrelétrica, passível de alagamento. Mas pode não ser. O empreendimento de Belo Monte é muito obscuro e acima de tudo muito criminoso. A sociedade não teve informações corretas, quando se procuravam os funcionários só nos diziam que o chefe que sabia… A negação de informações à população foi das coisas mais criminosas, ainda mais por eu estar à frente do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, que tem uma história de 30 anos de lutas ao lado de movimentos da região contra tais tipos de empreendimentos, desde os anos 80, quando se chamaria Usina Kararaô.

    É um projeto que vem da ditadura militar e hoje é imposto, conduzido e implantado com resquícios de ditadura: as pessoas não têm direito de falar, não têm voz nem vez. Isso dentro de uma mascarada democracia. As pessoas falam, falam, mas não são escutadas. Servem apenas pra cumprir cronogramas do governo.

    É um processo muito grave, triste e criminoso contra os modos de vida, os direitos humanos e ambientais das pessoas que habitavam a região, sendo todos obrigados a sair. Agora constroem pontes, aterros, parques… Pra quem? Não vai alagar? Se não vai, por que nos tiraram? Um funcionário da obra questionou uma vizinha:

    – Por que não saiu daqui?

    – Porque disseram que não preciso sair.

    – Mas precisamos limpar aqui.

    Ou seja, fomos tratados como lixo. É uma limpeza social. Se não vai alagar a área, só nos tiraram com a finalidade de limpá-la. É tudo muito criminoso, chocante e indignante.

    Correio da Cidadania: O que é a vida em Altamira nos últimos anos, após a chegada da obra? O que você imagina para o futuro da cidade?

    Antônia Melo: Temos tentado explicar à população através de realidades de outas barragens, como Tucuruí, que fica aqui na nossa porta, na região transamazônica. Já há muito tempo erguemos a bandeira de combate à usina. Hoje dizem pra nós: “eu era feliz e não sabia”.

    Somos o polo de uma região de 11 municípios em volta da BR-230 Transamazônica, sempre com movimento social forte e unido em diversas questões, a exemplo de moradia, escola, saúde, transporte, crédito pra agricultores, criação de universidades… Se temos tudo isso em Altamira foi pela enorme luta do movimento social, com trabalhadores e trabalhadores brigando juntos. As melhorias em saúde, educação, segurança, sistema de justiça se deram pela nossa luta. E sempre tendo nosso rio, nossos peixes, a coisa linda que era o Xingu, rodeado de ilhas, sem degradação, tudo bem cuidado. Os indígenas viviam em suas aldeias, cuidavam de sua cultura e de toda essa vida.

    Agora chegou o empreendimento, com grande propaganda do governo federal, que sabia dos 30 anos de luta. As empresas, e também o governo, fizeram um lobby muito bem feito, de seduzir e enganar o comércio, empresários da região… Tudo mentira, mas as pessoas se iludiram com propaganda, dinheiro etc. Foi um cala-boca, que chegou a gerar uma divisão muito grande entre povos indígenas e movimentos sociais, porque parte desses movimentos é do PT e foi obrigada a ficar calada e aceitar o projeto, sem se juntar à oposição.

    É um crime lesa-pátria e lesa-consciência. Tínhamos nossa produção, somos uma região muito rica em peixes, cacau e também madeira, que vive sendo roubada, além de outros produtos florestais. Infelizmente, a pecuária também é grande aqui e já causou muito desmatamento. Mas nós, os índios, os ribeirinhos e a população da cidade tínhamos uma vida de paz em relação a hoje.

    Agora, praticamente não podemos sair na rua à noite, a criminalidade e a violência estão muito altas, mais de 100 mil pessoas chegaram à cidade por causa do empreendimento, de maneira que a cidade está inchada, os serviços públicos não dão conta da demanda, não foram criadas estruturas pra receber a grande demanda de população que veio. Os órgãos de segurança, justiça, educação pioraram, há muita evasão escolar, já que muitas crianças tiveram de mudar pra assentamentos distantes da cidade e ficaram sem escola, posto de saúde…

    As famílias foram jogadas para lugares onde quase não existem serviços. Agora temos a criminalidade, prostituição infantil, violência contra as mulheres e a destruição sem precedente do nosso rio, deixando nossos pescadores sem peixes. E muitas categorias, como pescadores e barqueiros, não têm sido reconhecidas pela empresa como impactadas. As pessoas perdem sua vida e sobrevivência, que girava em torno do rio, são jogadas fora sem direito a nada e têm suas casas queimadas.

    O MP e Ibama mandaram a empresa suspender a retirada de famílias ribeirinhas, e mesmo assim a Norte Energia não obedeceu, tirou as famílias sem pagar quase nada e queimou casas.

    A cidade está desfigurada, estão aterrando a beira do rio e suas praias, tudo sem consultar a população, que não pode dizer nada, ser ouvida, vista e, acima de tudo, respeitada em seu dia a dia. Com Belo Monte e tais empreendimentos a lei do país não tem nenhum valor. O governo empodera as empresas, que tomam conta de tudo na nossa vida, e ainda temos a infelicidade de o sistema judiciário do Brasil estar a favor e ao lado desses crimes, concedendo liminares para que o projeto continue.

    Correio da Cidadania: Como recebeu a notícia da negação da Licença de Operação da usina? Muda alguma coisa a essa altura?

    Antônia Melo: Não damos mais nenhuma credibilidade ao governo e ao Ibama, que se tornou um órgão que meramente assina liminares criminosas contra os direitos da população e a lei de licenças ambientais do país. A notícia pode ser boa, nos deixou contentes, no sentido de que não fizeram nada mais que a obrigação para limparem um pouco a própria barra com a população daqui. Porque a omissão, negligência e conivência do Ibama com tudo que vimos aqui são imensuráveis.

    Foi o mínimo de obrigação do órgão licenciador e acima de tudo fiscalizador – coisa inexistente nos últimos anos. E só porque viram que existe muita pressão. Nós dos movimentos sociais, do MP Federal e outras organizações, como a Corte Interamericana e a Comissão de Direitos Humanos da ONU, temos ações e denúncias de irregularidades e violações de direitos humanos.

    Belo Monte é tão perverso que vimos aqui na região deputados eleitos virarem as costas pra gente e apoiar o governo e esses crimes. Ficamos sem representação política, porque ninguém queria contrariar Belo Monte e desagradar governo e empresas. Só um deputado estadual do Pará, na Comissão da Amazônia, tentou fazer alguma coisa, mas sozinho. Ele promoveu uma audiência com as autoridades na câmara federal no mês de agosto, na qual estavam Ibama, autoridades, empresas, e causou bastante impacto.

    Tivemos reuniões com a presidência do Ibama em Brasília e Belém, na qual participamos e entregamos um calhamaço de denúncias sobre o que ocorre aqui. Portanto, seria muita cara de pau que a presidente do Ibama assinasse a Licença de Operação com tamanha quantidade de denúncias que recebeu. Depois, o Ibama estabeleceu 12 pontos condicionantes para o consórcio regularizar, coisa que não dá pra fazer em um ano, que versam, por exemplo, sobre a situação precária dos indígenas que têm terras invadidas.

