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  • Guilherme Boulos: “Não há saída mágica, é preciso retomar as ruas e o trabalho de base”

    Guilherme Boulos: “Não há saída mágica, é preciso retomar as ruas e o trabalho de base”

    Guilherme Boulos
    Guilherme Boulos

    Há um dilema na esquerda brasileira em meio a uma conjuntura negativa em todos os âmbitos. Em meio ao desmoronamento do projeto de poder lulista, que aglutinou durante décadas amplos setores da esquerda, vemos o avanço do capitalismo financeiro sobre os direitos trabalhistas, expresso também pela atual investida contra a previdência, o seguro-desemprego e a institucionalizada lei das terceirizações sem limites.

    “O caminho para a retomada de um novo ciclo de mobilizações é o aprofundamento e a radicalização do trabalho de base. É o que nós acreditamos e vemos a Frente Povo Sem Medo como um instrumento para atingir esse objetivo”, afirma Guilherme Boulos, em entrevista concedida ao Correio da Cidadania. Para ele, é preciso se defender do avanço conservador, mas também criticar e se opor às políticas de austeridade.

    Nesse sentido, diversos esforços têm sido feitos. No âmbito do lulismo, foi formada a Frente Brasil Popular, com a militância governista à frente e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como grande figura, ladeado por nomes como João Pedro Stédile, líder do MST. É inevitável associá-la à disputa presidencial de 2018. Apesar disso, vê-se um esforço por parte da militância em barrar retrocessos sociais promovidos pelo líderes do Congresso.

    “A saída para a crise não pode ser a proposta pela direita. Tampouco são essas políticas de austeridade, que põem a conta nas costas dos trabalhadores. Precisamos de uma saída à esquerda, taxar os ricos e fazer o enfrentamento necessário para que tenhamos um projeto popular”, afirmou.

    Guilherme Boulos, além de ressaltar a urgência de se promover o trabalho de base, faz uma breve análise sobre sua decadência como prática da esquerda e dos movimentos sociais, apesar de sua importância para uma retomada das ruas. “O preço de ter deixado o trabalho de base para centrar-se na disputa institucional foi altíssimo para a esquerda brasileira. E não tem espaço vazio na política. Esse espaço foi ocupado, hoje, principalmente pelas igrejas pentecostais e neopentecostais. Elas fazem trabalho de base”, pontuou.

    Confira abaixo a entrevista completa.

    Correio da Cidadania: É possível defender reformas com viés popular e ao mesmo tempo demonstrar apoio, ainda que crítico, ao governo federal e sua série de políticas de austeridade?

    Guilherme Boulos: A nossa postura não é de apoio ao governo. É uma postura de defesa das reformas populares e de crítica às políticas de austeridade. Isso precisa ficar claro. Por outro lado, nós não nos misturamos com aqueles que defendem a derrubada do governo, acabando por construir uma saída ainda mais à direita do que a colocada hoje no país. Nós não acreditamos que a construção com o Michel Temer e o PSDB possa ser boa para os brasileiros. Por outro lado, isso não nos faz defender o governo. É importante dizer isso. Se transformarem a discussão em “pão-pão, queijo-queijo” não conseguimos fazer uma discussão séria. O cenário é complexo e precisamos de posições que o respondam.

    O que estamos construindo na Frente Povo Sem Medo (e também reflete a posição do MTST), é a necessidade de um enfrentamento às políticas de austeridade do governo. Ao mesmo tempo, fazer enfrentamento a essa ofensiva conservadora que ocorre no país e não tem só o governo como parte, mas também setores da direita histórica brasileira, encastelados no parlamento.

    Uma elite típica da Casa Grande, que promove um discurso e uma prática nesse sentido. E, claro, defendemos uma saída à esquerda, com reformas populares. A saída para a crise não pode ser a proposta pela direita. Tampouco são as políticas de austeridade, que põem a conta nas costas dos trabalhadores. Precisamos de uma saída à esquerda, taxar os ricos e fazer o enfrentamento necessário para que tenhamos um projeto popular em pauta.

    Correio da Cidadania: Qual sua perspectiva, através da Frente Povo Sem Medo, para chegarmos ao ponto de taxar as grandes fortunas e, enfim, termos uma resposta com corte popular à conjuntura?

    Guilherme Boulos: Precisamos retomar as ruas. Programa revolucionário nunca fez revolução. Não adianta ter as melhores ideias e os melhores programas se não tiver força social. Não vai ter gente na rua para defendê-los. Isso é esquecido por uma parte da esquerda que fica em uma coisa quase masturbatória em torno de programas que não acumulam força e não geram impacto social.

    A proposta da Frente Povo Sem Medo é reconstruir um ciclo de mobilização social no Brasil. Construir uma capacidade de mobilização que implica trabalho de base, ou seja, a retomada do trabalho de base dos movimentos sociais e a construção de uma agenda de amplas mobilizações. Acreditamos que isso trará condições para estabelecer de forma séria um projeto de reformas populares e de saída da crise “pela esquerda”.

    Correio da Cidadania: Há outros movimentos que fazem uma leitura parecida, por exemplo, a CUFA (Central Única das Favelas) que coloca que a esquerda, seja ela partidária ou de movimentos da sociedade civil em geral, se ausentou completamente nas últimas décadas das periferias e esse espaço foi ocupado por outros setores, como por exemplo as igrejas neopentecostais. E, por falar sobre redes e ruas, como você avalia que a esquerda possa retomar esse espaço de protagonismo na disputa política pelas periferias?

    Guilherme Boulos: Isso é essencial. O trabalho que a esquerda brasileira desenvolveu nos anos 80, por exemplo, com o sindicalismo enraizado, uma série de iniciativas comunitárias, como as Comunidades Eclesiais de Base que desenvolveram um método bastante utilizado na base, foi sendo paulatinamente substituído por uma estratégia parlamentar institucional. A questão não era mais formar núcleos nas comunidades. A questão era formar comitês eleitorais, eleger uma bancada parlamentar maior, prefeitos, governadores e chegar à presidência da República. Chegou-se lá. E todo o processo, ao contrário do discurso de que “faríamos isso para mudar o sistema político”, acabou absorvido pelo sistema político.

