Categoria: Artigos

  • Mortes violentas crescem 3,8 pontos percentuais em quatro décadas

    Mortes violentas crescem 3,8 pontos percentuais em quatro décadas

    chacina_violenciaRio de Janeiro, 30/11/2015 (Agência Brasil) – Nas últimas quatro décadas, a proporção de óbitos violentos no país, em relação ao total registrado, cresceu 3,8 pontos percentuais, passando de 6,4% em 1974 para 10,2%, em 2014. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados hoje (30), mostram ainda que a maioria (84,2%) das vítimas de mortes violentas é formada por homens, com idade entre 15 e 24 anos, e 16,8% são mulheres, na mesma faixa etária.

    Apesar do aumento registrado no númerto total de óbitos violentos, a gerente da pesquisa Estatísticas do Registro Civil, Cristiane Moutinho, ressalta a “significativa” queda de mortes por causa violenta em alguns estados do país. “É preciso destacar que houve realmente uma variação muito grande por unidade da Federação, com reduções significativas em São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Rondônia, Roraima, Pernambuco e Acre, nesta faixa etária [de 15 a 24 anos]”.

    Na outra ponta, a pesquisadora do IBGE destaca o Ceará como o estado onde houve maior aumento do percentual de mortes por causas violentas, principalmente na faixa etária entre 15 e 24 anos. “Quando você olha para o Ceará, por exemplo, o aumento de mortes por causas violentas nesta faixa etária chegou, na última década, a 224,4% na última década. Houve também aumento no número de mortes por causas violentas nos estados da Bahia, Maranhão, Alagoas, Rio Grande do Norte e Piauí, tanto entre as pessoas do sexo masculino quanto feminino”.

    Os dados da pesquisa indicam, por exemplo, que a queda da mortalidade masculina por causas violentas no Rio de Janeiro chegou a cair 38,2 pontos percentuais, passando de 131,5, a cada 100 mil homens, para 93,3. Em São Paulo, o índice caiu 34,1 ponto percentual (de 125,7 para 91,6, a cada 100 mil homens). Já em Alagoas, o índice mais que dobrou ao subir 87,8 pontos (de 73 para 160,8, a cada 100 mil), enquanto no Ceará a variação foi 72,2 pontos, passando de 69,3 para 141,5 a cada 100 mil homens, nas últimas quatro décadas.

    Com a publicação de hoje, a pesquisa Estatísticas do Registro Civil completa 40 anos desde o início da divulgação de informações sobre o tema no Brasil, em 1974, quando o Instituto assumiu os encargos de coletar, sistematizar e divulgar os dados remetidos pelos Oficiais dos Cartórios do Registro Civil de Pessoas Naturais.

    Segundo o IBGE, essas informações são “de suma importância, já que esses eventos permitem construir Tábuas de Mortalidade que irão subsidiar as projeções populacionais por método demográfico”. O instituto lembra que nesses 40 anos, o país passou por mudanças profundas nas componentes da dinâmica demográfica, principalmente em relação aos níveis e padrões de fecundidade e de mortalidade, “influenciando significativamente a composição por sexo e idade da população brasileira”.

    Nielmar de Oliveira é repórter da Agência Brasil

  • Casamento entre pessoas do sexo feminino e masculino aumentou 37% em 40 anos

    Casamento entre pessoas do sexo feminino e masculino aumentou 37% em 40 anos

    casamento_homoafetivoRio de Janeiro, 30/11/2015 (Agência Brasil) – O Brasil registrou 1,1 milhão de casamentos entre cônjuges dos gêneros masculino e feminino em 2014. O dado faz parte da pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2014, divulgada hoje (30) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

    O número é 37,1% superior ao total de casamentos registrados em 1974, data da primeira pesquisa feita pelo IBGE. Na época, o país teve 818,9 mil casamentos registrados entre pessoas do sexo masculino e feminino. Já os casamentos entre cônjuges do mesmo sexo totalizaram 4.854.

    Ao longo da série histórica da pesquisa (1974 a 2014), a idade média dos homens ao se casar passou de 27 para 30 anos, enquanto a das mulheres passou de 23 para 27 anos. Já nos casamentos homoafetivos, em 2014, a idade média observada foi de 34 anos tanto para homens quanto mulheres.

    A pesquisa do IBGE indica que, entre 2013 e 2014, a variação no número de uniões civis foi 5,1%, o que, em termos absolutos, representou 53,9 mil casamentos a mais. A relação de uniões civis por mil habitantes de 15 anos ou mais de idade, ficou em 7,14 no ano passado, uma relação que se mantém estável desde 2006.

    O levantamento indica que, nos últimos 40 anos de levantamento de registros de casamentos civis realizados no país – depois das altas taxas de nupcialidade legal observadas na década de 70, quando se registravam, em média, 13 casamentos por grupo de mil habitantes – há uma tendência de queda na taxa de nupcialidade desde a década de 80, quando este indicador passou a apresentar valores em torno de 11 casamentos por grupo de mil habitantes.

    Na década de 1990, segundo o IBGE, ocorreu a redução mais acentuada da série, com a taxa passando de 7,96 por grupo de mil habitantes para algo próximo de 7 uniões civis por grupo de mil habitantes no fim do período.

    Os registros de casamentos entre os cônjuges masculino e feminino ocorreram em maior número na Região Sudeste, onde foram contabilizados 533 mil casamentos, o equivalente a 48,4% do total do país, seguido das regiões Nordeste, com 23,5%; Sul, com 12,5%; Centro-Oeste, com 8,4%; e Norte, com 7,2%.

    Já no que diz respeito às unidades da federação, São Paulo apresentou o maior percentual de registros de casamentos (55,4%) e, em proporções ligeiramente menores, o destaque ficou com o Paraná (46,6%), Goiás (46,5%) e Pará (40,6%). No outro extremo, as menores proporções foram constatadas no Amapá (2,6%), Roraima (3,2%) e Sergipe (3,4%).

    Divórcio cresce mais de 160% em uma década

    O número de divórcios no país cresceu mais de 160% na última década. Dados da pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2014, divulgados hoje (30) pelo IBGE, indicam que, no ano passado, foram homologados 341,1 mil divórcios, um salto significativo em relação a 2004, quando foram registrados 130,5 mil divórcios.

    Os dados indicam que em 1984, primeiro ano da investigação, a pesquisa contabilizou 30,8 mil divórcios. Já em 1994, foram registradas 94,1 mil dissoluções de casamentos, representando um acréscimo de 205,1%. E, em 2004, o aumento foi percentualmente menor, 38,7%, com 130,5 mil divórcios.

    Na avaliação do IBGE, a elevação sucessiva, ao longo dos anos, do número de divórcios concedidos revela “uma gradual mudança de comportamento da sociedade brasileira, que passou a aceitá-lo
    com maior naturalidade e a acessar os serviços de Justiça de modo a formalizar as dissoluções dos casamentos”.

    Nas últimas três décadas (de 1984 a 2014), o número de divórcios cresceu de 30,8 mil para 341,1 mil, com a taxa geral de divórcios passando de 0,44 por mil habitantes na faixa das pessoas com 20 anos ou mais de idade, em 1984, para 2,41 por mil habitantes em 2014. A maior incidência de divórcios deu-se no Distrito Federal (3,74 por grupo de mil) e a menor no Amapá (1,02).

    A idade média das mulheres na data da sentença do divórcio, em 2014, era 40 anos, enquanto a dos homens era 44 anos. Apesar de persistir a predominância das mulheres na responsabilidade pela guarda dos filhos menores de idade a partir do divórcio (85,1%), em 2014, a pesquisa detectou um crescimento de 3,5% nos pedidos da guarda compartilhada, em 1984, para 7,5%, em 2014.

    Número de uniões homoafetivas alcança 4.854 em 2014 e apresenta aumento de 31%

    Dados da pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2014, divulgados hoje (30), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que foram realizados no ano passado 4.854 casamentos entre cônjuges do mesmo sexo, o que representa aumento de 31,2%.

    Foram 1.153 uniões homoafetivas a mais que em 2013. No total, em 2014, os casamentos homoafetivos representaram 0,4% do total de casamentos efetuados no país. Os dados sobre casamentos entre pessoas do mesmo sexo vêm sendo levantados pelo IBGE há apenas dois anos.

    Dentre os casamentos entre cônjuges do mesmo sexo, verificou-se que 50,3% eram entre cônjuges femininos e 49,7%, entre cônjuges masculinos.

    O maior número de uniões homoafetivas deu-se na Região Sudeste, com 60,7% do total; seguida, em proporções bem menores, pelas regiões Sul (15,4%); Nordeste (13,6%); Centro-Oeste (6,9%); e Norte (3,4%).

    Entre as unidades da Federação, de acordo com a distribuição percentual regional, São Paulo evidenciou a maior concentração percentual de uniões homoafetivas, registrando 69,6% do total da Região Sudeste, seguido de Santa Catarina, com 45,7%; Goiás registrou 39,0% das uniões homoafetivas da Região Centro-Oeste, seguido do Distrito Federal, com 38,7%. Na Região Norte, o maior número desse tipo de união foi registrado no Pará, com 34,7%.

    Nielmar de Oliveira é repórter da Agência Brasil

  • Proposta do Brasil para COP21 poderia ser melhor, diz Observatório do Clima

    Proposta do Brasil para COP21 poderia ser melhor, diz Observatório do Clima

    Represa-cantareiraO Brasil apresentou a meta de diminuir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025 e em 43% até 2030, tendo 2005 como ano-base. Para o secretário-executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl, no entanto, o país tem capacidade para fazer muito mais e o governo brasileiro terá oportunidade de melhorar sua contribuição contra o aquecimento global na 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP21), que começou hoje (30) e segue até o dia 11 de dezembro, em Paris.

    A contribuição brasileira levada à COP, chamada Contribuição Nacionalmente Determinada Pretendida (INDC, na sigla em inglês), contém ainda ações como o fim do desmatamento ilegal na Amazônia, a restauração e reflorestamento de 12 milhões de hectares, a recuperação de 15 milhões de hectares de pastagens degradadas e o alcance de 45% na participação de energias renováveis na composição da matriz energética.

    As contribuições apresentadas pelo Brasil e pelos países da convenção das Nações Unidas para a COP21 tem o objetivo de limitar o aumento da temperatura média da Terra a 2 graus Celsius (ºC) até 2100, em relação aos níveis pré-Revolução Industrial. Ultrapassar esse limite provocaria mudanças climáticas severas.

    Segundo Rittl, é possível limitar as emissões brasileiras em 1 bilhão de toneladas de gases de efeito estufa até 2030, com ganhos econômicos. “O Brasil apresentou um meta de redução de emissões com uma direção interessante, uma natureza interessante, porque trata-se de uma meta que inclui redução absoluta de redução de gases de efeito estufa, mas o nível de redução de emissão insuficiente”, disse, contando que hoje o país emite em torno de 1,5 bilhão de toneladas de gases.

    Em entrevista à Agência Brasil, ele diz que, com a atual meta brasileira “estamos em uma trajetória de aumento superior a 2ºC”. “Então, temos certeza que o governo brasileiro tem uma margem de manobra interessante para aumentar seu nível de ambição”, disse.

    O Observatório é uma rede brasileira de articulação sobre mudanças climáticas globais e conta com 38 instituições, entre membros e observadores.

    Agência Brasil: Qual sua avaliação sobre as contribuições dos principais atores na negociação climática?

    Carlos Rittl: A análise da própria Nações Unidas indica que, mesmo com esses esforços, com essa mobilização, com esse engajamento dos países, nós ainda estaríamos, em 2030, em uma trajetória de aumento de emissões globais, em uma taxa menor do que ocorre hoje, mas em ascensão, o que é muito preocupante. Outro relatório produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente mostra que ainda existe uma grande lacuna entre aquilo que os países estão se comprometendo a fazer e aquela que seria uma trajetória de segurança climática, aquela que nos daria maiores chances de limitar o aquecimento global no limite de 2ºC. Outras análises mostram que, entre os grandes emissores, que inclui Estados Unidos, União Europeia, China, Índia, Brasil, África do Sul, México, Japão, Rússia, Canadá, nenhum deles está fazendo o suficiente, todos estão fazendo menos que o proporcional à sua responsabilidade e sua capacidade de redução de emissões. Então é necessário fazer muito mais e isso inclui o Brasil.

    Agência Brasil: Durante a COP21 poderemos alcançar um consenso mais positivo?

    Carlos Rittl: A COP é uma oportunidade para que os países apresentem um maior nível de ambição, isso pode acontecer. Acreditamos que todos colocaram na mesa seus níveis de ambição inicial e estão preparados para assumir compromissos maiores, em Paris e no pós-Paris. Com uma meta indicativa conseguimos, sistematicamente, fazer a análise do impacto agregado das reduções de emissões de todos os países para identificar qual a lacuna dessas metas, em relação ao que a ciência recomenda. Então, a negociação de Paris não é só importante para o nível de ambição que sai de lá, mas para elevar esse nível ao longo do tempo.

    Agência Brasil: O que pode melhorar na meta brasileira?

    Carlos Rittl: Temos capacidade de fazer muito mais. A própria lista de ações que estão informadas na proposta de compromissos do Brasil demonstra isso. Estamos discutindo a eliminação do desmatamento ilegal só na Amazônia e só em 2030. Mas sabemos que, desde 2008 temos um Plano Nacional de Mudanças Climáticas que estabelece a meta de chegarmos em 2015 com um desmatamento líquido zero em todas regiões do país. Então não é possível que em 2030 estejamos almejando algo inferior ao que estabelecemos como compromisso sete anos atrás.

    Sobre o aumento da participação de fontes renováveis de energia, podemos ter um impulso muito maior com energia solar, eólica e biomassa. Depois do anúncio de compromissos do país para a COP, foi colocado em consulta pública um plano para expansão da geração de energia no Brasil que inclui o aumento dos investimento em combustíveis fósseis. Setenta e um por cento dos investimentos projetados para os próximos dez anos vão para petróleo, gás natural e carvão mineral. Isso está em descompasso como essa urgência de reduzir emissões. O Brasil é um país muito vulnerável. Neste ano, mais de 25% dos municípios brasileiros decretaram situação de emergência ou calamidade pública em função de desastres naturais ligados ao clima extremo e sabemos que isso está se agravando, então deve ser do nosso interesse não só reduzir as emissões para diminuir a nossa vulnerabilidade, mas para aproveitar o potencial que nós temos.

    Agência Brasil: Sobre o financiamento, qual seria o modelo ideal para o Fundo Verde do Clima?

    Carlos Rittl: Financiamento é de fato um tema-chave para o sucesso da negociação. Os países desenvolvidos assumiram, em 2009, o compromisso de chegar até 2020 com US$ 100 bilhões em recursos para apoiar ações de redução de emissões e de adaptação de mudanças climáticas em países em desenvolvimento, especialmente países mais pobres. Foi estabelecido o Fundo Verde do Clima, mas é um grande fundo ainda sem muitos recursos. Ele precisa ser alimentado com o aumento do compromisso de apoio por parte de países desenvolvidos, através da criação de mecanismos inovadores. Por exemplo, está na mesa de negociação uma proposta de taxação de emissões de transporte aéreo e marítimo internacional. As emissões de um avião que sai do Brasil para Paris não são atribuídas a nenhum desses países. As emissões do transporte de carga, de exportação de soja ou carne do Brasil para China, também não são atribuídas nem ao Brasil nem à China. A taxação das emissões desse transporte, por um lado, ajudaria a regular as emissões e promover a eficiência desses sistemas de transporte e, por outro lado, ajudaria a arrecadar fundos que poderiam alimentar o fundo e aumentar o aporte internacional de recursos.