    Mas sabemos que a qualquer hora vão assinar a licença, porque a Dilma vai mandar, porque o governo tem compromisso com as empresas, que pagaram todas as conhecidas propinas de campanha. O consórcio construtor, de quem ninguém fala e tem o nome muito acobertado, é conformado também por órgãos do governo, como a Eletrobrás, e financiado pelo BNDES, ou seja, pelo nosso dinheiro. E as empresas privadas que fazem parte são todas denunciadas pela Operação Lava Jato e já tiveram diretores presos.

    Assim, dá pra ver bem que projeto é esse, o que tem por trás, por todos os lados, em relação a Belo Monte. Nossa vida mudou pra muito pior, é uma desilusão muito grande. Mesmo assim seguimos lutando, porque o modelo implantado por governo e empresas pra Amazônia é uma desgraça. E se a população do Sul e Sudeste não abrir os olhos e se voltar ao que acontece aqui na Amazônia vamos todos pagar um preço muito alto e ser responsabilizados pelas futuras gerações, como destruidores irresponsáveis.

    Vamos escrever um livro pra gravar na memória das futuras gerações quem destruiu o Xingu e a Amazônia, com nome e endereço de cada um.

    (Nota da Redação: em 25 de novembro, após a realização desta entrevista, o Ibama assinou a Licença de Operação, que permite ao consórcio começar a encher de água o reservatório da usina).

    Correio da Cidadania: Já que você menciona os habitantes do Sul e Sudeste, o que pensa da argumentação de que a energia a ser gerada pela usina é indispensável para o abastecimento energético do país?

    Antônia Melo: Temos orientação de especialistas da área energética e da universidade, e eles dizem ser um horror, uma grande mentira. O Brasil não precisa de Belo Monte. Quem se debruça sobre o projeto já vê o que governo diz às empresas: é uma das maiores usinas do mundo, que vai gerar 11.000 megawatts (MW) de energia. Mas isso é o lobby. Ao mesmo tempo, diz que vai gerar 4.000 MW de energia firme. Pra um empreendimento que custa mais de 30 bilhões de reais de dinheiro público, entre Tesouro e BNDES, gerar só isso de energia firme é inviável.

    No entanto, é um projeto pessoal do Lula, que sempre disse que ninguém nunca teve coragem de levar a ideia adiante, enfrentar os índios e oposições, e a usina seria feita de qualquer jeito. É o que está acontecendo. O Brasil não precisa de Belo Monte, tem energia de sobra. Especialistas dizem que 15% da energia gerada é desperdiçada na distribuição, cujas estruturas são obsoletas e arcaicas.

    Além de tudo, para nós do estado do Pará, e Altamira especificamente, estamos pagando a energia mais cara do país, e de péssima qualidade. Portanto, a energia não vai servir a nós. Essa usina só nos destrói e arranca nosso couro. Deixamos de comer pra pagar energia. É um projeto à base de propina e garantia de vitórias eleitorais desses governos, de PT, PMDB, PSDB, o diabo que seja. Pra isso que servem.

    Entregam nossa vida, nossos recursos naturais, acabam com tudo pra ganharem dinheiro dessas empresas em suas campanhas, ainda por cima por meio de BNDES e do Tesouro, e se manterem no poder. Não é nada pro povo. E a população tem de saber, especialmente do Sul e Sudeste, que já estamos no século 21, no qual o grande assunto é o meio ambiente. Temos a Conferência de Paris, todos pensam e clamam pela melhoria das condições ambientais, e vemos os governos fazendo todas as tramoias apenas pra se manterem no poder.

    Sem falar de outras fontes de energia, como a solar. Na região Norte, é uma coisa tremenda o sol, a situação climática está muito ruim, o calor está imenso. São os resultados de Belo Monte aparecendo. Já tivemos muitas queimadas de árvores e ilhas do Xingu, e o governo, questionado pela BBC, vem afirmar que Belo Monte tem suas falhas, mas não vai abrir mão das hidrelétricas na Amazônia.

    Assim, se os povos de tais regiões não pararem de consumir, consumir e consumir, como uma doença, sem se dar conta de que por trás disso tem muito suor, sangue e morte, nosso futuro fica mais obscuro, tanto do Brasil quanto de toda a humanidade.

    Correio da Cidadania: Você fundou o PT em Altamira. Como enxerga o partido hoje em dia, em especial diante da atual crise que praticamente deixa o governo Dilma de mãos atadas? Que balanço você faz dos 13 anos de governos petistas e do processo político conhecido pelo nome de lulismo?

    Antônia Melo: De fato, participei da fundação do PT em Altamira, fui filiada, candidata pelo partido três vezes, sem dinheiro nenhum, apenas pra ajudá-lo a crescer. Por assim dizer, me lasquei, com todo esse sofrimento, acreditando ser uma saída para a melhoria ao país, com mais respeito pelas pessoas. Conseguimos construir o partido, eleger vários deputados, realmente houve um grande crescimento. Pra depois chegarem no poder e praticarem toda essa covardia. E agora convivemos com as denúncias da Operação Lava Jato… Quer dizer, entraram no poder pra fazer igual ou pior que todos. O que dizer?

    Foi uma grande traição, não suporto mais, não acredito mais no partido de maneira nenhuma. Sou veementemente contra o PT, exatamente porque fui enganada, traída e não tolero mais. Por isso me desfiliei e critico bastante mesmo tudo que vejo de errado. Belo Monte é um total desrespeito conosco, fomos tratados como meros objetos descartáveis.

    O PT teve tudo pra fazer a diferença, mas não fez. Foi tudo ao contrário. E agora temos um país em crise, com uma situação de dívidas e tudo mais. Taparam o sol com a peneira pra aproveitar o poder, pegar dinheiro que não era deles… Não tem perdão, não tem perdão.

    Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas

    Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 19 de dezembro de 2015

  • Ideologia e política

    Ideologia e política

    A_QUESTAO_DA_IDEOLOGIAO campo onde a ideologia manifesta mais explicitamente seu poder de enviesamento é, com certeza, o campo da atividade política.

    O sujeito da ação política é alguém que quer conhecer o quadro em que age, quer poder avaliar o que pode e o que não pode fazer, mas, ao mesmo tempo, é um sujeito que depende, em altíssimo grau, de motivações particulares – suas e dos outros – para agir.

    Por mais sinceros que sejam os princípios universais que adota, o sujeito da ação política atua de maneira a mobilizar pessoas que, de fato, só se mobilizam em função de motivações pessoais. De desejos próprios, de interesses particulares.

    A política é levada, assim, a lidar com duas referências contrapostas, legitimando-se através da universalidade dos princípios e viabilizando-se por meio das motivações particulares.

    O problema se agrava, ainda, na medida em que, para enfrentar a concorrência, para competir com outros sujeitos, que procuram arregimentar seguidores para uma caminhada que se dispõe a seguir em outra direção, o político é levado as misturar as duas coisas: o universal e o particular. E é a confusão dos dois polos que manifesta, de modo explícito e permanente, a presença do viés ideológico.

