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  • Terrorismo Ambiental e Dívida Ecológica

    Terrorismo Ambiental e Dívida Ecológica

    Maria Lucia Fattorelli [i]
    Maria Lucia Fattorelli [i]
    O respeitável dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define terrorismo como o “modo de impor a vontade pelo uso sistemático de terror”.

    A vontade de obter lucros excessivos com a atividade de mineração no Brasil – de forma predatória, acelerada e descontrolada, arrancando da Terra o máximo de minerais possível, no menor tempo e ao menor custo – tem significado a imposição sistemática de terror à população e ao meio ambiente.

    Os únicos beneficiários desse terrorismo têm sido os donos das grandes mineradoras nacionais e estrangeiras que atuam no Brasil. Além de obterem lucros bilionários com a venda do minério, utilizarem água à vontade e de graça, ainda usufruem de diversos benefícios tributários, como incentivos fiscais à exportação, isenção na distribuição de lucros e isenção para a remessa de tais lucros ao exterior.

    As vítimas do terrorismo têm sido:

    * toda a população atingida em seu direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, e

    * a própria Natureza, que além de mutilada sem o menor respeito ainda recebe toneladas de rejeitos contaminados. A Dívida Ecológica que tem sido gerada por esses processos é incalculável.

    A Constituição Federal considera, em seu artigo 5o, inciso XLIII, que todas as pessoas possuem a garantia de inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, e a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

    A questão ambiental, por sua importância essencial à própria vida, está resguardada no Capítulo VI da nossa Constituição Federal:

    CAPÍTULO VI

    DO MEIO AMBIENTE

    Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

    Trata-se, portanto, de um direito que perpassa todas as esferas: além de ser um direito individual e coletivo, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito transgeracional, pois abrange as gerações futuras.

    Os parágrafos e incisos do referido artigo 225 exigem atuação firme do Estado e lhe impõe deveres, assim como a reparação dos danos por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, independentemente de culpa, conforme o disposto em seu § 3º e na Lei 6.938, sobre a Política Nacional de Meio Ambiente.

    A violação do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade dos atingidos pela recente tragédia em Minas Gerais é brutal; pode ser considerado como uma verdadeira chacina ao meio ambiente e à população de diversas cidades, e foi provocada pela vontade exacerbada de lucros, levada à ganância alimentada por predatória e inconsequente exploração do minério de ferro.

    Tal violação ocorre em inúmeras outras áreas de exploração mineral predatória no Brasil, o país de maior estoque natural do planeta. O presente artigo visa ilustrar a ocorrência de terrorismo ambiental em três exemplos de exploração de minério de ferro, nióbio e ouro, e levantar a necessidade de avançar os estudos sobre a “Dívida Ecológica”, especialmente diante da iminência de votação de novo Código de Mineração” no Congresso Nacional. É preciso exigir reparação de danos à altura e corrigir os rumos.

    MINÉRIO DE FERRO

    Toneladas de dejetos de mineração foram derramados em Minas Gerais, devido ao rompimento de duas barragens da empresa SAMARCO em Mariana.

    Tal fato atingiu dezenas de vítimas humanas, incluindo jovens e crianças inocentes; o distrito de Bento Rodrigues [ii] ficou soterrado; dezenas de outros municípios dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo atingidos [iii] ficarão sem acesso a água, comprometendo uma série de empreendimentos, atividades profissionais e vitais, com reflexos diretos na vida de milhões de pessoas; o Rio Doce morto [iv], completamente contaminado e exterminados todos os peixes [v], além do aniquilamento de inúmeras espécies quando a poluição atingir também o Oceano Atlântico…

    É evidente a violação do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade de pessoas atingidas, aterrorizadas ante o cenário de destruição e contaminação a que foram submetidas de assalto.

    A foto abaixo ilustra como ficaram as residências de parte dos atingidos.

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    Quanto valem as vidas de pessoas, peixes e animais mortos? Quanto vale o Rio Doce? Qual o valor do dano em decorrência da falta de água e comprometimento de tantas atividades? É necessário calcular e cobrar a Dívida Ecológica dessa gente que só entende o valor das coisas quando lhes é atribuído um preço em dinheiro!

    Fotos de satélite, tiradas antes e depois do ocorrido [vii], mostram outra perspectiva visual do imenso dano ambiental e patrimonial provocado pela SAMARCO, de propriedade da Vale e da anglo-australiana BHP Billiton. Só em 2014 o faturamento bruto divulgado pela empresa foi de R$ 7,6 bilhões!

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    Essas fotos mostram o soterramento da maior parte das propriedades de Bento Rodrigues. Além disso, a lama despejada seguiu contaminando as águas do até então belo e rico Rio Doce.

    A presença de partículas de metais pesados como chumbo, alumínio, ferro, bário, cobre, boro e até mesmo mercúrio foi comprovada por análises laboratoriais de amostras da água do Rio Doce encomendadas pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Baixo Guandu. Todas as espécies vivas do Rio Doce foram dizimadas! Fotos de Elvira Nascimento [viii] mostram a situação do Rio Doce e o dano ambiental incalculável:

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    Não podemos aceitar a desculpa de que teria havido mero acidente. É evidente que houve negligencia, diante do imenso volume de dejetos acumulados, capazes de soterrar município e alagar dezenas de outros, matar um rio inteiro, dizimar todas as espécies vivas, e se espalhar ao longo de dois estados e alcançar o oceano, que também será afetado. E ainda há ameaça de que outra barragem ainda maior corre o risco de romper…

    NIÓBIO

    Outro escândalo da exploração mineral em Minas Gerais, justamente na cidade que se tornou famosa por suas águas curativas – Araxá – também deve ser considerado como terrorismo ambiental: trata-se da exploração do Nióbio pela empresa CMMB, conforme reportagem[ix] que denuncia a contaminação das águas na região, baseada em Nota Técnica número 1 da Fundação Estadual do Meio Ambiente -(FEAM) e do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), de julho de 2015.

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    A referida Nota Técnica aponta que a concentração de metais pesados está seis vezes acima do permitido, e que a causa da contaminação da água se encontra na exploração de nióbio pela Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração – CBMM, que não respeita normas e legislação.

    Adicionalmente, indica uma série de falhas nos relatórios e mapas da CBMM, bem como no monitoramento inadequado e não suficiente; a existência de pendencias da empresa em relação à pedidos da FEAM, ressaltando ainda que não são atendidas normas exigidas pela ABNT.

    Segundo a reportagem, a contaminação afeta águas subterrâneas e superficiais, além do solo e subsolo, e estudos apontam níveis altíssimos de contaminação não apenas com Bário, mas também com outros metais, em doses elevadas para o consumo humano, como Cromo, Chumbo, Vanádio, e Urânio, detectado em níveis altíssimos em algumas amostras.

    O Nióbio é mineral valiosíssimo, raro, estratégico, uma liga especial altamente resistente a elevadíssimas temperaturas, indispensável para aeronaves, satélites, foguetes, equipamentos médicos diversos, entre outros usos especiais como indústrias nucleares por exemplo.

    O Canadá possui apenas 2% das reservas de Nióbio do mundo e garante serviços públicos de saúde, educação de excelente qualidade à sua população. O Brasil detém 98%! E explora mal, principalmente pela empresa CMMB de Minas Gerais, contaminando o meio ambiente, e comercializa de forma totalmente opaca. Não usufruímos do benefício dessa imensa riqueza, arcando somente com os danos ambientais, com graves reflexos à vida das pessoas afetadas, contraindo uma série de doenças principalmente em decorrência da água contaminada pela CMMB.

    OURO

    A histórica exploração do ouro no Brasil preencheria livros de crimes ambientais e danos patrimoniais, humanos, ecológicos etc. Nesse artigo mencionarei apenas o recente caso de Volta Grande, onde está sendo construída a Usina de Belo Monte.

    As fotos a seguir fazem parte da série “A devastação do Xingu em imagens”[x] e evidenciam a violação do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade de pessoas atingidas pela construção da usina. Mostram uma das ilhas do Xingú desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte e um dos buracos artificiais, do qual foi arrancada toda a vegetação e grande quantidade de minerais…

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    Diversas populações indígenas foram atingidas, em situação de verdadeiro terrorismo. Fortes protestos foram insuficientes para barrar os grandes interesses dos que desejavam a usina. O Ministério Público tentou embargar a obra diversas vezes, mas as obras prosseguiram, aceleradamente.

    A escolha do local não apropriado para a construção da usina, onde imensas escavações tiveram que ser feitas, parece ter sido estratégico para interesses de mineradora estrangeira, conforme se depreende de seu site na internet: www.belosun.com

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    Dívida Ecológica

    O conceito de Dívida Ecológica é pouco conhecido no Brasil, não por acaso.

    Importante contribuição nesse sentido foi publicada por Luiz Henrique Lima, que deixa clara a existência da dívida ecológica, apesar de ainda não calculada e quantificada, conforme trecho que transcrevo:

    Entre outros autores, May (1995) aborda, rapidamente, o tema: “… deve haver um caixa para uma ‘dívida ambiental’ destinado às nações cuja base de recursos tem sido pilhadas através dos últimos cinco séculos para satisfazer às insaciáveis demandas do Norte.”

    Todo o instrumental teórico da Economia do Meio Ambiente, da Economia Ecológica e da Contabilidade Ambiental conduz ao reconhecimento da existência da Dívida Ecológica. Haverá controvérsias quanto à sua amplitude e quanto aos procedimentos para calculá-la e resgatá-la, conforme acima exemplificado; não, porém, quanto à sua existência.

    Em sua recente e corajosa Carta Encíclica[xiii] “Laudato Si” o Papa Francisco menciona explicitamente a “Dívida Ecológica” gerada por fatos ligados à crescente destruição do meio ambiente, e relaciona tal pecado [xiv] ao modelo econômico que cultua o deus mercado, com sua lógica de acumulação sem escrúpulos, a qualquer custo humano ou ecológico.

    A desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica», particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram danos locais, como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na extração minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na do cobre.

    O Papa Francisco relaciona a “Dívida Ecológica” à dívida financeira, que no caso do Brasil nunca foi auditada e funciona como um verdadeiro esquema que denominamos Sistema da Dívida.

    A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a alimentar o progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu futuro.

    O Papa Francisco refere-se à Natureza como “A Nossa Casa” e dedica capítulos específicos de sua Carta às questões da poluição e mudanças climáticas; água; perda da biodiversidade; deterioração da qualidade de vida humana e degradação social, e à desigualdade planetária, encadeando todos esses temas.

    O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres».[26]

    O Brasil é o país de maior estoque natural do planeta, conforme ressaltou Luiz Henrique Lima.

    Em estudo elaborado para o ‘Global Environment Facility’ – GEF, Rodenburg, Tunstall e van Bolhuis (1995) construíram Indicadores Ambientais Globais. Entre esses, o Indicador de Capital Natural – ICN, que considera as áreas naturais remanescentes e a biodiversidade. O ICN, grosso modo, pode ser visto como uma aproximação da dimensão, embora não do valor, dos serviços e das funções ambientais desempenhadas pelos ecossistemas no interior das fronteiras nacionais. O estudo do GEF destaca o Brasil como o país de maior estoque de capital natural do planeta.

    Diante dos danos seculares ao nosso rico e ao mesmo tempo empobrecido País, é urgente avançar os estudos acerca da Dívida Ecológica, a fim de quantificar e reivindicar os danos decorrentes da exploração ambiental, além de corrigir a rota a partir de agora, evitando danos ecológicos e humanos para satisfazer certas vontades e interesses sem escrúpulos para com o futuro da humanidade.

    Essa discussão é urgente, pois está em pauta no Congresso Nacional uma proposta de novo “Código de Mineração” que coloca os interesses das mineradoras acima de qualquer outro interesse ambiental ou humano. A proposta em discussão não menciona qualquer responsabilidade em relação a danos causados pela atividade mineradora às águas e solo; garante que as mineradoras poderão “usar as águas necessárias para as operações da concessão”, e proíbe qualquer atividade capaz de atrapalhar a mineraçãoxvi.

    Um verdadeiro abuso que está sendo capitaneado por parlamentares que tiveram suas campanhas financiadas por mineradoras, conforme importante Relatório “Quem é quem nas discussões do novo Código de Mineração”xvii. Além de representar inaceitável desrespeito ao Capítulo VI da Constituição Federal, a proposta desse novo “Código de Mineração” está no caminho inverso dos princípios éticos que regem a necessária preservação e respeito ao meio ambiente mencionados pelo Papa Francisco, assim como dos anseios da sociedade civil nacional e internacional que exigem “que as empresas transnacionais paguem o justo”xviii por tudo que retiram de nossas terras.

    CONCLUSÃO

    A violação do direito ao meio ambiente equilibrado, assim como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade dos atingidos pela recente tragédia em Minas Gerais, dos habitantes da região de Araxá e da região do Xingu, e seus descendentes, tem sido recorrente e brutal, provocada pela ganância na exploração do minério de ferro, nióbio e ouro, respectivamente.

    Estes são apenas três exemplos de terrorismo ambiental, com incalculável dano às pessoas e ao meio ambiente, enquanto os donos das grandes mineradoras nacionais e estrangeiras que atuam no Brasil lucram bilhões a cada ano e pouco contribuem para a arrecadação tributária, devido às indecentes benesses fiscais.

    Os órgãos de controle ambiental do País estão sendo desmontados. O IBAMA, por exemplo, tem passado por sucessivos cortes de recursos, a ponto de recorrer a venda de prédios e empréstimos internacionais junto ao Banco Mundial e BID, como noticiado em maio deste ano[xix]. O DNPM também passa por cortes orçamentáriosxx. Tais cortes têm sido justificados face à necessidade de economizar recursos para o pagamento de parte dos juros da dívida pública nunca auditada e sobre a qual recaem diversos indícios de ilegalidade e ilegitimidade documentados até por CPI da Dívida Pública da Câmara dos Deputados [xxi].

    É necessário cobrar a tremenda Dívida Ecológica que tem sido gerada por esses processos predatórios de exploração mineral. O recente crime ambiental ocorrido em Minas Gerais exige urgente reflexão sobre a atividade de mineração no Brasil. O minério não dá duas safras, como todos sabemos. É urgente avançar o debate sobre o terrorismo ambiental, os estudos sobre a dívida ecológica e sua quantificação para reparação à altura e correção de rumos.

    [i] Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida

    [ii] Bento Rodrigues, uma joia soterrada: http://planejoviajar.com.br/bento-rodrigues-joia-soterrada/

    [iii] Vídeos do rompimento das barragens: https://www.youtube.com/watch?v=_TNtqSlD_U8

    [iv] Vídeo sobre o Rio Doce https://www.youtube.com/watch?v=DBnLB3LP2v4

    [v] Todos os peixes do Rio Doce morreram: https://www.youtube.com/watch?v=b01apsICFT0

    [vi] Diversas outras fotos disponíveis em https://goo.gl/Ow7Apq

    [vii] Fotos disponíveis no link http://epoca.globo.com/…/tragedia-em-mariana-minas-gerais-t…

    [viii] Disponíveis no link http://agazeta.redegazeta.com.br/…/3914111-fotografa-mostra…

    [ix] Reportagem completa disponível no linkhttp://sergiorochareporter.com.br/contaminacao-causada-pel…/

    [x] Fonte: Uma série de fotos estão disponíveis na internet, como por exemplo em “A devastação do Xingu em imagens” no link: http://goo.gl/QpVs9o

    [xi] Artigo “Dívida Ecológica” disponível no link http://www.ecoeco.org.br/…/publ…/encontros/iv_en/mesa2/3.pdf

    [xii] Conselheiro Substituto do Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso, Doutor e Mestre em planejamento Ambiental pela COPPE-UFRJ, além de economista, formado na UFRJ, com especialização em Finanças Corporativas pela PUC-RJ. Autor dos livros Controle do Patrimônio Ambiental Brasileiro (Editora da UERJ) e Controle Externo – 310 Questões Comentadas (Elsevier) e de numerosos artigos e trabalhos técnicos, principalmente nas áreas de controle externo e gestão ambiental. Professor de disciplinas de pósgraduação em várias universidades, instrutor de cursos de capacitação nos TCs e professor em cursos preparatórios para concursos públicos.

    [xiii] Versão em Português disponível no link http://w2.vatican.va/…/papa-francesco_20150524_enciclica-la…

    [xiv] «Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas húmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar… tudo isso é pecado».