    Agência Brasil: Qual deverá ser a contribuição internacional do Brasil?

    Carlos Rittl: O Brasil tem um papel muito importante na cooperação sul-sul, já que o Brasil é uma grande economia em desenvolvimento e tem um arcabouço de políticas de ações e um arcabouço institucional que é mais forte do que muitos países, por exemplo, o continente africano. Nós podemos intensificar nossa cooperação sul-sul compartilhando o conhecimento que nós temos, seja em monitoramento de floresta, seja em uma produção mais limpa. Ao longo do tempo, vencendo os desafios de crescimento e desenvolvimento do país, podemos considerar aportar recursos ao longo das próximas décadas para manter o Fundo Verde do Clima e manter o apoio a esses países menos desenvolvidos, que são aqueles que não têm nenhuma responsabilidade sobre o problema e que pagam um preço muito alto porque não conseguem lidar com os eventos extremos que já os assolam, como secas e tempestades e o risco de elevação do nível do mar.

    Agência Brasil: O que representa essa elevação de 2ºC?

    Carlos Rittl: Dois graus é o limite considerado seguro, que ainda permite gerenciar os impactos sem consequências muito graves. Dados da Universidade Federal de Santa Catarina, do período de 1991 a 2012, mostram que 127 milhões de brasileiros estiveram em regiões que foram atingidas por eventos climáticos extremos ou situação de emergência ou calamidade pública, nesse período de 22 anos. De 2001 a 2012, a intensidade média de eventos foi 40% superior do que da primeira metade do período. Ou seja, já estamos sujeitos ao aumento da frequência de desastres e risco maiores.

    Com 2ºC, teríamos consequências severas não só para a biodiversidade mas para a população que depende de um ambiente natural bem conservado para sua subsistência, seja pela questão da água, seja pela questão dos alimentos obtidos da natureza.

    Com 2ºC, se vivemos hoje uma situação de estresse e de crise hídrica no Brasil, no Sudeste e no Nordeste, a tendência é que as consequências sejam piores. Estamos falando de risco crescente para vida, para qualidade de vida, para a economia e para o ambiente como um todo. Temos que cobrar de todos que estão em Paris que façam aquilo que é necessário e eles sabem o que é preciso fazer.

    Brasília, 30/11/2015 (Agência Brasil)

    Andreia Verdélio é repórter da Agência Brasil

    Conferência com 195 países em Paris tenta chegar a novo acordo climático

    O mundo já sente os efeitos das mudanças climáticas que podem piorar ao longo deste século se não forem tomadas medidas para combatê-las. Secas severas e prolongadas em alguns locais e chuvas torrenciais que causam alagamentos e resultam em perdas humanas e econômicas podem ser cada vez mais intensas.

    Na tentativa de reverter esse quadro, 195 países e a União Europeia, membros da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC na sigla em inglês), estão comprometidos a fechar um novo acordo global climático na 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima (COP21), entre 30 de novembro e 11 de dezembro, em Paris, para reduzir a emissão de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento global.

    O principal objetivo é conter o aumento da temperatura média da Terra em 2 graus Celsius (ºC) até 2100, em relação aos níveis pré-Revolução Industrial. A meta de 2 ºC, acordada na COP de Copenhague, em 2009, é considerada razoável para evitar catástrofes climáticas.

    Para o secretário executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl, se o aumento da temperatura não ficar no limite de 2ºC, as consequências serão muito severas. “Com menos de 1ºC de aquecimento já temos, toda semana, uma má notícia em algum lugar do mundo, inclusive no Brasil, de acidentes ligados a climas mais extremos, chuvas fortes, secas que se intensificam, tornados, deslizamentos de terra. Isso vem acontecendo com frequência e intensidade maior nos últimos anos e tende a se agravar, mesmo dentro do limite dos 2ºC”, disse.

    Estudo do Instituto Meteorológico britânico (Met Office) apontou que as temperaturas médias globais na superfície terrestre em 2015 vão superar, pela primeira vez, em 1°C os níveis verificados na era pré-industrial.

    O Acordo de Paris deve entrar em vigor em 2020 em substituição ao Protocolo de Quioto. Válido desde 2005, Quioto prevê metas de redução de gases que provocam o aquecimento global para 37 países desenvolvidos.

    Países desenvolvidos e em desenvolvimento apresentaram este ano as Contribuições Nacionalmente Determinadas Pretendidas (INDCs na sigla em inglês), um conjunto de metas de redução de gases de efeito estufa.

    A Organização das Nações Unidas, entretanto, considerou os compromissos voluntários apresentados pelos países insuficientes para evitar a alta da temperatura.

    A organização analisou 146 INDCs e concluiu que, mesmo que os países implementem totalmente as medidas que aprovaram, a elevação das temperaturas atingirá 2,7 ºC.

    “Todo mundo sabe de antemão que vai ter um gap [brecha]. Politicamente você entra na questão de como é que vai preencher esse espaço, esse vácuo entre o que vai ser feito e o que é necessário que seja feito, quando você compara com os cenários propostos pelo IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas]”.

    Para o Observatório do Clima, é importante que a COP de Paris abra um processo de revisão, já que as metas apresentadas serão cobradas a partir de 1º de janeiro de 2021. “Que ela prepare um processo para que essa ambição que falta hoje seja adicionada ao longo do tempo, já que existe a proposta de revisão de metas até 2020, daquilo que se tornar compromisso de fato, e de revisões sistemáticas ao longo do tempo”, disse Carlos Rittl.

    Veja as metas de redução de gases de efeito estufa estabelecidas por Brasil, pelos Estados Unidos, pela China, União Europeia e Índia:

    info_cop

    Brasília, 28/11/2015 (Agência Brasil)

    Ana Cristina Campos e Andreia Verdelio são repórteres da Agência Brasil

  • ‘Governos de PT e PSDB são igualmente responsáveis pelo rompimento da barragem’

    ‘Governos de PT e PSDB são igualmente responsáveis pelo rompimento da barragem’

    SamarcoO Brasil ainda passará muito tempo fazendo o inventário da tragédia do rompimento da barragem de resíduos de minério de ferro, da Samarco, empresa da Vale e BHP Billiton, no distrito de Bento Rodrigues, localizado na cidade Mariana (MG). E para tentar dimensionar os prejuízos, falamos com Makely Ka, ex-funcionário da Vale do Rio Doce, ou seja, testemunha do projeto de privatização da empresa, até hoje muito controvertido.

    “Além de conivente, o governo é irresponsável. É uma tragédia ambiental sem precedente no país. E parece que o governo quer amenizar. A própria ministra do Meio Ambiente participou de um encontro em Mariana, e quando um padre lhe fez um questionamento disse que ‘tinha um compromisso’”, falou.

    Na conversa, Makely lembrou de outros acidentes nos últimos anos, ignorados pelo noticiário midiático, a seu ver outro ente irresponsável diante da situação. Além disso, critica fortemente a relação entre governos e empresa, que chega ao cúmulo de a última cuidar por si mesma da “cena do crime”, e afirma algo que deveria soar óbvio a respeito do amparo às vítimas.

    “Pela legislação brasileira, aquilo foi crime ambiental, os responsáveis deveriam estar presos e os documentos e computadores da empresa apreendidos para laudo e perícia. A multa deveria ser aplicada e a Samarco, mineradora das mais lucrativas, deveria estar pagando todos os custos dos prejuízos que gera desde o acidente”, resumiu.

    Agora, fica o enorme passivo ambiental no trecho percorrido pela lama tóxica, que já se estende pelo litoral brasileiro. Sem esquecer de projetos como a flexibilização do Código de Mineração nas gavetas parlamentares. A entrevista completa, gravada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: O que pode contar da sua experiência como funcionário da mineradora que pertence às gigantes transnacionais Vale e BHP Billiton, em sua transição para a privatização? Já havia desconfianças quanto às questões de segurança nos empreendimentos da empresa?

    Makely Ka: Entrei na Vale como estagiário, na área de automação, pois fiz curso de eletrônica. Trabalhava na manutenção dos tanques de flotação, para onde se envia o minério depois que vem do britador – o minério passa por três britadores antes de entrar no tanque de flotação que separa os rejeitos, que por sua vez vão para a barragem dos metais descartados. Depois, fui funcionário de uma empreiteira que prestava serviço para a Vale, pois ela não contratava mais, já que estava no processo de privatização.

    Naquele momento, não tinha rede social, não tinha esse movimento todo nas comunicações, de modo que tudo corria pela imprensa tradicional ou pelo sindicato, que divulgava algumas coisas. Mas presenciei três acidentes, que não foram divulgados. Foram abafados.

    Um deles foi um choque entre duas locomotivas em cima do pontilhão. Elas caíram e os dois maquinistas morreram. Nesse caso saiu matéria no jornal do sindicato porque alguém conseguiu fotografar. Outro caso foi de um trabalhador que caiu dentro do britador e virou minério. Nunca se achou nenhum vestígio dele. E outro caso foi de um caminhão haulpak, daqueles que carregam até 50 toneladas: passou em cima de um carro dentro da mina, que virou papel, claro, já que os pneus são da altura de uma casa de dois andares. Enfim, os acidentes aconteciam e viravam estatística dentro da empresa, não saíam na mídia.

    Existia uma pressão muito grande. No meu departamento, por exemplo, de automação industrial, quando estragava alguma coisa que fazia a mina parar, ocorria uma pressão gigante sobre os funcionários, tanto que os mais velhos, que tinham mais tempo de empresa, tomavam algum tipo de remédio tarja preta. Era f…

    Correio da Cidadania: O que pensa das reações do governo mineiro e também da empresa e suas respectivas respostas oferecidas até aqui, tanto para a sociedade como para os afetados diretamente pela tragédia?

    Makely Ka: Vejo que praticamente todos, desde prefeito e governador até ministros de Meio Ambiente e Desenvolvimento e presidência da República (que demorou, mas anunciou uma multa), estão numa relação de conivência, rabo preso. O governador deu entrevista dentro da sede da Samarco. O que simboliza dar uma entrevista nesse contexto e afirmar que a empresa fez tudo que podia fazer?

    O governo tem soltado comunicados com as alegações da Samarco, como se sua alegação pudesse ser considerada um fato apurado e a lama comprovadamente não fosse tóxica. Além de conivente, o governo é irresponsável, pois vários especialistas já testaram a lama e se pronunciaram no sentido de dizer que é extremamente tóxica, tem metais pesados e vários indícios de ser prejudicial à saúde.

    Ainda que não fosse prejudicial à saúde, uma inundação de 62 bilhões de litros de lama, mesmo que fosse medicinal, causou mortes, inviabilizou um município inteiro e a captação de água em várias cidades no trajeto do rio Doce, que virou um mar de lama e está sendo cimentado, acabando com os peixes.

    É uma tragédia ambiental sem precedente no país. E parece que o governo quer amenizar. A própria ministra do Meio Ambiente participou de um encontro em Mariana, e quando um padre lhe fez um questionamento disse que “tinha um compromisso”. Que compromisso pode ser maior para um ministro do Meio Ambiente do que o maior crime ambiental de que se tem notícia nos últimos tempos?

    Correio da Cidadania: Falando em responsabilidade com as informações, o que pensa da abordagem midiática, que não poucas vezes bate na tecla do acidente, como se a maior causa da tragédia fosse alguma espécie de azar do destino?

    Makely Ka: Acho vergonhosa a cobertura midiática. Vai virar tese acadêmica, exemplo de como foi conivente. Sabemos que o posicionamento dos governos está evidentemente ligado às doações de campanha, que por sua vez são investimentos. As empresas querem receber o dela depois. E a mídia que se coloca como isenta e independente faz esse jogo. A cobertura tem sido vergonhosa nos principais canais de TV e jornais.

    Até se tentou passar a ideia de que o abalo, de acordo com alguns observatórios, de 2,5 pontos na escala Richter pode ter sido causador do desastre. Um abalo de 2,5 na escala Richter não derruba nem um castelo de cartas! Falar nisso é uma piada mórbida, chega a ser brincadeira com quem perdeu familiares e com seus sentimentos. Absurdo.

    Pra se ter ideia, todo dia tem explosão de dinamite em mina de lavra aberta. É necessário deslocar rochas e abrir crateras, pois a mineração de lavra aberta broca o chão e, para isso, se usa dinamite. Todo dia temos impactos de pelo menos 3 pontos na escala Richter, por conta do próprio procedimento de escavação.

    Portanto, se a barragem não suporta um abalo de 2,5 pontos, que nem é sentido pelos humanos e só os sensores detectam, é porque houve negligência. É importante ainda entender que a escala Richter não é linear. Quatro pontos não são o dobro de dois. A progressão é aritmética. Um abalo de 2 graus não derruba nem casa de pau a pique, tanto que não existe rachadura nas casas de Ouro Preto, devido aos abalos sísmicos de Mariana.

    Se um tremor de terra pode derrubar uma barragem, era pra estar tudo em Estado de Emergência. É uma completa canalhice a imprensa divulgar notícias como essas. E acho que ela se compromete e desmascara cada vez mais, porque as notícias circulam nas redes, as pessoas divulgam outras informações e a verdade, mesmo aos poucos, surge.

    Correio da Cidadania: que pensa da política de mineração brasileira de modo geral, tendo a própria Vale como grande símbolo de prosperidade e geração de divisas para o país?

    Makely Ka: Acho que o valor pelo qual venderam a Cia Vale do Rio Doce foi um crime. Equivaleu ao lucro de apenas um ano. Caberia inclusive um questionamento judicial sobre a forma como foi feita a privatização da empresa e o que acarretou para o país. Não acho que teria sido diferente se tivesse continuado como empresa estatal de capital nacional, mas o procedimento foi errado. Não quero isentar nenhum governo. O atual, que não propôs mudanças mesmo em 12 anos, foi tão conivente quanto o anterior, que a vendeu a preço de banana. Ambos são responsáveis pela tragédia. Pela venda, pela conivência com as licenças ambientais etc.

    Pra se ter ideia, há algumas semanas o governador petista Fernando Pimentel apresentou projeto de lei na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALEMG) no sentido de agilizar e facilitar licenças ambientais, uma demanda das mineradoras, que sempre questionaram e acusaram de burocrático e moroso o processo.

    Se eles são patrocinados em suas campanhas pelas mineradoras, vão fazer o quê? A campanha do Pimentel foi uma das mais caras do país em 2014 e muito do dinheiro que teve veio das mineradoras. Claro que elas vão cobrar seu investimento. E, por ironia do destino, na semana anterior à tragédia ele entrou com tal projeto, em caráter de “urgência”.

    Além disso, existe no Congresso Nacional a proposta de rever o Código de Mineração do país. Outro acinte, outro capitulo vergonhoso. Tanto na ALEMG quanto no Congresso, grande parte dos deputados envolvidos nas comissões que discutem a reforma das legislações mineradoras é patrocinada pelas mineradoras. Vão defender o interesse de quem?

    Correio da Cidadania: Qual a dimensão que você atribui a este episódio na história das tragédias ambientais? Equipare-se a outras de repercussão mundial na humanidade?

    Makely Ka: Vi algumas comparações, como o crime ambiental da Exxon no Golfo do México, entre outras. São realidades diferentes. Ainda não temos nem dimensão do que aconteceu a respeito da lama da Samarco. Há poucos dias, surgiu a gravíssima informação de que a Samarco estaria removendo corpos, retirando-os do local com ambulâncias do IML e helicópteros, de modo a minimizar o impacto, já que poderia ser diminuída a contabilidade dos mortos. Algo mórbido, pra não dizer outra coisa.