    Uma política que se subordinasse rigorosamente à universalidade dos princípios não conseguiria promover uma mobilização ampla, consistente e duradoura de indivíduos particulares. E – o que é pior – caso tal política venha a funcionar ela terá efeitos deformadores extremamente graves na cabeça daqueles que ela arregimentou, caracterizando-se como um movimento de produção de fanáticos.

    Por outro lado, uma política que esvaziasse os princípios universais de qualquer conteúdo real, que se dispusesse a aproveitar com total desenvoltura quaisquer vantagens circunstanciais, sem se preocupar com compromissos programáticos ou com metas a médio e longo prazo, seria uma política de oportunistas, de indivíduos incapazes de se elevarem ao nível de uma dedicação fecunda à comunidade.

    Em geral, os caminhos trilhados pela política evitam uma opção explícita por uma dessas linhas extremadas: o doutrinarismo, o oportunismo crasso, o cinismo ostensivo ou a completa indiferença. São frequentes as combinações de elementos representativos de tais direções, porém combinados em graus diversos. E é nessa combinação hábil que se enraíza a ideologia.

    Cada pessoa, cada grupo, ao intervir na política, ou ao se omitir em face dela, tende a acreditar que seu ponto de vista é o mais adequado às necessidades ou às conveniências da humanidade do que o ponto de vista dos outros.

    Quando se trata do exercício do poder, aqueles que têm a posse dos grandes maios de produção inevitavelmente tendem a ficar convencidos (e tratam de convencer os demais) de que a situação de que se beneficiam é, se não a melhor, ao menos a menos ruim das situações possíveis. Na medida em que os conhecimentos proporcionam algum poder, aqueles que detêm o saber tendem a acreditar necessariamente que a superioridade da sua cultura só não é reconhecida por ignorância ou por má fé. Os ricos, por sua vez, costumam crer que a existência de diversidade nas fortunas é normal, já que pode ser constatada em todas as sociedades. E os privilegiados se inclinam a considerar seus privilégios como direitos.

    Essa capacidade de se auto-iludir confere aos detentores do poder e da riqueza uma eficiência maior na argumentação, no modo como iludem os outros. A mentira desavergonhada não consegue, em geral, ser convincente como o discurso político acolhe elementos de auto-ilusão.

    É sintomático que a mitologia grega, tão rica, não tenha tido um deus específico para a política. O comércio tinha um deus, que, aliás, era bastante safado: Hermes (o Mercúrio dos romanos). A indústria tinha um deus: Hefesto (o Vulcano dos romanos), casado com Afrodite, a deusa da beleza, e traído por ela. A sabedoria tinha uma deusa: Palas Atena (a Minerva dos romanos). E o deus da política, quem seria?

    Zeus, o deus dos deuses, fazia política o tempo todo, no Olimpo, mas nunca se dispôs a ser o deus da política. Os atenienses do tempo de Péricles prezavam muito as prerrogativas da cidadania, discutiam bastante. Um pouco mais tarde, Aristóteles escreveu um famoso tratado intitulado A política. A palavra derivava de polis e e designava uma relação intersubjetiva. Enquanto a poiesis era a produção de uma coisa (relação sujeito/objeto), apráxis era a ação dos cidadãos uns em relação aos outros, era a atividade do homem livre empenhado em persuadir os demais (relação sujeito/sujeito).

    Apesar da importância que reconheciam à atividade política, os atenienses – que foram mais longe do que todos os demais povos da Antiguidade na experiência da polis – não tinham um deus para ela.

    A política, com suas ambiguidades, com suas tensões entre o universal e o particular, entre o ideal e o interesse, com suas possibilidades libertárias e seus poderosos meios de manipulação e de opressão, com sua grandeza e suas misérias, talvez tenha parecido aos gregos um espaço humano, demasiado humano para que algum deus o apadrinhasse.

    Em Atenas, a cidade deu origem à ideia de cidadania. O conceito chegou até nossos dias, porém seu significado sofreu alterações importantes. Para Aristóteles, cidadão era quem podia – e devia – participar das decisões do governo. Quer dizer: pela primeira vez na história os cidadãos constituíam um grupo numeroso, mas ainda assim minoritário, já que ficavam de excluídos da cidadania os escravos, as mulheres e as pessoas que não haviam nascido em Atenas.

    Muitos séculos mais tarde, nas condições da história moderna, essa concepção de cidadania mudou. Desenvolveu-se a exigência democrática de que os direitos da cidadania valessem para todos e incluíssem não só os direitos políticos mas também os direitos civis. O pensamento político mais avançado vê a cidadania como uma meta a ser conquistada e uma condição a ser aprimorada por todos e para todos.

    Como escreve Carlos Nelson Coutinho: “A cidadania não é dada aos indivíduos uma vez para sempre, não é algo que vem de cima para baixo, mas resultado de uma luta permanente, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando assim um processo histórico de longa duração” (Coutinho, 2000, p. 51)

    Em face desse processo histórico, a ideologia conservadora atua de duas maneiras diversas: 1) em uma linha explicitamente antidemocrática, de oposição ao processo e 2) em uma linha que declara sua adesão ao movimento de construção e aprimoramento da cidadania, porém de fato subordina o apoio à preservação do controle feito por setores de elite.

    Na primeira linha se encontram movimentos de extrema direita, como o fascismo e o nazismo. Em vez de se limitarem a uma resistência passiva às mudanças, esses conservadores radicais são ativistas, tomam iniciativas ousadas. Em sua atuação no século XX, eles não hesitaram em saquear até o quadro das experiências práticas e o acervo conceitual da esquerda revolucionária.

    Mussolini, por exemplo, buscou em Marx dois conceitos essenciais (modificando-os, é claro): o de luta de classes e o de ideologia. Reconhecendo a existência da luta de classes, o Duce corrigiu o autor de O Capital, sustentando que era exatamente para disciplinar o conflito que precisava ser criado o Estado forte, ditatorial, capaz de se impor tanto aos capitalistas como aos trabalhadores: o Estado fascista.

    E, admitindo a justeza da observação de Marx segundo a qual é impossível avaliar mais aprofundadamente uma ideia sem levar em conta seu condicionamento histórico e seu uso social, Mussolini concluiu que afinal tudo é ideologia e no discurso só importas mesmo a utilidade imediata do que está sendo dito. De tal modo que a unidade de teoria e prática, pensada por Marx, virou uma pragmática identidade de teoria e prática. A teoria perdeu a capacidade de criticar a ação, o conhecimento deixou de ter exigências próprias significativas.

    Coerente com sua perspectiva, Mussolini dispensava qualquer compromisso com a coerência. Definia o fascismo como um movimento super-relativista, porém advertia que ele precisava do mito da italianidade. Anunciou que os fasci jamais se tornariam um partido e poucos meses depois presidiu o congresso de fundação do Partido Nacional fascista, caracterizando-o como o coroamento da experiência anterior. Fez pronunciamentos pela monarquia e pela república.