    [xv] Vídeo-aula sobre o Sistema da Dívida no Brasil disponível no linkhttps://www.youtube.com/watch?v=rRQHG5kd-Q0

    [xvi] Matéria disponível no link http://apublica.org/…/truco-manobra-tenta-aprovar-codigo-d…/

    [xvii] Relatório disponível no link http://www.socioambiental.org/…/…/quem_e_quem_-_comite_0.pdf

    [xviii] Campanha internacional da qual a Auditoria Cidadã da Dívida é membro:http://www.paguenlojusto.org/

    [xix] Notícia disponível no link http://economia.estadao.com.br/…/geral,ibama-vai-vender-pre…

    [xx] Nota disponível no link http://www.contasabertas.com.br/website/arquivos/12175

    [xxi] http://www.auditoriacidada.org.br/clique-aqui-para-saber-c…/

     

    Fonte:  Auditoria Cidadã da Dívida, 15/11/15

  • Marx, Gramsci e o poder: dois marxismos?

    Marx, Gramsci e o poder: dois marxismos?

    Marx estudou, ao mesmo tempo, tanto o processo de exploração quanto de dominação. Sua teoria foi, contudo, castrada e reduzida unicamente a um deles. Para alguns marxistas, bastaria mudar a propriedade jurídica das empresas para criar uma nova sociedade. A debilidade dessa concepção hoje salta à vista.1

    Uma das mais importantes obras de Marx e que mais fortemente enseja interpretações mecanicistas sobre o processo histórico, é a famosa Contribuição à Crítica da Economia Política. Em sua introdução, ele afirma que:

    Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade: estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.2

    Da leitura apressada dessa passagem, poderíamos prontamente dividir a sociedade em duas dimensões dissociadas: de um lado a economia, a “base” ou a “infraestrutura” das relações sociais; de outro, a política, a “superestrutura” que se ergue a partir das relações sociais de produção e que tem a função de assegurar sua reprodução. Marx seria, assim, apenas mais um dos pensadores cujo modelo dicotômico se baseava num “estado de natureza” (onde primavam a economia e o privado) e num “estado civil” (onde estariam a política e o público).3 Com isso, muitos críticos de Marx afirmaram inexistir em sua obra uma teoria da política e do poder.

    Bobbio, porém, contesta essa posição, ao lembrar que sua primeira obra de fôlego foi precisamente um comentário crítico à seção sobre o Estado da Filosofia do Direito de Hegel, hoje conhecida como Crítica da filosofia do direito de Hegel.4 Além disso, lembra ainda que, embora não exista uma obra de Marx que trate especificamente do Estado, tampouco podemos afirmar que seus escritos não possuam passagens esclarecedoras de seu pensamento a esse respeito.

    Partindo da crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx apresenta as linhas gerais de uma teoria do Estado com base na crítica da filosofia política hegeliana (notadamente, ao método especulativo). Como desdobramento, ele apresenta os elementos de uma teoria do Estado burguês em particular, uma teoria do Estado de transição e uma teoria da extinção do Estado.5 Nos Manuscritos Econômicos filosóficos (1844) e na Ideologia Alemã (1845) Marx retoma o tema acentuando a relação subordinada do Estado em relação ao sistema social, afirmando que “o modo de produção e a forma de relações, que se condicionam reciprocamente, são a base real do Estado. (…) Estas relações reais não são absolutamente criadas pelo poder do Estado; elas são o poder que cria o Estado”.6 (grifo nosso). Para Marx, portanto, a dependência do Estado em relação à sociedade civil manifesta-se no fato de que esta é o lugar onde se formam as classes sociais e se revelam seus antagonismos.7 Por isso sintetizaria sua visão de Estado na afirmação de que ele é “(…) a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e em que se resume toda a sociedade civil de uma época”.8

    Como vimos, Marx tem mais a dizer a respeito do que permite supor a célebre afirmação de que o Estado não passaria de um “comitê de negócios da burguesia”, formulada no Manifesto Comunista (1848).
    Para Bobbio nem Marx, nem nenhum marxista – como Lênin, por exemplo – desenvolveram algo digno de ser chamado de uma “teoria do Estado”. Todo o marxismo careceria de uma teoria propriamente política. Seu argumento poderia, no substancial, ser sintetizado nestes termos: a inexistência de uma teoria do Estado ou do poder em Marx se dá pelo interesse excludente dos teóricos marxistas em elucidar as questões imediatas relacionadas à conquista do poder; pelo caráter transitório e breve que teria o estado socialista; e pelos efeitos do que Bobbio denominara “o modo de ser marxista” no período histórico posterior à Revolução russa e, principalmente, à Segunda Guerra Mundial.9

    Outros autores, porém, consideram incorreta a abordagem de Bobbio. Isto porque, nenhum aspecto ou dimensão da realidade social pode teorizar-se à margem – ou com independência – da totalidade na qual se constitui. É impossível teorizar sobre “a política” como o fazem a ciência política e o saber convencional das ciências sociais, assumindo que ela existe numa espécie de limbo posto a salvo das realidades da vida econômica.10 Como recordava reiteradamente Antônio Gramsci, as separações precedentes somente podem ter uma função “analítica”, sendo recortes conceituais que permitam delimitar um campo de reflexão a ser explorado de um modo sistemático e rigoroso, mas que de maneira nenhuma podem ser pensados como realidades autônomas e independentes.11

    Assim, como afirma Kohán, o poder e o Estado não vêm “de fora”, “de cima” (segundo uma difundida metáfora espacial), “da superfície”, para legitimar algo já previamente formado e maduro, já produto terminado, antes que intervenham as relações de poder e atravessem tudo. Em consequência, devemos considerar que a obra de Marx nos oferece poderosas razões que não nos permitem pensar as relações de poder como uma esfera fechada ou circunscrita unicamente na “superestrutura”.12

    Daí que a fissura que muitos defendem existir entre o pensamento de Marx e Gramsci sobre o poder e o Estado nos parece falsa. Gramsci aprofunda sobre as bases do pensamento de Marx um entendimento que vai no mesmo sentido – o de totalidade. A diferença, segundo Carlos Nelson Coutinho, é que Gramsci – dando como suposto que a análise da economia já havia sido feito por Marx e Lênin – se dedicou mais fortemente a desenvolver de modo criativo os aspectos propriamente políticos da teoria marxista que haviam sido tratados superficialmente pelo economicismo da Segunda Internacional Socialista (e voltariam a sê-lo na época de Stálin).13 Desse modo, Gramsci surge como um crítico da política na exata medida em que Marx surgira, pouco menos de um século antes, como um crítico da economia, buscando desvendar as leis de funcionamento do capitalismo. Mas como destaca Coutinho, Gramsci não coloca a política acima da economia. Nas palavras do pensador brasileiro:

    Para compreender isso, entretanto, é preciso efetuar outra precisão terminológica: novamente de acordo com Marx, Gramsci não concebe a economia como sinônimo de relações técnicas de produção, como o fazem – e por isso merecem a dura crítica gramsciana – tanto Bukhárin quanto Achile Loria. Para Gramsci, a economia aparece não como a simples produção de objetos materiais, mas sim como o modo pelo qual os homens associados produzem e reproduzem suas próprias relações sociais globais.14

    No dizer de Gramsci, estrutura e superestrutura formam um “bloco histórico” onde a política é resultado do conjunto das relações sociais de produção – não como a imposição mecânica de resultados fatais – mas condicionando as alternativas que se colocam à ação do sujeito.15 Isso não significa que Gramsci não considere possível um relativo grau de autonomia das esferas da superestrutura. Daí que ele enfatiza – ao contrário do marxismo estruturalista que surgirá anos mais tarde – a possibilidade de conquista da hegemonia política por parte de uma classe antes mesmo da tomada do poder. Neste sentido Gramsci supera Marx, mas não em sentido contrário. Prova disso, é a forma como também enfatiza a perspectiva da extinção do Estado como objetivo estratégico da luta política e econômica das classes dominadas. Para ele, essa extinção significa o desaparecimento progressivo dos mecanismos de coerção e a “reabsorção da sociedade política pela sociedade civil”.16 Com isso, as funções sociais da coerção e da dominação seriam gradualmente substituídas pela hegemonia e pelo consenso, demonstrando as semelhanças e continuidades nas perspectivas que Gramsci e Marx tinham em relação ao Estado e sua extinção, ainda que o pensador alemão tenha desenvolvido muito menos a questão.

    Nicos Poulantzas, numa de suas últimas obras, apresentou como síntese de seu estudo sobre o pensamento de Gramsci a formulação de que “o Estado é a condensação material de uma correlação de forças entre classes e frações de classe, tal como se expressa, sempre de modo específico, no seio do próprio Estado”.17 Essa seria a consideração complementar, e não contraditória, de Gramsci em relação a Marx: o Estado expressa no seu interior as contradições da própria sociedade, não deixando de ser, portanto, instrumento à serviço da dominação política.

    A grande “descoberta” de Marx (e Engels) no campo da teoria política foi a afirmação do caráter de classe de todo fenômeno estatal, o que os levou a confrontar Hegel e “dessacralizar” o Estado. Porém, Marx não pode conhecer o capitalismo que se desenvolveria no Ocidente, com grandes sindicatos, partidos de massa e eleição de parlamentares pelo sufrágio universal. Por isso, Gramsci “complementa” análise de Marx ao introduzir a novidade da hegemonia – já abordada por Lenin – que recebe agora uma base material própria e um espaço autônomo e específico de manifestação: um Estado ampliado e, portanto, mais permeável aos conflitos de classe disseminados na sociedade.18

    NOTAS:

    1 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 1.

    2 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 11.

    3 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 5.

    4 BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 150.

    5 Ibid., p. 151.

    6 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Editora Centauro, 1982.

    7 BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 158.

    8 Ibid., p. 159.

    9 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 5

    10 BORON, Atílio. Teoria política marxista ou teoria marxista da política. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas.  BORON, Atilio A.; AMADEO, Javier; GONZALES, Sabrina. 2007. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/campus/marxispt/cap. 6.doc

    11 GRAMSCI, Antônio. Cuadernos de la Cárcel . México: ERA/BUAP, 1999.

    12 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, p. 29.

    13  COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 90.

    14 Ibid., p. 95.

    15 Ibid., p. 97.

    16 Ibid., p. 138.

    17 POULANTZAS, Nicos. L’Etat, le pouvoir, le socialisme. Paris: PUF, 1978, p. 147.

    18  COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 128.

  • Contradições do neodesenvolvimentismo são devastadoras para os trabalhadores

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    Ricardo Antunes
    Ricardo Antunes

    Em entrevista do início do ano, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes já afirmava que “a falência do PT gera instabilidade política”, dentro de um governo praticamente “natimorto”. Em nova conversa com o Correio da Cidadania, além de reafirmar tais análises, Antunes descreveu todo o quadro de “crises econômica, política e social profundas”, o que torna tudo imprevisível até 2018, inclusive uma possível “reaparição heroica” de Lula. “Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência”.

    No entanto, como se trata de uma crise generalizada, que nega credibilidade a toda a classe política, a paralisia se estende a todos os atores em cena. “Como existe relativa autonomização do judiciário e da Polícia Federal, torna-se tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado. Não é apenas coleira (no sentido de oposição e partidos fisiológicos interditarem o governo). Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte, por outro, uma paralisia da economia é assustadora. É inaceitável também para os assalariados”, sintetizou.

    De toda forma, Antunes faz uma ampla análise do atual momento de Lula e do próprio processo histórico já denominado de lulismo, com seus traços “nefastos” e “centralizadores”, a impedir qualquer movimento de mudança dentro do PT. “É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT”, explicou.

    Diante do quadro, Ricardo Antunes lamentou que ainda não se tenha criado uma alternativa viável e prática no campo da esquerda, o que será ainda mais sofrível, em sua visão, nos próximos pleitos. Ainda assim, também destaca que no atual momento essa mesma esquerda alijada do jogo de poder não deve gastar demasiada energia em eleições, o que dá a ideia de urgência da reorganização através “das bases”, afirmação compartilhada por algumas outras lideranças.

    “Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso”, criticou.

    Por fim, além de prever uma nova era de rebeliões (ou “contrarrebeliões”), Antunes reitera o que ele e muitos outros chamaram de mitos desenvolvimentistas e seu voo de galinha, que agora volta a terra nada firme. “O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem”.

    A entrevista completa com Ricardo Antunes pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: No início do ano, você nos concedeu entrevista na qual afirmou estarmos diante de “governo natimorto”, fruto da “falência do PT”. Como enxerga essas assertivas diante da crise política, ética e econômica que já marcou todo o quinto ano de Dilma Rousseff na presidência da República?

    Ricardo Antunes: O quadro atual confirma minha formulação provocativa de meses atrás. A eleição que Dilma ganhou sinalizava uma vitória eleitoral difícil e uma acentuação ainda mais profunda de um governo antipopular, completamente favorável aos grandes e dominantes interesses, em particular do capital financeiro. E seguidor dos constrangimentos e imposições indicados pelo FMI e o receituário da ordem, qual seja, o governo deveria implementar, o mais rápido possível, um ajuste fiscal profundamente destrutivo em relação ao mundo do trabalho, cortar conquistas, reduzir outras dos assalariados em geral, aumentar juros e garantir superávit primário. De tal modo que, ao encontrar respaldo dos interesses dominantes, do mundo financeiro e produtivo (ainda que num contexto de crise), acreditou que poderia iniciar seu segundo mandato.

    De lá pra cá, além do agravamento da crise econômica, veio simultaneamente o agravamento exponencial da crise política. A Operação Lava Jato chegou aos núcleos dominantes do PT e aos laços de setores dominantes que controlavam as finanças do partido, inclusive com o empresariado mais destrutivo e corruptor, a exemplo da “burguesia empreiteira”. Tal crise foi ampliada pelo fato de o ajuste fiscal penalizar os setores assalariados (que garantiram a vitória de Dilma), empobrecidos e dependentes de Bolsa Família. Vale lembrar que Dilma perdeu apoio de parcelas dos assalariados e Aécio ganhou no ABC Paulista, mostrando como o derretimento petista se dá até no cinturão industrial de seu núcleo originário.

    As duras medidas do ajuste corroeram parte do que resta da base de apoio de Dilma entre os assalariados. Tanto que vemos com frequência manifestações de movimentos como MST e MTST contra o ajuste fiscal e a política econômica de Dilma, ainda que contra o impeachment. Só em poucos casos é claramente a favor do governo também.

    Porém, é visível que 10 meses depois da posse de Dilma o quadro é de completa imprevisibilidade. Em 13 de outubro, por uma liminar concedida pelo STF, Dilma conseguiu se livrar de um processo de impeachment, mas lembremos que é só uma liminar, a ser julgada mais adiante, além de outras iniciativas ainda em curso.

    Assim, respondendo a pergunta, o governo Dilma é um governo que não governa. Um governo que levita. Não no ar, pois não tem mais condições de voo; ele derrapa no chão molhado. Cada medida que toma é uma “desmedida”, pois não se efetiva. É claro que assim começa a perder uma base de sustentação importante, junto a amplos setores do empresariado, especialmente o industrial, que em função da alta de juros e da falta de perspectiva para a economia nos próximos meses começa a retirar o apoio que era forte até recentemente. Esse empresariado não se bandeia completamente para o lado do impeachment porque sabe que abriria uma crise social no país. Muitos fazem oposição ao governo Dilma, mas não aceitam uma medida tomada por um parlamento cujo nível de comprometimento está visceralmente degradado. Basta dizer que o presidente da Câmara está completamente envolvido nas corrupções que vêm impregnando a política brasileira nas últimas décadas.

    Portanto, não é possível que um parlamento dirigido por um político completamente envolvido em práticas de corrupção, conforme recente indicação do procurador geral da República, tenha legitimidade para depor o governo Dilma. Se o PT está envolvido até a medula em práticas de corrupção (o que está ainda sendo investigado), desde os inícios do governo Lula, não há ainda elementos que incriminem a presidência. Não há um elemento factível a dizer que a presidente da República, até o presente, envolveu-se diretamente com corrupção, contas e outros casos apresentados pela Operação Lava Jato.

    O quadro, portanto, é de crises econômica, política e social profundas. E gera uma completa imprevisibilidade sobre se Dilma governará nesse voo rasante e derrapante até 2018, ou se sofrerá impeachment nos próximos tempos, ou se conseguirá algum soerguimento em função da retomada de algum crescimento econômico, o que nenhuma avaliação minimamente lúcida indica – na melhor das hipóteses, apenas em 2017. Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência.