    O impacto não é só em Bento Rodrigues, completamente destruída, Mariana e municípios vizinhos, mas se estende por mais de 500 km. O rio Doce está morto, vai levar no mínimo 10 anos pra se recuperar. A lama já chegou no mar. As cidades que captam água do Rio Doce vivem situação desesperadora.

    Governador Valadares vive quase uma guerra civil. Tem saques aos caminhões pipa, aos supermercados que têm água… Os moradores chegaram a fechar os trilhos da estrada de ferro para impedir a passagem dos trens da Vale, que vão para o porto de Tubarão (SC) embarcar o minério para a China.

    Não temos sequer dimensão do impacto, nem sabemos exatamente quantas pessoas morreram. Quem cuida da cena do crime é a própria Samarco, coisa absurda. É kafkiano: “eu cometo crime, mas pode deixar que eu cuido da cena, vejo qual foi minha motivação…” E o governo é conivente.

    Pela legislação brasileira, aquilo foi crime ambiental, os responsáveis deveriam estar presos e os documentos e computadores da empresa apreendidos para laudo e perícia. A multa deveria ser aplicada e a Samarco, mineradora das mais lucrativas, deveria estar pagando todos os custos dos prejuízos que gera desde o acidente.

    Sabemos que a mineração do país é atividade predatória. Exploramos matéria-prima, bruta, vendendo-a a preço de banana, para depois comprar computadores, celulares e eletrodomésticos a preço de ouro. Se ao menos houvesse uma fábrica de transformação do lado da mina, podíamos pensar em benefícios, porque o minério sairia dali, já entraria na fábrica e teríamos computadores a preço de custo, permitindo, por exemplo, que todos os alunos de escola tivessem um. Mas não. Vendemos matéria-prima que se esgotará. Não existem reservas infinitas de minério. Vai acabar. E o preço inclusive caiu no mercado mundial. Mas continuamos cavando buraco, destruindo regiões…

    No ano passado, foi criado o Parque Nacional da Serra do Gandarela, que fica numa região considerada a caixa d’água da região metropolitana e atende 5 milhões de pessoas. Foi criado já com lobby da Vale, no sentido de picotar sua área. Assim, todas as áreas de interesse da Vale, que incluem nascentes e outras que não podem ser mineradas, ficaram fora do parque. Quando a Dilma divulgou o decreto de criação do Parque Nacional, fomos surpreendidos com o “desaparecimento” de 10 mil hectares.

    Quer dizer, só o lucro interessa, não a vida das pessoas. São atividades predatórias e criminosas. Outros crimes, desastres e tragédias como essa virão. Eles não vão parar se não nos posicionarmos. Há alguns dias, teve um protesto em Iracema, cidade pequena próxima de BH, porque tem um projeto de construção de uma barragem três vezes maior que a de Bento Rodrigues. Compromete inclusive o rio das Velhas, um dos principais afluentes do São Francisco.

    Vemos pessoas comuns e famílias saqueando água em Valadares, já que o Rio Doce era a única fonte de captação de água e não sabemos por quanto tempo continuará inviável. Enfim, está muito complicado, as pessoas têm de se dar conta.

    Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 28 de novembro de 2015

    Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas 

  • Blue Jasmine, a tragicomédia dos trapaceiros

    Blue Jasmine, a tragicomédia dos trapaceiros

    Flavio Braga
    Flavio Braga

    A trajetória de Woody Allen, como a de Chaplin e dos irmãos Marx e outros cineastas americanos voltados para a comédia, nasceu no palco dos teatros, em stand up comedys. A chegada do cinema divulgou seus trabalhos ao resto do mundo. Mas Allen é um intelectual, e como cineasta viveu forte influência dos gênios de sua época, especialmente Bergman e Fellini. Alguns de seus primeiros filmes, classificados como homenagens a esses cineastas eram na verdade tentativas de trilhar caminhos mais complexos. Nunca fez feio, mas seu público sempre o viu como o comediante brilhante que escreve suas próprias estórias.

    A idade reduziu bastante a sua capacidade histriônica e Allen voltou a mirar em objetivos mais altos, criou obras de arte como Tiros na Broadway e Match Point onde a comédia e o drama foram se fundindo. Blue Jasmineé o ponto alto desse momento. Cate Blanchett é a ex mulher de um trapaceiro internacional, interpretado por Alec Baldwim. Inspirado em Bernard Madoff, que administrava uma pirâmide financeira bilionária, seu personagem vive como um magnata, cercado de luxo e das mais belas mulheres. Cate é sua esposa e entra em desespero quando ele lhe informa que será trocara por uma jovem mais bela. Seu impulso a faz ligar para o FBI e entregar o marido. Ele é preso e se suicida na cadeia, mas ela também perde tudo. Arrepende-se, mas é tarde. Sua única saída é ir morar com a irmã pobretona da Califórnia. Essa personagem causa ao espectador sentimentos ambíguos. Seu desprezo pelo entorno e auto-comiseração a fazem um dos personagens mais desprezíveis e frágeis da história do cinema. Cate Blanchett está magnífica no papel e o filme coloca Allen ao lado daqueles diretores que ele desejou imitar no início da carreira. Hoje ele é um deles.

    Flávio Braga é escritor

  • O machismo mata: não seja mulher de ninguém!

    O machismo mata: não seja mulher de ninguém!

    Luciana Genro
    Luciana Genro

    Neste 25 de novembro, data que marca o Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher, poderíamos falar de múltiplas formas de violência que atingem as mulheres. Para as mulheres negras a violência é incrementada pelo racismo. Para as lésbicas, pela lesbofobia. Para as trans, pela transfobia. Eu poderia falar das mulheres trabalhadoras que sofrem com assédio moral, que também é um tipo de violência. Das mulheres que não querem ser mães e sofrem a violência de se submeter a um aborto clandestino ou de criar seus filhos sozinhas. Das jovens que andam na rua amedrontadas pelo fantasma do estupro…. São tantas as formas de violência!

    Mas hoje pela manhã, lendo os jornais me deparei com uma notícia no jornal Zero Hora: UMA MULHER FOI ASSASSINADA A CADA TRÊS DIAS neste ano na Região Metropolitana de Porto Alegre. Não é uma estimativa, é o que ocorreu! Uma realidade que, infelizmente, não é só gaúcha. O depoimento da delegada Rosane de Oliveira, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, ilumina esta tragédia: “Há muito ciúme, sentimento de posse e relação de domínio e de controle total. Relações que eram para ser marcadas pelo afeto acabam destruídas pelas características machistas. Muitas vezes com o álcool ou com as drogas ilícitas como combustível, homens matam mulheres com a ótica machista e possessiva do tipo ‘se não for minha, não será de ninguém’”.

    É preciso dizer bem claramente: o machismo é violento, o machismo mata! Acabar com ele seria uma passo gigante no combate à violência contra as mulheres. E nós, mulheres, que somos as vítimas, também temos em nossas mãos o poder para impulsionar a mudança. Somos nós que educamos os homens. Eles são nossos filhos, sobrinhos, netos e também nossos alunos nas escolas. A primeira lição é esta: as mulheres não pertencem aos homens. Educação e a linguagem são fundamentais na mudança desta (falta de) cultura da posse. Proponho então que a gente não aceite mais a definição “esta é a minha mulher”, tão repetida por maridos e namorados sempre que se referem às suas companheiras.

    Não, não somos mulheres de ninguém. Podemos sim ser esposas, companheiras, namoradas, mas enquanto mulheres não somos de ninguém, pois não temos dono!

    Luciana Genro é presidente da Fundação Lauro Campos

  • Tragédia da mineradora em MG: a promiscuidade entre poderes político e econômico no Brasil

    Tragédia da mineradora em MG: a promiscuidade entre poderes político e econômico no Brasil

    Lama da SAMARCO
    Lama da SAMARCO

    Acabamos de testemunhar aquele que talvez seja o maior desastre ambiental da história do Brasil. A população de Bento Rodrigues e Mariana (centro do estado das sugestivas Minas Gerais) está sem água e boa parte desabrigada. Isso sem contar os danos ambientais, calculados em mais um século em termos de recuperação do ecossistema do Rio Doce. Para oferecer uma visão técnica e amplificada da desgraça, entrevistamos a coordenadora do Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará, Simone Pereira.

    “Tenho quase que plena certeza que esse evento não foi natural. O próprio Ministério Público de Minas Gerais está dizendo que não foi um acidente, mas negligência. Havia, sim, indícios de que esse desastre poderia acontecer. E a empresa não tomou as providências”, afirmou.

    Para ela, dois fatos foram cruciais no desenrolar da tragédia: a falta de monitoramento das bacias de rejeitos, o que inclui a falta de tratamento adequado aos rejeitos não inertes e tóxicos, e a não existência de mecanismos de monitoramento autônomos em relação à empresa, fruto da histórica relação de promiscuidade entre poder público e poder econômico no Brasil.

    “Será que abrir para o mercado privado a exploração minerária influi no aumento da produção e diminuição do cuidado ambiental? Devido à questão do lucro isso pode acontecer. A empresa não quer gastar muito dinheiro com questões ambientais. Para o capital, a questão ambiental é secundária. o problema vem, basicamente, de dois fatores: falta de monitoramento e falta de fiscalização. Se houvesse abertura para o monitoramento dos rejeitos tóxicos, além do que a própria empresa faz, e se as SEMAs por todo o Brasil fizessem de fato a fiscalização que deveriam, nada disso teria acontecido”, criticou.

    Para a especialista, é importante que empreendimentos do porte da Vale, da Samarco e também da Belo Sun (ao lado da hidrelétrica de Belo Monte) precisam ser discutidos com a sociedade antes de postos em prática. Ela defende que a comunidade afetada deve decidir a presença, ou não, de empreendimentos como este. Aliás, sua descrição do que acontece na mineração de ouro em Belo Monte já nos obriga a atentar para futuros e similares desastres.

    “Aqui, é o paraíso para quem não quer cumprir a lei. Temos muitas leis e elas são muito avançadas. O problema é como elas são aplicadas e muitas vezes ignoradas, por conta dessa influência do poder econômico no poder público”.

    A entrevista completa com Simone Pereira pode ser lida na íntegra a seguir.

    Correio da Cidadania: Como você mesma defende, existe uma relação entre a mineração e as bacias onde depositam seus rejeitos com os desastres da barragem de Mariana (MG) que inundou com lama tóxica uma série de cidades próximas do curso do Rio Doce. Pode nos explicar, em linhas gerais, como se dá esse processo, do que é formada essa lama tóxica e se há alguma relação também com a mineração no Rio Xingu, tema abordado por você?

    Simone Pereira: Eu me referi à implantação dessas bacias na Volta Grande do rio Xingu, que é o empreendimento chamado Belo Sun, no qual uma mineradora canadense vai usar cianeto na exploração do ouro na região. Há a possibilidade de um desastre similar acontecer lá também. No estado do Pará, em todo o seu território, há uma intensa atividade de mineração. É o segundo em exploração mineral do país, atrás apenas de Minas Gerais. Temos aqui a maior mina de ferro do mundo, a de Carajás, onde existem várias barragens como esta que rompeu em Mariana. É uma preocupação constante.

    A política de depositar os resíduos em bacias já está estabelecida no mundo inteiro e não é um privilégio do Brasil. A prática está difundida no mundo todo por ser a forma mais simples e barata de as empresas disporem dos rejeitos que produzem na atividade minerária. Qual é o problema? O problema é que, quando se processa o minério com explosões, trituração, aplicação de processos físicos e químicos, acabam liberadas no ambiente as substâncias ligadas à rocha, como por exemplo os metais tóxicos e outros elementos que acabam por ser perigosos para os seres vivos e meio ambiente. Não vemos as Secretarias Estaduais de Meio Ambiente (SEMAs) fazerem um monitoramento adequado da parte estrutural das bacias e muito menos um efetivo controle do que se produz em termos de rejeitos tóxicos. Se exige, quando muito, é automonitoramento das empresas.

    Hoje, o que as pessoas mais perguntam é: qual a composição da lama que desceu como um tsunami pelo vale e acabou chegando ao Rio Doce, invadiu cidades e destruiu tudo? A resposta é: não sabemos. As mineradoras não permitem que os institutos, as universidades ou qualquer outro tipo de entidade façam um monitoramento à parte ao que ela própria é obrigada a apresentar para as SEMAs. Sabemos, por notícias vinculadas, que a análise do rio está apresentando resultados elevados para elementos tóxicos, como cádmio, chumbo, mercúrio etc.

    Geralmente, as SEMAs não cobram o efetivo cumprimento da lei, que garante que as substâncias tóxicas não cheguem aos rios em valores acima do permitido pela legislação e fiquem retidas nas bacias. Nenhuma bacia comporta o volume de chuvas, principalmente na época do inverno, e tais produtos acabam descartados no rio mais próximo. Somado a isso, as empresas não dão informações sobre o tratamento que o material recebe.

    Aqui e ali vejo tratamentos para controlar níveis de pH ou para diminuir a turbidez, mas desconheço no Brasil qualquer mineradora que faça tratamento nos afluentes para a retirada dos produtos tóxicos. Já visitei algumas empresas que lidam com tal tipo de atividade e não encontrei em nenhuma delas laboratórios químico-ambientais para fazer tais análises. Geralmente, contratam algum laboratório de fora para fazer o automonitoramento, que é uma prerrogativa da lei. A própria empresa pode contratar outra empresa para fazer o controle. Na minha opinião é um erro, mas é a lei e eles podem fazer assim.

    Portanto, o problema vem, basicamente, de dois fatores: falta de monitoramento e falta de fiscalização. Se houvesse abertura para o monitoramento dos rejeitos tóxicos, além do que a própria empresa faz, e se as SEMAs por todo o Brasil fizessem de fato a fiscalização que deveriam, nada disso teria acontecido.

    Correio da Cidadania: Como enxergou, estruturalmente, a tragédia do rompimento da barragem que armazenava rejeitos oriundos da exploração de minério de ferro pela empresa Samarco, na cidade de Mariana (MG)?

    Simone Pereira: As barragens nada mais são do que uma grande vala cavada no solo, não muito fundo por conta do lençol freático, e que aos poucos se acrescentam nas laterais até atingirem um máximo de altura de talude. As barragens têm, aqui no estado do Pará, em torno de 2 e 3 metros de profundidade. Algumas empresas, que produzem rejeitos tóxicos, fazem o revestimento destas bacias porque se não os efluente com produtos perigosos podem infiltrar no solo e chegar ao lençol freático. Pelo que vi em Bento Rodrigues, não houve qualquer tipo de impermeabilização de bacia e o rejeito foi depositado diretamente no solo.

    O que temos em Mariana e em outros locais é uma barragem feita com o próprio material geológico, como rochas e britas. Não é uma construção de alvenaria. É uma barragem para cima. O talude é a altura da barragem. Assim, quando a barragem começa a saturar, eles aumentam o talude, e são feitas emendas à barragem original. O problema é que a cada tonelada de minério processado, são produzidas outras toneladas de rejeitos. Esse material não é de interesse para a empresa e fica depositado na bacia. Podemos imaginar que são necessárias bacias e mais bacias para que seja possível continuar o processamento do minério.