    O preço de ter deixado o trabalho de base para centrar-se na disputa institucional foi altíssimo para a esquerda brasileira. E não tem espaço vazio. Como se mencionou, tal espaço foi ocupado, principalmente, pelas igrejas pentecostais e neopentecostais, porque elas fazem trabalho de base. O que a esquerda deixou de fazer, elas fazem. Às vezes o pessoal se impressiona: “poxa, que coisa incrível, eles colocam um milhão na rua, o que está acontecendo?” Eles fazem o feijão com arroz que a esquerda e os movimentos sociais já fizeram e deixaram de fazer. Temos que retomar isso. Às vezes o pessoal acredita em saídas mágicas. Não há saída mágica para a construção social.

    Temos novas condições, como as redes sociais, campo de uma disputa que também precisa ser travada. Não podemos ter uma visão conservadora quanto a isso, uma visão “brucutu” sobre as redes, mas ao mesmo tempo não podemos continuar mistificando quais são as saídas. É preciso fazer trabalho de base, nosso feijão com arroz. É preciso subir o morro, sujar o pé com barro, gastar tempo, estar com as pessoas, ao lado delas.

    Se a esquerda não retomar isso, a ofensiva conservadora só vai crescer no nosso país. O caminho para a retomada de um novo ciclo de mobilizações é o aprofundamento e a radicalização do trabalho de base. É nisso que nós acreditamos e vemos a Frente Povo Sem Medo como um instrumento para atingir tal objetivo.

    Correio da Cidadania: Tendo em vista esse dilema, entre um projeto institucional e a proposta de retomar o trabalho de base, conceitos que naturalmente se chocam, como é possível construir uma alternativa de esquerda e, ao mesmo tempo, manter um diálogo próximo com os setores que abandonaram o trabalho de base em troca da institucionalidade?

    Guilherme Boulos: Uma parte da esquerda comete o erro de achar que dialogar é contaminar, que não se pode dialogar e compor um espaço com quem se diverge, porque seria uma traição, uma contaminação, ou seja, é uma ideia muito purista. Nós temos na esquerda um purismo muito danoso. É meio que o discurso do ovo de ouro, não é? O ovo de ouro é uma coisa brilhante, bonita, mas não serve para nada. Ter um discurso puro, reto, perfeito, não dialogar com as contradições, não dialogar com quem tem base social, me desculpe, podem dizer o que quiserem, mas a CUT é a maior central sindical do Brasil, onde está a maior parte dos sindicatos do país. Achar que vamos construir espaços de unidade, de mobilização social, sem dialogar com a CUT, é uma ilusão. Eu não acredito nisso. Posso não concordar com tudo o que a CUT diz, mas nem por isso eu não posso sentar e discutir com ela.

    O que define uma alternativa é o tom que ela vai ter. Se há um acordo, do ponto de vista de enfrentar a ofensiva conservadora e as políticas de austeridade do atual governo, de manter uma independência firme e de construção de saídas populares para a crise, essa é a plataforma. Se fulano ou cicrano estão ali ou não, não somos nós quem vamos definir. Unidade se faz dessa forma, não é só com quem a gente concorda. Isso não é unidade, é identidade. Quem não tem capacidade de tolerar e dialogar com quem pensa diferente não vai construir nada de relevante no país.

    Correio da Cidadania: Diante de toda essa conjuntura, como fica a questão da moradia? As políticas públicas e os setores da sociedade organizados em torno de tal demanda?

    Guilherme Boulos: Junto com os servidores públicos, a moradia foi o setor mais atacado pelo ajuste fiscal. O Minha Casa Minha Vida foi paralisado. Este ano não houve contratações para o programa. Só um, o empreendimento Copa do Povo, do MTST. Enfim, praticamente foram zeradas as contratações no país todo, em nome de políticas que fazem os trabalhadores pagarem pela crise.

    Temos críticas ao programa Minha Casa Minha Vida. Vemos vários limites nele. Mas a alternativa não é acabar com esse programa e deixar o país sem política habitacional. O MTST tem feito vários enfrentamentos: semana passada, ocupamos sedes do Ministério da Fazendo no país todo, em Brasília, em São Paulo e em outras capitais, para exigir a retomada dos investimentos em habitação popular. A política do governo, de ajuste fiscal, é um tiro no pé. Em todos os sentidos. A questão da construção de habitações não é só deixar de atender a uma demanda social, mas tem a ver com emprego, ou seja, acaba deixando de movimentar a economia.

    O ajuste, quando aumenta juros, corta investimentos e gera recessão na economia, diminui também a arrecadação e pode gerar um novo desajuste fiscal. Essa política que está sendo aplicada é inconsequente, inaceitável e precisa ser enfrentada nas ruas. O MTST tem feito isso, a Frente Povo Sem Medo o fará após sua formalização e, retomando a pergunta, eu digo que a moradia foi o direito social, talvez, mais afetado pelo ajuste fiscal. Junto, claro, com os servidores públicos, tanto que fizemos uma luta conjunta no último dia 23.

    Além disso, vemos uma série de ataques aos trabalhadores através da diminuição do seguro desemprego, pensões etc. Agora estão falando em mexer na previdência, na aposentadoria, um absurdo que precisa ser enfrentado, venha de onde venha. Se fosse um governo do PSDB nós enfrentaríamos na rua. Não é porque o governo que está fazendo isso é do PT que nós não vamos para a rua enfrentar.

    Raphael Sanz e Felipe Bianchi são jornalistas

    Esta entrevista foi feita em parceria com o Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé.

    Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 03 de outubro de 2015

  • Jovens negros e pobres são maioria entre vítimas de chacinas

    Jovens negros e pobres são maioria entre vítimas de chacinas

    chacinasSão Paulo, 01/10/2015 (Agência Brasil) – Por volta das 23h do dia 18 de abril deste ano, três pessoas armadas entraram na sede da torcida organizada do Corinthians (Pavilhão 9), na zona oeste da capital, logo após um churrasco. Doze torcedores ainda estavam no local. Quatro deles conseguiram fugir, mas os demais foram obrigados a se ajoelhar e a deitar no chão. Todos foram executados. Sete morreram no local. A oitava vítima chegou a ser socorrida, mas morreu no hospital.

    Todas as vítimas dessa chacina tinham entre 19 e 38 anos. Em entrevista à Agência Brasil, o parente de um dos torcedores assassinados, que pediu para não ser identificado por medo de retaliação, disse que o jovem era estudante e trabalhador.