    E tem um elemento importante: em caso de queda de Dilma, seu vice também fica comprometido, de modo que aquela ideia que meses atrás ganhava força, de ter Michel Temer como espécie de paladino da ordem e da “frente amplíssima” pra preservar o impreservável, não cola mais. Afinal, o comprometimento da Dilma seria a partir das contas de campanha, que envolvem a presidência, ou das chamadas pedaladas, à medida que estendidas a 2015, supondo que levadas adiante, também envolveriam a vice-presidência da República.

    Assim, veja o tamanho da tragédia. Ou farsa. Dilma cai acusada de corrupção junto de Temer, o presidente da Câmara (Cunha) toma posse de 90 dias, e o flanco fica aberto, pois este seria atacado por todos os lados por ter deixado rastros em todos os pontos por onde passou.

    Correio da Cidadania: Desse modo, é precipitado reduzir a hipótese do impeachment à mera coleira política do mandato de Dilma, a ser usada pelo maior tempo possível.

    Ricardo Antunes: Certamente. Não é apenas coleira. Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte no país, por outro, uma paralisia completa da economia é assustadora para o empresariado. É inaceitável também para os assalariados. O que os trabalhadores(as) estão vendo? Milhares de demissões. Quando não são demitidos, têm de negociar com uma faca no coração e uma espada nas costas para aceitar uma redução da jornada com redução salarial, a antessala do desemprego.

    O capital financeiro, claro, percebe a alta dos juros e a ciranda financeira favorável, mas na medida em que tem de controlar o crédito quase sem poder emprestar, pois o risco de calote é enorme, cria toda uma paralisia econômica. E o movimento de rua das classes médias conservadoras, hoje, digamos, mais retraído, pode voltar, naturalmente. Pra completar, 2016 é ano eleitoral.

    Não havendo o impeachment, se tenta uma alternativa onde o governo reina, mas não governa. Mas Dilma nem sequer reina. Isso é feito pelo “primeiro-ministro”, que até semanas atrás pautava a vida política do país, mas não sabe até quando será presidente da Câmara. Por certo tem o risco, crescente, de perder até o mandato, pois deixou rastro em todos os lugares por onde andou: contas esparramadas em varias áreas, com digitais, passaporte diplomático… E como existe relativa autonomização do poder judiciário e da Polícia Federal, não é possível controlar tais movimentos, o que torna tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado.

    Correio da Cidadania: Como enxerga a figura de Lula em meio à crise política? O que se pode esperar deste político, ou deste ‘personagem’, ou do que se chama de lulismo, para os próximos tempos?

    Ricardo Antunes: Primeiramente, o fenômeno do lulismo é muito recente. Fui dos primeiros a tratar algumas pistas a respeito, em dois livros de artigos – A Desertificação Neoliberal do Brasil e A Esquerda Fora do Lugar. A figura do lulismo é ainda pouco conhecida entre nós, embora se possa ter muitas pistas, como vem se dando desde 2002 pelo menos.

    Em rápidas palavras, o lulismo é a figura carismática e em momentos de apogeu foi quase messiânica, de um líder que conseguia atingir as duas pontas da classe trabalhadora. No apogeu do Lula, ele tinha um respaldo quase inquebrantável da classe trabalhadora organizada brasileira, aquela classe trabalhadora que tem formas de associação sindical ou de algum outro nível, onde Lula era sua principal liderança. Não sem razão. É preciso dizer que Lula foi, talvez, a maior liderança sindical do século 20 brasileiro. É passado, mas foi. E foi com base nessa trajetória, de 1975 até 1989, e depois até 2002, algo real, que ele se tornou uma liderança nacional.

    O lulismo, e em particular seu personagem, está também atado de forma indissolúvel à figura do Lula – assim como o varguismo está atado a Vargas e o brizolismo à figura do Brizola. Mas o lulismo não tem herdeiros. É um limite entre tantos outros do Lula. É tão autocentrado e personalizado que não tem herdeiros. O varguismo ao menos teve o janguismo e o brizolismo como herdeiros, entre outros que não eram Vargas, mas tentaram remar de forma similar. O lulismo não tem herdeiro algum.

    No entanto, como dito anteriormente, com a crise do mensalão, a primeira devassa que se abateu na alta cúpula do PT, mostrando a corrupção política e, como sabemos hoje, com grandes traços de corrupção privada e enriquecimento pessoal, foi uma crise profunda. E a crise de 2005 tem muitas similaridades com a atual. Não tenho dúvida de que o Lula esteve a alguns segundos de sua renúncia naquele fatídico ano. Não tenho nenhuma dúvida disso, embora não tenha elementos objetivos. É pura intuição. Não sei se os leitores lembram de uma entrevista que ele deu na França, a uma jovem jornalista, completamente perdido. Seus olhos rodopiavam mais que pião. Só girava, não sabia o que responder. Dizia-se alvo de traição de dentro do próprio PT.

    Depois de passado aquele período, Lula ganhou as eleições em 2006 e começou seu segundo governo. Houve uma mudança importante, conforme escrevi na época: “Lula começava a migrar da classe trabalhadora mais organizada para os setores mais empobrecidos da sociedade brasileira, que vivenciam os trabalhos mais precarizados, até o completo não trabalho e desemprego, típicos das populações pobres dos rincões brasileiros, onde o programa Bolsa Família teve incidência”. Vamos lembrar que o Bolsa Família começou no segundo mandato. No primeiro mandato o programa era o Fome Zero e foi um fracasso completo.

    O Bolsa veio com um novo desenho, atingiu milhões de famílias e criou um bolsão eleitoral, que no fundo era uma tragédia política. O Bolsa Família garantia a sobrevida de famílias paupérrimas. A miséria poderia ser eliminada através de reformas estruturais profundas, pra diminuir a miséria brasileira, a exemplo do que seriam reformas agrária e urbana profundas e mudança do padrão capitalista brasileiro… Nada. O governo passou longe disso e o Bolsa Família passou a ser um modus operandi perpetuador do governo Lula. Com o Bolsa, o PT teria uma base excedente garantidora das vitórias eleitorais.

    Esse segundo substrato de apoio ao lulismo garantiu a perda de apoio do Lula em setores organizados da classe trabalhadora. Quando vimos que nas eleições o Aécio – essa figura grotesca da direita brasileira – teve mais votos no ABC do que a Dilma, mostrou-se o tamanho da perda de apoio ao lulismo nos estratos organizadas da classe trabalhadora brasileira – embora no ABC haja uma classe média expressiva, ainda é um cinturão industrial. E a perda também atingiu as periferias.

    É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. E quando a criatura vai à falência, como a Dilma, uma parte expressiva da conta vai para o criador, pois é corresponsável pela falência política do governo de sua criatura, a exemplo de Paulo Maluf com Celso Pitta em São Paulo. Aliás, outro erro grave de Lula é a indicação de uma pessoa completamente inexperiente, pois qualquer um com o mínimo de lucidez sabia que na crise a Dilma não daria conta – e sou obrigado a dizer de novo que meus artigos apontavam isso na época.

    Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT. Ninguém faz nada dentro do PT que não seja completamente dependente de Lula. Qualquer mínimo exercício de autonomia é tolhido por Lula, outro traço certamente nefasto do lulismo.

    A intuição que tenho é que para Lula ganhar uma eleição vai ter de suar muito a camisa, vai ter que usar muito a voz, que já sabemos não ser mais a mesma, nem literal, nem metaforicamente. Vai ter de suar demais, porque o desgaste do PT é poli e multiclassista. Esse é o dado novo. Ele perdeu o apoio decisivo das classes ricas, dominantes e proprietárias. De forma devastadora, perdeu apoio das classes médias tradicionais – o mito de que o PT criou uma nova classe média não pode ser levado a sério. E perde apoio, também exponencial, nos vários estratos distintos, “compósitos e heterogêneos”, para lembrar nosso querido Florestan Fernandes, que fazem parte da nossa classe trabalhadora. E Lula sabe de tudo isso.

    Só uma mudança muito profunda de situação, com expansão econômica em 2017, a apagar um pouco da tragédia atual, pode dar-lhe sobrevida. Hoje não tem, e se imaginar que tem sobrevida garantida estará errando mais uma vez. Sua sorte é que a oposição mais à direita – porque o PT tem um amplo leque de direita ao seu lado – não tem candidato forte. Aécio saiu fortalecido da última eleição, porque seu nome tornou-se mais nacional, mas o próprio PSDB não se entende, e o Alckmin não quer deixar que as Minas Gerais novamente carreguem a bandeja.

    Já as esquerdas do PT não foram capazes de esboçar até hoje uma confluência política de tantos movimentos sociais e sindicais que pudessem gerar novas lideranças. De certo modo, já vemos novas lideranças aparecendo em movimentos. Na última eleição, Luciana Genro qualificou-se como jovem candidata de esquerda, corajosa e capaz de tratar temas contemporâneos com qualidade. Mas ainda não conseguimos criar confluência social e política. Há algumas lideranças como a de Luciana Genro – à medida que tem ligações fortes com PSOL e a juventude – ou o Boulos do MTST, em São Paulo, mas estamos aquém de ter uma alternativa. Portanto, o quadro para 2018 também é muito nebuloso.

    A única coisa que me parece evidente é que imaginar o Lula vencedor das eleições em 2018 significa não ter ideia do nível de corrosão que o PT e todos os seus dirigentes vêm sofrendo, de modo devastador.

    Correio da Cidadania: Já que você falou de Boulos e Genro, o que pensa das iniciativas de reação a esse quadro de retrocessos generalizados, tanto dentro quanto fora do escopo governista, a exemplo da Agenda Brasil (mais governista) e da conformação da Frente Povo sem Medo?

    Ricardo Antunes: São manifestações distintas, embrionárias e num quadro defensivo. Quanto à primeira das citadas, pensar numa Frente de Esquerda com liderança do PT enseja a pergunta jocosa: “a Odebrecht vem junto?” É uma piada. Se não fosse verdadeiro, seria piada. Frente de Esquerda com o governo que está em seu quarto mandato e ainda não tomou nenhuma medida de esquerda, nenhuma, que minimamente contrariasse os interesses dominantes, é piada. De novo: não tomou nenhuma medida de esquerda. Não houve nada no sentido de falar “agora o governo é popular e o país não vai ser mais o mesmo”.

    Não houve taxação de grandes fortunas; não houve reforma tributária progressiva, algo elementar, no sentido de tributar mais quem tem mais e destributar a classe trabalhadora; não houve nenhuma mudança da estrutura agrária, pelo contrário, o PT foi espetacular para o agronegócio. A burguesia agrária, devastadora, que não faz outra coisa se não aprofundar o uso de transgênicos e pesticidas, foi inteiramente beneficiada pelos governos do PT.

    Portanto, uma “Frente Popular” ou “Frente de Esquerda” com o PT é provocação. Só se for uma Frente de Esquerda para carregar cadáver político. O PT tem de ser responsabilizado por suas atitudes. Claro que me refiro à ala dominante do partido e separo certos núcleos de base, as pessoas sérias, a militância que acreditava num partido diferente, como nos anos 80.

    Mas o núcleo dominante do PT, que está em parte encarcerado, em parte processado, não tem mais como chegar no PSOL, no PSTU, nos movimentos, e dizer “vamos costurar, agora que estamos morrendo, uma Frente de Esquerda”. Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. O PT de 2015 tem muito pouco a ver com o PT de 1980. A CUT perdeu, ao longo dos anos 2000, um conjunto enorme de tendências e militantes sociais que estavam lá desde sua formação, em 1983. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso.

    Naturalmente, sou contrário ao impeachment. Até prova cabal de que a presidência esteve diretamente envolvida em corrupções, como se prova hoje em relação a Cunha (e como deveria se provar com as muitas “Lava Jatos” de governos de PSDB, DEM etc.). As pedaladas podem ser reprováveis, mas aí teríamos de “cassar” os mandatos de FHC e de todos os governos e prefeitos que fizeram e fazem o mesmo. Elas podem ser reprováveis, mas não podem valer somente com um governo.

    Iniciativas como a “Frente Povo Sem Medo” e vários outros movimentos têm uma dificuldade interna. São muito importantes para dizer, por exemplo, que o Levy é, sim, o governo Dilma. Ele não foi imposto contra a vontade. Primeiro, ela tentou o Luiz Carlos Trabuco e por sorte deus nos livrou desse trambolho, como o próprio nome indicava. Aí veio o Levy. E as medidas do Levy são as medidas de Dilma. E do PT também, pois o Lula tem dito que é preciso apoiá-las.

    Outro ponto: dizem que Levy não tem apoio do PT. Mas nunca vi uma nota pública do Lula desqualificando Levy. O Lula, pícaro que é, vai no MST e faz um discurso bravio. Depois vai na Dilma e fala “maneira, Dilma, entrega tudo ao PMDB, até a alma”. Importante é ver que a tragédia, que ruiu em 2015, foi toda arquitetada por Lula: uma frente de conciliação entre modos de ser incompatíveis e antagônicos. Mas Lula tem uma habilidade política espetacular, é um homem da conciliação. E a Dilma é da rejeição. O que ouvimos dizer é que a convivência diária com a Dilma é infernal. Ela é autoritária, autocrática, mandonista, impositiva. O oposto do Lula, uma figura “encantadora” para praticar, espetacularmente, a conciliação.

    Ou seja, o PT foi fagocitado justamente por aquilo que criticou. O PT nasceu nos anos 80 criticando a política de conciliação de classes do velho PCB. O PT está sendo completamente fagocitado por uma política de conciliação na qual se entregou de corpo e alma para o demônio, o capital. Agora é vomitado e devolvido, porque não interessa mais. Agora o demônio quer de volta os velhos executores de sua política.

    A questão dessas manifestações é: muito dificilmente se pode criticar o Levy e defender Dilma. Eu não concordo com isso. Criticar o Levy nos obriga a dizer que o governo Dilma é nefasto e antipopular. Mas é muito difícil dizê-lo e, ao mesmo tempo, também conforme penso, afirmar que não dá pra aceitar a derrubada do governo. Hoje seria com a Dilma, mas amanhã poderia ser contra Luciana Genro ou qualquer governo popular. É inaceitável. Não falo de golpe militar, mas parlamentar. Como todos sabem, em 1964, quando Jango saiu de Brasília a Porto Alegre para buscar forma de resistir ao golpe, o parlamento e os Cunhas de então legitimaram a “vacância do cargo” e o golpe militar.

    Por isso que o atual parlamento está na sarjeta. É das instituições mais repudiadas e tenho impressão de ser mais rejeitada que a Dilma, com essa bancada BBB, mais o capital financeiro e tudo o mais que há por lá, salvo pequenos núcleos ligados às esquerdas, que são minoritários.

    Correio da Cidadania: Estamos diante da maior taxa de desemprego dos últimos cinco anos. Já se pode fazer um balanço contundente a respeito das políticas de ajuste fiscal ditadas pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e suas graves consequências sociais em geral e para o mundo do trabalho em particular?

    Ricardo Antunes: Existe a aparência de algo nefasto porque esse projeto é essencialmente nefasto. É o projeto do sistema financeiro, no sentido de ser momento de enxugar o Estado em tudo que diz respeito às suas atividades públicas e sociais. O que se gasta com a dívida pública e juros que se remuneram ao sistema financeiro é muito maior que todo o arrocho praticado pelo ajuste fiscal de 2015.

    Bastaria outra política, de contenção de juros, antiespeculativa, com outro rumo, o que neste momento, com esse governo, seria impossível. Mas ninguém poderia esperar em outubro de 2014 uma guinada à esquerda do PT, depois de 12 anos servindo as direitas e aos capitais.

    A Dilma não poderia fazer diferente, portanto. Podia continuar o que já vinha fazendo, o que daria em curto-circuito, ou jogar a conta em cima dos assalariados, como feito. O ajuste se resume ao mesmo que as classes dominantes sempre fizeram em tempos de crise: jogar a conta para a classe-que-vive- do-trabalho, que depende do salário pra sobreviver. E hoje não tem emprego, não tem seguro-desemprego e vivemos uma situação mais triste que anteriormente.

    O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Era uma redistribuição por dentro dos assalariados. Os capitais só engordaram e cresceram no Brasil da era Lula.

    Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem. As respostas da classe trabalhadora serão duras contra o PT. E será triste se não formos capazes de ao menos germinar alternativas à esquerda, capazes de canalizar o descontentamento e não deixá-lo ir pra direita, desse modo tosco e bruto que vemos.

    Que ao menos comecemos a reinventar a ideia de outro modo de vida, outro modo de produção, outra organização da política, que recuse essa institucionalidade. Um modelo mais democrático, mais popular, mais fundado na soberania do povo, com mais assembleias e plebiscitos. Enfim, o exercício de alguma coisa de novo tipo.