    Quando uma bacia se esgota e não pode mais receber rejeitos, eles simplesmente cessam a operação naquela bacia, colocam solo por cima, revegetam e partem para outra bacia. Mas os produtos tóxicos ficam ali para sempre. É preciso entender que o minério quando está no solo, na crosta terrestre, está imóvel. Costumamos dizer que está imobilizado e não representa risco, porque está geralmente protegido pelos óxidos e hidróxidos, que são ligações fortes que não deixam esse metal sair das proteções e se tornar disponível para o ambiente.

    Quando se começa a trabalhar o minério, a primeira coisa que acontece são explosões. Em outras palavras, para retirar o minério da crosta colocam-se dinamites e explodem. Esse material particulado gerado pelas explosões – pode ser inalado por uma pessoa – contém elementos tóxicos. E muitas vezes acontecem processos de intoxicação por inalação nas comunidades próximas à mina.

    À medida que você explode a rocha e começa a abrir a mina, que geralmente tem quilômetros de profundidade, e vai sendo aberta em níveis diferentes até o fundo, de onde é extraído o minério, a rocha é exposta às intempéries, como a chuva que produz a descarga ácida de minas (DAM), que contém ácidos fortes e solubiliza os elementos antes imóveis na rocha. Este minério, quando transportado do fundo da mina para o processador, onde será britado, lavado, centrifugado, vai sofrer processos de aquecimento, às vezes processos químicos etc. Produz rejeitos sólidos e efluentes ricos em elementos tóxicos que ficarão como uma herança maldita.

    O ferro produzido, por exemplo, não sai da mina na forma como é exportado. Uma mina de ferro para ser viável precisa ter um minério com teor acima de 60% de ferro. Mas e os outros 40%? São rejeitos, argila, escória e todo esse material que vemos por aí, além de uma pequena percentagem de elementos tóxicos que em pequenas quantidades podem causar problemas de saúde sérios na população e danos ao meio ambiente. Se uma empresa, ao liberar efluente de bacia de rejeito contendo, por exemplo, chumbo, arsênio, cádmio e mercúrio (esses dois últimos se bioacumulam), no rio e as pessoas consumirem essa água, em 30 anos aquela pequena quantidade de metais acaba bioacumulando-se no corpo e causa problema de intoxicação.

    À medida que todo o rejeito não é utilizado pela mineradora, logo é descartado. Há dois tipos de materiais classificado nos rejeitos: um se chama pilha de estéril, composta de material inerte, onde não tem produção de material tóxico na parcela do que é descartado; a outra parcela é a pilha de rejeitos, que, no caso de Bento Rodrigues, foi classificada como classe 2, ou seja, é um material considerado não perigoso, porém não inerte. Isso significa que o material continua reagindo, se combinando, formando novos compostos e podendo ser perigoso para a população e ao meio ambiente, em algum nível, caso venha a ser liberado, como aconteceu.

    Eu não conheço e nunca analisei o material de Minas Gerais, são informações da própria mineradora e de artigos que tenho lido depois da tragédia em Mariana, onde dizem que aquele material é classificado como classe 2, de resíduos não inertes. Isso já basta para eu afirmar que podem apresentar riscos.

    Se não bastasse, a presença da lama, a própria argila, constituída de materiais comuns como os silicatos, seria suficiente para mudar completamente a qualidade dos ecossistemas locais. Minha pergunta é: a empresa vai remediar todos os ecossistemas atingidos pelo rejeito? É preciso retirar a lama e recuperar o ambiente. Mas será que de fato vai acontecer? No Brasil, não vejo acontecer.

    Temos problemas semelhantes aqui no Pará, houve em 2007, no município de Barcarena, o rompimento de uma barragem de rejeitos que deixou o Rio Pará branco, com rejeito ácido de caulim de uma empresa produtora de pigmentos. Até hoje o fundo do rio continua cheio de rejeito. Será mesmo que vão limpar a sujeira de Minas Gerais? Ainda mais agora que a lama está chegando no Espírito Santo? Como é que vão recuperar tudo? E o rio? E as pessoas que estão perdendo seu modo de vida e sua saúde?

    Correio da Cidadania: Agora vemos que as consequências adquirem amplitude quase inimaginável, com os rejeitos e a lama tóxica, como dito, chegando ao litoral e podendo se estender por uma vasta parte da costa brasileira. O que dizer diante disso? O acidente da barragem da Samarco se equipara, como alguns já dizem, a acontecimentos como o vazamento de petróleo no golfo do México ou o vazamento dos rejeitos nucleares da usina japonesa de Fukushima, entre outros episódios?

    Simone Pereira: Eu não compararia isto a Chernobyl ou Fukushima, por não se tratar de um evento envolvendo produtos radioativos. Nós temos visto a natureza sendo agredida por diversas vezes, como na Hungria, onde houve também um rompimento de uma barragem de lama vermelha – lá, eles estão conseguindo recuperar. A empresa foi autuada para fazer a recuperação e aos poucos vai se fazendo. Acontece que a dimensão de Mariana é algo muito maior do que na Hungria. Mesmo com a lama vermelha da Hungria sendo composta de um material ainda mais perigoso que a de Mariana, as dimensões do desastre foram menores. De toda forma, eu não faria tais analogias, que muita gente vem fazendo. O importante é sabermos que em Mariana houve um grande evento.

    No Brasil, é o maior acidente ambiental do qual já tive notícia. Já tivemos acidentes muito graves de derramamento de óleo, a exemplo da Repar no Paraná, quando houve um derramamento de óleo no rio. Foi um grande evento, até atingiu outros estados, e a Petrobrás chegou a ser multada em 200 milhões quando isso aconteceu – foi a maior multa ambiental, até então, da história do Brasil. No entanto, tais eventos ajudaram a trazer novas tecnologias de tratamento de solo e a própria Petrobrás esteve desenvolvendo técnicas para recuperar o meio ambiente.

    Eu não sei se em Mariana vamos ter uma ação igual. Já vemos o prefeito dizer que o Ministério Público não pode fechar a mineradora, porque a economia da cidade depende disso, ou seja, dos royalties e do que arrecada em torno da atividade da mineradora. A medida que a mineradora não é acionada ou o acontecimento for passando despercebido da opinião pública, ela continua agindo da mesma forma com a qual agia até então, e é lógico que os problemas poderão ocorrer novamente. E não é só a barragem de Bento Rodrigues que está nessa situação. Temos lido notícias que falam de outras barragens que correm o mesmo risco.

    Portanto, acho que agora a produção tem de ser interrompida. Não tem como eles continuarem a colocar material dentro de uma barragem que já corre risco de se romper, seria uma irresponsabilidade. O Ministério Público agiu certo em interromper a produção, mas a gente tem a consciência de que a mineradora não vai acabar, não vai mudar suas práticas e as coisas continuam sempre do jeito que já conhecemos. Essa é a situação de Mariana e todas as cidades onde funcionam mineradoras que operam com barragens na região.

    As barragens não são de fato monitoradas como deveriam e, outra coisa, não se ouviu falar em Mariana em plano de contingência. Bento Rodrigues foi massacrada e sequer teve o tempo de correr. As pessoas foram pegas na sua rotina, no seu lazer, e não havia uma sirene sequer para avisar. Nunca se treinou a cidade para um evento como esse. Simplesmente não havia um plano de contingência para que as pessoas pudessem sair rapidamente de suas casas e evitar que as mortes ocorressem.

    Correio da Cidadania: As privatizações e aberturas ao mercado, no sentido de se explorar riquezas minerais diversas sem grandes fiscalizações, têm qual grau de influência na tragédia?

    Simone Pereira: Não acredito que as privatizações tenham influenciado de alguma forma na prática, que considero delituosa, de se colocar rejeito sem qualquer cuidado e monitoramento. Essa prática acontece há décadas. Temos exemplos antigos no Amapá, temos outras explorações minerárias aqui no estado do Pará, assim como em Minas Gerais, que já vêm de muito tempo. Não foi o fato de privatizar uma empresa que acabou por mudar a prática que já era consolidada no Brasil e no mundo inteiro. Não vejo qualquer relação entre a privatização e a prática de depositar rejeitos em bacias.

    Mas entra outra questão: será que abrir para o mercado privado a exploração minerária influencia no aumento da produção e diminuição do cuidado ambiental? Devido à questão do lucro, isso pode acontecer. A empresa, quando se instala, não quer gastar muito dinheiro com questões ambientais. Para o capital, a questão ambiental é secundária. O importante é o lucro. Se a empresa tem o lucro estabelecido, tudo bem. Se por ano a empresa consegue um lucro líquido de 200 milhões de reais, por que não reserva uma parcela para aplicar em tecnologia, preservação ambiental e desenvolvimento de pesquisas no tratamento dos rejeitos, na recuperação da água? Pois se gasta água demais neste tipo de operação e hoje em dia é essencial reutilizar aquilo que se gasta muito. Se a mineradora não vê e não tem o interesse de anexar ao seu produto um selo verde de exploração sustentável, ela simplesmente vira as costas para tudo e só pensa no lucro. O lucro é o principal.

    O fato de a exploração mineral ser aberta para qualquer empresa do Brasil e do mundo demonstra ser necessário um diálogo e uma participação da população da região no processo. É preciso consultar as pessoas sobre a instalação de bacias de rejeitos. Há um atropelo nas audiências públicas, não há uma discussão aprofundada com a mídia como estamos fazendo agora, é preciso chamar os técnicos e os analistas e explicar os fatos: desde a composição química dos rejeitos, até as medidas que a empresa vai tomar para tratar o rejeito e retirar os elementos tóxicos. Não existe isso porque a empresa só visa lucro.

    Aplicar em práticas sustentáveis significa gastar dinheiro, e gastar dinheiro não representa um atrativo para as empresas no sentido de resolver problemas graves que temos aqui – e tais práticas vêm de décadas. Por que não se trata o rejeito, não se retiram produtos que às vezes nem se sabe que estão lá?

    Há produtos que talvez possam até ser comercializados. O que para nós é rejeito, na China pode ser um minério importante. Há nos rejeitos produtos altamente valorizados no mercado exterior. A geoquímica brasileira é riquíssima. Temos, por exemplo, o disprósio, que é jogado fora como rejeito. O disprósio é um minério supervalorizado no exterior, é dele que fazem foguetes, satélites, e aqui é jogado no lixo. Não temos nem a tecnologia para fazer sua extração. É preciso uma mudança de paradigma.

    Existem empresas estrangeiras que em seu país de origem seguem todas as normas ambientais, porque senão pagam multas astronômicas e podem até fechar. Mas quando chegam aqui no Brasil não mostram a mesma conduta. Elas sabem que aqui as leis não são cumpridas. Sabem que aqui o poder político anda de mão dada com o poder econômico. É comum vermos falas como a do prefeito de Mariana, que estava desesperado pelo fato de o município ficar sem verba, e ele não está errado. A cidade precisa de renda.

    O fato de a empresa pagar os royalties para a cidade, a meu ver, pode ser uma maneira de afrouxar a fiscalização. O poder político acaba sendo cooptado a fazer coisas erradas junto com as mineradoras e não vê que pode acabar prejudicando a população, que a prática pode causar danos ambientais etc. Na medida em que o poder político e o poder econômico vão se associando, quem vai sofrer é o meio ambiente e a população. Há um relaxamento da lei, da fiscalização e o caos pode ser instalado no país inteiro devido ao descaso.

    Aqui, é o paraíso para quem não quer cumprir a lei. Temos muitas leis e elas são muito avançadas. O problema é como elas são aplicadas, e em alguns casos ignoradas, por conta da influência do poder econômico no poder público.

    Correio da Cidadania: Como você avalia a abordagem que fala em “acidente”, “desastre natural”?

    Simone Pereira: Tenho quase a plena certeza de que o evento não foi natural. Eles estão alegando que houve tremores antes, o que poderia ter causado o rompimento da barragem. O Ministério Público de Minas Gerais já havia acionado a empresa para fazer a recuperação da barragem, que estava com problemas muito antes de tudo acontecer. Assim, já havia um procedimento do MP, anterior a qualquer coisa, que obrigava a empresa a fazer a recuperação da bacia. O fato de não terem tomado a medida correta para parar a produção e tomar as medidas exigidas pelo Ministério Público leva a crer que simplesmente ignoraram o procedimento. E aconteceu o que aconteceu.

    O próprio MP está dizendo que não foi acidente, mas negligência. Agora, a minha opinião: eu não estava lá, não fiz vistoria e não sei o que de fato aconteceu, de modo que não posso afirmar “sim” ou “não”, estou dizendo apenas pelo que tenho lido e o Ministério Público divulgado sobre o fato de acionar a empresa para resolver o problema. Havia, sim, indícios de que o desastre poderia acontecer. E a empresa não tomou as providências.

    Correio da Cidadania: Há denúncias de acobertamento de responsabilidade da Samarco. Você vê um movimento nesse sentido, inclusive da parte da imprensa?

    Simone Pereira: Antes da internet e das redes sociais, as pessoas acreditavam no que a imprensa divulgava. Era muito comum sermos influenciados por grandes meios de comunicações, grandes redes de televisão, jornais e revistas, porque aquilo era dado como verdadeiro. Com o passar dos anos e com as redes sociais no mundo, a informação verdadeira passou a ser pública. Há uma parte da mídia que serve aos poderes econômicos e políticos. Isso nós sabemos, não sei se é o caso de Mariana. Não tenho dados para te fazer tal afirmativa.

    A minha interpretação é de que a grande imprensa brasileira não é isenta. Aqui ou ali, a imprensa acaba se influenciando por questões políticas, econômicas e tem certa tendenciosidade ou a acobertar ou a omitir ou a minimizar certos acontecimentos, que para a população são graves, mas no final acabam minimizados. Após passar um ou dois dias na mídia, o interesse de publicar determinado assunto cai, sai de pauta, vai para o esquecimento. Estamos vendo isso em relação à Mariana. Já não se fala tanto sobre o assunto como nos primeiros dias após o rompimento das barragens, daqui a alguns dias não se falará mais nada sobre o assunto e a população vai ficar lá, sem apoio, com o meio ambiente irremediavelmente destruído e sem solução.

    Esse é o grande problema. A mídia quando se interessa por um assunto, é por muito pouco tempo. Ela não vai a fundo, não divulga, por exemplo, os nomes de quem de fato são os responsáveis. A gente não sabe como funcionam os processos. Para onde foi o processo? Quantas pessoas foram presas? Não vemos nada na mídia. Você já viu o diretor de alguma indústria protagonista de desastre ambiental ir para a cadeia? Esses processos simplesmente não andam. Não seguem até o final, quando muito se faz um TAC (termo de ajustamento de conduta).

    Seria interessante se a mídia cobrasse de fato as devidas responsabilidades, se ficasse em cima, fosse a fundo, mostrasse realmente o drama das pessoas, porque as vidas dessas pessoas mudaram da noite para o dia. A mídia simplesmente tira do ar e não fala mais. Como se aquele evento acontecesse durante uma semana e depois estivesse resolvido. Tivemos aqui no Pará o afundamento de um barco com 5 mil bois no início do mês de outubro e os bois continuam lá dentro do navio, ninguém tirou. Ainda existem milhares de litros de óleo dentro do barco, que também podem vazar a qualquer momento e ninguém fala mais. Esse é o problema da mídia. Para a população afetada, ela não está sendo útil como as redes sociais.

    Correio da Cidadania: De tempos em tempos, vemos a reforma do Código da Mineração aparecer nos corredores políticos. No atual contexto, o que pensa de tal possibilidade?