    “Não tinha nenhum tipo de vício. A única coisa que ele gostava de fazer era torcer para um time de futebol”, disse. O jovem assassinado também não tinha passagem pela polícia. “E mesmo que eles [as vítimas] não estivessem trabalhando ou que estivessem fazendo bico. A coisa é o seguinte: por que está desempregado tem que morrer? Por que já passou pela polícia tem que morrer? E esses 19 que foram mortos lá em Osasco e que nem passagem tinham?”, questionou.

    A maioria das vítimas das chacinas ocorridas em São Paulo é jovem e mora na periferia, segundo representantes do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e da Defensoria Pública de São Paulo ouvidos pela Agência Brasil. Na chacina de Carapicuíba, por exemplo, ocorrida no dia 19 de setembro, três dos quatro mortos tinham menos de 18 anos: dois deles tinham 16 e um, 17 anos. Já nas chacinas de Osasco e de Barueri, do dia 13 de agosto, as vítimas tinham entre 15 e 41 anos.

    “Existe um estereótipo. Geralmente [as vítimas] são pobres, de cor negra e jovens. E tem também estereótipo de linguagem e de comportamento coletivo. Isso tem chamado muito a atenção: a padronização da vítima”, disse Rildo Marques, presidente do Condepe.

    São Paulo registra 15 chacinas este ano; número já é igual ao de 2014

    O número de chacinas – ocorrências com mais de três mortes – no estado de São Paulo este ano já se iguala à quantidade registrada em todo o ano passado. Um balanço feito pela Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo e obtido pela Agência Brasil mostra que, até a última terça-feira (22), foram registradas 15 chacinas, com 62 mortes. Em 2014, foram 15 chacinas, com 64 vítimas.

    Este ano ocorreram ainda 120 assassinatos registrados nos boletins de ocorrência como crimes de autoria desconhecida – forma com que a polícia nomeia casos de homicídios com menos de três vítimas. De acordo com o ouvidor Julio Cesar Fernandes Neves, na maior parte dos casos, há indícios de execução. Em 2014, ocorreram 183 crimes de autoria desconhecida com 200 mortes.

    “Em Osasco falaram em 19 [assassinatos] na chacina. Mas tivemos mortes por autoria desconhecida de cinco pessoas, entre a morte de Ademilson Pereira de Oliveira [policial militar] e a chacina propriamente dita [que pode ter ocorrido como vingança pela morte do policial], que eles não contabilizaram por ser autoria desconhecida, mas o modus operandi é o mesmo: tiro no rosto, no tórax, na cabeça”, disse, se referindo à chacina ocorrida no dia 13 de agosto.

    “Com as autorias desconhecidas, você nunca fica sabendo quem é o autor. A polícia nega veementemente participar disso. Então sobra para quem? É como se fossem da bandidagem. Ficam casos que não elencamos naquela letalidade policial porque não fica definitivamente claro que foi [provocada por] policial militar”, disse o ouvidor.

    Outro dado preocupante, de acordo com Neves, é o número de mortes ocorridas em confrontos com a polícia. No ano passado, foram 838 mortes. “Isso significa que foram mortos por agentes da polícia. É impossível, com 838 mortes, pensar que não existem grupos [organizados] como o do Butantã [episódio em que câmeras flagraram policiais matando um suspeito de roubo já rendido e jogando um segundo suspeito do telhado, desarmado]”, disse o ouvidor em entrevista à Agência Brasil.

    Neste ano, já foram contabilizadas 571 mortes em confrontos com a polícia. Os números da Ouvidoria têm como base os dados informados pela Secretaria de Segurança Pública e pela Corregedoria, já somados os casos de agosto. “É um número altíssimo”, ressaltou o ouvidor. “Como no ano passado tivemos 838 [mortes], significa que estamos no mesmo patamar”, afirmou.

    Outros números

    Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública faz comparações diferentes e fala em redução dos homicídios múltiplos. “Na capital foram 43 casos em 2002 contra sete no primeiro semestre de 2015”, disse o órgão. A secretaria contesta ainda a informação de aumento do número de mortes causadas por policiais. “A adoção de medidas para reduzir a letalidade policial pela Secretaria de Segurança Pública resultou na redução de 15% nas mortes decorrentes de intervenção policial militar de abril a julho deste ano, na comparação com o mesmo período do ano passado”, informou a nota.

    Segundo a secretaria, isso ocorreu após a adoção de uma resolução (SSP 40/2015) que “garante maior eficácia nas investigações de mortes, pois determina o inédito comparecimento das Corregedorias e dos comandantes da região, além de equipes específicas do Instituto Médico-Legal (IML) e do Instituto de Criminalística (IC) para melhor preservação do local dos fatos e eficiência inicial das investigações”. Além disso, acrescentou o órgão, foi criado o Conselho Integrado de Planejamento e Gestão Estratégica “para coordenar as ações policiais e integrar os sistemas de inteligência das polícias, além de propor medidas para controle da letalidade policial”.

    Em entrevista coletiva concedida na última sexta-feira (25), o secretário de Segurança Pública do estado, Alexandre de Moraes, negou que o número de chacinas esteja crescendo e que isso seja uma tendência.

    Sociedade civil

    Os números divulgados pela Ouvidoria são semelhantes aos de um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz, elaborado com base em informações obtidas, por meio da Lei de Acesso à Informação, na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

    De acordo com a organização, no primeiro semestre deste ano, foram registradas 12 chacinas com 44 vítimas no estado de São Paulo – estão fora desse cálculo as chacinas de Osasco e Barueri, de 13 de agosto, e a de Carapicuíba, ocorrida no dia 19 de setembro. Do total de ocorrências do primeiro semestre, seis foram na capital, somando 26 vítimas. No mesmo período do ano passado, foram contabilizadas 13 chacinas com 40 vítimas – três desses episódios foram na capital, com nove vítimas.

    “O número de chacinas, especificamente na capital, neste primeiro semestre de 2015, dobrou. Outro dado bastante preocupante é que o número de vítimas, também na capital, triplicou”, disse Bruno Langeani, coordenador do Sou da Paz.

    Segundo ele, não é possível determinar o motivo do crescimento do número de chacinas na capital. “De qualquer maneira, esse dado preocupa porque se a gente olhar para além das chacinas, houve um aumento também do número de homicídios onde há indícios de execução, que é um tipo de informação que a Secretaria de Segurança Pública passou a divulgar há pouco tempo”, afirmou Langeani.