    Justificando a violência fascista, assegurou que ela não era imoral porque não era fria e calculada, e sim instintiva e impulsiva. Alguns meses mais tarde, exaltou a violência fascista porque ela era “pensante, racional, cirúrgica” 9Konder, 1977, p.32).

    Tudo isso para o Duce era compatível com sua concepção da ideologia, quer dizer, correspondia a um conceito de ideologia que reduzia a construção do conhecimento à racionalização de desejos e interesses e à produção de armas usadas nos conflitos políticos, sempre em função das circunstâncias e das conveniências momentâneas.

    Essa comcepção rudemente pragmática de ideologia não foi adotada apenas por Mussoliuni e pelos fascistas; com algumas variações, de fato, ela teve muitos outros adeptos nos anos 20, 30 e 40, entre eles numerosos representantes da versão mais difundida do marxismo-leninismo.

    E ainda convém acrescentar: até um historiador muito distante do fascismo e do movimento comunista, um pesquisador que fez observações muito agudas sobre fenômenos ideológicos, como Noberto Elias, endossou essa forma extremamente empobrecida do conceito, o que o levou, afinal, a recusá-lo.

    Em sua fina análise do precesso civilizador, depois de ter estudado o condicionamento social dos medos e ansiedades dos indivíduos, sua força, forma e papel na personalidade das pessoas, Elias não se dá conta dos pontos de contato existentes entre sua abordagem e as preocupações que se manifestam na questão da ideologia, como ela emerge do pensamento de Marx.

    E, na parte final de sua obra, explicita sua rejeição do conceito que atribui ao outro nos seguintes termos: “Não faz sentido explicar o processo civilizador como uma superestrutura ou ideologia. Isto é, exclusivamente a partir de sua função como arma na luta entre interesses sociais específicos” (Elias, 1993, vol. 2, p. 235).

    Mas essa breve referência ao mal-entendido encontrado no livro de Nobert Elias não deve nos afastar do objetivo que pretendemos alcançar, que é o de dizer algo sobre as duas linhas de atuação mais influentes da ideologia conservadora no âmbito do processo democratizador de formação da consciência da cidadania.

    Já dissemos algo sobre a linha mais drasticamente antidemocrática, agora cabe nos determos rapidamente sobre a segunda linha, que subordina seu apoio ao fortalecimento da cidadania ao controle do processo por parte de uma elite.

    Como ideologia, o elitismo é bem mais sutil do que tendências ostensivamente antidemocráticas. Em muitos casos, os representantes dessa linha que se declara favorável ao fortalecimento da cidadania, porém se preocupa com fenômenos de massificação, percebem e apontam problemas reais, dificuldades que o processo de democratização da sociedade não pode ignorar. Embora abordem a questão de um ângulo que lhes impõe limites para a análise, revelam às vezes perspicácia na crítica de procedimentosdemagógicos e atitudes populistas. Reagem contra a atribuição de saberes um tanto mágicos às massas populares (como se os de baixo tivessem sido miraculosamente preservados de quaisquer efeitos deformadores exercidos pela ideologia dominante).

    Para os teóricos mais influentes ligados a essa tendência, sempre existiram de um lado os que governam e de outro os que são governados. E, dando um passo adiante, já caracterizado como um movimento nitidamente ideológico, esses teóricos (Mosca, Pareto etc.) asseguram: sempre existiram e sempre existirão essas duas categorias.

    A constatação de uma determinada situação histórica que tem perdurado é transformada em uma tese que engessa o quadro, coagula a situação, eterniza e legitima a contraposição, estratificando-a e anulando assim, toda possível história futura diferente, exterminando toda possibilidade de mudança inovadora.

    Existem, sem dúvida, diferenças entre os seres humanos, pessoas que se mostram mais bem preparadas e mais talentosas que as outras, e que constituiriam de algum modo umaelite, que não se confunde com os grupos de detentores do poder político e da riqueza. Mas esse destaque é circunstancial, o espaço dos melhores é ocupado por uma população flutuante, seus habitantes são provisórios e não têm nele residência garantida. O sábio de hoje pode se tornar rapidamente o tolo de amanhã. De uma hora para outra, qualidades viram defeitos, acertos resultam em erros. E a qualquer momento, os de baixo – sem que os idealizemos! – podem nos surpreender com a perspicácia de seus insights.

    A distorção ideológica do elitismo não está no fato de ele advertir contra os riscos do plebeísmo, de uma perda de qualidade cultural ou de socialização da vulgaridade, e sim na incapacidade de seus teóricos para enxergar as potencialidades do aprendizado das camadas populares através da participação ampliada no exercício da cidadania.

    Assustados com as expressões mais barulhentas dos movimentos sociais, os teóricos do elitismo repetem que são favoráveis ao progresso, mas sem sacrifício da ordem; recomendam prudência e moderação; e asseguram que qualquer radicalização nas reivindicações populares igualitárias pode prejudicar os delicados mecanismos de proteção das liberdades individuais.

    A distorção ideológica começa na resposta que esses teóricos dão à questão proposta por Antonio Gramsci: é impensável a possibilidade de que algum dia venha a ser superada a divisão dos seres humanos entre governantes e governados? Entre dirigentes e dirigidos?

    Na medida em que consideram a hipótese da superação da dicotomia perigosamente utópica, os teóricos do elitismo não só se recusam a admiti-la (não se permitem sequer enxerga-la como possibilidade) como se insurgem contra aqueles que a reconhecem como futuramente alcançável.

    Mesmo entre os liberais, essa distorção ideológica pode ser percebida com sintomática clareza. Se fossem coerentes com o discurso que fazem, ainda que céticos em relação à utopia de uma sociedade integralmente democratizada, eles aceitariam como legítima a busca dessa democratização e defenderiam o direito dos outros de tentar alcança-la. (Podemos lembrar a frase famosa do liberal Voltaire: “Posso não concordar com nenhuma palavra daquilo que o senhor está dizendo, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.) No entanto, ao longo da história dos dois últimos séculos, numerosos liberais têm, com frequência, apoiado ditaduras e políticas de repressão aos socialistas e às correntes de esquerda, em geral.

    Esse fenômeno, aliás, nos faz lembrar que uma das característica da ideologia, tal como Marx a analisou, está no fato de que ela se revela com maior franqueza na ação do que no discurso.

    Falando, o político – desde os tempos de Péricles, em Atenas – pode conseguir convencer os outros de que os interesses particulares por ele representados coincidem com os interesses gerais da sociedade. Agindo, porém, pondo em prática suas ideias, traduzindo-as em medidas práticas, que são sentidas no cotidiano da comunidade, cada um terá ocasião de avaliar por conta própria, com maior objetividade, o conteúdo real da política que está sendo implementada.

    [KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p 248-256]

    Biliografia:

    COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente. São Paulo: Cortez, 2000.

    KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

    ELIAS, Nobert. O processo civilizatório. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

  • “Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab”

    “Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab”

    viaduto-alcantara-machadoA população de rua da cidade de São Paulo está estimada em cerca de 16 mil pessoas, segundo dados da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). A metade vive na região central da cidade, especialmente na Sé. Há inúmeros debates em torno deste tema e nos atentamos ao que acontece especificamente na Avenida Radial Leste, debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado. Buscando novos paradigmas no atendimento e fortalecimento da população em situação de rua, trabalhadores sociais da prefeitura se uniram para formar o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais).

    A ideia não agradou muito ao poder público e mesmo a socialmente elogiada gestão Haddad se zangou. Por três vezes tentou desalojar as tendas e, agora, ameaça conseguir – além de demitir os trabalhadores ligados ao Catso. Marcamos presença no ato de rua que o coletivo chamou no último dia 26 de novembro, quinta-feira, em frente à prefeitura de São Paulo e entrevistamos a trabalhadora social Pamela Maria para um entendimento maior da questão.

    “A única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é gentil, entre aspas, que é como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos, do qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto, mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto”, afirmou.

    O fechamento do espaço estava marcado para o último dia 4 de dezembro. Na tarde do dia 7, entramos em contato novamente com Pamela Maria para atualizar a entrevista. O Catso, juntamente com o Padre Júlio Lancelotti da Pastoral do Povo de Rua, acionou o Ministério Público contra o fechamento da tenda. Nada aconteceu e as tendas foram oficialmente fechadas. Se na Tenda Bresser a prefeitura retirou todos os móveis na última sexta-feira, a Tenda Alcântara segue ocupada pelos trabalhadores sociais e pela população de rua em resistência às políticas da prefeitura.

    “A proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico, o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo: não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes”.

    Confira abaixo a entrevista com Pamela Maria, do Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais.

    Correio da Cidadania: Como começou o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais) e o que tem desenvolvido debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado, na Radial Leste, junto à população de rua?

    Pâmela Maria: Fazemos um trabalho de quase dois anos com a população de rua. Essencialmente, temos duas frentes no coletivo. Uma com os trabalhadores sociais, que são precarizados. Fazemos essa discussão com todas as frentes que trabalham com a população de rua e também com outras esferas do serviço social.

    A outra frente é diretamente com a população de rua, que é na verdade onde mais nos dedicamos. O objetivo é dar voz ao povo de rua, criar um espaço onde seja possível se organizar horizontalmente, buscando a autonomia desta população para que ela tenha suas demandas colocadas em pauta por eles mesmos. A assistência social tem a característica de fazer propostas de cima para baixo e isso nunca é questionado, muito menos pela população rua.

    Por isso, temos a questão de trazer a população de rua para os ambientes onde eles não seriam bem vistos e quistos, que são as reuniões e os outros espaços do poder público, no caso da prefeitura, subprefeitura e assim por diante. Nós os levamos lá para que falem da vida deles, ao invés de serem representados.

    Correio da Cidadania: Qual tem sido o resultado dessa ação prática e como os moradores de rua tem recebido o trabalho?

    Pamela Maria: Temos uma caminhada com várias vitórias. Por mais que sejamos um coletivo de apenas dois anos, já conseguimos libertar homens que foram presos em albergues e revogar três fechamentos das tendas Alcântara Machado e Bresser – essa é a quarta vez que estão tentando.

    Na minha visão pessoal, mesmo estando há pouco tempo no Catso, sinto que a população de rua vê o próprio exemplo de estarmos na rua com eles, que estamos juntos. Que eles podem contar com a gente, que se agora o fechamento vier a acontecer mesmo, vamos estar lá, de peito aberto, se tiver repressão ou se não tiver, independentemente disso. Vendo-nos, eles vão nos conhecendo, nós vamos nos organizando juntos e eles nos veem como amigos.

    Correio da Cidadania: Como é organizado o dia-a-dia nas tendas? Que diferenças há entre o que o Catso propõe em relação ao que acontecia anteriormente?

    Pamela Maria: A Tenda Alcântara desde o princípio tinha pessoas que depois vieram a formar o Catso. Desde o começo tínhamos a proposta da horizontalidade e das assembleias abertas. Todas as decisões que são feitas na Alcântara – onde estou mais presente – referentes a horários de banho, abertura, fechamento, televisão, é tudo decidido em assembleia, todas as regras são decididas em assembleia, e nós buscamos entre os trabalhadores que a horizontalidade seja praticada em todos os níveis. Todo mundo tem voz, todo mundo decide, todos podem falar burocraticamente com o poder público. Tem também uma questão: todo mundo lava banheiro e faz absolutamente todas as coisas que precisam ser feitas no espaço.

    Buscamos terminar com o vínculo assistencialista e colocar a população como um agente. É como se nós não estivéssemos empregados, estamos juntos com eles em todas as decisões. No começo, a polícia não deixava montar nem barracas de lona por lá. A postura dos trabalhadores sempre foi de acompanhar as abordagens, bater de frente – muitas vezes fisicamente – com o rapa, para impedir que eles fizessem esse tipo de ação. Com o tempo, ao sentir-se segura, a população de rua começou a fazer suas malocas de madeira.

    A ocupação Alcântara Machado aconteceu logo após uma ação da polícia na qual levaram todas as coisas embora e derrubaram todos os barracos. Daí o pessoal tocou fogo nos restos dos barracos e logo ocupou uma academia que tinha na frente da tenda, no próprio viaduto. Ali, fizeram uma cozinha comunitária, foram montando e se organizando. No viaduto Bresser, a comunidade surgiu de forma mais orgânica. Eles chegaram, montaram as malocas de lona, foram ficando, melhorando o espaço e aos poucos substituíram a lona pela madeira.

    Correio da Cidadania: Passamos pela gestão Gilberto Kassab, um completo desastre sob os aspectos sociais e, de 2012 para cá, houve a mudança para o prefeito Fernando Haddad. Para muita gente, significava uma mudança de postura. Até que ponto tal mudança aconteceu, ou não?

    Pamela Maria: vemos que a única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é “gentil”, entre aspas, como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos (de auxílio a dependentes químicos na chamada Cracolândia, centro de São Paulo), o qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto.

    Mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto. Criou a IOPE, que é uma polícia de elite da GCM – antes desarmada e hoje armada. Portanto, não dá para dizer que só o Kassab é o grande higienista enquanto na gestão Haddad as coisas estão se intensificando. Se você perguntar para qualquer morador de rua, eles estão apanhando da GCM hoje da mesma forma como apanhavam antes e as expulsões continuam iguais.

    Correio da Cidadania: E em relação aos trabalhadores sociais, como está funcionando a perseguição?

    Pamela Maria: Eles nos perseguem e tentam cercear os nossos espaços. Não fomos convidados inclusive para coisas que são técnicas e fazem parte do serviço social. Em reunião, mudaram todas as regras internas do pernoite e de como seria a divisão dos albergues: as Tendas Bresser e Alcântara Machado não foram convidadas para participar da reunião – que é técnica e na qual deveríamos estar – e com isso temos um boicote cada vez maior em relação às vagas de albergue.