    Simone Pereira: Quanto a esse assunto não posso te dar informação, porque não é uma área na qual eu seja especialista. Tais questões políticas sempre vão acontecer. Sempre existirão grupos dentro do Congresso que tentarão formar lobbies para que as práticas nocivas ao meio ambiente sejam favorecidas. Em qualquer área: mineradoras, indústrias, agronegócio, enfim, sempre haverá pessoas querendo mudar leis e códigos já estabelecidos para se beneficiarem.

    Correio da Cidadania: Como está o Brasil no aspecto da proteção legislativa e também da apropriação da renda auferida na mineração?

    Simone Pereira: Aqui no Brasil, alguns municípios recebem royalties da mineração. Parauapebas, o município que recebe os royalties da mineração de ferro no Pará, é a cidade com a segunda arrecadação no estado, só perde para a capital Belém. Imagina um município que recebe 600 milhões de reais por ano. Esse dinheiro deveria ser aplicado no próprio município, correto? Você chega lá na cidade de Parauapebas e não vê esgoto na cidade, não tem tratamento. As escolas também não são lá essas coisas. E pra onde vai o dinheiro todo? Eis a pergunta. Há outros exemplos de municípios que recebem royalties ou impostos e continuam muito pobres.

    Se as empresas pagam tal quantia ao município, porque não vemos o dinheiro aplicado por lá? Para onde vai? Portanto, o município arca com todos os problemas ambientais e sociais que a exploração traz e no final não recebe muita coisa em troca. Ou seja, os lucros não são revertidos para a população na forma de melhorias da saúde, educação, saneamento básico e assim por diante. O poder político acaba dando diversos benefícios para as mineradoras e indústrias e não os vemos voltarem para a população e nem o meio ambiente. Vai beneficiar a quem?

    Sempre dão como desculpa a geração de empregos. Veja bem: a empresa se instala em uma região pobre, com índices de IDH baixos. Não há uma população especializada para trabalhar nas empresas que pretendem se instalar. O que deveriam fazer? Antes da implantação, deviam colocar escolas técnicas, formar pessoal, fazer parcerias com as universidades para ter gente de nível superior trabalhando na indústria. Mas não. Isso custa dinheiro, leva tempo. E o que fazem? Contratam pessoal de fora, já pronto, porque assim não gastam recursos com a formação. A grande parte dos diretores, supervisores, gerentes, pessoal de nível superior, técnicos especializados etc. é de fora, não são moradores dos locais onde se dão as explorações dos recursos.

    Não há um trabalho de base, uma prévia instalação, nem um preparativo para o lugar suportar o impacto do empreendimento. Não há nada. Olhe para Bento Rodrigues. Era uma comunidade rural. De repente chega uma mineradora daquele porte e se instala. Será que a maioria dos moradores locais largou suas vidas simples e foi trabalhar na mineradora ou continuou com sua vida do campo? O que será que mudou na vida da população local com a implantação da mineradora ali? Quais benefícios a mineradora trouxe? Por que não perguntam para a população se ela queria a mineradora ali?

    O problema é a população não ser ouvida. As audiências públicas, quando ocorrem, são feitas de maneira velada, sem publicidade. Poucas pessoas vão e as que vão já estão cooptadas a responderem aquilo que eles querem ouvir. Já vi acontecer muitas vezes. Eu espero que o que aconteceu em Bento Rodrigues seja tomado como exemplo para o país inteiro, que as práticas sejam mudadas e que desastres como estes não venham mais a acontecer no Brasil.

    Correio da Cidadania: Finalmente, aproveitamos para falar de um empreendimento citado no início e localizado no estado em que você trabalha e vive. Na Volta Grande do Xingu, como você avalia os impactos dos grandes empreendimentos da região: a hidrelétrica Belo Monte, já em operação, e a mineradora de ouro da empresa canadense Belo Sun, em vias de implantação? Podem apresentar problemas semelhantes ao que pudemos observar em Minas Gerais?

    Simone Pereira: Eu posso falar da Belo Sun. A hidrelétrica de Belo Monte é um empreendimento que já está em andamento e tem um aspecto bem diferente daquele da exploração de ouro. Logicamente, todo empreendimento tem fases e nós participamos de várias discussões sobre Belo Monte. Não somos contra a hidrelétrica. Particularmente, acho que o Brasil necessita das hidrelétricas. A região amazônica tem vocação para uso da hidroeletricidade. O problema é que deve ser feito com o mínimo de impacto possível e cumprindo-se as condicionantes estabelecidas para poder beneficiar a população e impactar o menos possível o meio ambiente. Mas, de fato, quando as empresas começam a não cumprir aquilo que prometem a coisa fica difícil.

    Outro aspecto é que a hidrelétrica implantada na região amazônica deveria trazer de alguma forma benefícios para a população. Se nós, amazônidas, arcamos com a implantação da hidrelétrica e os seus impactos ambientais e socioeconômicos, esperamos que ela seja bem vinda. Mas quais os benefícios que a população daqui da Amazônia vai ter com a implantação de uma hidrelétrica? A nossa conta de energia é a maior do país. Se nós produzimos energia elétrica aqui na Amazônia, por que nossa conta é a mais alta do país? Por que não se faz uma reforma tributária para aquela energia exportada a outros estados voltar como isenção de impostos? Nós pagamos mais de 30% de impostos – só impostos estaduais. Portanto, ainda podemos entrar no assunto de “bandeira tarifaria”, pois quando o sul está passando por seca, somos nós que pagamos pelo acionamento das termelétricas.

    Quanto a Belo Sun, é um problema que está nas mãos do Ministério Público Federal. O órgão já foi acionado, já foi feita a denúncia, já se embargou em parte a liberação da licença para o início da operação das mineradoras, mas também já conseguiram derrubar a liminar do MP Federal e está em curso a implantação da mineradora.

    O problema da Volta Grande é que eles vão usar cianetação para poder processar o ouro. Esse processo de cianetação é usado em várias mineradoras, mas por ter registrado vários acidentes ambientais ao redor do mundo está sendo banido. O cianeto está sendo substituído por outras substâncias na exploração do ouro. Existe um movimento para poder banir o cianeto da exploração do ouro. O problema é que até agora não foi encontrado um outro produto que o substitua tão bem, e ele será usado nas bacias de rejeitos da Belo Sun na Volta Grande do Rio Xingu.

    O cianeto vai ser controlado, a menos que haja problemas em alguma válvula que porventura ocasione o seu derramamento no rio, mas o grande problema, e não falado, é o que vão fazer com os elementos tóxicos que estão no solo junto com o ouro e estarão em contato com o ambiente – assim como eu expliquei no início da entrevista a partir da mineração do ferro.

    Acontece que a mineração do ouro ainda contém arsênio, que é ligado ao ouro geoquimicamente, e teremos mercúrio, chumbo, cádmio e assim por diante. E em todo o projeto, que eu tive a oportunidade de ler da primeira à última página, não há qualquer referência acerca do tratamento desses metais tóxicos.

    Continua a mesma prática. Ou seja, vão pegar o minério, explodir, triturar, tratar quimicamente com cianeto, complexificar os elementos químicos, separar o lodo e o que sobrar vai ser colocado em bacias de sedimentação. Logicamente, o efluente gerado por tal prática acaba sendo rico em cianeto e metais tóxicos. O problema é que o tratamento do afluente dará conta apenas do cianeto. Vão tratar o cianeto com ácido que, ao reagir, quebra-o e produz nitrogênio e gás carbônico. Portanto, à medida que você usa esse ácido torna o rejeito mais ácido, o que biodisponibiliza os elementos tóxicos de uma maneira ainda mais eficiente para o ambiente. É preocupante, já que não dizem como vão tratar esses metais.

    O que mais preocupa é que vão tirá-los dos efluentes, mas existe a possibilidade de jogarem no Rio Xingu. Isso está cantado, com todas as letras. Não se fala no texto do projeto sobre proteção ao Rio Xingu e as comunidades indígenas que vivem próximas do empreendimento e utilizam a água do rio para o seu consumo cotidiano. Elas não têm água tratada, nem mineral, e usam a água do rio. Assim, se os metais pesados forem jogados, logicamente vão afetar as comunidades indígenas. E não só elas, mas também diversas cidades ao longo do curso do rio.

    Correio da Cidadania: Em suma, continua tudo armado para novas tragédias ambientais no Brasil.

    Simone Pereira: Minha análise é baseada no próprio projeto, que eles disponibilizaram na página da Secretaria de Meio Ambiente. Não há qualquer referência ao tratamento dos metais pesados, assim como em Minas Gerais e em outros empreendimentos daqui do Pará.

    Existe uma legislação que obriga as indústrias e as empresas a fazerem controles de efluentes. Não pode jogar metal tóxico no rio, há um limite máximo permitido. Só que como não é feita a fiscalização, não há a exigência do controle de todos aqueles metais. As SEMAs acabam fazendo exigências de coisas que não têm nada a ver, como pH e turbidez. E os metais continuam sendo jogados no rio. Lá tem essa particularidade. Eu fiz análise do Rio Xingu naquela área e já há um aumento de arsênio, até seis vezes maior do que o limite permitido. Isso ocorre porque ali já existe uma exploração de ouro feita artesanalmente por pequenos garimpeiros, que usam mercúrio na atividade de extração do ouro.

    Se com a atividade artesanal já há um aumento do arsênio, imagina como este componente vai aumentar quando vier a mineradora em esquema industrial. Com a previsão de várias toneladas de ouro por ano a serem produzidas, teremos também muitas toneladas de arsênio no meio ambiente. E não há qualquer tipo de referência ao tratamento deste material no projeto da Belo Sun.

    Raphael Sanz e Gabriel Brito são jornalistas do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, terça-feira, 17 de novembro de 2015

  • Paris e Mariana: duas faces do terrorismo!

    Paris e Mariana: duas faces do terrorismo!

    Chego à sacada e vejo a minha serra, a serra de meu pai e meu avô, de todos os Andrades que passaram e passarão, a serra que não passa. (…) Esta manhã acordo e não a encontro. Britada em bilhões de lascas deslizando em correia transportadora entupindo 150 vagões no trem-monstro de 5 locomotivas – o trem maior do mundo, tomem nota – foge minha serra, vai deixando no meu corpo e na paisagem mísero pó de ferro e este não passa.

    “A montanha pulverizada” Carlos Drummond de Andrade.

    Mariana (MG) – Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil)
    Mariana (MG) – Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil)

    Mariana (MG), quinta feira, 05 de novembro de 2015. A barragem do Fundão, repleta de uma lama tóxica (oriunda dos rejeitos da mineração de ferro), se rompe causando o maior desastre ambiental da história do país. A empresa responsável é a Samarco, de propriedade da Vale e da BHP Biliton, a maior mineradora do mundo.

    Sexta feira, 13 de novembro de 2015. Mais de 130 pessoas são assassinadas em 6 ataques terroristas no 11º distrito de Paris. Mais de 350 feridos. A “cidade luz” se apagou. O mundo se estarreceu. O terror foi cirúrgico e coordenado em seu ataque.

    Também em Paris, em janeiro, o terrorismo do Estado Islâmico (EI) atacou a redação do jornal “Charlie Hebdo”, matando 12 de seus integrantes, entre eles alguns dos chargistas que criaram imagens irônicas ao profeta Maomé.

    Dois ataques, dois objetivos. No primeiro o objetivo era explícito: calar uma voz crítica ao “islamismo puro” do EI. No ataque de sexta, o objetivo era igualmente explícito: estádios de futebol, boates, bares e cafés não são mais lugares seguros em Paris, a cidade mais visitada do mundo. Turistas e parisienses não terão paz em locais de diversão.

    Lembremos que o ataque da Al-Qaeda de 11 de setembro de 2001 nos EUA tinha como endereço o coração financeiro e político do imperialismo: as torres gêmeas do World Trade Center, o Pentágono e a Casa Branca. Terroristas gostam de mandar mensagens, explícitas ou subliminares, em seus ataques.

    Muitas pessoas no Brasil se indignaram com o destaque, na verdade um verdadeiro massacre midiático das principais redes de TV, rádio e jornal do país, que exploraram e continuam explorando, à exaustão, o ataque, muitas vezes com informações pra lá de inúteis. Horas e mais horas de “coberturas exclusivas”, na maioria das vezes atrás de audiência a partir da desgraça alheia. Até a presidente Dilma, que demorou mais de uma semana para se pronunciar sobre o desastre humano/ambiental provocado pela Samarco-Vale-BHP Billiton em Minas Gerais, foi rápida em prestar solidariedade ao povo e ao presidente francês, François Hollande.

    Não se trata de estabelecer paralelo ou comparações sobre o que é mais chocante ou mais digno de solidariedade. Se o escopo da abordagem se limitar a esse viés, essa é uma discussão estéril e que não nos serve de muita coisa. Não é mais “revolucionário” e/ou “válido” se solidarizar com Mariana e rechaçar a solidariedade ao povo francês. A questão é mais profunda.

    Devemos repudiar veementemente o ataque terrorista em Paris. As vítimas, a maioria trabalhadores, com certeza inocentes, não tem responsabilidade direta sobre a nefasta política externa do governo francês. Ao mesmo tempo devemos manifestar nossa irrestrita solidariedade ao povo mineiro atingido pelo desastre do rompimento das barragens de lama tóxica da Samarco-Vale-BHP Billiton.

    O desastre em Minas tem proporções extraordinárias. Os desaparecidos, os mortos, as cidades destruídas, as milhares de pessoas atingidas pela lama e pela falta de água, o crime ambiental, os animais mortos, o rio que de doce se transformou em fel, são apenas a ponta de um iceberg de descaso e destruição impostos pelo modelo de exploração de nossas riquezas naturais. Alguns especialistas afirmam que levará mais de 100 anos para que a situação volte ao normal. Exagero ou não, a verdade é que há cidades como Governador Valadares, com mais de 280 mil habitantes, que passaram dias e mais dias sem água para beber. Os caminhões-pipa chegaram a ser escoltados pela polícia, pois muitos foram saqueados. A que ponto chegamos? Brasileiros e brasileiras saqueando caminhões que transportam água! A empresa, que sequer tinha plano de emergência para um possível evento destes, está mais preocupada com o prejuízo econômico, que com as vidas perdidas e a destruição do meio ambiente. Nada de novo, afinal essa é a lógica do capitalismo.

    Vamos agir e exigir que a Samarco-Vale-BHP Billiton seja devidamente responsabilizada pelo desastre. Mais que isso, precisamos saber das reais condições de segurança das 735 barragens semelhantes à do Fundão, que existem atualmente em Minas Gerais.

    Outro “detalhe” importante, que não podemos esquecer: a Vale é uma das empresas que mais “doam” dinheiro nas campanhas eleitorais. Em 2014, através da Vale Energia, Vale Manganês, Salobo Metais, Minerações Brasileiras Reunidas e Mineração Corumbaense, todas ligadas à Vale, “contribuiu” com mais de 22 milhões de reais aos principais partidos. Foram mais de 11,5 milhões ao PMDB, mais de 3,1 milhões ao PT e ao PSDB, 1,5 milhão ao PSB e ao PCdoB e assim vai. Aliás, a imprensa já relatou que a maioria dos deputados estaduais de Minas Gerais, do Espírito Santo e mesmo os federais encarregados de investigar o rompimento das barragens, recebeu “doações” da Vale em valores que vão de 368 mil a meio milhão de reais.

    As doações ao PMDB foram quatro vezes maiores que as feitas ao PT e ao PSDB por uma simples razão: o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), uma autarquia vinculada ao Ministério das Minas e Energia (MME), é o órgão responsável pela fiscalização da mineração no país. Tanto o DNPM quanto o MME são controlados pelo PMDB. Coincidência? Pouco provável.