    Entre janeiro e junho deste ano, 24% do total de homicídios da cidade de São Paulo tiveram indícios de execução, ou seja, uma em cada quatro vítimas de assassinatos foi executada. No ano passado, essa taxa era de 16%. “Isso mostra um crescimento bastante grande. E combinado com essa informação das chacinas, sugerem a existência de grupos de extermínio ou de matadores em ação”, acrescentou Langeani.

    A ideia da existência de grupos de extermínio atuando no estado é contestada pela secretaria. “A SSP refuta a tese de grupo de extermínio nas corporações”, informou o órgão.

    Sociedade civil e parentes de vítimas pedem que PF investigue chacinas

    A demora na investigação e, muitas vezes, a falta de punição dos responsáveis pelas chacinas preocupa os parentes das vítimas e os movimentos sociais e de direitos humanos. Para eles, uma possível solução seria convocar a Polícia Federal para auxiliar nas investigações desse tipo de crime no estado de São Paulo.

    Na semana passada, movimentos sociais se reuniram na sede do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), no centro da capital paulista, para discutir uma forma de pressionar o governo de São Paulo na responsabilização das chacinas ocorridas no estado. O pedido de ajuda à PF para resolução desses crimes foi uma das medidas propostas.

    “A ideia é que isso [encontro] se transforme em uma articulação permanente no estado de São Paulo para lutar por uma reforma da polícia, uma nova política de segurança e pelo fim do extermínio da juventude negra, pela mudança da postura da polícia e, principalmente, para que os crimes sejam investigados pela Polícia Federal porque os dados mostram um crescimento alarmante [das chacinas] e esses crimes têm ficado impunes”, disse Julian Rodrigues, coordenador de formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). “Queremos pressionar o Ministério Público e o próprio Judiciário, que não podem ser complacentes com essa política de extermínio”, completou.

    Segundo Rodrigues, os movimentos cogitam pedir a federalização das investigações. “Isso exige que o procurador-geral da República acione o Superior Tribunal de Justiça para que as investigações saiam do âmbito do estado de São Paulo e sigam para âmbito federal. Não é algo simples de fazer, é burocrático e precisa ser comprovada negligência do governo estadual, que a gente sabe que existe, mas que é difícil de ser aceita e comprovada pelos órgãos superiores de justiça e pela procuradoria da República”, disse o coordenador do MNDH.

    Líder do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, também defendeu a medida. “Temos que pedir intervenção federal porque estão morrendo brasileiros no estado de São Paulo”, pediu durante a reunião.

    “Compreendemos e achamos salutar para o governo de São Paulo que isso seja investigado por todas as polícias, não só pela Corregedoria [Polícia Militar] nem só pela Polícia Civil de São Paulo que possui um grau de competência para isso, mas que pudéssemos federalizar essas investigações porque quanto mais instituições investigando isso, maior é a possibilidade e oportunidade que temos de esclarecer”, ressaltou Rildo Marques, presidente do Condepe.

    A preocupação das famílias também é demonstrada pelo Escritório para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh).

    Em setembro deste ano, logo após a divulgação de vídeos em que dois suspeitos de roubo foram rendidos, revistados e depois mortos por policiais militares (um deles foi arremessado do telhado em uma casa no bairro do Butantã, na zona oeste da capital paulista), o órgão se manifestou por meio de nota e pediu que o fato seja investigado exaustiva e imparcialmente.

    “É essencial que as execuções extrajudiciais sejam investigadas por um órgão independente da Polícia Militar de São Paulo. Só assim se pode evitar que os responsáveis fiquem na impunidade”, disse Amerigo Incalcaterra, representante do Acnudh para a América do Sul.

    “Esse tipo de fato recorrente evidenciaria uma cultura institucional de violência e impunidade nas polícias. Por isso, chamo as autoridades a revisar a doutrina e o funcionamento das forças de segurança do país, além de investigar, julgar e sancionar os responsáveis por estas condutas”, acrescentou Incalcaterra, que solicitou ainda que os policiais sejam treinados a agir segundo os protocolos internacionais de respeito aos direitos humanos.

    Crítica às investigações

    Um parente de uma das oito vítimas da chacina na sede da torcida organizada do Corinthians (Pavilhão 9), ocorrida em abril deste ano, reclamou da atuação da polícia e do Ministério Público na investigação do caso. Até o momento, um policial e um ex-policial estão presos e estão sendo julgados pelas mortes, mas um terceiro suspeito ainda não foi identificado oficialmente.

    “Num primeiro momento, eles [as vítimas] não estavam na rua. Eles estavam dentro de uma sede com CNPJ. Ali houve uma chacina deliberada onde a polícia acusou duas pessoas porque as testemunhas disseram que entraram três pessoas lá e atiraram. Dois deles foram identificados e estão presos, mas existe um terceiro que a polícia até agora não pegou porque disse que não existem provas e porque as testemunhas não querem falar. Se não tem testemunha, a polícia não tem dado técnico? Onde está o acompanhamento disso? Cadê o Ministério Público (MP)?”, reclamou o parente que pediu para não ser identificado com medo de retaliação. “Tem justiceiro e o Estado não quer assumir. Por que então não colocam a Polícia Federal para investigar?”, questiona.

    A defensora pública Daniela Skromov de Albuquerque, que também acompanha o caso, reclama que, muitas vezes, ao se identificar um dos autores da chacina, os demais suspeitos são esquecidos ou ignorados na investigação. “Quando se identifica um ou dois, a investigação perde força para encontrar os outros [responsáveis]. Isso foi o que aconteceu na chacina da Pavilhão 9. Encontrou-se um PM e um ex-PM e ambos estão presos, e há notícias, sem dúvida, do envolvimento de pelo menos mais uma pessoa e agora fica meio de escanteio”, critica.

    Outro problema, acrescentou a defensora, diz respeito à própria legislação penal do país que só condena indivíduos e não o Estado que, em sua visão, deveria ser responsabilizado pelas chacinas praticadas por policiais. “Quem está no processo penal no banco dos réus é o indivíduo, não o Estado. E aí a tendência é sempre analisar o caso concreto quando, na verdade, se tem um problema crônico e seria necessário fazer um enlace, como se fosse uma grande investigação entre todos os casos”, disse.

    “Teve uma chacina em Sapopemba, no primeiro semestre de 2014, na Favela da Ilha, e lá colhi relatos de que uma Hyundai HB20 teria sido usada pelos matadores. Coincidentemente ou não, uma HB20 também foi usada na chacina da Pavilhão 9. Poderia se tratar do mesmo ou dos mesmos autores? Só saberíamos isso juntando e unindo as investigações”, exemplificou.