    Como diz uma companheira, “temos trabalhado com a arma na boca”. A ONG não faz nada. Já procuramos o sindicato algumas vezes para tentar pressionar e nunca se posicionou. Além disso, a prefeitura está sempre lá ameaçando novos fechamentos, já mandou embora várias pessoas de outros serviços que tentavam colaborar conosco e nós somos ameaçados o tempo todo de demissão, coisa que já houve. Gerentes de outros espaços que souberam de trabalhadores ligados ao Catso os demitiram ou transferiram para outros lugares, a fim de perderem o contato conosco. Isso sem contar as ameaças verbais.

    Trabalhadores ligados ao Catso também já foram fechados em salas com supervisores da assistência para receber “broncas”, porque o que eles querem é nos coagir em relação a essa luta. Tanto que o fechamento das tendas é mais um modo de coação, já tentaram três vezes, não conseguiram e agora vieram com toda a força para acabar com esse tipo de mobilização, onde a população de rua tem voz junto aos trabalhadores.

    Correio da Cidadania: Como você explica a manifestação do dia 26/11 e como está sendo articulada a resposta do coletivo e da população de rua para reverter a repressão e os retrocessos aqui discutidos?

    Pamela Maria: Estamos de aviso prévio e a data de fechamento das tendas era 4 de dezembro. O ato contra o fechamento das tendas e a remoção das malocas foi em 6 de dezembro. É o que soubemos por fontes. Nesse dia, chegariam o “rapa” e a polícia para remover as comunidades Alcântara Machado e Bresser. Logo, o protesto foi para visibilizar o não fechamento das tendas e a não remoção das comunidades dos viadutos.

    Sem querer ser pessimista, mas acho que isso não vai acontecer. O Haddad já deixou bem claro que já conhece o coletivo e não quer nos deixar lá. É uma contradição, pois trabalhamos para a prefeitura, em um serviço que é dela, e a própria prefeitura é contra o nosso trabalho e critica as nossas ações. Portanto, é bem claro para nós que ele não vai voltar atrás. Talvez com uma pressão maior, com muito esforço, talvez seja possível. Mas eu, particularmente, estou bem pessimista.

    Falta diálogo. O pessoal da rua não quer o auxílio aluguel, que é a principal proposta da prefeitura, que prevê o oferecimento de R$1200 a cada três meses, ou seja, com 400 reais por mês. Todos sabemos que é impossível de se viver em São Paulo, não se aluga nada, muito menos quem tem trabalho, creche e escola das crianças mais próximos do centro.

    É isso: a proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo, não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes.

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

  • Porquê tantos votos na FN em França?

    Porquê tantos votos na FN em França?

    Não existe uma explicação simples e única para a subida do voto na FN, que começou em França nos anos 80. Marine Le Pen, foto de Blandine Le Cain/flickr
    Não existe uma explicação simples e única para a subida do voto na FN, que começou em França nos anos 80. Marine Le Pen, foto de Blandine Le Cain/flickr

    Os resultados da Frente Nacional (FN) na primeira volta das eleições regionais [francesas] vão provocar inúmeras tentativas de explicação, em especial à esquerda, e muito bem. Eis as minhas, na forma de hipóteses que os comentadores não deixarão de criticar, e isso é também muito bom. Se pelo menos este terrível choque pudesse servir para profundos questionamentos, não seria totalmente deprimente, como acontece agora. As minhas hipóteses são as seguintes, num curto resumo porque sobre este assunto um livro inteiro não chegaria.

    1) Não existe uma explicação simples e única para a subida do voto na FN, que começou em França nos anos 80. Mas podem identificar-se alguns fatores claramente importantes.

    Tratando-se da subida da votação na FN em trinta anos, eis aqui alguns gráficos sobre o número de votos nas diversas eleições (fonte). A mesma fonte apresenta também gráficos corrigidos tendo em conta a evolução do número total de eleitores inscritos, mas isso não altera as minhas conclusões.

    Eleições departamentais
    foto1
    Eleições presidenciais
    foto2
    Eleições legislativas
    foto3
    Eleições europeias
    foto4
    Eleições regionais
    foto5
    (o site não integrou ainda os resultados das eleições de domingo passado, que é de mais de 6 milhões de votos)

    2) A gestão neoliberal da crise

    Pode-se comentar estes gráficos até ao infinito devido às grandes diferenças entre as eleições, o que é feito pelo site que é a fonte destes dados, mas eu concentrar-me-ei em duas questões: no seu conjunto, entre a segunda metade dos anos 80 e da década passada, os votos na FN não progridem, até regridem um pouco, apesar do episódio das presidenciais de 2002 ter sido um grande alerta. O primeiro grande salto em frente teve lugar com Sarkozy entre 2010 e 2012. O segundo entre 2012 e agora, no tempo de Hollande, Valls, Macron e outros.

    É portanto na crise que começou em 2008, ou mais exatamente na gestão neoliberal desta crise pelos responsáveis políticos que acabo de citar (austeridade para o povo, benesses para os bancos e o MEDEF, desemprego e desigualdades em grande crescimento, destruição parcial do direito do trabalho, da proteção social e dos serviços públicos) que se não “explica” o aumento da votação da FN nos últimos quase cinco anos, pelo menos constitui o seu terreno fértil, por via nomeadamente do desemprego e das desigualdades.

    3) O lado sombrio do desemprego e das desigualdades

    Os indícios de uma forte correlação entre o aumento do desemprego e a subida da votação na FN abundam, quer se trate de análises sobre os resultados nacionais em diferentes momentos (ver o site precedente), ou de análises segundo os territórios, como o que foi publicado em abril de 2014 no Libération. Mas o outro grande fator social influente é não a pobreza mas as desigualdades: o mapa da França do voto na FN em 2014 está muito próximo do mapa das desigualdades de rendimentos, ver a análise, recheada de outros mapas bastantes significativos, do demógrafo Hervé Le Bras publicada este ano.

    Dois grandes fatores sociais conjugam-se portanto (o que não quer dizer que são os únicos, mas que o seu papel parece grande): o nível de desigualdades no rendimento (a injustiça) e a taxa de desemprego (o rebaixamento, gerando diversas inseguranças e a busca de bodes expiatórios).

    Ora estes fatores são precisamente os que resultam mais claramente da gestão neoliberal da crise atual, com a austeridade em tudo, o que amplifica o desemprego, e toda a espécie de benesses para os ricos e as grandes empresas, sob o pretexto da competitividade, o que amplifica as desigualdades.

    4) Dirigentes políticos e “elites” desacreditados

    A grande maioria dos franceses já não suporta o atual sistema político e os comportamentos das “elites”, em particular as elites políticas em que o espetáculo desolador em todas as noites eleitorais é um impulso significativo para o aumento da abstenção… e do voto na FN. Esta última joga habilmente com a legítima rejeição do sistema enquanto nada de sério propõe para o alterar. Porquê mudar um sistema que vos faz ganhar?