    Voltando a Paris e aos ataques terroristas. Algumas pessoas manifestaram uma certa simpatia acanhada ao ataque do EI. Afinal, raciocinam, atingiu um dos baluartes do império do capital. Pensamento simplista e equivocado. O ataque terrorista não atinge a política imperial francesa. Muito possivelmente vai não só reforçá-la, mas aprofundá-la. É possível que a direita francesa, capitaneada por Jean-Marie e Marine Le Pen, se fortaleça em sua xenofobia. Outra possibilidade, que já está se dando, é que o próprio Hollande, na tentativa de recuperar sua imagem, endureça a política externa.

    A questão dos refugiados deve se acirrar depois dos ataques. Justamente o que o EI quer. Isso mesmo, o Estado Islâmico quer medidas mais radicais para combater a fuga das populações iraquianas e sírias dos territórios ocupados. Umas das maiores evidências dessa intenção são os indícios de que os terroristas e os homens bomba levavam passaportes sírios nos ataques, numa clara demonstração de que mesmo depois de mortos eles serviriam à causa de reprimir a acesso de refugiados ao velho continente. O Estado Islâmico está longe de ser uma organização progressista. O fundamentalismo religioso é a base de uma estrutura teocrática reacionária e fascista.

    O EI é responsável pelo maior seqüestro de mulheres deste século. São cerca de 5 mil mulheres, na maioria crianças, chamadas de “sabya” (escravas de guerra) seqüestradas no Iraque, boa parte são da minoria Yazidi. Não menos que 80% delas são sistematicamente violentadas e estupradas. Há relatos de jovens estupradas por 18 homens durante horas. Muitas se matam, enforcadas, eletrocutadas ou degoladas. Crianças de 9 anos são violentadas em nome de uma leitura deturpada dos princípios islamitas. Usar perfume, roupa estampada ou menos de três véus, pode significar ser chicoteada ou apedrejada até a morte. Ao total são mais de 4 milhões de mulheres sob domínio facínora do Estado Islâmico. Não, isso nada tem de progressivo.

    Entre tiros e bombas, a hipocrisia de Obama!

    Trata-se de um ataque não só contra os franceses, mas contra toda a humanidade e contra os valores que compartilhamos“. Com essa frase de efeito o presidente americano Barack Obama expressou sua “solidariedade” ao povo francês.

    Vale a pena se debruçar sobre essa frase. O que afinal, o todo poderoso presidente americano quer dizer com “crime contra a humanidade”? Só o terrorismo do estado Islâmico é um crime contra a humanidade? Será que a política externa/militar dos EUA, que consome bilhões de dólares anualmente, não é uma ameaça à “humanidade”?

    Uma pesquisa feita pela Worldwide Independent Network of Market Research (WINMR) e Gallup International, feita em 2013, e que ouviu mais de 66 mil pessoas em 68 países, constatou que uma em cada quatro pessoas vê os EUA como a mais importante ameaça ao planeta e à paz mundial. Lembrando que os EUA têm mais de mil bases militares estratégicas, espalhadas por mais de 100 países em todos os continentes. Atualmente o governo americano está diretamente envolvido em cerca de 80 conflitos ao redor do mundo. Na verdade desde a Guerra da Secessão (1861/65), não há um dia sequer que os EUA não estejam em guerra com alguma nação mundial. São 150 anos ininterruptos de guerra permanente. A rigor o maior estado terrorista do mundo é o próprio estado americano, os milhares de inocentes mortos em nome de sua “guerra ao terror”, não deixam dúvida disso.

    Além disso, as agências de espionagem americanas mantêm um invasivo programa de vigilância global que elimina qualquer possibilidade de privacidade. Que o digam Angela Merkel e Dilma, que tiveram suas comunicações espionadas pela CIA.

    Mas não apenas isso. Os EUA continuam a financiar e treinar militarmente diversos grupos pelo mundo afora, sempre em consonância com seus interesses econômicos, militares e políticos Recentemente o governo americano anunciou que desistiu de treinar soldados sírios e iraquianos que lutam contra o Estado Islâmico. Não por dor na consciência, mas por falta de material humano. O Secretário de Defesa americano, Ash Carter, reconheceu que a meta de treinar 5.400 soldados sírios, fracassou, pois só 60 candidatos se habilitaram para o programa, que tem recursos da ordem de 500 milhões de dólares. Há mais de três mil especialistas americanos em solo iraquiano, tentando treinar e armar grupos paramilitares para enfrentar o EI na região.

    Aos olhos do mundo, e ao seu público interno, os EUA querem aparecer como principais oponentes do Estado Islâmico. Mas a verdade não é bem essa: o fato é que, num passado bem recente, os EUA treinaram, armaram e financiaram grupos como a Al-Qaeda, Saddam Hussein e o próprio Estado Islâmico. Para comprovar isso temos, além das revelações feitas pelo site Wikileaks (que disponibilizou mais de 3 mil documentos secretos sobres esse tipo de operação), a farta documentação divulgada pelo jornal inglês The Guardian. Além disso, basta observar as aparentemente contraditórias manobras político/militares estadunidense na região nos últimos 30 anos.

    Durante a guerra Irã x Iraque o governo americano aliou-se a Saddam Hussein. Em 1985, ainda durante a guerra, Saddam Hussein enfrentou uma rebelião interna do povo curdo. Com a anuência dos EUA, Hussein aniquila a rebelião curda, usando para isso todas as armas possíveis, inclusive as já proibidas armas químicas. As baixas, entre iraquianos e iranianos, chegaram a 700 mil pessoas.

     

    Na mesma época os EUA se envolvem em outro conflito importante: a guerra do Afeganistão. Desta vez apoiaram ninguém menos que um próspero jovem saudita chamado Osama Bin Laden, que coordenava um exército de aproximadamente 4 mil soldados.

     

    Todas estas movimentações, que a princípio parecem erráticas, fazem parte das estratégias e táticas dos EUA e seus aliados para a região. A lógica parece ser a famosa “inimigo do meu inimigo, meu amigo é”. O problema é que, na maioria dos casos, os grupos financiados, treinados e armados pelos EUA, acabam, cedo ou tarde, se voltando contra estes mesmos americanos e aliados. O velho ditado “diz-me com quem andas e te direi quem és”, parece se aplicar perfeitamente aqui. Os EUA, que já andaram de braços dados com Saddam Hussein, Osama Bin Laden e o Estado Islâmico, tem pouca ou nenhuma autoridade para se posicionarem como paladinos da ética, da democracia e da luta em prol da “humanidade”.

     

    Ao relembrar a frase de Obama, “Trata-se de um ataque não só contra os franceses, mas contra toda a humanidade e contra os valores que compartilhamos”, resulta óbvio que o central de suas preocupações está mais nos “valores” que ele tem, que na “humanidade”. Seus valores são a manutenção do domínio americano na região, a disposição de infringir derrotas ao governo russo, o monopólio dos recursos de combustíveis fósseis da região, o controle de uma região estratégica que funciona de ligação entre ocidente e oriente, a manutenção do estado de Israel como seu enclave militar, entre outros “valores” nada humanizados.

     

    Outro registro de hipocrisia foi o revoltante silêncio que a imprensa mundial destinou ao ataque terrorista do grupo Boko Haram à aldeia de Kukawa, perto do lago Chade, no nordeste da Nigéria, quando 100 pessoas foram executadas. Parece que a morte de negros não é tão relevante quanto a morte de brancos.

    Este histórico, cheio de siglas e com eventos ocorridos há décadas, foi necessário para demonstrar que os EUA não têm escrúpulos na sua política internacional. O que move seus posicionamentos são seus interesses econômicos, políticos e militares. Isso nada tem de “humano”. Se analisarmos a imbricada história da CIA nos golpes militares na América Latina, veremos o mesmo pragmatismo: o negócio e o lucro acima de tudo.

     

    Dito isto reiteramos que estes atos terroristas não são ferramentas revolucionárias. São ações vanguardistas, apartadas das lutas de massa e que em geral acabam por prejudicar a luta revolucionária ao fortalecer indiretamente os setores mais à direita e ao se isolar da vida real dos movimentos sociais. A verdadeira luta contra o poder imperial do capitalismo se desenvolve nas ocupações urbanas, nas greves e mobilizações do povo trabalhador, nas lutas da juventude, na luta contra as opressões e contra a corrupção endêmica da sociedade burguesa. A revolução socialista será obra de milhões, e não de um grupo de iluminados, por mais abnegados e corajosos que estes sejam. O que, diga-se de passagem, não é o caso do Estado Islâmico.

    Uma das conseqüências mais nefastas destes ataques vai ser sua associação ao afluxo de refugiados oriundos da Síria. A Europa já recebeu, só esse ano, mais de 700 mil refugiados. Se vimos muitas demonstrações de solidariedade, também vimos comportamentos xenófobos extremamente violentos. A guerra na Síria assumiu as proporções atuais justamente porque é uma peça do tabuleiro mundial da disputa das potências capitalistas, logo o continente europeu é diretamente responsável pelo que acontece na Síria. Assim sendo não pode se omitir ou rechaçar a horda de homens, mulheres e crianças que diariamente chegam ao continente. As pessoas estão fugindo da morte, da miséria e da guerra. No passado ninguém ousaria rejeitar ou repatriar os milhões que fugiram do nazi-fascismo. Não aceitamos o fechamento das fronteiras. Se quisermos resgatar o “humano” nisso tudo, devemos exigir abrigo e acolhimento aos refugiados.

    Não nos esqueçamos que muitos países europeus (Inglaterra, Espanha, Portugal, França, entre outros) construíram boa parte de sua bonança, saqueando países na Ásia, África e América. Os conquistadores e invasores europeus não bateram na porta, não pediram permissão. Se impuseram pela força da espada e da baioneta, não pela diplomacia.

    Lembremos ainda, que a sociedade burguesa-democrática não se estabeleceu democraticamente. Muito menos por meios pacíficos. A sociedade socialista também significará uma ruptura. O grau de virulência e violência que essa ruptura terá não pode ser estabelecido de antemão, mas é pouco provável que seja tratada no campo da diplomacia. Logo a polêmica aqui não é entre pacifistas e não pacifistas, mas quais métodos são válidos na luta revolucionária e quais não são. E este tipo de ataque definitivamente não se encaixa na luta socialista. Nem pelo método, nem pelos protagonistas.

    Com o alarmante número de homicídios que o Brasil tem, a cada dois ou três dias temos números iguais, ou superiores, aos dos atentados de Paris. Nossa juventude, em geral os negros da periferia, morrem aos montes, seja nas chacinas tradicionais cada vez mais freqüentes, seja na chacina de “doses homeopáticas” que acontece diariamente pelo Brasil afora. Isso não parece incomodar mais ninguém. Foi naturalizado. O estado trata da questão como estatística e boa parte da sociedade já não se incomoda com esse genocídio diário a que estamos submetidos. Alguns até defendem.

    Por isso mesmo não podemos nos calar diante desse massacre e nem diante dos ataques terroristas. É preciso denunciá-los e repudiá-los de forma veemente.

     

    Mariana e a morte da inocência

     

    A volúpia e a sanha capitalista não têm o menor pudor em sacrificar a vida e a natureza. O que parece insano, na verdade segue a lógica do capital. Vejamos os números da fome no planeta na opinião de um especialista na área. Jean Ziegler, relator para o direito à alimentação da ONU entre 2000 e 2008, revela que a cada 5 segundos, uma criança de menos de 10 anos morre de fome no mundo. Mais de 56 mil pessoas morrem de fome a cada dia e 1 bilhão de seres humanos são permanentemente subalimentados. Em 2013 aproximadamente 70 milhões de pessoas morreram. Destes, 18,2 milhões morreram de fome ou de suas conseqüências imediatas. A fome é, portanto, a maior causa de mortalidade do nosso tempo!

    Não existe falta de alimentos, o que falta é a comida chegar a quem precisa. Atualmente a população global gira em torno de 7,2 bilhões de habitantes. A agricultura mundial poderia alimentar normalmente, com uma dieta de 2,2 mil calorias por dia, 12 bilhões de pessoas. O setor de alimentos é o mais concentrado e cartelizado da economia mundial, mais até do que o petróleo. Há 10 grupos multinacionais que controlam 85% dos alimentos comercializados no mundo. A fome é, fica evidente, um problema político e econômico. Só quem tem dinheiro pode comer. Outros direitos universais, como educação e saúde seguem a mesma lógica irracional.

    Se o capitalismo faz isso com a humanidade, que dizer do que faz com a natureza? O “humanizado” Barak Obama se recusa a assumir compromissos efetivos na redução do aquecimento global e na redução do efeito estufa. A cada ano os EUA despejam 5.762.050 toneladas de gás carbônico na atmosfera, sem o menor compromisso com a qualidade de vida no planeta. Aliás, este será um dos temas a ser debatido em Paris, quando da realização da COP21 (Conferência Mundial do Clima).

    O desastre em Mariana revela toda a hipocrisia de nossa legislação e prova, na prática e de maneira dramática, que o propalado “compromisso social” das empresas não passa de propaganda enganosa. Vejamos o exemplo do rompimento das barragens, que já é considerado como uma das maiores tragédias do mundo na área da mineração. A empresa Samarco-Vale-BHP Biliton, não possuía Plano de Ação para situações como essa. Pelos seus “cálculos” o município de Bento Gonçalves, destruído pela lama, não fazia parte da área de abrangência dos impactos da barragem. A “vistoria” e o “laudo” atestando perfeitas condições da barragem podem ser feitos pela própria empresa ou por alguém pago por ela. É como se colocássemos o lobo para tomar conta do galinheiro, esperando que ele zele pela segurança e saúde das galinhas.

    A Vale, que tirou o rio doce de seu nome, está ajudando a Samarco a matar o rio que lhe deu origem.

    Segundo o IBAMA, foram 5 rompimentos de barragens nos últimos 10 anos, o que comprova o risco dessa atividade e a decadência das legislações em vigor. A morosidade da lei beneficia os grandes empreendimentos. O DNPM, que deveria fiscalizar e controlar a produção mineral, funciona mais como uma subsecretaria das grandes mineradoras e não como órgão de controle. Em 2014, tinha à sua disposição 10 milhões de reais para garantir a fiscalização da produção mineral, mas só usou 13% desse valor, ou seja 1,3 milhão. Em Minas Gerais, tem apenas 4 fiscais para as mais de 700 barragens no estado. A situação do IBAMA não é menos revoltante: aplicou mais de 4,8 bilhões de reais de multas. Mais de 2 bilhões são multas sem qualquer possibilidade de recurso, mas como quase ninguém paga essas multas, o órgão só arrecadou pouco mais de 140 milhões de reais. As multas aplicadas à Samarco até agora somam R$ 250 milhões. A pedido do Ministério Público Federal e do MPE de Minas Gerais a Samarco, através de um acordo, vai desembolsar 1 bilhão de reais para recuperar o meio ambiente da região. Uma ninharia se comparada à multa de mais de 170 bilhões de reais, aplicada pelo governo dos EUA à empresa BP, que em 2010 causou um vazamento de óleo no Golfo do México.

     

    A produção minero-metalúrgica tem alavancado a economia de muitos estados e do país, mas os custos sociais, o gasto com energia e com água, os impactos ambientais e a degradação da natureza são enormes. O lucro imediato sacrifica a vida futura. Esse é um preço que não deveríamos pagar.

     

    Estima-se que o transporte do minério de ferro, via mineroduto (que usa água como vetor de transporte) utilize anualmente mais de 13 trilhões de litros de água. A Samarco-Vale-BHP Biliton tem um dos maiores minerodutos do mundo. Enquanto isso a população mineira e do entorno das barragens sofre com rios mortos e sem água. Tudo isso é visto como normal pela lógica do capital.