    O caso do Pavilhão 9 é acompanhado pelo promotor de Justiça Rogério Leão Zagallo, cuja atuação é criticada por movimentos sociais e pelos parentes das vítimas. Zagallo também ficará responsável pela investigação das mortes de dois suspeitos de roubo no Butantã em que câmeras flagraram policiais forjando as mortes e até arremessando um deles do telhado.

    “Ele é um dos responsáveis por atuar na área dos fatos e o caso foi distribuído a ele”, disse Everton Luiz Zanella, promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público de São Paulo, em resposta aos questionamentos da Agência Brasil.

    Segundo ele, os inquéritos policiais de chacinas são sempre acompanhados por um promotor. “No caso de Osasco, há uma força-tarefa constituída para acompanhar o caso. Vale mencionar que o MP assinou neste ano dois termos de cooperação – um com o Condepe e outro com a prefeitura de São Paulo – para receber informações acerca de mortes que envolvam agentes do Estado”, disse.

    Sobre as críticas feitas à atuação do órgão nos casos referentes às chacinas, Zanella respondeu que esse tipo de investigação “é bastante complicado, especialmente pelo medo das testemunhas em dar informações”.

    “Entendemos o lado das famílias e estamos sempre à disposição para atendê-las. É conveniente mencionar que o MP tem um termo de cooperação com o Centro de Referência e Apoio a Vítima [Cravi] para atendimento diário às vítimas de violência. O Cravi funciona no Fórum da Barra Funda e diariamente há um promotor de plantão para atender a vítimas e familiares. De qualquer forma, é evidente que toda atuação pode melhorar e o MP está sempre buscando a otimização de sua atuação”, disse.

    Já a Secretaria de Segurança Pública, por meio de nota, disse que um policial militar foi preso, na última quinta (24), pela morte de quatro entregadores de pizza no caso da chacina de Carapicuíba, “como consequência das investigações”. Ainda segundo a secretaria, os crimes em Osasco e Barueri estão com investigações avançadas, que tramitam em segredo de Justiça.

    Em entrevista coletiva concedida na semana passada, o secretário de Segurança Pública do estado, Alexandre de Moraes, disse que apresentará em breve uma conclusão sobre as chacinas de Osasco e de Barueri. “A investigação de Osasco e Barueri é absoluta prioridade do governo do estado de São Paulo. Agora, não confundam pressa com prioridade. Não temos pressa. Temos prioridade, porque é um assunto importante e que envolveu diversas vidas. Nós vamos resolver isso”, disse. Até o momento, apenas um policial militar foi preso acusado de participação nas mortes ocorridas em Osasco e Barueri.

    “Estamos fazendo uma investigação técnica, baseada em uma metodologia importantíssima, que vai levar importantes resultados ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Não queremos agir com pressa simplesmente para dizer que temos um resultado. É prioridade, não pressa”, acrescentou o secretário.

    Procurado pela Agência Brasil, o governo de São Paulo não se pronunciou, até o momento, sobre o pedido de ajuda à Polícia Federal nas investigações. Já a Secretaria de Segurança Pública disse que não iria se pronunciar sobre o pedido feito pelas famílias e por movimentos sociais. O Ministério da Justiça respondeu que esses “crimes são de competência da polícia estadual”.

    Especialistas acreditam que chacinas são praticadas por grupos formados por PMs

    Na madrugada do dia 19 de setembro, quatro jovens entregadores de pizza foram mortos em frente ao estabelecimento comercial em que trabalhavam, em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Na quinta-feira (24), um policial militar foi preso acusado pelas mortes.

    Segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o policial Douglas Gomes, que está no Presídio Romão Gomes, teria se vingado de um roubo em que esses jovens teriam agredido a sua esposa. Na casa de um dos entregadores de pizza foi encontrada a bolsa da mulher do policial, que havia sido roubada. Na residência do policial foi encontrada uma pistola e um revólver calibre 38. Os jovens já eram investigados pela polícia por roubos na região.

    Essa foi a terceira vez, este ano, que um policial militar foi preso por participação em chacinas. Antes da de Carapicuíba, um policial foi preso por ter participado da ação que resultou em 19 mortes em Osasco e Barueri. Um policial e um ex-PM foram presos e estão sendo julgados pela morte de oito pessoas na sede de uma torcida organizada do Corinthians (Pavilhão 9). Também houve suspeita de participação de policiais em chacinas ocorridas em janeiro deste ano em Mogi das Cruzes (Grande São Paulo); em fevereiro, na Vila Jacuí; em abril, no Jaçanã, e em julho, no Jardim São Luiz, todos na capital.

    “Tem justiceiro e o Estado não quer assumir”, diz o parente de uma das oito vítimas da chacina na Pavilhão 9 que pediu para não ser identificado. “Se [os executores] não tivessem se apresentado como policiais, eles [as vítimas] iriam para cima. Não iam acatar a ordem de ajoelhar e colocar a mão na cabeça. Se eu sei que vou morrer, vou para cima do cara”, disse, fazendo questão de ressaltar que, apesar de policiais terem sido presos por esse crime, não se pode generalizar, já que “tem muita gente boa na polícia”.

    Especialista em segurança pública, Guaracy Mingardi diz não ter dúvidas da existência de grupos de extermínio.

    “Nos tempos áureos dos homicídios, anos atrás em São Paulo, havia dois tipos de chacinas: as que eram praticadas por uma briga por ponto de drogas e as que eram cometidas por grupos de extermínio”, disse.

    “O número de disputas por pontos de droga caiu radicalmente por causa do PCC [Primeiro Comando da Capital, organização criminosa que age nos presídios paulistas], que tomou conta de boa parte do mercado. As chacinas que sobram, normalmente, são praticadas por grupos de extermínio que envolvem algum agente público, no caso, policial. Não que todas sejam, mas a maior parte é. Os casos que têm sido resolvidos nos últimos anos indicam isso”, completou Mingardi, ex-subsecretário nacional de Segurança Pública e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    Segundo o especialista, São Paulo “foi a terra da chacina” na década de 90. “As chacinas caíram com relação àquele período. Tivemos anos com pouquíssimas chacinas, mas elas estão voltando agora”, destacou.

    Modo de operação

    Doutora em sociologia e professora da Universidade Federal do ABC, Camila Nunes Dias disse que as chacinas registradas no estado apresentam algumas características que reduzem a possibilidade de que sejam praticadas por criminosos “comuns”.