    Correio da Cidadania: Diante do que você espera de uma continuidade do mandato de Dilma e suas consequências na vida política nacional, o que restará para a população, em termos de condições de vida e trabalho?

    Ricardo Antunes: Vários movimentos. Deterioração das condições de vida, destroçamento do que resta da res publica, com a saúde e a educação públicas ficando mais precarizadas. O governo estadual do PSDB fecha escolas! Ou seja, a coisa passa por todas as esferas de governo. Quando Levy anunciou suas primeiras medidas, a pasta que mais sofreu cortes foi a Educação. Essa tendência vai aumentar.

    Paralelamente, vamos ter aumento das revoltas e rebeliões. É evidente. A população das periferias adquiriu um novo patamar de consciência de seus direitos e das tragédias que permeiam o país. A Copa das Confederações (em junho de 2013) conjugou três movimentos: as rebeliões do mundo inteiro (Oriente Médio, EUA e Europa), a percepção da falência do mito do projeto lulista e, por fim, o fato de os megaeventos esportivos mostrarem que havia dinheiro pra estádio, pra Copa, pras transnacionais, mas não pra educação e saúde.

    Não é difícil imaginar, novamente, uma situação de curto-circuito com esses três fios se interseccionando e reaparecendo um quadro favorável a rebeliões de massa. Se não caminhar em tal direção, teremos rebeliões episódicas e moleculares em todo o país, mais ou menos passivas. Greves também, coisa que o Brasil só viu crescer nos últimos anos. Em 2013 e 2014 o número se ampliou ainda mais, conforme dados do Dieese. E em 2015, quem está empregado teme o pior. Quem está no desemprego, não tem muito a perder.

    Imagino uma nova era de rebeliões. Se mais ou menos moleculares, não sabemos. Tomara que essas manifestações de rua, greves, de caráter polissêmico, que marcam as lutas sociais do país, comecem a encontrar alguns polos de confluência que permitam um salto. Uma ideia que venho elaborando mais recentemente, uma triste constatação, é que as direitas, em 2015, politizaram as rebeliões de 2013 para seu campo, isto é, da contrarrevolução, do ódio ao comunista, ao socialista. Todos são comunistas, o PT é comunista, até os liberais! A direita vê comunista até no rabanete das feiras livres.

    Correio da Cidadania: Conclui-se que a esquerda agora vê o preço de não ter acelerado sua reorganização nos últimos tempos?

    Ricardo Antunes: As esquerdas dos movimentos sociais não conseguiram dar um salto, a partir das manifestações de massa e populares, para um patamar mais ofensivo. Tomara que saibamos avançar. O caminho, que em geral nossas esquerdas têm dificuldade de encarar, é não ficar focado na próxima eleição. Não adianta pensar nas eleições de 2016, 2018! Precisamos de um campo social e político organizado pela base, em manifestações cotidianas, decisões plebiscitárias, avanço de ações coletivas, sejam sindicais ou sociais. É necessária uma articulação mais generosa dessa enorme multiplicidade de movimentos sociais e das esquerdas, onde isoladamente cada um de nós somos poucos. Mas juntos, não!

    Outro ponto é que trabalhamos muito com a dicotomia movimentos sociais x partidos. Um ou outro. Não estou de acordo que são dicotômicos. Os movimentos são muito importantes por estarem atados à vida cotidiana. A questão da terra é o sentido da vida para o MST, o assalariado rural, a camponesa. Terra, alimentação, casa e vida nova. Os sem teto sabem que na arquitetura do “planeta favela” os ricos vivem fechados em guetos com segurança à lá Robocop e fazem as periferias serem expulsas para lugares ainda mais periféricos. O estádio Itaquerão é exemplo perfeito: a região se valorizou e teve gente que foi expulsa para a periferia da periferia.

    Os movimentos, portanto, têm muita colação com a vida cotidiana, mas têm mais dificuldade, até pelos seus métodos e necessidades, de terem projetos mais longevos, de pensar no amanhã e também no depois de amanhã e combinar com a atualidade. Falo isso deixando de lado as excepcionais exceções, trata-se mais de uma síntese. Os partidos de esquerda ao menos reconhecem que precisam adentrar o século 21 pensando o novo. Refiro fundamentalmente a PSOL, PSTU, PCB e pequenos grupamentos que procuram se inserir no mundo e na vida real, e em geral têm um olhar mais longevo, a respeito de que sociedade queremos e como caminhar. Mas têm uma grande dificuldade de se vincular às lutas cotidianas, que são exatamente a força dos movimentos sociais. A força de uns é o limite de outros e vice-versa.

    Estou fazendo uma síntese, repito. Não sou da ideia de que “os partidos acabaram, viva os movimentos sociais”! Os movimentos podem ter muita vinculação com a vida concreta, mas é difícil um movimento ter a longevidade, por exemplo, do MST. Este, é um movimento forte porque tem dinâmica e vida de base, não só de luta cotidiana. As mulheres do MST podem discutir ações e atitudes, assim como os assentados, pois têm autonomia na base que lhes permite avançar um pouco. E creio que o mesmo possa se dizer, em certa medida, no MTST. Mas eles também têm dificuldades.

    Muitos movimentos sociais nascem e desaparecem. Os partidos ao menos têm se mostrado mais longevos, porém, perdem capilaridade com a vida cotidiana, de tal modo que o salto positivo no século 21 seria a aproximação desses dois polos orgânicos do mundo do trabalho. A energia que ainda tenho invisto nessa direção, que talvez nos permita sair de um momento, para lembrar Florestan Fernandes, de contrarrevolução. Das rebeliões de 2013 às “contrarrebeliões”. Do flagelo dos imigrantes na Europa à construção de muros pelo Estado fascista húngaro, para que não atravessem o continente. Assim como as, até agora, balas de chumbinho nos haitianos em São Paulo o demonstram.

    Fonte: Correio da Cidadania, 09/11/2015

  • O homem branco naquela fotografia

    O homem branco naquela fotografia

    Às vezes as fotografias enganam. Esta, por exemplo. Representa o gesto de rebeldia de John Carlos e de Tommie Smith no dia em que ganharam medalhas pelos 200 metros nas Olimpíadas de Verão de 1968, na Cidade do México e é certo que me enganou a mim durante muito tempo.

    poder_negroSempre vi a fotografia como uma imagem poderosa de dois negros descalços, com as cabeças curvadas, de punhos erguidos com luvas negras, enquanto tocava o hino nacional dos Estados Unidos. Era um forte gesto simbólico, tomando posição pelos direitos civis afro-americanos num ano de tragédias que incluíram as mortes de Martin Luther King e de Bobby Kennedy.

    É uma foto histórica de dois homens de cor. Por este motivo, nunca prestei realmente atenção ao outro homem, branco como eu, imóvel, no segundo degrau do pódio de metal. Considerava-o como uma presença casual, um extra no momento de Carlos e de Smith, ou mesmo uma espécie de intruso. Com efeito, pensava mesmo que aquele sujeito – que parecia ser apenas um rival inglês – representava na sua gelada imobilidade a vontade de resistir à mudança que Smith e Carlos invocavam no seu protesto silencioso. Mas estava errado.

    Graças a um velho artigo de Gianni Mura, hoje descobri a verdade: aquele branco na fotografia é, talvez, o terceiro herói daquela noite de 1968. Chamava-se Peter Norman, era um australiano que tinha chegado às finais dos 200 metros depois de ter corrido uns extraordinários 20.22 nas semi-finais. Só os dois americanos Tommie Smith“O Jacto” e John Carlos tinham feito melhor: 20.14 e 20.12, respectivamente.

    Parecia como se a vitória tivesse de ser decidida entre os dois americanos. Norman era um velocista que parecia estar a ter uns bons momentos. John Carlos, anos mais tarde, disse que lhe perguntaram o que tinha acontecido àquele baixote branco de 5’6” de altura e que corria tão rápido quanto ele e Smith, ambos mais altos do que 6’2”.

    Chega a hora das finais e o outsider Peter Norman faz a corrida de uma vida, de novo melhorando os seus tempos. Termina a corrida a 20.06, a sua melhor marca de sempre, um recorde australiano que ainda continua de pé, 47 anos depois.

    Mas esse recorde não foi suficiente, porque Tommie Smith era verdadeiramente “O Jacto” e respondeu ao recorde australiano de Norman com um recorde mundial. Em suma, foi uma grande corrida.

    Contudo, essa corrida nunca seria tão memorável como aquilo que se seguiu na cerimónia de entrega das medalhas.

    Não demorou muito depois da corrida para se compreender que algo de grande, sem precedentes, estava prestes a acontecer no pódio de metal. Smith e Carlos decidiram que queriam mostrar a todo o mundo como era a sua luta pelos direitos humanos e a palavra espalhou-se entre os atletas.

    Norman era um branco natural da Austrália, um país que tinha leis de apartheid rigorosas, quase tão rígidas como as da África do Sul. Havia tensão e protestos nas ruas da Austrália na sequência de pesadas restrições a imigração não-branca e a leis discriminatórias contra os aborígenes, algumas das quais consistiam em adopções forçadas de crianças nativas a famílias brancas.

    Os dois americanos tinham perguntado a Norman se ele acreditava nos direitos humanos. Norman disse que sim. Perguntaram-lhe se acreditava em Deus e ele, que tinha estado no Exército da Salvação, disse que acreditava firmemente em Deus. “Sabíamos que aquilo que iamos fazer era de longe maior que qualquer feito atlético e ele disse: “Estou com vocês” recorda John Carlos, “Esperava ver receio nos olhos de Norman, mas em vez disso vimos amor.”

    Smith e Carlos tinham decidido levantar-se no estádio usando o emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, um movimento de atletas que apoiava a luta pela igualdade.

    Iriam receber as suas medalhas, descalços, representando a pobreza vivida pelos negros. Iriam calçar as famosas luvas pretas, símbolo da causa dos Panteras Negras. Mas antes de subirem ao pódio perceberam que só tinham um par de luvas. “Calce cada um uma luva” sugeriu Norman. Smith e Carlos aceitaram o conselho.

    Mas então, Norman fez ainda mais. “Acredito naquilo que vocês acreditam. Têm um desses para mim?” perguntou ele apontando para o emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos no peito dos outros. “Desse modo, posso mostrar o meu apoio à vossa causa.” Smith admitiu que ficou atónito e que pensou: “Quem é este fulano branco australiano? Ganhou uma medalha de prata, não lhe chega recebê-la e pronto?”

    Smith respondeu que não, também porque não queria deixar de usá-lo. Aconteceu que com eles estava um remador americano branco, Paul Hoffman activista do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos. Depois de ouvir tudo aquilo, pensou “se um branco australiano me viesse pedir um emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, por Deus, claro que lho daria!” Hoffman não hesitou “Dei-lhe o único que tinha, o meu”.

    Os três avançaram pelo campo e subiram ao pódio: o resto é história, preservada pelo poder da fotografia. “Eu não podia ver o que estava a acontecer,” conta Norman, “[mas] tinha sabido que eles tinham levado avante os seus planos quando uma voz na multidão cantou o hino americano, mas depois se calou. O estádio emudeceu”.

    O chefe da delegação Americana jurou que estes atletas iriam pagar enquanto vivessem por esse gesto, um gesto que ele pensava não tinha nada a ver com o desporto. Smith e Carlos foram imediatamente suspensos da equipa olímpica americana e expulsos da aldeia olímpica, enquanto que o remador Hoffman foi acusado de conspiração.

    Uma vez em casa, os dois homens mais rápidos do mundo enfrentaram pesadas consequências e ameaças de morte.

    Mas, no fim, o tempo provou que eles tinham tido razão e tornaram-se campeões na luta pelos direitos humanos. Com a sua imagem restabelecida, colaboraram com a equipa americana de atletismo, tendo sido erigida uma estátua deles na San Jose State University. Peter Norman não está nesta estátua. A sua ausência do pódio parece o epitáfio de um herói em quem ninguém nunca reparou. Um atleta esquecido, apagado da história mesmo na Austrália, o seu país.

    Quatro anos mais tarde, nas Olimpíadas de Verão de 1972, em Munique, na Alemanha, Norman não fez parte da equipa de velocistas australianos, apesar de se ter qualificado treze vezes para os 200 metros e cinco vezes para os 100 metros.

    Norman deixou o atletismo de competição depois deste desapontamento, continuando a correr ao nível amador.

    Na sua Austrália branqueada, resistindo à mudança, ele foi tratado como um estranho, a sua família foi proscrita e incapaz de arranjar trabalho. Trabalhou uns tempos como professor de ginástica, continuando a lutar contra as desigualdades como sindicalista e trabalhando ocasionalmente num talho. Devido a um ferimento, Norman contraiu gangrena que levou a problemas de depressão e alcoolismo.

    Como John Carlos disse “Se nós fomos espancados, Peter enfrentou um país inteiro e sofreu sozinho.” Durante anos, Norman só teve uma oportunidade de se salvar: foi convidado a condenar o gesto dos seus colegas atletas John Carlos e Tommie Smith em troca de um perdão do sistema que o ostracizou.

    Um perdão que lhe teria permitido arranjar um emprego estável no Comité Olímpico Australiano e fazer parte da organização dos Jogos Olímpicos de Sydney 2000. Norman nunca cedeu e nunca condenou a escolha dos dois americanos.

    Ele foi o maior velocista australiano da história e o detentor do recorde dos 200 metros, contudo nem sequer foi convidado para as Olimpíadas de Sydney. Foi o Comité Olímpico americano, quando soube da notícia, que lhe pediu que se juntasse ao seu grupo e o convidou para a festa de aniversário do campeão olímpico Michael Johnson para quem, Peter Norman era um exemplo e um herói.

    Norman morreu repentinamente de ataque cardíaco em 2006 sem que o seu país alguma vez lhe tivesse pedido desculpa pela maneira como o tratara. No seu funeral, Tommie Smith e John Carlos, amigos de Norman desde aquele momento em 1968, e que o tinham como herói carregaram o seu caixão.

    “Peter foi um soldado solitário. Escolheu, conscientemente, ser um cordeiro do sacrifício em nome dos direitos humanos. Não há mais ninguém senão ele que a Austrália devia honrar, reconhecer e apreciar” disse John Carlos.

    “Ele pagou o preço com a sua escolha,” explicou Tommie Smith. “ Não foi apenas um simples gesto para nos ajudar, foi a SUA luta. Foi um branco, um homem branco australiano entre dois homens de cor, levantando-se no momento da vitória, todos em nome da mesma coisa.”

    Só em 2012 o Parlamento australiano aprovou uma moção pedindo formalmente desculpa a Peter Norman e dedicando-lhe um lugar na história com esta declaração:

    Esta Câmara “reconhece os extraordinários êxitos atléticos do falecido Peter Norman que ganhou a medalha de prata na corrida de 200 metros nas Olimpíadas da Cidade do México de 1968 num tempo de 20.06 segundos, que ainda se mantém como recorde australiano.”

    “Reconhece a coragem de Peter Norman, ao ostentar no pódio um emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, em solidariedade com os atletas afro-americanos Tommie Smith e John Carlos, que fizeram a saudação do “poder negro”.”

    “Pede desculpa a Peter Norman pelo mal feito pela Austrália em não o mandar às Olimpíadas de Munique de 1972, apesar de repetidamente se ter qualificado e tardiamente reconhece o poderoso papel desempenhado por Peter Norman na prossecução da igualdade racial.”

    Contudo, as palavras que melhor nos lembram Peter Norman são simplesmente as suas próprias palavras ao descreverem os motivos do seu gesto, no documentário “Salute” escrito, dirigido e produzido pelo seu sobrinho Matt.

    “Não podia ver por que razão um negro não podia beber a mesma água de uma fonte, apanhar o mesmo autocarro ou ir à mesma escola que um branco. Havia uma injustiça social contra a qual nada podia fazer a partir de onde estava, mas que detestava. Foi dito que ter partilhado a minha medalha de prata com aquele incidente no estrado da vitória diminuiu o meu desempenho. Pelo contrário. Tenho de confessar que fiquei muito orgulhoso por fazer parte dele.”

    Quando mesmo hoje parece que a luta pelos direitos humanos e pela igualdade nunca acaba e que vidas inocentes são sacrificadas, temos de recordar as pessoas que fizeram sacrifícios como Peter Norman e tentar seguir o seu exemplo. A igualdade e a justiça não são lutas de uma única comunidade, mas de todos.

    Assim, este Outubro quando estiver em San Jose, vou visitar a estátua do Poder Negro Olímpico no campus de San Jose State University e aquele degrau vazio no pódio recordar-me-á um herói esquecido, mas verdadeiramente corajoso, Peter Norman.