    5) Habilidade do adversário para aparecer a ouvir o povo e do lado dos oprimidos

    A FN joga igualmente com demagogia e populismo noutros temas em que a falência dos dirigentes atuais e passados é flagrante. Fiquei chocado nestes últimos dias com a capacidade dos porta-vozes da FN para privilegiar “elementos de linguagem” que têm sentido para muitas pessoas do povo e que por vezes correspondem a reivindicações tradicionais da esquerda militante. Pouco importa que isso seja poeira para os olhos em tempo de eleições, isso ganha mais uma fração da população que Macron ou Cambadélis. O “núcleo duro” da xenofobia e da intolerância, sempre muito presente, acaba por ser coberto por uma comunicação que pretende ser mais social que a linguagem das nossas “elites”. Como se admirar que esta propaganda toque muito particularmente os não licenciados ou os jovens que se veem sem futuro no sistema da oligarquia do poder?

    Conclusão provisória: A FN representa na realidade 13,5%. É muito, mas é muito minoritária!

    6 milhões de votos na FN em 44,6 milhões de inscritos, é 13,5%. Mesmo na minha região politicamente ferida, se a FN ganhasse a presidência, representava apenas 21% do eleitorado (909.000 em 4,24 milhões). Isso também é verdade para as outras formações. A democracia dita representativa tal como existe hoje está moribunda.

    O sistema político que é preciso combater não é em primeiro lugar a FN (mesmo que também seja preciso fazê-lo) mas é em primeiro lugar o que produziu este fenómeno despolitizando a vida política, instalando a economia liberal no poder, e metendo cada vez mais a democracia entre parêntesis, como foi o caso com a adoção do Tratado de Lisboa, com a viragem para a austeridade para o povo e a “salvação” prioritária dos bancos, com a recusa da separação bancária e de uma taxação séria das transações financeiras, e como acontece sempre com a negociação secreta de diversos acordos ditos de livre comércio, com o nosso Presidente em chefe de guerra sem mandato internacional, e em muitos outros exemplos.

    Mudemos o sistema, não o clima, dizem os militantes da justiça climática, de que eu faço parte. Mas há outras boas razões, para além do clima, para querer mudar o sistema.

    Jean Gadrey é  professor de economia na Universidade de Lille

    Original: alternatives-economiques.fr
    Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

  • A vitória parcial dos estudantes de SP é desdobramento autêntico das jornadas de junho

    A vitória parcial dos estudantes de SP é desdobramento autêntico das jornadas de junho

    “A crise da educação no Brasil não é uma crise: é um projeto”
    Darcy Ribeiro

    Foto de Alonzo Esteban

    Foto de Alonzo Esteban

    Não foi na última segunda-feira, com o vazamento do áudio da reunião realizada entre o chefe de gabinete da Secretaria Estadual de Educação, Fernando Padula, com dirigentes regionais do ensino público, que começou a guerra aos estudantes paulistas. Também seu final não será decretado com a queda do secretário de educação Hermann Voorwald, que na tarde desta sexta-feira, 4 de dezembro, deixou o cargo com o rabo entre as pernas. Muito antes da incursões policiais clandestinas nas escolas, da repressão brutal aos estudantes que fecharam ruas e da guerra informacional feita a partir de boatos de uma depredação que nunca existiu – existem sim, inúmeras provas contrárias ao boato, basta buscar na fonte – o Estado de guerra já havia chegado às escolas sob a forma do ensino precário, da falta de acesso ao patrimônio escolar, entre outros sintomas. Em uma expressão: abandono calculado.

    Um dado curioso do movimento secundarista talvez remonte à influência dos secundaristas chilenos de 2012. Se por um lado o protagonismo dos estudantes é valorizado, a ponto de expulsarem de ocupações até mesmo organizações de esquerda que por alguma razão tentaram tomar as rédeas da luta secundarista (e que provavelmente usarão as fotos das visitas em campanha), por outro lado há um enorme espaço aberto para a sociedade organizada participar da luta. O verbo é “somar” – não “dirigir”. Quem se recusa a entender isso, simplesmente não compreendeu nada do que houve nas ruas de São Paulo, e do Brasil, de 2013 para cá.

    Essa espaço de abertura de participação está no princípio do movimento e foi o que tornou possível o entendimento da realidade das escolas por parte das redes de apoiadores, muitas vezes ausentes da escola há mais de dez anos. Professores de outras escolas, jornalistas, médicos, enfermeiros, socorristas, artistas, cozinheiros e toda sorte de gente que vê na luta dos secundaristas algo em que se apoiar para o futuro esteve nas centenas de escolas ocupadas ao longo das últimas semanas oferecendo oficinas, aulas públicas e rodas de conversa. Foi em um desses eventos que este Correio pôde estar mais próximo da realidade de uma das escolas ocupadas.

    E.E. Maria José Ocupada

    Na sexta-feira, 27 de novembro, a declaração de guerra não havia sido verbalizada nas redes, mas os estudantes já estavam em alerta. Ao chegar, por volta das 8h:30m na Escola Estadual Maria José, na rua Treze de Maio, centro de São Paulo, encontrei alunos sérios e cautelosos na porta, conversando entre si sobre as insistentes abordagens da Polícia Militar nos portões. “Estão vindo todo dia fazendo e um monte de perguntas, mas estamos preparados. Eles perguntam quantas pessoas tem aqui e nós só falamos que tem muitas, que tem bastante, mas não damos o número”, relataram.

    A escola atualmente comporta três ciclos educacionais: infantil, primário e secundário. De acordo com a proposta de reorganização do Governo do Estado, os ensinos primário e secundário seriam fechados e seus alunos transferidos para outras unidades, deixando a escola apenas para o ensino infantil. “Não queremos sair daqui, gostamos muito desse lugar e queremos melhorá-lo, como já estamos fazendo”, comentou um aluno do terceiro ano durante a roda de conversa sobre mídia e ativismo.

    A aluna Lilith Cristina, do primeiro ano do ensino médio, levou a reportagem do Correio da Cidadania para uma caminhada pela escola, e foi explicando em linhas gerais o que vêm acontecendo há anos por trás dos muros. Atravessamos o refeitório que fica logo na entrada e subimos uma rampa para visitar as salas de aula. “O que incomoda são essas grades, parece que estamos na Fundação Casa”, lamentou. Foi a primeira frase que lhe ocorreu. Depois mostrou as infiltrações na parede, carteiras em estado lastimável e os ventiladores quebrados – praticamente feitos sucata, sem a mínima limpeza e manutenção, com fios desencapados, poeira e tudo o que anos de descaso dão direito.

    Também cheio de pó estão os corredores e com as carteiras empilhadas. “Já era da rotina da escola antes da ocupação. Isso já estava assim, nós não mexemos. Inclusive eles começaram obras em algumas salas durante o período de aulas, tínhamos de prestar atenção na aula com um barulho de britadeira vindo do outro lado do corredor”, narrou.