    “Não apenas porque no caso de Osasco – e muitos outros similares – já se reconhece oficialmente a participação de policiais militares, mas o modus operandi é bastante típico também, de crimes cometidos por grupos de extermínio que, comumente, contam com a participação de agentes públicos”, disse Camila, autora do livro PCC: Hegemonia nas prisões e monopólio da violência, resultado de cinco anos de pesquisa e de entrevista com integrantes e ex-integrantes do PCC.

    De acordo com ela, há um claro padrão nas chacinas ocorridas recentemente no estado de São Paulo: “a chegada de várias pessoas em uma ou mais motos ou em um ou mais carros, a utilização de capuz ou outras formas de esconder o rosto, a rendição das vítimas em alguns casos, colocando-as de costas para a parede, de joelhos ou atirando na cabeça, simplesmente”.

    Ainda segundo ela, essa forma de agir é bastante comum a policiais militares. “Há uma forma de empunhar a arma, de abordar, de se aproximar que são bastante típicas, conforme foi apontado por especialistas da própria PM”, enfatizou.

    Ela também destaca que esse tipo de abordagem é diferente do modo de operar do PCC.

    “Quando é o PCC, há uma espécie de julgamento primeiro, o chamado ‘debate’. Quando isso ocorre, evidentemente, as vítimas não são pegas de surpresa. Elas já estão sequestradas nas mãos dos criminosos. Nesses casos, o ‘julgamento’ e a execução não ocorrem em locais públicos, e sim em locais de difícil acesso – tanto para dificultar a localização pela polícia, como para impedir que a violência seja testemunhada pelos moradores do bairro”, afirmou.

    “O PCC busca uma certa legitimação de seu poder nos bairros onde atua e, neste sentido, busca sempre – ou sempre que possível – esconder ou camuflar o uso da violência física, essencialmente, o homicídio”, disse a professora, destacando que as vítimas do grupo criminoso costumam ter um perfil específico – delatores, acusados ou suspeitos de crimes sexuais ou contra crianças, devedores e agentes de segurança são alguns exemplos.

    Segundo Luiz Carlos dos Santos, conselheiro e relator da comissão de violência policial do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), o órgão analisa atualmente 21 casos de chacinas no estado. E, nestes casos, não houve qualquer dado que apontasse a participação do PCC como autor das chacinas.

    Para ativistas e especialistas, há muitos indícios de participação de policiais militares nesse tipo de crime.

    “Outra questão do modo de operação padronizado são as perguntas que são feitas às vítimas, tais como se elas têm passagem, se estão envolvidos com algum crime ou se portam alguma coisa ilegal. Esse é um padrão da Polícia Militar ostensiva. Há ainda a questão do armamento. Os tiros sempre na região de alta letalidade, na cabeça ou região torácica, efetivamente para matar”, disse Rildo Marques, presidente do Condepe.

    A defensora pública Daniela Skromov de Albuquerque também destaca pontos que levam à conclusão de participação de agentes do Estado nas chacinas.

    “Um indicativo é que, após um entrevero envolvendo um policial, um roubo ou uma morte de um policial na área, existem várias mortes ou homicídios múltiplos, como se fosse um recado, perdemos um, vocês perdem muito mais. Em geral há um revide quantitativo, em maior número. A esmo, como uma política de imposição de medo”, acrescentou a defensora.

    Vingança

    Muitas chacinas ocorridas em São Paulo desde o ano de 2006 apresentam um fator em comum: são registradas após a morte de um policial.

    “Vale lembrar que, em 2006, em resposta aos ataques promovidos pelo PCC aos agentes de segurança que vitimaram cerca de 80 policiais, houve uma reação da Polícia Militar paulista e o saldo de vítimas em uma semana chegou a quase 500. De lá para cá, parece que se produziu uma dinâmica bem típica: execuções sumárias, com múltiplas vítimas, ocorridas na mesma região e pouco tempo depois do assassinato de um policial”, disse a professora Camila Nunes.

    As chacinas deste ano no Jardim São Luiz, no Jaçanã, e em Osasco, exemplificou Rildo Marques, presidente do Condepe, foram todas precedidas da morte de um policial. “Imaginávamos que estava explícita uma ideia de revide por parte de seus colegas da corporação. Isso não é uma certeza, mas é o que imaginamos como uma das causas”, disse.

    “Há também uma certa ideia de controle de território feita de maneira ilícita por meio de interesse de negócios. Não nos parece que esse revide ou revanche seja gratuito. Parece que há a defesa de interesse de negócios ocultos e isso merece uma investigação profunda por parte das autoridades de São Paulo”, completou Marques.

    Documento da Corregedoria da Polícia Militar sobre a investigação das 19 mortes ocorridas em Osasco e Barueri, obtido pela Agência Brasil, traz vários episódios que apontam para a participação de policiais militares nos crimes. Uma das vítimas, Rafael Nunes de Oliveira, morto na Rua Moacir Sales D’Avila, em Osasco, no dia 13 de agosto, teve seu veículo apreendido por policiais militares um mês antes de ser assassinado. Ele portava um cigarro de maconha. Em uma outra ocorrência, Rafael enfrentou uma situação de conflito com policiais e foi agredido.

    Pelos registros, uma das conclusões do documento é que se trata de “um grupo organizado para a prática de crimes de homicídios com clara intenção de vingança”.

    Em entrevista à Agência Brasil esta semana, o ouvidor das Polícias, Julio Cesar Fernandes Neves, preferiu não usar o termo grupo de extermínio, mas admitiu a existência de grupos organizados com participação de agentes públicos atuando em chacinas.

    “Na nossa legislação não tem essa capitulação de grupo de extermínio, mas está no Código Penal como quadrilha, com mais de três [pessoas] que se organizam para cometer crimes, no caso, o crime de homicídio. Existem grupos organizados para cometer crimes de homicídio. Tem gente que interpreta como grupos de extermínio”, disse.

    A existência de grupos de extermínio que tenham policiais entre seus integrantes não é admitida pela Secretaria de Segurança Pública (SSP).

    “A SSP refuta a tese de grupo de extermínio nas corporações. Essa declaração foi feita pelo ouvidor sem nenhum embasamento. Os casos recentes da Grande SP não têm relação. Os crimes em Osasco e Barueri estão com investigações avançadas pela força-tarefa, que tramitam em segredo de Justiça. Tanto esse caso quanto o de Carapicuíba já tem prisão do autor, como consequência das investigações”, disse a secretaria em nota.