    Artigo de Riccardo Gazzaniga publicado no seu blogue.

    Tradução de Almerinda Bento para esquerda.net

  • Eleições na Turquia: Fraude eleitoral e reforço do poder de Erdoğan

    Eleições na Turquia: Fraude eleitoral e reforço do poder de Erdoğan

    Depois das eleições de domingo passado, envoltas em fraudes eleitorais e violações dos direitos humanos, Tayyip Erdoğan tem o caminho aberto para revisão constitucional que o deixará com ainda mais poder. Desde as eleições, políticos curdos já foram presos, três jovens foram assassinados pela polícia e mais de 40 pessoas foram presas por alegada ligação a um rival do presidente.

    Foto de Sinan Eden
    Foto de Sinan Eden

    Nas eleições do passado fim de semana na Turquia, o partido do presidente Tayyip Erdoğan, AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento, islamista conservador), venceu as eleições com 50% dos votos, elegendo 316 deputados, essencialmente no centro do país. O CHP, partido republicano e social-democrata obteve 25% dos votos, com bons resultados no oeste (em cidades como Istambul ou Izmir). O partido de esquerda pró-curdo (HDP) conseguiu obter mais de 10% dos votos, o mínimo necessário para manter a representação parlamentar, correspondendo a 59 deputados, com vitórias expressivas no Curdistão. O partido nacionalista MHP obteve 12% dos votos, tendo eleito 41 deputados.

    Fraude eleitoral

    No entanto, o processo eleitoral decorreu com denúncias de enormes irregularidades. Há relatos de pelo menos 30 casos em que oficiais do AKP negaram a entrada de observadores voluntários nas mesas de voto e em alguns casos, a polícia deteve os observadores. Em Istambul, observadores gregos e franceses viram o seu acesso às mesas de voto impedido. Os observadores gregos foram detidos em Kumkapı e os franceses foram mantidos fechados no escritório do diretor da escola onde se votava em Bayrampaşa.

    Em vários locais, membros oficiais do AKP obrigaram os outros membros das mesas de voto a assinarem em branco os relatórios dos resultados eleitorais. Só em Izmir, há pelo menos 30 denúncias oficiais destes relatórios assinados em branco. Vários carros e carrinhas sem matrículas foram avistados em frente a escolas onde decorria o ato eleitoral. Num caso, a polícia impediu jornalistas de documentar carros suspeitos. Cerca de 200 eleitores do CHP e do HDP foram impedidos de votar, no bairro de Çağlayan, em Istambul. As pessoas faziam-se acompanhar dos seus cartões de eleitor, tinham votado nas mesmas assembleias de voto nas anteriores eleições, em junho, mas os elementos das mesas de votos afirmaram que os seus nomes não apareciam nos cadernos eleitorais.

    No Curdistão, a repressão escalou. Em várias localidades (pelo menos em Amed – Diyarbakır, Şırnak e Antep), as forças especiais da polícia entraram em escolas onde decorria o ato eleitoral e revistaram toda a gente à entrada das urnas. Em todo o Curdistão havia uma forte presença militar e das forças especiais, especialmente na região de Diyarbakır, onde foi recusado o acesso dos observadores internacionais. Um tradutor, chamado Ramazan Tunç, foi detido pela polícia enquanto acompanhava uma delegação dos Estados Unidos e da Itália a uma aldeia no distrito de Dicle.

    Em Yenişehir, no Sul do Curdistão, seis observadores do Parlamento Europeu foram detidos e acusados de terem tentado cumprimentar os locais. À outra equipa de observadores não foi autorizado o acesso às mesas de voto na aldeia de Alangör, sob acusação de não terem consigo os seus passaportes. Em Sur, na região de Amed, ainda no Curdistão, os habitantes começaram a deslocar-se para as mesas de voto ainda durante a madrugada para poderem garantir que votavam, e foram recebidos por um grupo das operações especiais com máscaras que impediam a sua identificação. A delegação de observadores do Parlamento Europeu, ao chegar à mesma zona, também foi recebida por um grupo de polícias com máscaras. Na mesma região, a polícia ameaçou jornalistas, exigindo que não fossem tiradas quaisquer fotografias, ou poderiam “acidentalmente disparar” sobre eles. Vários polícias apagaram as filmagens feitas por jornalistas em áreas controladas pela polícia. Feleknas Uca, um porta voz do HDP para a região, garantiu que foi o governador, e não a Comissão Nacional de Eleições, a pedir a intervenção das forças especiais. Os eleitores, por sua vez, reagiram contra a repressão policial, afirmando que nunca se deixarão intimidar por um estado que emprega a sua força contra escolas.

    Na aldeia de Arabaş, em Sur, outra delegação do Parlamento Europeu foi agredida pelo candidato do AKP Şafak Yentürk e pela sua família, tendo sido obrigada a abandonar as mesas de voto. O condutor dessa delegação foi agredido pelo candidato do AKP. A delegação de observadores britânicos no distrito de Çermik, em Amed, foi igualmente alvo da ira do candidato do AKP, Baran Çelik, e dos seus guarda costas, que tentaram expulsar a delegação da escola pelo uso da força. No mesmo distrito de Çermik, na aldeia Alokoç, os soldados entraram armados nas mesas de voto e tentaram intervir na votação dos eleitores.

    Há pelo menos três denúncias de boletins de votos que não continham o logo do HDP. Na região de Diyarbakır, membros oficiais do AKP exigiram que tanto os observadores do HDP como a imprensa internacional abandonassem a zona das mesas de voto e ameaçaram encontrar “outras formas” de os retirar dali caso os jornalistas não o fizessem voluntariamente. Em Eskişehir, houve relatos de subornos com electrodomésticos, oferecidos por responsáveis do AKP.

    Martina Michels, observadora internacional das eleições e deputada ao Parlamento Europeu pelo Die Linke, afirmou-se chocada com os acontecimentos e pela ausência de democracia na região: “Os incidentes que aqui ocorrem não cumprem qualquer critério democrático. Em nenhum outro lugar do mundo presenciei uma atmosfera tão militarista. É realmente inacreditável.”

    Erdoğan consolida poder

    Nas eleições de junho, o HDP ultrapassou os 10%, passando a ter representação parlamentar, e o AKP, com 240 deputados, perdeu a sua maioria absoluta. Cinco meses depois, apesar de não ter alcançado os 330 deputados necessários para votar em referendo o reforço dos poderes executivos atribuídos à presidência, Erdoğan tem a margem de manobra que desejava para fazer a revisão constitucional. Esta irá expandir os poderes executivos do Presidente, consolidando ainda mais o seu poder.

    Desde a noite das eleições, o governo não perdeu tempo, a revista da oposição Nokta foi revistada pela polícia, o último número foi apreendido e os editores presos. Incursões policiais em Mardin colocaram 11 políticos curdos na prisão, incluindo um Presidente da Câmara. Conflitos entre a polícia e ramos locais do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) em Yüksekova e Silvan causaram a morte de três jovens (de 18, 20 e 22 anos). Operações policiais em 18 cidades levaram à prisão de 44 pessoas e à emissão de mandatos de captura para mais 13, numa investigação contra a organização do islamista Fethullah Gülen, rival de Erdoğan. O imã Fethullah Gülen é um antigo aliado de Erdoğan que está exilado nos Estados Unidos, onde dirige uma rede de escolas, organizações não-governamentais e empresas. É defensor da modernização do islão e do diálogo inter-religioso, sendo acusado por Erdoğan de conspiração para o derrubar. A investigação levou a ataques contra o jornal Bugün e à prisão de polícias e altos funcionários, incluindo 3 ex-governadores civis. Por último, a casa ocupada mais antiga da Turquia (Don Quixote, em Kadıköy) foi despejada pela polícia.

    Fonte: Esquerda.Net, 3 de Novembro, 2015

  • Drones: 10 revelações sobre o programa norte-americano de assassinatos seletivos

    Drones: 10 revelações sobre o programa norte-americano de assassinatos seletivos

    Entre as revelações, está a de que a ordem para matar é validada pelo presidente dos EUA e que os ataques com drones multiplicaram-se no governo Obama.

    Barack Obama
    Barack Obama

    Milhares de ataques de mísseis e de mortes, em apenas meia dúzia de operações. O programa de assassinato seletivo conduzido pelos Estados Unidos no Afeganistão ou no Iémen, como parte da sua luta contra o terrorismo é extenso – e muito sigiloso. A investigação do site The Intercept, “The Drone Papers”, revela muitos aspectos desconhecidos do programa, e confirma outros já conhecidos, no momento em que a França também começa a realizar ataques direcionados na Síria, com a ajuda dos serviços secretos dos EUA.

    1) Até nove em cada dez pessoas mortas não eram alvos

    A primeira constatação a partir dos documentos do exército norte-americano é a ineficiência do caráter “seletivo” dos assassinatos por drones. Numa análise detalhada dos resultados da operação Haymaker, no norte do Afeganistão, os relatórios militares revelam que o número de “jackpots” – morte da pessoa visada por um ataque – é baixo: em fevereiro de 2013, a operação tem 35 “jackpots”, e 200 “EKIA” – inimigos mortos em combate – no mesmo período.

    Os militares dos EUA usam este termo para designar as pessoas mortas que eles identificam como insurgentes ou soldados inimigos não diretamente visados – para estabelecer esta classificação, o exército baseia-se nas suas próprias fontes, como imagens captadas, também, por drones. Contas que tendem a subestimar o número de vítimas civis, diz o The Intercept. Durante um período de cinco meses no Afeganistão, o site descobriu que nove em cada dez pessoas mortas não eram os alvos dos ataques.

    O The Intercept também cita um estudo realizado pelo académico Larry Lewis, que analisou os resultados das operações americanas no Afeganistão durante vários anos. Segundo os seus cálculos, os ataques realizados por drones na região mataram muito mais civis que os bombardeamentos da aviação: ele conclui que os drones matam, em média, dez vezes mais civis do que os aviões norte-americanos. Uma diferença explicada em parte pela baixa qualidade das informações em que se baseiam os ataques por drones.

    2) A ordem para matar é validada pelo presidente dos Estados Unidos

    Para determinar quem pode ser alvo de um ataque de um drone, o exército dos EUA segue uma complexa cadeia de comando, com alguns aspectos não detalhados nos documentos publicados pelo Intercept.

    Tudo começa com a criação de um “dossier”, chamado “Cartão de Basebol”, que estabelece o perfil da pessoa, as razões pelas quais o seu assassinato é solicitado, e que segue um processo de validação em sete etapas. Em média, leva-se dois meses para obter todas as aprovações necessárias; em seguida, começa um período de sessenta dias, durante o qual o ataque é autorizado.

    Na última cena do documentário Citizen Four, sobre as revelações do informador Edward Snowden, Glenn Greenwald, fundador do Intercept, já sugeria possuir documentos secretos sobre o programa de drones americanos, que lhe foi transmitido por outro informador. No filme, podemos vê-lo a desenhar uma pirâmide num pedaço de papel, mostrá-la a Edward Snowden e dizer: “vai até o presidente” – o diagrama que aparece rapidamente na tela assemelhava-se bastante ao publicado agora pelo Intercept.

    3) Os assassinatos são decididos, essencialmente, com base em espionagem eletrónica

    Os “Cartões de Basebol” e os dossier compilados pelas forças americanas são, em grande parte, elaborados com base em fontes de inteligência eletrónica – programas de vigilância em massa da NSA e escutas, como explica o Intercept. Os próprios drones são utilizados para recolher grande quantidade de dados: armados ou de observação, a maioria dos drones utilizados pelos militares americanos dispõe de uma antena de retransmissão, que os permite triangular a posição de um telemóvel com grande precisão.

    De acordo com uma fonte anónima citada pela reportagem, o sistema “conta com máquinas muito potentes, capazes de recolher uma quantidade incrível de dados”, mas “comporta, em muitos níveis, riscos de erros de análise e de atribuição”. De acordo com a mesma pessoa, “é incrível o número de casos em que um seletor (uma identificação com login e senha, por exemplo) é atribuído à pessoa errada. E só várias semanas ou meses depois percebe que a pessoa que está a seguir não é o seu alvo, porque está na verdade a rastrear o telefone da mãe daquela pessoa, por exemplo”.

    4) Os critérios para entrar na “lista de morte” são vagos

    Oficialmente, a política dos Estados Unidos é a de atirar para matar apenas em casos em que o alvo “represente um risco contínuo e iminente para a segurança dos americanos”. Os documentos publicados pelo Intercept, no entanto, mostram que apenas um critério é analisado para determinar se uma pessoa pode ou não ser incluída na lista de alvos potenciais: o facto de “representar uma ameaça para as tropas dos EUA ou para os interesses americanos”.

    Este critério particularmente vago tem pouco sentido em algumas regiões do mundo onde os militares dos EUA só realizam ataques direcionados por drones – no Iémen, por exemplo, a presença dos EUA é quase inexistente. Os ataques de drones, no entanto, já mataram 490 pessoas no país, segundo dados do próprio exército.

    5) “Capturar ou matar” tornou-se “Matar”

    As campanhas direcionadas do exército americano são chamadas de “Capture/kill” – capturar ou matar. Mas, no caso de ataques de drones, “a expressão é enganadora – “Capturar” escreve-se em minúsculas: nunca capturamos ninguém”, reconheceu o tenente-general Michael Flynn, ex-chefe da agência de inteligência do exército.

    A escolha de se concentrar em ataques letais por drones, em vez de operações de captura, de maior risco, tem implicações para o tipo de informações recolhidas. Sem interrogatórios, os militares fiam-se cada vez mais na inteligência eletrónica, em detrimento da inteligência humana, considerada, no entanto, essencial.

    6) “Exploração e análise” são os primos pobres das operações

    A doutrina do exército americano sobre terrorismo é resumida numa sigla: FFFEA. Find, fix, finish, exploitation and analysis – “encontrar, consertar, dominar, explorar e analisar”. Mas os documentos mostram que a última parte do processo é quase inexistente em ataques de drones, particularmente no Leste da África e no Iémen.

    Na maioria dos casos, depois de um ataque mortal, não há soldados no local para recuperar documentos, computadores ou telemóveis, nem para interrogar os sobreviventes. O que leva a “becos sem saída” em matéria de inteligência.

    7) Os ataques de drones fortalecem os adversários dos EUA

    Devido à falta de precisão dos ataques e aos erros de informação que levam a atingir as pessoas “erradas”, as campanhas de drones ajudam a fortalecer os adversários americanos, explica o Intercept. O site menciona o exemplo de Haji Matin, morto por um ataque em 2012: este comerciante de madeira tinha sido denunciado como militante talibã por rivais nos negócios. O exército dos EUA bombardeou a sua casa, matando vários membros de sua família… e transformou-o num líder local da militância anti-americana.

    8) O número de ataques multiplicou-se no governo Obama

    Antes da posse de Barack Obama, apenas um ataque de drone tinha ocorrido no Iémen, em 2002. Em 2012, houve um ataque a cada seis dias naquele país. Desde agosto de 2015, estes ataques já mataram 490 pessoas.

    Um ex-funcionário dos serviços secretos do governo dos Estados Unidos disse que o uso de drones “foi a escolha política mais vantajosa: de baixo custo, não faz vítimas americanas. É bem recebida nos EUA, sendo impopular apenas no exterior. Os danos desta política aos interesses americanos só serão visíveis a longo prazo”.

    9) A distância e o “efeito canudo” reduzem bastante a eficácia dos drones

    Apesar da tecnologia avançada, e da impressão de que podem intervir em qualquer lugar e a qualquer momento, os drones não são eficazes em todas as situações. Para conseguir identificar, rastrear e abrir fogo contra um suspeito, é preciso manter contato visual por um longo período. No entanto, em algumas áreas, especialmente no Iémen, a longa distância que os drones precisam percorrer torna esta cobertura permanente muito difícil, pois eles muitas vezes gastam mais tempo de voo para chegar à sua posição do que na “ação” propriamente dita.

    Além disso, os operadores de drones são vítimas de um “efeito canudo” (como se estivessem a avaliar o todo observando através de um canudo): o alcance das câmaras é limitado, o que leva a dificuldades para seguir os “suspeitos” e aumenta o risco de erros de identificação.

    10) Para ampliar o programa de drones, o exército americano multiplicou o número de bases na África

    Para reduzir as distâncias percorridas pelos drones, o comando americano discretamente aumentou o número de bases, especialmente na África. Estas bases secretas complementam o sistema criado pelo U.S. Africa Command, cuja base principal está no acampamento Lemonnier, antigo posto avançado da Legião Estrangeira da França.