    O Brasil, atolado até o pescoço no mar de lama da corrupção, agora está atolado literalmente na lama dos grandes projetos, que causam impactos terríveis ao meio ambiente sem que nenhum retorno seja proporcionado às comunidades atingidas. A “mitigação” desses efeitos ou as “políticas compensatórias” beiram o ridículo e a provocação ao bom senso. É como se uma mega empresa derrubasse sua casa e desse em troca uma rede para atar entre os postes de energia elétrica e esperasse que você ficasse satisfeito e feliz.

    Muitos estudiosos chamam essa volúpia predatória, esse saque desenfreado e ensandecido que destrói irremediavelmente a natureza, de terrorismo ambiental. Uma nova espécie de violência continuada que, em nome de um suposto “desenvolvimento”, está exaurindo recursos naturais, criando demandas artificiais e supérfluas para satisfazer o deus-mercado, que move a engrenagem do mundo do capital.

    Não se trata de propaganda panfletária nem de uma visão catastrofista. Trata-se de uma definição bastante real, que aponta para a real dimensão dos danos que estão perpetrados contra a humanidade e a natureza.

    Paris e Mariana são, portanto, vítimas de ataques terroristas. São dois lados de uma mesma moeda. Não construamos falsas dicotomias entre estes dois eventos. A causa, por mais simplista que possa parecer, está no capitalismo. Um sistema que deixa 56 mil pessoas morrerem de fome a cada dia e que prostitui a natureza, em nome do “desenvolvimento e do progresso”, não merece mais prosperar. O capitalismo, já está mais que comprovado, esgotou suas possibilidades de solução criativa e harmônica dos dilemas que ele mesmo engendrou. Está na hora de pensarmos grande, na hora de construirmos o fim desse sistema. Está na hora do Socialismo e da Liberdade.

    A serra do poeta Drumond de Andrade não existe mais, britada que foi em milhões de lascas. O rio que desde suas margens viu Sebastião Salgado crescer está cego e morto. A poesia perdeu a inspiração. A vida, para reflorescer, precisará de muito tempo. Um tempo que talvez não tenhamos mais. Fica a lição, a revolta e a certeza da falência desse modelo.

    Só um modo de produção livre das amarras do mercado e da propriedade privada pode estabelecer relações harmônicas entre a técnica, a humanidade e a natureza, construindo uma unidade de interesses em nome do bem comum e da superação definitiva dos antagonismos e das opressões que tem marcado a história recente da humanidade. Utopia? Pode até ser, mas uma bela utopia que vale à pena ser vivida.

    Belém, novembro de 2015.

    Fernando Carneiro é membro do DN do PSOL e vereador em Belém do Pará

  • O preço da água

    O preço da água

    No sudeste do Pará, a concessão do abastecimento para a Odebrecht Ambiental veio acompanhada de tarifas altas; os moradores de rendimentos baixos têm de decidir entre pagar a conta ou garantir a alimentação das suas crianças.

    A água, tão central na cultura amazônica, tem-se transformado num bem caro e até mesmo perigoso em São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara, no sudeste do Pará. O líquido que chega às torneiras das casas está sob a responsabilidade da Odebrecht Ambiental, que detém as concessões do serviço de abastecimento nas três cidades e em outros sete municípios paraenses. Moradores de baixos rendimentos, que precisam do apoio Bolsa Família para sobreviver, têm sentido dificuldade em pagar as contas todos os meses. Também existem reclamações de que a empresa usa cloro em excesso no tratamento, o que traz mal-estar às crianças.

    Alguns pais enfrentam o dilema entre deixar as contas em dia ou manter a família, o que pode resultar em cortes até na alimentação. Há moradores que viram a fatura alcançar metade do orçamento, chegando a valores próximos de 200 reais [cerca de 50€]. Nos três municípios, 4.107 pessoas vivem com até um quarto do salário mínimo por mês (o equivalente a 197 reais), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A saída é gerir a economia doméstica, numa eterna corda bamba, que onera sobretudo as crianças.

    Muitos recorrem a fontes alternativas de água, como poços artesanais e rios da região, que podem estar contaminados. Isso expõe as crianças ao risco de diarreia e doenças como febre tifóide, hepatite A e parasitas. “A conta da água aperta demasiado o orçamento. Muitas vezes tive que deixar de comprar coisas para as meninas, como comida ou material de escola. Houve meses em que tive que pedir dinheiro à minha sogra para por comida na mesa”, afirma a dona de casa Ana Carolina Dias Palone, de Xinguara, que tem duas filhas, de 5 e 7 anos. “Muitas vezes tenho que deixar uma conta pendente para o próximo mês, para dar tempo de sobrar um dinheirinho e conseguir comprar o que elas precisam de comer.”

    Os valores das contas de água foram definidos pelas prefeituras e pelas empresas nos contratos de concessão. Os moradores, principais afetados pela mudança, tiveram oportunidades restritas de participar da definição dos preços. “Não há no Pará uma agência reguladora que discuta com a prefeitura e com a população os valores. Eu, daqui, tenho que garantir que minha empresa continue funcionando. Somos uma companhia privada e visamos ao lucro. Não adianta ser hipócrita”, diz uma das engenheiras da empresa, que falou sob anonimato.

    Cada município atendido pela Odebrecht Ambiental possui obrigações específicas, descritas no respectivo plano de água e esgoto. “A região amazônica tem minério, terra, água. Tudo isso. As empresas vêm com a intenção de se apropriar da água e do bem público. A lógica da Odebrecht é mercantilizar a água, torná-la mercadoria”, afirma Cristiano Medina, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A empresa ressaltou, via assessoria de imprensa, que, pelo modelo de concessão adotado nos municípios paraenses, assume a operação sob supervisão da prefeitura e deve assegurar investimentos e prestação de serviços. Após 30 anos, os benefícios implantados ficarão para os municípios.

    Empresas públicas e privadas de saneamento têm as mesmas obrigações, previstas nos planos diretores das cidades onde atuam. “A diferença principal é que as empresas privadas veem na água uma forma de obter lucro, enquanto as estatais têm o objetivo de desenvolver a região e prestar um serviço de saúde. Assim, uma empresa estatal pode reduzir as tarifas ou subsidiar regiões pobres sem aumentar os preços para as outras pessoas. Já a empresa privada terá que cobrar mais caro de alguém para garantir seu lucro”, exemplifica o diretor regional do Sindicato dos Urbanitários do Pará, Otávio Barbosa.

    ‘Compro comida ou pago água?’

    A notícia da chegada de duas pessoas de São Paulo correu depressa na zona rural do pequeno município de São João do Araguaia. Famílias inteiras saíam das suas casas de madeira, ultrapassaram o quintal de terra batida e esperaram junto às cercas de madeira ou arame farpado, num modelo de construção quase padronizado no local. Nas mãos, tinham as contas de água dos últimos meses, anexas aos avisos de corte do abastecimento. No rosto, uma clara esperança de resolver o problema que tira o sono – e sustento – de crianças e adultos da cidade: o valor a ser pago pela água.

    “Não… Nós não somos da Odebrecht. Eu sou repórter e ele é fotógrafo.” A apresentação decepcionava aqueles que aguardavam uma resposta para o problema. Nas pequenas residências com casas de banho inacabadas, repletas de crianças e com sustento vindo basicamente do Bolsa Família, os valores das contas de água atingem parte significativa do orçamento familiar. “Minha conta vem por volta de 18 reais [4,50€], porque nunca ultrapassei a primeira faixa de consumo. O valor pode parecer baixo, mas, para mim, que sustento a casa com 200 reais [50€], é muito. A gente acaba a ter que tirar dinheiro do Bolsa Família para pagar a água e esse era um dinheiro que deveria ser para a comida das crianças”, conta a dona de casa Ednalda Moreira Gomes, que vive com o marido e dois filhos, de 10 e 13 anos.

    Desempregado, o trabalhador rural José Reis recebeu em setembro uma conta de água de 48,03 reais [12,40€] para um consumo de 26 metros cúbicos. Mora numa casa de três divisões, sem casa de banho, com a esposa e mais três filhas. “Antes nós não pagávamos nada pela água. Agora, começámos a pagar e nem fomos consultados sobre o preço que pagaríamos. Ficou caro. Muitas vezes tiro dinheiro da merenda das minhas meninas para dar conta desse gasto”, lamenta. Ele aguarda uma vistoria da empresa para verificar a existência de vazamentos. “Está muito pesado para a gente que vive desempregada. Estou sem pagar, porque não tenho condições. O dinheiro que recebemos do Bolsa Família vai todo para comida e material escolar. Eu não posso mexer nisso.”

    “O dinheiro que recebemos do Bolsa Família vai todo para comida. Eu não posso mexer nisso”, lamenta o trabalhador rural desempregado, José Reis. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    “O dinheiro que recebemos do Bolsa Família vai todo para comida. Eu não posso mexer nisso”, lamenta o trabalhador rural desempregado, José Reis. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

     

    A renda da família da dona de casa Marines Cardoso de Oliveira também vem do Bolsa Família, que paga 35 reais [8,60€] por criança, até o teto de 175 reais [43,30€] – 33 reais[8,20€] a menos que o valor da conta de água de junho, de 08,87 reais [51,70€], por 62 metros cúbicos. “Às vezes é preciso escolher: comprar comida para as crianças ou pagar a água”, explica. Ela vive em uma casa de uma divisão com uma casa de banho inacabada, com o marido e nove filhos, três deles com deficiência mental. “O Bolsa Família só dá para comprar comida para os meninos, e de uma vez ou outra algo para eles vestirem”, diz. Com a conta atrasada, o seu maior medo é ter o serviço cortado e precisar de recorrer à água de um pequeno lago próximo a sua casa, usado pelo gado de criadores da região. “Já me deram o aviso que, se eu não pagar, vão cortar a minha água. Como vou fazer?”, questiona.

    A história repete-se de casa em casa, entre pelo menos 100 pessoas que vivem no bairro Vila José Martins Ferreira, na zona rural de São João do Araguaia. Quem não consegue bancar o preço da água recorre a fontes alternativas, e pouco seguras, como os rios da bacia amazônica e poços artesanais – onde muitas vezes a água, mal armazenada e sem tratamento, oferece riscos pela presença de micro-organismos nocivos à saúde. As crianças acabam sendo as mais contaminadas por doenças bacterianas e vermes, como confirmam funcionários da saúde pública da região. Apesar da percepção dos trabalhadores do setor, a Secretaria Estadual de Saúde do Pará não contabiliza o número de crianças que apresentam os principais sintomas – diarreia e vômito – pois os problemas não são de notificação compulsória ao Ministério da Saúde.

    A auxiliar de escola Raimunda Carvalho dos Santos vive em três divisões com o marido e três filhos, com apenas um salário mínimo. “Tenho que tirar dos meninos, não tem outra forma”, diz. Na conta de julho, o valor era de 168 euros [41,50€] por 55 metros cúbicos. “A renda é pouca. Então, para pagar a água, nós temos que tirar da alimentação das crianças e do material da escola. Como vou eu pagar se não fizer assim?”, lamenta olhando para o chão, quase envergonhada. “Se cortarem, vou ter que ir buscar a água no poço do vizinho para dar às crianças. Mas ela não é boa. Fico entre a espada e a parede.”

    “A lógica da Odebrecht é mercantilizar a água”, diz Cristiano Medina, do MAB. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    “A lógica da Odebrecht é mercantilizar a água”, diz Cristiano Medina, do MAB. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

    O valor da tarifa média por metro cúbico em São João do Araguaia é de 2,22 reais [0,55€]. Todo o lucro da Odebrecht Ambiental vem da tarifa cobrada aos utilizadores. A Agência Pública solicitou o valor médio recebido pela empresa por mês, porém a informação não foi fornecida. Em São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara, os contratos não preveem a tarifa social. Ela é aplicada por decisão da empresa. Podem ter acesso ao benefício clientes da categoria residencial, com casas enquadradas no padrão baixo de construção (área construída de até 100 metros quadrados, sem forro, apenas com uma casa de banho ou instalações precárias) e que tenham renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio. Apesar de muitos dos entrevistados se enquadrarem nesse perfil, nenhum deles era contemplado com o benefício.

    “Percebemos que muitas das contas vêm com um consumo muito alto de água. A empresa faz a verificação de fugas quando os moradores reclamam, mas não há um controle mais rigoroso sobre possíveis desperdícios. Mesmo nos casos de fugas e das famílias de baixa renda, não conseguimos negociar um valor menor para a conta”, afirma o vereador Benisvaldo Bento da Silva (PMDB), que tem organizado os moradores e conduzido reuniões com a Odebrecht Ambiental.

    Na mira da Lava Jato

    A empreiteira Odebrecht, membro do grupo da Odebrecht Ambiental, é uma das empresas investigadas na Operação Lava Jato. Em julho, comprovantes de depósitos bancários encaminhados pela Procuradoria da Suíça a integrantes da Força Tarefa da Polícia Federal comprovaram transferências entre contas pertencentes à Odebrecht e ex-diretores da Petrobras. No mesmo mês, o juiz Sérgio Moro, responsável pelos inquéritos, aceitou a denúncia do Ministério Público Federal contra o presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, e mais quatro executivos. Ele tornou-se réu, sob acusação de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa e continua preso em Curitiba, desde 19 de junho.

    A 20 de outubro, a defesa do empresário entrou com novo pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), pelo qual ele pedia “socorro”, em tom inflamado. O ministro Teori Zavascki, relator dos processos da Operação Lava Jato no STF, negou o pedido de liberdade por entender que a prisão preventiva é necessária, uma vez que o executivo teria orientado supostas atividades criminosas de outros réus e que supostamente atuou para evitar o levantamento de provas. No dia 26 de outubro, advogados da empresa entraram com recurso no Tribunal Penal da Suíça para tentar evitar que extratos bancários em contas no país europeu sejam remetidos oficialmente ao Ministério Público do Brasil.

    Água para quem?

    A empresa tocantinense Hidro Forte Administração e Operação Ltda venceu a concorrência, seguindo o critério principal de oferecer o menor valor de tarifa. Três meses depois de assumir a concessão, a empresa foi comprada pela Odebrecht Ambiental, em setembro do ano passado. A possibilidade de mudar a empresa prestadora do serviço não estava prevista no edital, como manda a Lei de Licitações (8.666/93). “Neste caso, para ser legal, a possibilidade deve estar descrita no contrato de prestação de serviço”, explica Flávio Guberman, advogado especialista em direito administrativo e societário. Não foi possível obter o contrato, pois o secretário de Administração de São João do Araguaia, Emiliano Soares, não respondeu à reportagem.

    O prefeito afirmou que a administração municipal “possui toda a documentação”. “Nós optamos por ter uma água de qualidade, porque as águas estão muito poluídas. A Odebrecht tem conhecimento, tem mais recurso e uma trajetória em saneamento básico. Preferimos migrar”, disse. A empresa informou, pela assessoria de imprensa, que, desde que assumiu o serviço, reformou a Estação de Tratamento de Água e regularizou as redes de distribuição e as ligações domiciliares, além de eliminar ligações clandestinas e fazer a clorificação da água. O teor de cloro atinge o máximo permitido pela Portaria 2.914/11 do Ministério da Saúde, de 2 miligramas por litro.