    Em entrevista recente a meios de comunicação, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, também refutou a existência de grupos de extermínio. Segundo ele, o que existe são “maus policiais”.

    Na última sexta-feira (25), o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, disse que os excessos cometidos por policiais, quando comprovados, serão punidos pelo órgão. “Os desvios estão sendo analisados, investigados e serão punidos disciplinarmente por parte da Secretaria de Segurança e criminalmente por parte da Justiça.”

    A Polícia Militar também foi procurada para comentar a suspeita da existência de grupos de extermínio dentro da corporação, mas, até o momento, não respondeu à solicitação feita pela reportagem.

    Investigação e punição são armas para combate a chacinas, dizem especialistas

    Especialistas em segurança pública defendem que investigações bem-feitas e a punição dos executores são as respostas necessárias para combater o aumento do número de chacinas no estado de São Paulo.

    “Tem que investigar e prender”, defende Guaracy Mingardi, ex-subsecretário nacional de segurança pública e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “A única resposta para esse tipo de homicídio é prioridade absoluta para a prisão dos matadores”, completou.

    A defensora pública Daniela Skromov também acredita na punição e em uma investigação bem elaborada como maneiras de reduzir o número de chacinas. Ela ressalta, entretanto, que é preciso evidenciar os casos, torná-los mais conhecidos, e reconhecer que a Polícia Militar pode ser parte do problema.

    “Mais do que a punição em si, o fato é que os casos não vêm à tona. Não acho que a cadeia iria dissuadir os policiais a fazerem isso. Mas acredito que, se as investigações fossem mais bem-feitas e revelassem as autorias e ficasse mais clara a participação de policiais militares e que isso acontece de maneira sistêmica, isso poderia auxiliar no estabelecimento de medidas para evitar novas chacinas. Isso iria na contra-corrente da negação. Na medida em que se trata como um caso de excesso de alguns maus policiais, você não resolve a base”, destacou.

    Ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo, Julio Cesar Fernandes Neves também defende a investigação como forma de evitar mais chacinas. “Precisa de uma elucidação geral para que fique claro até para esses executores que eles estão indo para uma situação sem volta, que está acabando com a vida deles. Eles estão achando que estão fazendo justiça com as próprias mãos e estão acabando com sua vida profissional, pessoal e até familiar”, disse.

    Coordenador do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani defende ainda que os locais dos crimes sejam preservados para auxiliar nas investigações. “Se você consegue identificar e tirar de circulação os autores dessas chacinas, em geral, você tem um impacto bastante relevante em próximas ocorrências”, disse.

    Segundo ele, São Paulo foi palco de muitas chacinas na década de 90 e isso acabou sendo reduzido nas décadas seguintes com mais investimentos na elucidação desses crimes.

    “Na época houve um investimento forte, uma priorização de recursos para o esclarecimento desses crimes. Então, é preciso uma atuação muito forte do DHPP [Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa] para esclarecer os casos e tirar de circulação esses grupos de extermínio. Atualmente seria necessário repetir essa mesma prática e aumentar os recursos para o esclarecimento desse tipo de crime”.

    Para diminuir a letalidade policial e a participação de policiais em chacinas, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, disse em entrevista coletiva na semana passada, que é preciso melhorar a formação dos policiais e dar rapidez à investigação e à punição aos criminosos.

    “Temos que diminuir qualquer possibilidade de participação de policiais em atividades criminosas. Temos que realizar três atitudes. Melhorar a seleção de policiais e melhorar o ingresso, e isso vem sendo feito ano a ano. O segundo ponto é aprimorar a fiscalização desses policiais, daqueles que atuam na rua. E o terceiro ponto é transparência total e rapidez no caso daqueles policiais que praticam crimes, daqueles bandidos que momentaneamente estão de fardas, para expulsá-los da corporação e encaminhar à Justiça”, disse o secretário.

    Segundo ele, os policiais que cometerem excessos serão punidos pela corporação. “Absolutamente todo policial que tiver praticado qualquer ilícito, não só homicídio, que é o mais grave, mas qualquer ilícito, vai ser punido e expulso da corporação e vamos encaminhar o pedido de prisão à Justiça. É assim que se deve atuar”, ressaltou o secretário.

    Segundo a Secretaria de Segurança Pública, quando constatada a prática de crime ou quando há a suspeita fundamentada, os agentes são afastados. De acordo com o órgão, nos primeiros sete meses deste ano, 131 policiais foram presos e 141, demitidos ou expulsos da corporação.

    Coordenador de formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Julian Rodrigues defende mais discussões acerca da desmilitarização da polícia em todo o país. “Precisamos discutir a mudança da formação, do ingresso e dos currículos, uma carreira para os policiais, com bons salários e uma outra cultura. A polícia não é para matar. A polícia só atira para matar em último caso. Ela tem que fazer a contenção, a investigação e a prevenção”, afirmou.

    Elaine Patricia Cruz é repórter da Agência Brasil

  • Por que a energia solar não deslancha no Brasil

    Por que a energia solar não deslancha no Brasil

    energia-solar

    A capacidade instalada no Brasil, levando em conta todos os tipos de usinas que produzem energia elétrica, é da ordem de 132 gigawatts (GW). Deste total menos de 0,0008% é produzida com sistemas solares fotovoltaicos (transformam diretamente a luz do Sol em energia elétrica). Só este dado nos faz refletir sobre as causas que levam nosso país a tão baixa utilização desta fonte energética tão abundante, e com características únicas.

    O Brasil é um dos poucos países no mundo, que recebe uma insolação (numero de horas de brilho do Sol) superior a 3000 horas por ano. E na região Nordeste conta com uma incidência média diária entre 4,5 a 6 kWh. Por si só estes números colocam o pais em destaque no que se refere ao potencial solar.

    Diante desta abundância, por que persistimos em negar tão grande potencial? Por dezenas de anos, os gestores do sistema elétrico (praticamente os mesmos) insistiram na tecla de que a fonte solar é cara, portanto inviável economicamente, quando comparadas com as tradicionais. Até a “Velhinha de Taubaté” (personagem do magistral Luis Fernando Veríssimo), que ficou conhecida nacionalmente por ser a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo militar, sabe que o preço e a viabilidade de uma dada fonte energética dependem muito da implementação de políticas públicas, de incentivos, de crédito com baixos juros, de redução de impostos. Enfim, de vontade política para fazer acontecer.