    Original: Le Monde

    Tradução de Clarisse Meireles para a Carta Maior.

    Fonte: Esquerda.Net, 20/10/2015

  • As 10 notícias mais censuradas 2014 – 2015

    Estas são as primeiras dez entre as 25 notícias mais censuradas pela grande imprensa dos Estados Unidos, que na prática molda a (des)informação mundial. A notícia foi divulgada a 6 de outubro no ranking 2014-2015 do Project Censored da Califórnia, que os sociólogos Peter Phillips, Mickey Hugg e Andy Lee Roth desenvolvem.

    Projeto Censurado: As notícias que não foram notícia

    Projeto Censurado: As notícias que não foram notícia

    O 1% mais rico possui metade da riqueza mundial, o fracking envenena as águas subterrâneas, 89% das vítimas paquistanesas assassinadas por drones norte-americanos nem sequer eram identificáveis como militantes islâmicos, aumentam os países que agora seguem o exemplo da Bolívia na luta pelo direito humano à água, aprofunda-se o desastre nuclear em Fukushima, cientistas opinam que o excesso de metano ameaça o Ártico e a muito curto prazo põe em risco a vida no planeta (20 anos) pelo aumento de 5 a 6 graus do aquecimento global, o medo da espionagem do governo “esfria” a liberdade de expressão dos escritores de todo mundo, a polícia dos EUA mata mais que qualquer outra do planeta… e com demasiada frequência, óbvio: os pobres recebem menos cobertura dos media que os seus donos multimilionários e, por último, a Costa Rica avança na energia renovável hidráulica… desde que não haja seca. (…)

    1.- O 1% mais rico possui metade da riqueza mundial

    Em 2016, o 1% da população mundial possuirá mais riqueza que os 99% restantes, segundo um relatório difundido em janeiro 2015 pela Oxfam, uma organização internacional sem fins lucrativos que tem como objetivo combater a pobreza. Para o estudo da Oxfam a desigualdade extrema não é inevitável, mas nos factos é o resultado de decisões políticas e económicas estabelecidas e mantidas pela elite global do poder, os indivíduos ricos cuja poderosa influência mantém o status quo manipulado a seu favor. A proporção da riqueza mundial que pertence ao 1 por cento aumentou de 44% em 2009 para 48% em 2014 e prevê-se que atinja os 50% em 2016.

    2.- O fracking envenena as águas subterrâneas

    Os aquíferos da Califórnia foram contaminados ilegalmente com cerca de 11 milhões de litros de águas residuais envenenadas desde que foram utilizadas no processo chamado fracking, ou fratura hidráulica do subsolo para extrair petróleo e gás, segundo documentos do Estado da Califórnia difundidos em finais de 2014 pelo Centro para a Diversidade Biológica. Segundo esta fonte, a fuga de contaminantes produziu-se em pelo menos nove poços utilizados pela indústria petrolífera para eliminar resíduos de águas contaminadas, prática que provavelmente se repete noutras latitudes onde também é utilizada a fratura hidráulica para extrair petróleo e gás.

    3.- 89% das vítimas paquistanesas de drones dos EUA nem sequer são apontadas como militantes islâmicos

    Desde que Barack Obama assumiu a presidência em 2009, calcula-se que os EUA provocaram a morte de 2.464 pessoas em bombardeamentos com aviões não tripulados enviados fora do que Washington declarou como “zonas de guerra”. O número foi divulgado em fevereiro de 2015 por Jack Serle e pela equipa do Gabinete de Jornalismo de Investigação, que mantém uma base de dados com todos os ataques conhecidos – baseando-se em trabalho de campo, relatórios dos media e fuga de documentos – que proporcionam uma imagem mais clara da escala e do impacto do programa de aviões não tripulados dos EUA, em comparação com a informação episódica proporcionada pelos grandes media corporativos de informação.

    4.- Muitos países seguem agora o exemplo da Bolívia na luta pelo direito à água

    No 15º aniversário dos protestos de Cochabamba, a resistência popular ao controle da água pelas grandes transnacionais continua a expandir-se em todo o mundo, abarcando a remunicipalização dos serviços públicos de água privatizados, a ação direta contra bloqueios injustos à água e à recolha de águas pluviais, enquanto o acesso ao vital elemento se entroniza como direito humano fundamental.

    Em janeiro de 2000, o povo de Cochabamba fechou a cidade em protesto contra a privatização do seu sistema municipal de água, que rapidamente duplicou e triplicou as faturas da água. Em fevereiro desse ano, o correspondente do Pacific News Service Jim Shultz divulgou a história na imprensa ocidental com os seus relatórios em primeira mão dos confrontos entre a polícia antimotim e os manifestantes na chamada “guerra pela água”, que hoje se prolonga entre os agricultores locais e os grandes fazendeiros, mas também implica novos “barões corporativos da água”, como o Goldman Sachs, o JPMorgan Chase, o Citigroup, o Grupo Carlyle e outros grandes grupos de investimento que estão a comprar direitos da água em todo mundo a um ritmo sem precedentes.

    5.- Aprofunda-se o desastre nuclear em Fukushima

    Continua por resolver a crise de 2011 do reator nuclear de Fukushima, Japão, apesar das garantias das autoridades governamentais e dos principais meios de comunicação de que a situação foi contida e, também, não obstante uma avaliação da Agência Internacional de Energia Atómica das Nações Unidas onde afirma que o Japão tem feito “progressos significativos” na limpeza do local. A verdade é que a descarga contínua no Oceano Pacífico da água de refrigeração extremamente radioativa da central nuclear destruída, já detetada ao longo da costa do Japão, tem o potencial de afetar grandes porções do Pacífico e a costa ocidental da América do Norte. Além do possível derrame de plutónio neste Oceano, a Tokyo Electric Power Company (TEPCO) admitiu recentemente que diariamente a central lança no mar grandes quantidades de água contaminada com trítio, césio e estrôncio.

    6.- O Ártico está em perigo pelo crescente impacto do metano no aquecimento global

    Os níveis de metano na atmosfera atingiram um máximo histórico nos últimos anos. Este gás de efeito de estufa é um dos principais contribuintes para o aquecimento global, bem mais destrutivo do que o dióxido de carbono. Num relatório para Truthout, o jornalista Dahr Jamail citou Paul Beckwith, professor de climatologia e meteorologia na Universidade de Ottawa: “Nas etapas iniciais, a alteração climática será abrupta para o nosso sistema climático, sem controle, conduzindo a um aumento de temperatura de 5 a 6 graus centígrados dentro de uma ou duas décadas”. Tais mudanças terão “efeitos sem precedentes” para a vida na Terra.

    O derretimento dos gelos árticos lançará o metano na atmosfera. “O que acontecer no Ártico não ficará no Ártico”, observou Beckwith. A perda de gelo ártico afeta a Terra como um todo. Por exemplo, ao diminuir a diferença de temperatura entre o Ártico e o equador aumentará a potência das correntes, que por sua vez acelerarão o derretimento do gelo ártico.

    7.- O medo da espionagem dos governos condiciona liberdade de expressão dos escritores

    A vigilância massiva lança a dúvida nos escritores de todo mundo de que os governos democráticos respeitem os seus direitos à intimidade e à liberdade de expressão, segundo um relatório de janeiro de 2015 do PEN America baseado nas respostas de 772 autores de cinquenta países. Uma reportagem de Lauren McCauley em Common Dreams além de difundir o PEN América Report deu a conhecer um relatório de julho de 2014 da União Americana das Liberdades Civis e da Human Rights Watch onde se dá conta que jornalistas e advogados dos EUA evitam cada vez mais trabalhar sobre temas potencialmente controversos devido ao medo da espionagem do governo.

    8.- A polícia dos EUA mata… e com demasiada frequência

    Em comparação com outros países capitalistas desenvolvidos, os EUA são sem dúvida diferentes quando se trata do nível de violência estatal dirigida contra as minorias, informou Richard Becker, do Liberation, em janeiro de 2015. Usando números de 2011, Becker escreveu que numa base per capita “a taxa de mortes pela polícia dos EUA foi aproximadamente 100 vezes maior do que a dos polícias ingleses em 2011”, 40 vezes mais letal que a taxa dos polícias alemães e 20 vezes mais mortífera que a dos seus colegas canadianos. Becker disse que provavelmente este não é o tipo de “excecionalismo [norte] americano” que o presidente Obama tinha em mente quando se dirigiu aos cadetes graduados de West Point em maio de 2014.

    9.- Pobres recebem menos cobertura dos media do que os multimilionários

    Em junho de 2014, a Equidade e Exatidão na Informação (FAIR, na sigla em inglês) publicou um estudo onde mostra que a ABC World News, a CBS Evening News e a NBC Nightly News dão mais cobertura mediática aos 482 multimilionários dos EUA do que aos 50 milhões de pessoas que hoje vivem na pobreza. Além disso, transmitem quase quatro vezes mais histórias que incluem o termo “multimilionário” do que notícias utilizando vocábulos como “pessoas sem casa” ou “bem-estar”.

    10.- A Costa Rica avança na energia renovável

    Em 75 dias consecutivos dos primeiros meses de 2015, a Costa Rica não queimou nenhum combustível fóssil para gerar eletricidade. Graças às fortes chuvas atribuídas às alterações climáticas, as centrais hidroelétricas geraram quase a totalidade da eletricidade do país, que juntamente com os recursos geotérmicos, o vento e as fontes de energia solar anulam a dependência de fontes fósseis como carvão e petróleo.

    Um relatório de Myles Gough em Science Alert indica que os primeiros setores da Costa Rica são o turismo e a agricultura, que requerem pouca energia, em comparação com extração mineira ou a indústria. A nação também tem características topográficas (incluindo vulcões) que facilitam a produção de energia renovável. O problema pode colocar-se perante eventuais secas originadas pelas alterações climáticas.

    Ernesto Carmona é jornalista, escritor chileno e jurado internacional do Project Censored

    Original: Proyecto Censurado

    Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

  • O novo mundo pós-TPP

    O novo mundo pós-TPP

    O Tratado Transpacífico (TPP) regulará, por exemplo, o comércio de remédios, permitindo a expansão dos monopólios de medicamentos patenteados, o que acabaria com os genéricos. Os EUA estão a exigir mecanismos similares no tratado transatlântico com a União Europeia (TTIP)

    Os sistemas de resolução de controvérsias entre investidores e os Estados, previstos no TPP e no TTIP, impõem a obrigação de compensar os investidores pelas perdas dos benefícios esperados e poderia ser invocados até mesmo quando as regras não são discriminatórias e os benefícios são obtidos causando danos à sociedade
    Os sistemas de resolução de controvérsias entre investidores e os Estados, previstos no TPP e no TTIP, impõem a obrigação de compensar os investidores pelas perdas dos benefícios esperados e poderia ser invocados até mesmo quando as regras não são discriminatórias e os benefícios são obtidos causando danos à sociedade

    Os negociadores e ministros dos Estados Unidos e de outros onze países do Pacífico, se reúnem em Atlanta num esforço para decidir os detalhes do novo Trans-Pacific Partnership (Tratado Trans-Pacífico, cuja sigla em inglês é TPP), e é necessário uma análise sóbria do seu conteúdo. O maior acordo de comércio e investimento regional da história não é o que parece.

    Muito se vem falando sobre a importância do TPP para o “livre comércio”. Na verdade, trata-se de um acordo para administrar as relações comerciais e os investimentos dos seus membros. E para fazê-lo em nome dos grupos de pressão empresariais mais poderosos de cada país. Que não nos equivoquemos: é evidente, pela natureza das principais questões pendentes, que o TPP não tem nada a ver com o “livre” comércio.

    A Nova Zelândia ameaçou retirar-se do acordo pela maneira com que o Canadá e os Estados Unidos querem controlar o comércio de produtos lácteos. A Austrália não está contente com a forma em que os Estados Unidos e o México pretendem regular o comércio de açúcar. Os Estados Unidos não estão de acordo com a forma em que o Japão quer estabelecer o comércio de arroz. Essas indústrias são apoiadas pelos blocos empresariais mais importantes nos seus respetivos países. Logo, esses temas são somente a ponta do iceberg de um problema mais profundo: como o TPP vai impor uma agenda que, na verdade, atenta contra o livre comércio.

    Para começar, é preciso tomar em conta os efeitos de um acordo que amplia os direitos de propriedade intelectual das grandes companhias farmacêuticas, segundo o que se conhece através da divulgação do texto das negociações. A investigação económica demonstra claramente que tais direitos de propriedade intelectual não ajudam a promover mais investigações, no melhor dos casos. Pelo contrário, quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos invalidou a patente da empresa Myriad sobre o gene BRCA, produziu-se uma explosão de inovações, que depois se tornaram melhores provas, e menos caras. Efetivamente, as disposições do TPP restringirão a competição aberta e aumentarão os preços para os consumidores nos Estados Unidos e no mundo inteiro, o que significaria um obstáculo para o livre comércio.

    O TPP regulará o comércio de produtos farmacêuticos através de uma série de mudanças de regras aparentemente compreensíveis sobre temas como “a vinculação de patentes”, a “exclusividade dos dados”, e dados “biométricos”. O resultado real é que se permitirá às empresas farmacêuticas, às vezes por tempo indefinido, a expansão dos seus monopólios sobre os medicamentos patenteados, a exclusão de medicamentos genéricos mais baratos, além de proibir os concorrentes “biossimilares” de lançar novos medicamentos durante anos. É assim que o TPP regulará o comércio da indústria farmacêutica, caso os Estados Unidos façam prevalecer os seus interesses.

    Da mesma forma, deve-se considerar como os Estados Unidos esperam utilizar o TPP para regular o comércio da indústria do tabaco. Durante décadas, as empresas de cigarro norte-americanas utilizaram mecanismos de defesa para os investimentos estrangeiros criados por acordos similares ao TPP, e, através deles, lutaram contra as regulações destinadas a travar o flagelo para a saúde pública causado pelo consumo de cigarros. Sob estes sistemas de resolução de controvérsias entre investidores e os Estados (ISDS), os investidores estrangeiros adquirem novos direitos para levar os governos nacionais perante mecanismos de arbitragem privados, quando contrariarem os regulamentos que considerem uma ameaça para a rentabilidade esperada por seus investimentos.

    Os interesses empresariais internacionais consideram os ISDS imprescindíveis para “proteger os direitos de propriedade onde não existe o império da lei e tribunais seguros”. Mas esse argumento não tem sentido. Os Estados Unidos estão a exigir o mesmo mecanismo num megaacordo similar com a União Europeia, a Associação Transatlântica para o Comércio e o Investimento (cuja sigla em inglês é TTIP), apesar de que não há dúvidas sobre a qualidade dos sistemas jurídicos e dos tribunais da Europa.

    Todo o mundo está de acordo que os investidores – qualquer que seja o seu domicílio fiscal – merecem ser protegidos contra as expropriações ou regulações discriminatórias. Mas os ISDS vão muito além disso: impõem a obrigação de compensar os investidores pelas perdas dos benefícios esperados e poderia ser invocados até mesmo quando as regras não são discriminatórias e os benefícios são obtidos causando danos à sociedade.

    Atualmente, a Philip Morris International levou aos tribunais a Austrália e o Uruguai (este segundo não é parceiro do TPP) por exigir que os cigarros tragam etiquetas alertando sobre os perigos do produto para a saúde. Há alguns anos, o Canadá desistiu de introduzir uma etiqueta de advertência igualmente eficaz, sob a ameaça de um processo similar.

    Devido a todo o segredo que envolve as negociações do TPP, não está claro se o tabaco será excluído parcialmente dos ISDS. De qualquer forma, a questão mais complexa ainda é o facto de que essas disposições fazem com que seja difícil aos governos exercer as suas funções básicas: a proteção da saúde e da segurança dos seus cidadãos, garantir a estabilidade económica e a proteção do meio ambiente.

    Imaginem o que teria acontecido se essas disposições estivessem em vigor quando se descobriu os efeitos letais do amianto. Em vez de fechar as fábricas e obrigar os fabricantes a indemnizar os prejudicados, segundo os critérios dos ISDS, os governos teriam que indemnizar os fabricantes por não matar os seus cidadãos. Os contribuintes teriam que pagar duas vezes: primeiro pelos danos causados pelo amianto à sua saúde, depois para compensar os fabricantes pelos lucros perdidos quando o governo teve que intervir para regular um produto perigoso.