    “De repente fomos surpreendidos pelos contratos com a Odebrecht. Não pudemos fazer audiência pública nem consultar a população sobre essa mudança. Quando o serviço era público, a prefeitura não cobrava e a água do rio era distribuída para a população por um sistema municipal. A Odebrecht não faz ainda o tratamento completo da água, mas já cobra caro”, reclama o vereador Benisvaldo.

    “Passaram-se três meses e a conta que chega nas casas das famílias fica entre 150 reais e 300 reais [37 e 74€]. Há pessoas que não têm renda nenhuma e têm que pagar isso”.

    A tarifa mínima cobrada em São João do Araguaia é de 18,28 reais [4,50€] para um consumo de 0 a 12 metros cúbicos, o equivalente a 1,52 reais [0,40€] por metro cúbico. O valor aumenta de acordo com o consumo, chegando a 5,73 reais [1,40€] por metro cúbico para as residências que usam mais de 50 metros cúbicos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o preço é de 20,62 reais [5,10€] para um consumo de 0 a 10 metros cúbicos, sendo que, pela opção da tarifa social, voltada para as famílias de baixa renda, o valor cai para 7 reais [1,70€] nessa faixa de consumo. No município paraense, é de 12 reais [3€]. Apesar disso, 30,41% das famílias de São João do Araguaia vivem com até um quarto do salário mínimo por mês, contra apenas 2,88% em São Paulo.

    O Pará – onde muitos municípios ainda mantêm sistemas públicos de distribuição de água – tem a segunda tarifa média mais barata do país: 1,64 reais [0.41€] por metro cúbico, atrás apenas do Maranhão (1,62 reais [0.40€]), segundo o Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto de 2013, do Ministério das Cidades. O estado com a tarifa mais alta é o Rio Grande do Sul (4,18 reais [1€]), seguido por Amazonas (3,75 reais [0,93€]) e pelo Distrito Federal (3,73 reais [0.92€]).

    Cidade alagada

    O projeto terá duas eclusas e um lago de 3.055 quilômetros quadrados. Serão inundados 1.115 quilômetros quadrados de terras de seis municípios do Pará (Marabá, São João do Araguaia, Bom Jesus do Tocantins, Brejo Grande do Araguaia, Nova Ipixuna, Palestina do Pará), três do Tocantins (Ananás, Esperantina e Araguatins) e dois no Maranhão (São Pedro da Água Branca e Santa Helena). A obra tem custo previsto de 12 bilhões de reais [2,97 mil milhões de euros] e terá capacidade de produção de 2.160 megawatts.

    A Odebrecht não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre por que investir no saneamento em uma cidade que será alagada, por considerar uma informação estratégica para a empresa. “Por questões estratégicas a Odebrecht Ambiental não fornece esses dados”, disse a assessoria de imprensa.

    “Isso passa por controle do território, mercantilização dos recursos naturais e controle dos rios”, acredita Cristiano Medina, do MAB. “São as mesmas empresas que disputam e administram tudo aqui. A Amazônia tem uma reserva vantajosa mineral, energética e de água e as empresas chegam aqui para controlar esses recursos.”

    Água mineral

    Apesar de Xinguara ser a cidade mais desenvolvida entre as visitadas – a única com um Índice de Desenvolvimento Humano médio (0,659) –, o distrito de Rio Vermelho, popularmente conhecido como Gogó da Onça, é composto por algumas poucas casas de madeira, que se espalham na beira da estrada. “Mãe, mãe, o retratista pode tirar retrato de eu mais o papagaio?”, pergunta, muito alegre, a pequena Rafaela Dias Palone, de 7 anos, enquanto corre para dentro de casa. A mãe da menina, Ana Carolina Dias Palone estava atarefada, a cuidar da filha mais nova, de 5 anos, que há uma semana que sofria de fortes dores no estômago e nos rins. O motivo, segundo o diagnóstico médico, era o cloro na água. “O médico perguntou se eu dou água da rua para ela e, quando confirmei, ele disse que tinha certeza que era isso, porque já tinha outros casos. Desde então estamos comprando água mineral, mas é muito caro”, conta a dona de casa.

    Criança de 5 anos sofre com fortes dores no estômago e nos rins pelo cloro na água, segundo diagnóstico médico. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    Criança de 5 anos sofre com fortes dores no estômago e nos rins pelo cloro na água, segundo diagnóstico médico. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

    Uma dosagem excessiva de cloro para consumo humano pode levar, por exemplo, à degradação da flora intestinal e a problemas estomacais, segundo o especialista em química ambiental e tratamento de água, Jorge Antonio Barros de Macedo. “Além disso, se a água não for filtrada antes de receber o cloro, o contato de alguns tipos da substância com matéria orgânica pode resultar na formação de substâncias cancerígenas, chamados trialometanos”, diz.

    Uma das enfermeiras que trabalham diariamente no posto de saúde do distrito – e que não se quis identificar – confirmou que muitas crianças adoecem devido ao cloro usado na água. Ela reconhece, contudo, que houve uma diminuição do problema desde o começo do ano. “As pessoas adoeciam mais, porque os níveis de cloro eram muito altos. Para ter uma ideia, a empregada nem estava a usar lixívia para lavar os lençóis do posto”, conta. “Depois de muita reclamação melhorou, mas as pessoas mais sensíveis, sobretudo as crianças, ainda sentem dores de estômago, diarreia e vómito. Algumas também chegam com irritações na pele, porque tomaram banho com água com cloro forte.”

    Nem a Secretaria de Saúde Estadual do Pará nem a de Xinguara contabilizam os casos de adoecimento em função da água ou do cloro, segundo a secretária adjunta de Saúde de Xinguara, Maria da Glória Barbosa. O levantamento fica por conta da observação dos funcionários da saúde. “Aqui temos pelo menos três casos de diarreia em crianças por semana. A maior parte é devido à contaminação por giárdia, que é um protozoário transmitido pela água que não é tratada adequadamente. Nós sabemos que muitos municípios do estado são carentes na questão do tratamento de água e enfrentamos esse desafio no nosso dia a dia”, conta a enfermeira-chefe de um dos postos de saúde do município, Ecilene Fera.

    De acordo com a secretária adjunta de Saúde de Xinguara, Maria da Glória Barbosa, o município não contabiliza os casos de adoecimento em função da água ou do cloro. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    De acordo com a secretária adjunta de Saúde de Xinguara, Maria da Glória Barbosa, o município não contabiliza os casos de adoecimento em função da água ou do cloro. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

    A Odebrecht Ambiental disse que “obedece a todos os padrões de tratamento de água atendendo ao preconizado pelo Ministério da Saúde” e que realiza monitorizações constantes de qualidade da água por meio de exames laboratoriais. “O teor de cloro estabelecido pela legislação deve ficar entre 0,2 e 2 miligramas por litro, sendo que utilizamos o valor de 0,9 miligramas por litro”, informou.

    A prefeitura, no entanto, não tem realizado a sua análise da água para confirmar os dados recolhidos pela empresa. Esse acompanhamento deveria ser feito mensalmente, por meio de amostras colhidas em diferentes locais da cidade, enviadas depois para um laboratório central, no município de Conceição do Araguaia. “A última recolha foi realizada em maio e ainda não tivemos acesso aos resultados. Está parada por causa de uma licitação para compra de materiais”, explica o coordenador do sistema de monitoramento na prefeitura, Marconi Ribeiro.

    Devido ao cloro e ao valor elevado da conta (mínimo de 27,80 reais [6,88€] para quem consome de 0 a 10 metros cúbicos e uma média de 3,32 reais [0,82€] por metro cúbico, considerando todas as faixas tarifárias), algumas famílias voltaram a recorrer à água de poços. “A água que recolhemos tem coliformes fecais, sobretudo a dos poços, que em geral ficam perto das fossas. O saneamento básico e o esgoto são maus. Por isso, mesmo nas famílias de baixos rendimentos, as pessoas acabam por ter que consumir galões de água mineral”, diz Ribeiro.

    Em Xinguara, a água que chega às casas pelo sistema de distribuição operado pela Odebrecht Ambiental vem de uma barragem feita num pequeno riacho. Apenas 30% da população do município tem acesso à água tratada. A empresa está a investir na ampliação da barragem, que deve duplicar de tamanho e permitir uma captação de água três vezes maior que a atual, além de aumentar a rede de distribuição para a cidade. “Não temos mais atendimento porque o riacho é pequeno. No período de verão, a qualidade dessa água fica muito má, com matéria orgânica, escura e temos que usar muitos produtos químicos. Com um lago maior, de profundidade maior, a qualidade melhora”, disse uma engenheira da Odebrecht. “Trabalhamos com uma meta desafiadora, porque atendemos a um percentual muito pequeno. Até 2017 temos que atingir 70% de atendimento.”

    A água de qualidade também é um problema a 200 quilómetros dali, no município de São Geraldo do Araguaia, que, junto com Xinguara, capta água de superfície dos rios. Muitos moradores dizem que precisam de comprar água mineral para beber. Segundo eles, a água da rua tem má qualidade e também chega às casas com cheiro forte de cloro ou suja, ainda com resíduos de matéria orgânica. De acordo com a empresa, o teor de cloro utilizado na água do município também é de 0,9 miligramas por litro. A prefeitura de São Geraldo não realizou nenhuma avaliação da qualidade da água neste ano, por falta de equipamentos como o reagente ou o coletor, segundo a Secretaria de Saúde do município. De acordo com o órgão, o teor de cloro no município variou entre 0,2 e 2 miligramas por litro, mas já chegou a 5 miligramas por litro.

    Os moradores do município pagam uma das contas de água mais caras da região: 31,10 reais [7,70€] para quem consome entre 0 e 10 metros cúbicos e uma tarifa média de 3,73 reais [0,92€]. Segundo a Odebrecht Ambiental, as diferenças de valores nas tarifas dos municípios “devem-se às especificidades presentes no equilíbrio financeiro de cada uma destas concessões e obedecem a parâmetros presentes nos contratos de concessão com cada município”. Antes de a Odebrecht assumir a sistema de água no município, a responsável era uma empresa de capital misto chamada Companhia de Saneamento de São Geraldo do Araguaia (Cosanga). O primeiro contrato foi feito com uma empresa chamada Saneatins, que posteriormente foi adquirida pela Odebrecht Ambiental.
    Com o valor alto da conta da água em São Geraldo do Araguaia, a população continua a utilizar o rio para lavar louças e roupas. Foto de Danilo Ramos.

    Com o valor alto da conta de água em São Geraldo do Araguaia, população continua utilizando o rio para lavar louças e roupas. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual
    Com o valor alto da conta de água em São Geraldo do Araguaia, população continua utilizando o rio para lavar louças e roupas. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Rede Brasil Atual

    Devido às recorrentes queixas sobre a qualidade e o preço da água no município, o promotor de Justiça de São Geraldo do Araguaia, Agenor de Andrade, organiza, desde agosto, quatro procedimentos jurídicos contra a Odebrecht Ambiental, de quatro diferentes regiões da cidade. Três deles vieram de abaixo-assinados que reuniram 160, 110 e 70 assinaturas de moradores, reclamando do cheiro a esgoto da água, da cor barrenta ou da interrupção constante da distribuição, sem aviso. “Várias pessoas estão a passar mal com diarreia, infecções por bactérias, vómitos e crises estomacais”, diz o enunciado de um dos abaixo-assinados.

    “Os moradores encaminharam-me uma garrafa com uma amostra da água que chega à casa deles e ela veio realmente muito suja e barrenta. Por isso, vou convocar, junto à Câmara Municipal, uma audiência pública, para ouvir os munícipes e cobrar respostas à empresa”, diz Andrade. “Colheremos informações e instauraremos procedimentos administrativos para subsidiar uma eventual ação civil pública contra a Odebrecht.”

    Uma das alternativas que a população encontra para contornar a tarifa e os problemas na qualidade da água é o rio, sem tratamento. Na pequena São Geraldo, com as suas casas de madeira e ruas de terra, onde além das pessoas circulam também galinhas e porcos, tudo acontece nas margens do Araguaia, entre a lavagem de roupa e a pesca. “A água da rua vem suja ou cheia de cloro. Para tudo o que preciso uso o rio”, reclama a pescadora Silva Moreira, que mora numa casa onde só há uma torneira e um vaso sanitário, sem autoclismo.

    “Uma vizinha contou que colocou a roupa de molho e no dia seguinte apareceu manchada, porque é muito cloro”, conta a dona de casa Rosa Maria, que tem uma filha de 10 anos e outra de 9 meses. “Às vezes a água vem muito suja, outras vezes com bastante cloro. Chega a arder para beber. Acabamos tendo que comprar água mineral para dar para a bebé, porque a da rua é muito forte para ela. Mas infelizmente não temos dinheiro para as duas. O que vamos fazer?”

    “Às vezes a água vem muito suja, outras com bastante cloro. Chega a arder para beber”, conta a dona de casa Rosa Maria. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Instituto Alana
    “Às vezes a água vem muito suja, outras com bastante cloro. Chega a arder para beber”, conta a dona de casa Rosa Maria. Foto: Danilo Ramos/Agência Pública/Instituto Alana

    Este artigo é o resultado do concurso de microbolsas para reportagens de investigação sobre Crianças e Água promovido pela Agência Pública em parceria com o projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana.

    Fonte: Pública, 13/11/2015

    Veja a nota da Odebrecht Ambiental sobre o fornecimento de água no Pará

    Empresa enviou posicionamento depois da publicação da reportagem ‘O preço da água’, sobre a sua atuação em São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara, no Pará

    A Odebrecht Ambiental enviou à Agência Pública a nota a seguir, a respeito da reportagem O preço da água, publicada na sexta-feira (13):

    “Os municípios de São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara, no sudeste do Pará, citados na matéria da Agência Pública, sofrem há anos com a falta de infraestrutura que causa gravíssimos problemas para a saúde e qualidade de vida da população. No Pará, apenas 42% da população tem acesso a serviços de água tratada e menos de 3% do esgoto gerado no Estado é tratado. Em busca de uma alternativa, as cidades recorreram ao modelo que já mostra sucesso em diversas cidades brasileiras, no qual a iniciativa privada complementa os investimentos públicos para a universalização do saneamento. O Poder Público, portanto, tomou a decisão de concessionar – e não privatizar – os serviços de água e esgoto desses municípios. Por meio da concessão nestas e em outras sete cidades do Pará, a Odebrecht Ambiental irá investir nesta área que é fundamental para garantir a saúde da população.

    A concessionária aplica a tarifa social nos 10 municípios paraenses que atua, beneficiando cerca de 5 mil famílias, que pagam, em média, R$ 13,70 por mês. Se enquadram na tarifa social clientes cadastrados na categoria residencial, com residência classificada como de padrão baixo de construção (área construída de até 100m², sem forro, com apenas um banheiro ou instalações precárias) e que tenham renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio vigente. Aposentados, pensionistas e portadores de doenças crônicas são beneficiados se apresentarem renda familiar de até dois salários mínimos e meio. A tarifa social representa um desconto de 69% aplicado na tarifa básica da categoria residencial (faixa de consumo de 0 – 10m³). Todos os consumidores que se encontram dentro desses parâmetros podem requerer o serviço junto à concessionária.

    Quanto à questão do cloro abordada na matéria, a Odebrecht Ambiental mais uma vez esclarece que a adição deste elemento garante que a água esteja livre de agentes causadores de doenças e que obedece a todos os padrões de tratamento de água em atendimento ao preconizado pelo Ministério da Saúde. A concessionária informa ainda que realiza monitoramento constante de qualidade da água em seus diversos parâmetros com constantes exames laboratoriais.”

    16 de novembro de 2015