    No andar de baixo, a quadra está em reforma, sem aula de educação física há 6 meses. Como paliativo, a jovem estudante explica que abriram um espaço ao lado da quadra, antes tomado por carteiras e entulho, para que as crianças batessem bola e jogassem boliche ao visitar a ocupação, algo que a diretoria não tem medido esforços para impedir. “A sala de recursos foi reformada pela ocupação e ninguém sabia que ela existia. Eu trouxe muitos jogos de tabuleiro de casa para o pessoal passar o tempo e, principalmente para as crianças, mas aqui tem muito mais jogos do que os que eu trouxe e eles ficavam trancados. Se eu soubesse que eles existiam, não precisaria ter trazido os meus”, contou Lilith.

    Mas o acesso negado à infraestrutura escolar não para por aí: “tem sala de informática, mas não podemos usar, não tem aula de informática para o ensino médio”. Também os instrumentos musicais, três violões e instrumentos de percussão sempre estiveram fora do alcance dos alunos, que sequer têm aulas de música e os descobriram após a ocupação.

    Uma queixa frequente, tanto da moça que conversou conosco quanto de conversas aleatórias com outros alunos é de que os professores não apoiam a ocupação e a diretoria faz todos os esforços para boicotá-la. Uma das atividades que Lilith Cristina explicou que estava sendo desenvolvida pelos estudantes ocupados era a criação de uma espécie de creche na ocupação, não exatamente nessas palavras, onde as crianças do ensino infantil pudessem passar o dia e participar de atividades enquanto os pais trabalham.

    “Nossa ideia é de até ajudar os pais e mostrar para eles que o que nós queremos aqui na escola é do interesse deles também, que a reorganização vai ser muito pior. Mas todos os dias, meia hora antes das crianças entrarem, o diretor fica na porta falando um monte de mentira sobre a ocupação, orientando mal os pais e alunos e nos impedindo de recebê-los aqui na escola por isso. Hoje faremos uma comissão especial para receber as crianças e pais”, contou.

    Uma das acusações da diretoria é de que possa haver uso de substâncias ilícitas na ocupação, prática que a reportagem do Correio da Cidadania não presenciou, pelo contrário, diversos cartazes proibindo o uso de drogas foram espalhados pela escola.

    A guerra

    Declarada a guerra em reunião dominical pelo chefe de gabinete da secretaria de educação, já na segunda-feira os estudantes da E.E. Fernão Dias e outras da zona oeste ampliaram a tática. Ao invés de simplesmente ocuparem suas escolas, levaram as carteiras para a esquina das Avenidas Faria Lima e Rebouças e ocuparam a rua. Em resposta, houve um verdadeiro massacre da polícia militar sobre os estudantes secundaristas.

    Paralelamente, pais e diretores contrários à ocupação contaram com o apoio da polícia para invadirem – sem mandato judicial – a E.E. Maria José. Depois de muitas “cenas lamentáveis”, os estudantes expulsaram os invasores e retomaram, dentro dos preceitos legais, a ocupação. Não só a “Ocupação Mazé”, como carinhosamente chamam os estudantes, mas houve a retomada em todas as outras escolas que sofreram o mesmo tipo de ataque. O preço dessas retomadas foram mais agressões a estudantes, ameaças, intimidações até mesmo à imprensa independente e a entrada de canais de televisão atrelados aos interesses daqueles que fecham escolas (e abrem prisões), que armaram a já obsoleta montagem do “vandalismo”.

    Acontece que assim como em 2013, a PM acrescentou à mistura um ingrediente sangrento que se voltou contra aqueles que a ordena e sua mídia aliada. Novamente, a narrativa alternativa às versões oficiais e burocráticas reverteram o fluxo informacional, principalmente nas redes. Essa outra narrativa, vinda dos próprios estudantes e dos veículos de comunicação que se solidarizam com eles começou a ganhar a opinião pública. Afinal de contas, apesar de realidade, essa situação tem contornos de ficção, tão absurda que é.

    Na terça, quarta e quinta-feira, mais estudantes ocuparam escolas, ruas, fizeram manifestações, barraram mais tentativas paramilitares de invasão das escolas ocupadas e colocaram a grande mídia de joelhos. Novamente vimos um certo apresentador da TV Bandeirantes se embananar ao vivo e matérias progressistas nos tabloides, ainda que alguns vídeos do canal de um desses tabloides na internet tenha sido reeditado, coincidentemente, no mesmo dia em que o governador visitou sua redação. A reação foi brutal. Prisões, balas de borracha, bombas, intimidação, força tática, choque, só faltaram os cavaleiros templários da ordem católica a qual pertence o governador, bem oposta à do Papa Francisco citado por ele no pronunciamento da tarde do dia 4.

    Alckmin perdeu força. Sua incapacidade de dialogar sem apontar uma arma na cabeça da outra parte fez com que sua popularidade e aprovação caíssem, segundo estatística Datafolha. Também o Ministério Público e a Defensoria Pública, em conjunto, se colocaram no caminho e pediram, na última quinta-feira, a suspensão da reorganização em todo o estado, a legitimidade da permanência dos estudantes nas escolas e a apresentação de um calendário de debate para o ano de 2016 em torno do assunto. A Justiça deu ganho de causa, deixando um prazo de 72 horas para que a Fazenda do Estado se manifestasse.

    O governador Geraldo Alckmin foi ele mesmo fazer o já citado pronunciamento, com a feições claramente cansadas e a derrota estampada no rosto. Puro teatro. Acatou as determinações da Justiça e adiou a reorganização para o ano que vem. Resta saber se o calendário de debates vai ser cumprido, se os estudantes serão respeitados enquanto ocupações e, principalmente, se todos os presos, feridos e agredidos durante essa semana de guerra imposta pelo Estado a um movimento de pessoas muito jovens serão devidamente indenizados e receberão pedidos públicos de desculpas dos seus agressores, mandantes e executores, públicos e privados.

    Como bem resumiu o colega jornalista Carlos Eduardo Alves: “quem não é de São Paulo talvez não entenda o significado do que aconteceu aqui hoje. Então faz assim: imagine seu estado dominado pela mesma força política há, no mínimo, 20 anos. Nunca nenhuma categoria organizada, seja sindicato, partido político ou qualquer outra força conseguiu deter projetos dos sábios tecnocratas, impostos na base do ‘eu sei tudo o que é melhor para vocês’. Aí, sem que ninguém esperasse, meninas (muitas) e meninos de 14, 15 e 16 anos enfrentam revólveres na cara, bombas, ameaças de brucutus e fizeram um governador sair transfigurado, quase correndo, de um pronunciamento em que admite a derrota do fuzil contra o estilingue. Foi isso o que aconteceu em 4 de dezembro de 2015 em São Paulo”, declarou.

    Enquanto isso, os estudantes permanecem nas ocupações. Segundo o seu próprio pronunciamento, feito às 19h30, horas depois da coletiva do governador, eles, organizados, decidiram manter as ocupações e estarão atentos aos movimentos institucionais. Foram enfáticos: “o recuo do governador é para nos desmobilizar”.

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, segunda-feira, 7 de dezembro de 2015