    Não deve surpreender ninguém que os acordos internacionais dos Estados Unidos regulem o comércio, em vez de liberalizá-lo. É o que acontece quando o processo de decisão sobre as distintas políticas se torna exclusivo dos interesses empresariais e restrito aos representantes eleitos pelo povo no Congresso dos Estados Unidos.

    Artigo de Joseph Stiglitz e Adam Hersh.

    Tradução: Victor Farinelli para Carta Maior

  • Do privado ao Comum, práticas de uma reforma urbana radical

    Do privado ao Comum, práticas de uma reforma urbana radical

    Entrevista especial com Joviano Gabriel Maia Mayer

    “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades”, frisa o advogado.

    foto1Ao contrário do que se supõe à primeira vista, maioria não se opõe à minoria (há aqui apenas uma diferença de grau). Maioria se opõe à Multidão, no sentido de totalidade das singularidades. No espaço urbano, as disputas biopolíticas que se dão nas cidades tensionam um modo de ser análogo a uma espécie de fábrica pós-fordista que produz uma única coisa de inúmeras formas: o Comum. “Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade. Assim, é nessa fábrica pós-fordista, esparramada pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva se conforma cada vez mais como uma intelectualidade da multidão”, explica Joviano Gabriel Maia Mayer, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

    “Se, por um lado, o poder instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio do medo e das paixões tristes, por outro, os(as) ativistas de todo o mundo reconhecem a dimensão política da felicidade e das paixões alegres para potencializar as resistências e agregar mais pessoas”, provoca o entrevistado. Ele coloca que o binômio Estado-Iniciativa Privada só é capaz de oferecer políticas públicas verticalizadas e rígidas, como o Minha Casa Minha Vida. “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades”, completa.

    Joviano Gabriel Maia Mayer possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG. Atualmente é sócio fundador do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular.

    Mayer esteve no IHU nesta quarta-feira, 07-10, ministrando a conferência Por uma teoria e uma prática radical de reforma urbana: o caso BH em comum, que integra o evento 2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, que segue com suas atividades até o dia 05-11-2015. A próxima atividade será a conferência Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, com o professor Mário Leal Lahorgue, que ocorrerá no dia 22-10-2015, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas aqui.

    Confira a entrevista:

    IHU On-Line – De que maneira as cidades se constituem enquanto espaços de produção do Comum?

    foto2Joviano Gabriel Maia Mayer – As apostas lançadas no tabuleiro da política que tomam o comum enquanto horizonte de enfrentamento ao capital e construção de novos modos de existir se amparam fundamentalmente na produção social contemporânea, nos marcos do capitalismo pós-fordista neoliberal que toma as cidades como lócus (e objeto) privilegiado à acumulação de riqueza. Por outro lado, o que caracteriza o capitalismo pós-fordista do nosso tempo é uma estrutura produtiva dinâmica e flexível, disseminada em rede e fundada sobre a cooperação das singularidades, em que a produção imaterial tende progressivamente a suplantar a hegemonia da produção industrial: ideias, informações, conhecimentos, formas de comunicação, relações sociais, etc., como “fonte primordial de riqueza”, tendo a produção de subjetividade a primazia sobre qualquer outro produto. Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade. Assim, é nessa fábrica pós-fordista, esparramada pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva se conforma cada vez mais como uma intelectualidade da multidão.

    Metrópole biopolítica

    O que seriam os piquetes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST nas principais avenidas de São Paulo se não a investida política em face da produção/circulação de mercadorias materiais/imateriais nessa gigantesca fábrica biopolítica? Como diz Peter Pelbart, [1] vivemos num “momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer na sua máxima força de afetação, e de maneira imanente, dado o novo contexto produtivo e biopolítico atual” (PELBART, 2011:29). Posto isso, fica mais claro como rastrear e cartografar a produção do comum no âmbito da metrópole biopolítica almeja alcançar pistas, possíveis indicações de como, “no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade, surgem novas modalidades de agregar, de trabalhar, de criar sentido, de inventar dispositivos de valorização e de autovalorização” (PELBART, 2011:23), fora do comando exercido pelo Estado-capital e de modo antagônico aos valores capitalísticos por ele encampados e disseminados na conformação das subjetividades, seja na escola, seja via concessões públicas do espectro rádio-televisivo ou via dispositivos móveis parcelados em 24 meses no cartão de crédito.

    Desse modo, já não cabem formulações e projeções utópicas, ou seja, prescindimos de construtos imaginativos apartados da realidade para nos fazer caminhar rumo à sociedade pós-capitalista, visto que o comum se confirma no horizonte da metrópole biopolítica exatamente porque o presente traz consigo uma produção que é comum; em outras palavras, não se trata de utopia, porque a aposta em torno do comum parte do campo de imanência, da dimensão constituinte da produção biopolítica. De igual modo, a felicidade capaz de nos mover é mais aquela que hoje experienciamos nas resistências positivas, mais do que qualquer outra situada no lugar da utopia, ou melhor, no não-lugar. Basta observar as formas de produção, organização e expressão dos movimentos multitudinários na atualidade para perceber a importância dada à busca da felicidade e à experimentação de outros modos de vida no seio das lutas. Se, por um lado, o poder instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio do medo e das paixões tristes, por outro, os(as) ativistas de todo o mundo reconhecem a dimensão política da felicidade e das paixões alegres para potencializar as resistências e agregar mais pessoas.

    IHU On-Line – Como os movimentos de resistência da Multidão tensionam a lógica hegemônica de pensar o espaço urbano?


    Joviano Gabriel Maia Mayer –
    Mais do que a lógica hegemônica de pensar o espaço urbano, os movimentos multitudinários tensionam a própria lógica de produzir o espaço urbano. As resistências positivas, espaços performáticos de combatividade, afetividade e subjetividade, tomaram de assalto as metrópoles como territórios privilegiados de disputa, sobretudo no tocante ao enfrentamento a grandes projetos urbanos ancorados no paradigma da cidade-empresa do planejamento estratégico e das parcerias público-privadas. Nos marcos do neoliberalismo, cada vez mais as resistências se expressam como a defesa de bens comuns frente ao avanço da acumulação por espoliação (HARVEY, 2005), perpetrada ora pelo Estado, ora diretamente pelo capital, mas quase sempre pelo Estado-capital, unidos em simbiose para a captura do comum. Por outro lado, as ações dos movimentos de resistência da multidão potencializam na cidade a conformação de contrapoderes, redes e conexões subversivas, baseadas na comunicação, cooperação e criatividade, em contraposição à cidade neoliberal das parcerias público-privadas. Do Parque Gezi [2] na Turquia, ao parque Augusta [3] em São Paulo; da praça Tahrir [4] no Egito à Puerta del Sol [5] em Madrid, do cais do porto Estelita [6] no Recife à praça de concreto transformada em “Praia da Estação” [7], em Belo Horizonte, em todos esses processos é possível captar um desejo compartilhado de democracia real frente à investida do Estado-capital a despeito dos interesses da coletividade.

    Democracia Real

    Democracia real que se contrapõe à “democracia direta do capital” característica do paradigma da cidade-empresa. Ademais, a própria complexidade do urbano, enquanto sede privilegiada do poder político e econômico, onde se concentra tudo aquilo que faz a sociedade contemporânea em todos os domínios, especialmente nas metrópoles, cobra a cooperação transdisciplinar como mecanismo indispensável à compreensão dos fenômenos socioespaciais interligados com sua dimensão subjetiva. A “lógica do caos” que acompanha aquilo que Guattari (1992) denominou “cidade subjetiva” exige o uso de métodos de pesquisa que assumam o desafio da complexidade urbana, como é o caso da copesquisa cartográfica, método assumido pelo grupo de pesquisa Indisciplinar UFMG, do qual faço parte.

    As lutas multitudinárias nos inspiram a pensar como a inteligência coletiva, ou melhor, como a inteligência de enxame da multidão “pode inventar e construir uma sociedade na qual quem governe seja a sociedade em rede, a riqueza coletiva da cooperação, a potência do comum” (HERREROS e RODRÍGUEZ, 2012:113). Noutros termos, as práticas, estratégias e objetivos das lutas dos movimentos da multidão, embora diferentes, são capazes de se conectar, se combinar e, quiçá, constituir ações e projetos plurais compartilhados. Na atualidade ganha destaque o desejo ambicioso da multidão metropolitana de produção e defesa do comum urbano, partindo da expressão das múltiplas singularidades, sob as bases da democracia real, para além da gestão democrática da cidade concernente às intervenções no espaço. A cidade-empresa do paradigma neoliberal de planejamento estratégico é, por sua vez, a expressão mais bem acabada da ofensiva público-privada contra o comum. Talvez por isso o direito ao comum seja, em última instância, um possível horizonte de convergência das forças vivas que enfrentam o Estado-capital na metrópole biopolítica. Acrescente-se ainda que o comum enquanto princípio político, ao ser criticamente confrontado com a realidade das resistências, das organizações e movimentos, pode contribuir para dar sentido, orientar as práticas de produção, gestão e deliberação, além de potencializar e conectar em rede uma pluralidade de lutas e práticas alternativas antagônicas à cidade-empresa.

    IHU On-Line – De que forma os processos históricos, a partir do século XVIII, foram transformando as cidades, que eram espaços de refúgio e liberdade, em ambientes de acumulação capitalista?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – O capitalismo se formou fora dos muros das cidades. Cabe aqui um breve retrospecto. De fato, a cidade criou as condições de expansão da grande indústria, concentrando a mão de obra, o mercado consumidor, os capitais acumulados, a infraestrutura e o poder político. Simultaneamente, a grande indústria levou ao crescimento da cidade, revolucionando a organização do espaço em nível planetário. A natureza, antes dominante, passou a ser dominada por meio de técnicas cada vez mais sofisticadas. Entretanto, até a conquista do poder político pela burguesia revolucionária europeia, durante séculos a cidade foi o refúgio contra a opressão feudal, o destino prioritário daqueles que buscavam a felicidade, a liberdade e a justiça (PAULA, 2006).

    A partir do século XVIII, a cidade se tornou espaço privilegiado da reprodução do capital, abrigando a grande indústria em prejuízo das corporações de ofício. Durante esse percurso a própria estrutura urbana passou a ser produzida e reproduzida sob a lógica da acumulação capitalista, manifestando a cidade não apenas como espaço de reprodução do capital, mas também como objeto desta reprodução, determinada, em grande medida, pela expansão do capital imobiliário, elevado à condição de importante indutor do crescimento econômico. A cidade, gradativamente, reproduziu as contradições sistêmicas da nova ordem social, mercantilizou-se para ser vendida aos pedaços, um produto e não mais uma obra genuinamente humana. O privado se revoltou contra o público, e a festa, antes na rua, espaço comum, torna-se fechada, privada.

    A cidade se tornou assim, ao longo do desenvolvimento do capitalismo, um grande negócio, mais do que isso, tornou-se a nova fábrica do capitalismo contemporâneo, “a usina de geração do mundo, fabrica mundi, usina biopolítica de que precisa o capitalismo para vitalizar-se” (CAVA, 2015), plataforma fundamental de acumulação do capital global, espaço privilegiado de controle político, econômico, cultural, etc.

    IHU On-Line – De que maneira o espaço urbano se transformou em um grande laboratório das forças sociais? Quais são as potencialidades desses movimentos de resistência?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – A cidade, especialmente na sua forma metropolitana, agregou no tempo e no espaço as condições objetivas e subjetivas para a libertação da multidão frente ao domínio capitalista imperial. No final do século XIX, Engels [8] já afirmava que somente o proletariado “criado pela indústria moderna e concentrado nas grandes cidades, libertado de todas as cadeias tradicionais, inclusive das que o ligavam à terra, é capaz de realizar a grande revolução social” (ENGELS, 1988). Nesse sentido, a nostalgia romântica da volta ao campo do velho e bom camponês, agora incorporado ao espaço urbano e quebrado em seus tradicionais valores, representaria “atrasar o relógio da história” (idem).

    O mesmo raciocínio agora vale para a multidão ante o proletariado descrito por Engels, pois a biopotência criativa da multidão, na qual reside a possibilidade da produção do comum, não deixa margem a nenhum tipo de nostalgia ou utopia com relação às ilhas isoladas pelo oceano. Com todos os seus graves problemas, contradições e mazelas, é a cidade que oferece as maiores possibilidades emancipatórias, pois, dentre outras inúmeras razões, concentra no mesmo território, conectados em redes comunicativas e colaborativas cada vez mais amplas, os(as) agentes da transformação — trabalhadoras, trabalhadores, e todos os que vivem sob o domínio do capital —, o fluxo de informações, a produção artístico-cultural, os avanços tecnológicos, os encontros afetivos, a produção de subjetividade, o poder político, etc. Desse modo, avançar na construção e no compartilhamento dos princípios que orientam as práticas dos movimentos de resistência é importante na medida em que “podem criar o andaime sobre o qual, no caso de uma ruptura social radical, uma nova sociedade possa ser construída” (HARDT e NEGRI, 2014:138).

    IHU On-Line – Como o conceito capitalista de pensar o espaço urbano se converte em atomicismo e em uma espécie de antiurbanismo?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – É interessante notar como a configuração da cidade, em princípio, indica a organização da população em torno de uma vida comunitária — casas próximas umas das outras, espaços de convivência, equipamentos sociais compartilhados, sistema público de comunicação e transporte. Entretanto, o que sobressai, contemporaneamente, é o espaço esmigalhado vendido aos pedaços, a segregação social e racial, o isolamento e o atomicismo. Como dito anteriormente, o capitalismo corrompeu a cidade, fez do solo uma mercadoria valiosa e escassa, protegida pelo instituto sagrado da propriedade imóvel e, paralelamente, criou uma ideologia antiurbana capaz de fazer ruir sua construção como espaço da liberdade, do encontro e da solidariedade. No quadro urbano na atualidade, a exploração direta do(as) trabalhadores(as) se multiplica por meio de uma exploração indireta (LEFEBVRE, 2001) que se estende ao conjunto da vida cotidiana. Esta superexploração é evidenciada, por exemplo, no tempo livre do(a) trabalhador(a) gasto na autoconstrução de sua moradia, nas horas sacrificadas no longo percurso diário entre a casa e o emprego ou, ainda, na carga do trabalho doméstico invisível e não remunerado desempenhado pelas mulheres, indispensável para a reprodução da força de trabalho.

    Obscurantismo

    Em paralelo, como veementemente criticou Henri Lefebvre, [9] o urbanismo mais oculta do que revela, produz representações ideológicas e institucionais que não dão conta da realidade urbana, com suas problemáticas e práticas, de modo que “a ciência do fenômeno urbano só pode resultar da convergência de todas as ciências” (LEFEBVRE, 2008). Atualmente, entretanto, já não basta mobilizar todas as ciências já que a compreensão da realidade urbana também cobra outros saberes que não gozam necessariamente do estatuto científico.

    Multiplicidade de olhares

    Evidentemente, a investigação/intervenção sobre o território na metrópole demanda uma multiplicidade infindável de olhares, saberes e formas de expressão: da arquiteta à performer, da produtora cultural à advogada, da liderança comunitária à artista plástica, da cientista política ao morador em situação de rua. Ora, quem melhor para dizer sobre as opressões relacionadas aos processos segregatórios das cidades do que os(as) moradores(as) em situação de rua que trazem nos corpos as marcas da violência cotidiana? Quem melhor para falar sobre autoconstrução do que os(as) pobres urbanos que autoconstruíram suas casas nas favelas e ocupações, os(as) quais cunharam na história de produção das grandes cidades brasileiras essa forma autogestionada de apropriação espacial? É preciso extravasar os campos disciplinares formalmente reconhecidos pelo paradigma científico moderno, agenciando horizontalmente saberes científicos em sentido estrito com outros saberes, narrativas e formas de apreensão da realidade, subvertendo o lugar de enunciação para desafiar o pensamento ideológico hegemônico sobre o território.

    IHU On-Line – Atualmente, quais são as principais contradições do espaço urbano?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – Como dito, a afirmação do capitalismo financeiro global é acompanhada pela acentuação da centralização do capital na metrópole, impondo a ela uma determinada configuração espacial. Tal característica faz da metrópole, como condição geral de produção, o cenário peculiar das contradições próprias do capitalismo: centro e periferia, luxo e miséria, moderno e antigo, legal e ilegal, acessibilidade e exclusão, tudo isso “convivendo” no mesmo espaço metropolitano, forma estendida como condição planetária geral. A própria natureza desses antagonismos da vida metropolitana é essencial para explicar a emergência dos movimentos sociais urbanos em embate com o Estado-capital, provedor das condições necessárias à reprodução dos(as) trabalhadores(as) na cidade. Inegavelmente as manifestações de junho de 2013 no Brasil colocaram, aos movimentos sociais e aos partidos ditos de esquerda, a necessidade de aprofundar a compreensão dos mecanismos de produção e reprodução do espaço urbano, bem como a atuação dos agentes políticos e financeiros nesse campo. As rebeliões deflagradas, sobretudo pela multidão metropolitana, tiveram como pano de fundo a agudização da crise urbana, no entanto as forças políticas da chamada esquerda instituída ainda estão longe de compreender as complexidades próprias do fenômeno urbano fora do prisma estreito da contradição capital-trabalho. Também é evidente que compreender as contradições próprias da lógica de apropriação do espaço, sob os marcos do neoliberalismo, do planejamento estratégico e da cidade-empresa, é pressuposto para a compreensão da crise urbana, razão última das jornadas de junho de 2013, expressa no agravamento da mobilidade urbana e da questão habitacional, pautas centrais na atualidade.

    IHU On-Line – Quais são os principais desafios do movimento urbano na busca pelo comum?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – As transformações experimentadas no mundo do trabalho e as novas configurações da classe trabalhadora que emergiram da crise do fordismo colocaram desafios enormes às esquerdas tradicionais e especialmente à organização sindical que não está preparada para se opor de maneira ampla e contundente aos processos de acumulação por espoliação, sem contar que o neoliberalismo teve como um dos escopos principais o enfraquecimento das formas tradicionais de organização e luta do trabalho. Se, como diz Harvey, [10] na atualidade a acumulação por espoliação de fato está no primeiro plano da acumulação capitalista global, inegavelmente as lutas contra o saqueio neoliberal das nossas vidas, bens e formas de existência também ocupam hoje o primeiro plano das resistências contra o Estado-capital e, como as vidas são muitas, as lutas também são múltiplas.

    Ademais, como os métodos e as formas organizativas do mundo do trabalho são diretamente vinculados a um modo específico de viver e sentir a vida, cabe considerar as mutações operadas no mundo do trabalho que expressam, em síntese, a passagem do conceito de operário-massa para a noção de operário-social, o que se dá especialmente a partir da crise do fordismo e da emergência do chamado capitalismo cognitivo e imaterial que confere primazia à produção de subjetividades. Ocorre que a produção de subjetividade operada e determinada pelo poder instituído sempre deixa margem às resistências pela via de “dispositivos irresistíveis” (NEGRI, 2004). Entretanto, demorou muito para que as forças tradicionais de esquerda começassem a perceber o papel da subjetividade, tanto no domínio biopolítico exercido pelo Império, quanto na arena das resistências empreendidas contra o Estado-capital, as quais frequentemente trazem consigo a afirmação constituinte de outras formas de vida e relações pós-capitalistas. Se, de um lado, nos marcos do capitalismo cognitivo e imaterial, a produção de subjetividade ganha progressivamente importância na extração de mais valor (valores subjetivos agregados ao produto), por outro, a produção de novas subjetividades também se torna central para se vislumbrar qualquer ruptura com o domínio imperial e com o controle biopolítico exercido pelo Estado-capital. Porém, como diz Lazzarato, [11] estamos num momento em que “os métodos para a produção de subjetividade que brotaram do leninismo (o partido, a concepção da classe operária como vanguarda, o ‘revolucionário profissional’) não são mais relevantes para as composições de classes atuais” (LAZZARATO, 2014:19). Isso graças à perda de centralidade do proletariado (representado por um partido de vanguarda) como o sujeito revolucionário por excelência, especialmente em face da crise do fordismo e a nova configuração do trabalho imaterial que modificou profundamente a natureza e a composição da classe trabalhadora mundial.

    Horizontalidade

    Há muitos outros desafios para além daqueles inerentes às mudanças operadas no mundo do trabalho. Dentre eles a construção de processos autônomos e horizontais de produção coletiva, formação política e ação direta que canalizem as insatisfações dos(as) citadinos(as) e que expressem a construção do comum em oposição ao Estado-capital. Porém, lamentavelmente, as forças políticas construídas pela esquerda brasileira no último quarto do século passado, especialmente os partidos políticos e as centrais sindicais, mostraram-se inadequados como ferramentas políticas aptas a dar vazão à força multitudinária que eclodiu nas ruas em junho. As rebeliões urbanas de 2013 colocam às organizações tradicionais de esquerda a necessidade de rever velhas práticas políticas, reformular concepções tidas como verdades absolutas e ter humildade para se colocar lado a lado, horizontalmente, com a multidão que abalou as estruturas do poder instituído. Quem sabe assim, partindo da compreensão de que essa multidão metropolitana (que não se reduz à classe operária e seus aparelhos de representação) pode se revelar como potência constituinte frente ao poder instituído quando seus múltiplos desejos se confluem, essa velha esquerda possa contribuir na edificação de uma alternativa que confronte o controle biopolítico do Estado-capital a partir da produção do comum. Nas maiores metrópoles brasileiras atualmente, grandes projetos urbanos concebidos via parceria público-privada à revelia da população chamam a atenção como importantes trincheiras de organização multitudinária, mobilização política, constituição do comum e produção de novas subjetividades. Não somente pela amplitude desses projetos que muitas vezes afetam a vida de parte considerável da população, mas também por serem a expressão mais bem acabada da lógica de gerenciamento empresarial do espaço urbano.

    IHU On-Line – Frente os desafios habitacionais de nosso tempo, que estratégias são mais condizentes com a constituição do poder popular? Por que as ocupações se constituem em uma forma não somente de luta por moradia, mas também política?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – No Brasil, a questão habitacional é uma das principais questões modernas não resolvidas pela modernidade, o que ainda torna a luta pela moradia central na atuação dos movimentos urbanos, os quais recorrentemente utilizam as ocupações de imóveis ociosos como mecanismo legítimo de pressão política e efetivação do direito de morar. A legitimidade da retomada organizada ou espontânea de vazios urbanos inutilizados encontra guarida no próprio ordenamento jurídico nacional, sobretudo na função social da propriedade urbana, cumulada com o princípio democrático que pressupõe o direito de lutar pela efetivação dos direitos e o direito constitucional à moradia adequada que também goza de proteção no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é país signatário.

    Para além do objetivo imediato de conquista da moradia, a retomada de vazios urbanos pelos sem-teto implica a experimentação de novas formas de apropriação do espaço, nas quais princípios como a cooperação, o coletivismo ou a democracia real ganham conteúdo subversivo sob certas condições. É nesse domínio que a multidão (também) se revela como contrapoder: resistência, insurgência e poder constituinte, conjuntamente articulados, dinamicamente imbricados, ora mais, ora menos. Essas três dimensões do contrapoder, organicamente coadunadas, também podem ser identificadas na luta das ocupações de sem-teto. Resistência contra o desalojamento, liminarmente concedido, tão logo divulgada e denunciada a violação coletiva da cerca que protegia a ilegalidade do descumprimento da função social. Poder insurgente, por sua vez, consubstanciado na quebra do estatuto de propriedade como instituição protegida pelo Estado (constituído). Força constituinte conformada pela multidão na defesa e construção do comum urbano, cuja potência pode criar territorialidades contra-hegemônicas, novas sociabilidades, modos de vida, experimentações e narrativas insurgentes, em que pese o poder simbólico e material da cidade-empresa. Especialmente na última década e, ainda com maior intensidade, após as jornadas de junho de 2013, as ocupações organizadas por movimentos sociais se multiplicam nas metrópoles brasileiras, não raro garantindo o assentamento de milhares de famílias pobres que não podem aceder à aquisição da moradia, como é o caso de Belo Horizonte, em que grandes ocupações têm possibilitado moradia digna a milhares de famílias, a exemplo das ocupações da Izidora, [12] Dandara [13] etc.

    IHU On-Line – Que novas formas de convivência e, portanto, biopolíticas emergem com as ocupações nas Metrópoles?

    Joviano Gabriel Maia Mayer – Nos territórios recuperados pelos sem-teto, a multidão se explicita como carne no fazer comum, organismo multiforme no qual não é possível diferenciar propriamente o corpóreo e o intelectual, a práxis e a teoria, a experiência concreta e o projeto encarnado. Enquanto o Estado e a iniciativa privada só têm o Minha Casa Minha Vida a oferecer, verticalmente, como política habitacional, com unidades rígidas, projetos padronizados e conflitantes com as culturas construtivas dos(as) pobres urbanos, as ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades. A autoconstrução nas ocupações urbanas é uma modalidade aberta de produção habitacional que respeita as práticas culturais e as singularidades dos pobres urbanos. Cabe lembrar que as ocupações e outras práticas de autoconstrução de moradias fazem parte da história de formação, expansão e esgarçamento das grandes cidades brasileiras, não há qualquer novidade em pobres ocupando imóveis ociosos para autoconstruir suas moradias e experimentar nos territórios aí constituídos formas de vida, produção, convivência e sociabilidade singulares. Como frequentemente afirmam os movimentos, a luta das ocupações de moradia não se reduz apenas à defesa do direito à moradia, não raro ainda confundido com o direito de propriedade, mas também dizem respeito ao direito à cidade.
    “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras”

    Resistência

    Isso também implica a defesa pelas famílias sem teto do seu modo de viver e ocupar o espaço na cidade, com autonomia para determinar, por exemplo, a tipologia e o tempo de construção da moradia, tempo quase sempre estendido e condicionado às condições econômicas de cada família, mas por outro lado sem o risco de retomada compulsória pela instituição financeira credora ao longo das décadas do financiamento imobiliário contratado. Nas ocupações, o risco do despejo por parte do Estado, por sua vez, é contornado pela fé coletiva no êxito da resistência organizada em rede para a defesa do território comum. Em Belo Horizonte, desde 2008, nenhuma ocupação urbana organizada pelos movimentos foi despejada! Dentre os desafios colocados aos movimentos urbanos e às novas ocupações de sem teto, destacamos a necessidade de se superar o limite estreito da propriedade privada dentro das próprias ocupações, com a demarcação de lotes individuais, para experimentar formas coletivas inovadoras de apropriação espacial, bem como avançar na dimensão constituinte da resistência, com a produção de equipamentos e práticas coletivas (econômicas, políticas e culturais) que aprofundem a produção de novas subjetividades nessas ocupações. Para tanto, talvez o primeiro passo seja conceber tais ocupações como espaços comuns de resistência biopotente e exercício democrático na metrópole contemporânea, sujeitos indispensáveis à construção de uma nova sociabilidade urbana.

    *Esta entrevista foi publicada originalmente na Revista IHU On-Line, Nº. 474, de 05/10/2015

    Notas:

    [1] Peter Pal Pelbart: graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, e em Filosofia pela Sorbonne, em Paris, é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP com a dissertação Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão (2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2009). Cursou doutorado na USP e é livre docente pela PUCSP. Entre outras obras, é autor de Vida capital. Ensaios de biopolítica (São Paulo: Iluminuras, 2003) e O tempo não reconciliado (São Paulo: Perspectiva, 1998). Leciona na PUCSP. (Nota da IHU On-Line)

    [2] Parque Taksim Gezi: é um parque urbano situado na Praça Taksim, no distrito de Beyoğlu, em Istambul, na Turquia. É um dos parques de menor tamanho da cidade. Em maio de 2013, o anúncio governamental de um plano que pretende demolir o parque para dar lugar à reconstrução do histórico Quartel Militar Taksim (demolido em 1940) e, também, à construção de um centro comercial, desencadeou uma onda de protestos na Turquia. (Nota da IHU On-Line)

    [3] Parque Augusta: é uma área de 24 mil metros quadrados, delimitada pelas Ruas Augusta, Marquês de Paranaguá, Caio Prado, no centro da Cidade De São Paulo. É uma propriedade privada, mas com áreas registradas em cartório como públicas – 80% dela não pode, por lei, ser alterada – e que uma parcela significativa da população paulistana quer ver transformada em parque público sem edificações em seu interior. (Nota da IHU On-Line)

    [4] Praça Tahrir cujo equivalente latino é “Praça da Libertação”): é a maior praça pública no centro de Cairo, Egito. Originalmente chamada Praça de Ismail, em honra a Ismail Paxá, vice-rei (quediva) do Egito no século XIX, que comissionou o projeto arquitetônico do novo distrito central da capital egípcia na década de 1860. Depois da Revolução Egípcia de 1952, quando o Egito deixou de ser uma monarquia constitucional e tornou-se uma república, a praça passou a se chamar midan al-tahrir, praça da libertação. (Nota da IHU On-Line)

    [5] Puerta del Sol: é um dos locais mais famosos e concorridos da cidade espanhola de Madrid. É neste local que se encontra desde 1950, o quilómetro zero das estradas espanholas.Em 2011 a praça foi ocupada por integrantes do Movimento 15M que protestavam por uma democracia mais participativa na Espanha. (Nota da IHU On-Line)

    [6] Ocupe Estelita: é um movimento social que se contrapõe à construação de 12 torres de uso residencial e comercial no Cais José Estelita, em Recife, Pernambunco. O local o abrigava o pátio ferroviário onde foi inaugurada a segunda linha ferroviária urbana do Brasil, em 1859, por Dom Pedro. (Nota da IHU On-Line)

    [7] Praia da Estação: trata-se de um movimento que surgiu em 2010 como uma reação a um decreto da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, um dos pontos turísticos mais antigos da capital mineira. (Nota da IHU On-Line)

    [8] Friedrich Engels (1820-1895): filósofo alemão que, junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo científico ou comunismo. Ele foi co-autor de diversas obras com Marx, e entre as mais conhecidas destacam-se o Manifesto Comunista e O Capital. Grande companheiro intelectual de Karl Marx, escreveu livros de profunda análise social. (Nota da IHU On-Line)

    [9] Henri Lefebvre (1901—1991): foi um filósofo marxista e sociólogo francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, onde se graduou em 1920. (Nota da IHU On-Line)

    [10] David Harvey (1935): é um geógrafo marxista britânico, formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana. (Nota da IHU On-Line)

    [11] Maurizio Lazzarato: Sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. É um dos fundadores da revista Multitudes. O IHU já publicou uma série de textos e entrevistas com Maurizio Lazzarato entre elas: O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte. Entrevista com Maurizio Lazzarato publicada na IHU On-Line, edição 468, de 29-06-2015, disponível em http://bit.ly/1WmGF9v; Subverter a máquina da dívida infinita. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 02-06-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1N0i2JB; “Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo”. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 05-01-2011, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejolW; “Os críticos do Bolsa Família deveriam ler Foucault…” Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 15-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GLy9d9; Capitalismo cognitivo e trabalho imaterial. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejOsv; As Revoluções do Capitalismo. Um novo livro de Maurizio Lazzarato. Reportagem publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GXuMlq. (Nota da IHU On-Line)

    [12] Resiste Izidora: batizada de Izidora, a ocupação mineira é formada por 3 vilas interligadas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) e tem cerca de 20 mil pessoas a mais que a paulista, quase todas morando em casas de alvenaria. A enorme área da Mata do Izidoro, na região norte da capital mineira. (Nota da IHU On-Line)

    [13] Ocupação Dandara: ocupação urbana na região norte de BH- MG que conta com mais de 1000 famílias organizadas há mais de 5 anos na luta por uma vida mais digna. (Nota da IHU On-Line)

    Referências

    CAVA, Bruno. Metrópole como usina biopolítica. O trabalho da metrópole: transformações biopolíticas e a virada do comum na conjuntura brasileira. In Revista on line do Instituto Humanitas Unisinos. Ano XV, nº. 464, 2015. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php… d=5909&secao=464. Acesso em 04 de julho de 2015.

    ENGELS, Friederich. A questão da habitação. São Paulo: Acadêmica, 1988.

    HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração – Isso não é um manifesto. São Paulo: n-1 edições, 2014.

    HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 2ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

    HERREROS, Tomás; e RODRÍGUEZ, Adriá. Revolução 2.0: direitos emergentes e reinvenção da democracia. In: Revolução 2.0 e a crise do capitalismo global. COCCO, Giuseppe e ALBAGLI, Sarita (Org.). Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2012.

    LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo, Editora n-1, 2014.

    LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. 2ª ed., Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.

    LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

    NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da multidão. In revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Comunicação, nº. 19-20, 2004.

    PAULA, João Antônio de. As cidades e A cidade e a universidade. In: As cidades da cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

    PELBART, P. P. Vida capital. Ensaios de biopolítica. Ed. Iluminuras: São Paulo, 1ª Ed., 2ª reimpr., 2011.

    Fonte: IHU, quinta-feira, 8 de outubro de 2015