    O que precisa ser dito claramente para entender o porquê da baixa utilização da energia solar fotovoltaica no país é que ela não tem apoio, estímulo nem neste, nem nos governos passados. A política energética na área da geração simplesmente relega esta fonte energética. Por isso, em pleno século XXI, a contribuição da eletricidade solar na matriz elétrica brasileira é pífia, praticamente inexiste.

    A realização recente de dois leilões exclusivos para esta fonte energética deixou claro que não basta simplesmente realizar o pregão é necessário que o preço final seja competitivo para garantir a viabilidade das instalações. O primeiro leilão realizado a nível nacional, em outubro de 2014, resultou na contratação de 890 MW, e o valor final atingiu R$ 215,12 / MWh. O segundo, realizado em agosto de 2015, terminou com a contratação de 833,80 MW, a um valor médio de R$ 301,79 / MWh. Ainda em 2015, em novembro próximo será realizado um terceiro leilão especifico para a fonte solar.

    Por outro lado, a geração descentralizada — aquela gerada pelos sistemas instalados nos telhados das residências — praticamente não recebe nenhum apoio e consideração governamental. Apesar do enorme interesse que desperta, segundo pesquisas de opinião realizadas.

    Em janeiro de 2013, a Norma Resolutiva 482/2012, da Agencia Nacional de Energia Elétrica (Aneel), estabeleceu regras para a micro (até 100 kW) e a mini geração (entre 100 kW e 1.000 kW). Permitiu, em tese, que consumidores possam gerar sua própria energia, e trocar o excedente por créditos, que dão desconto em futuras contas de luz. Mas não alavancou o uso desta fonte energética. Os dados estão ai.

    Segundo a própria Aneel, o numero de sistemas deste tipo implantados passou de 8 (de janeiro a março de 2013) para 725 (entre abril e junho de 2015). Deste total, 681 são sistemas fotovoltaicos, 4 biogás, 1 biomassa, 11 solar/eólica, 1 hidráulico e 27 eólicos. São números insignificantes quando comparados, por exemplo, com a Alemanha — que dispõe de mais de um milhão de sistemas instalados nos telhados das residências.

    Fica evidente que persistem obstáculos para uma maior participação da eletricidade solar na matriz elétrica. Para transpor os obstáculos, são necessárias políticas públicas voltadas ao incentivo da energia solar. Por exemplo: a criação, pelos bancos oficiais, de linhas de credito para financiamento com juros baixos; a redução de impostos tanto para os equipamentos como para a energia gerada; a possibilidade de utilizar o FGTS para a compra dos equipamentos e mais informação através de propaganda institucional sobre os benefícios e as vantagens da tecnologia solar.

    Mas o que também dificulta enormemente a geração descentralizada é a atitude das distribuidoras de energia — que administram todo o processo, desde a análise do projeto inicial de engenharia até a conexão à rede elétrica. Cabe a elas efetuarem a ligação na rede elétrica, depois de um burocrático e longo processo administrativo realizado pelo consumidor junto à companhia.

    E convenhamos, aquelas empresas que negociam com energia (compram das geradoras e revendem aos consumidores) não estão nada interessadas em promover um negócio que, mais cedo ou mais tarde, afetará seus lucros. Isto porque o grande sonho do consumidor brasileiro é ficar livre, não depender das distribuidoras com relação à energia que consome. O consumidor deseja é gerar sua própria energia.

    Aí está o “nó” do problema que o governo não quer enfrentar. O lobby das empresas concessionárias, 100% privadas, dificulta o processo através de uma burocracia infernal, que nem todos que querem instalar um sistema solar estão dispostos a enfrentar. Enquanto que em dois dias você instala os equipamentos na sua residência, tem que aguardar quatro meses para estar conectado na rede elétrica.

    O diagnóstico dos problemas encontrados é quase unânime. Só não “enxerga” quem não quer. E não “enxergando”, os obstáculos não serão suplantados. Assim o país continuará patinando, mergulhado em um discurso governamental completamente deslocado da realidade.

    Acordem “ilustres planejadores” da política energética, pois a sociedade não aceita mais pagar pelos erros cometidos por “vossas excelências”. Exige-se mais democracia, mais participação, mais transparência em um setor estratégico, que insiste em não discutir com a sociedade as decisões que toma.

    Heitor Scalambrini Costa é professor universitário

    Fonte: Outras Palavras, 03/09/2015

  • Legado às avessas

    Legado às avessas

    Marcelo Freixo
    Marcelo Freixo

    O Rio é a cidade olímpica onde a especulação imobiliária tem mais fôlego do que o esporte, e a transparência foi desclassificada.

    Seis anos após sermos escolhidos sede dos Jogos de 2016, vemos a contradição no topo do pódio: 40% das escolas municipais não possuem quadras poliesportivas e promessas do atletismo não têm onde treinar.

    Desde o fechamento do estádio de atletismo Célio de Barros, em 2013, atletas como Marcelle da Cruz e Uhuru Figueira, medalhistas em competições nacionais e estaduais, treinam em locais inadequados, como calçadões e pistas de asfalto, o que provoca lesões.

    O sofrimento contrasta com o entusiasmo de Carlos Carvalho. Apesar de nunca ter arremessado um dardo, ele conquistou o ouro olímpico.

    Seu desempenho não é medido em centésimos ou jardas, mas em bilhões que sua empresa, a Carvalho Hosken –que, em 2012, doou R$ 650 mil à campanha de Eduardo Paes e ao PMDB–, faturou em contratos com a prefeitura para construir o Parque Olímpico e a Vila dos Atletas, na Barra da Tijuca. Após os Jogos, os equipamentos serão transformados em condomínios de luxo.

    O ouro não é privilégio da Carvalho Hosken. A delegação da Lava Jato, formada por sete empresas, ganhou 11 obras estratégicas para o evento, que somam R$ 27 bilhões.

    A desconfiança é incrementada pela falta de transparência da prefeitura, que não divulga os valores e a situação dos contratos, apesar de R$ 18 bilhões se referirem a projetos municipais. Uma das obras estratégicas é o Parque Olímpico, cujo consórcio é completado pela Odebrecht e Andrade Gutierrez. Lá, o espírito olímpico virou assombração. As máquinas que erguem o coração dos Jogos reduziram a escombros a vida de 2.500 moradores da Vila Autódromo, comunidade vizinha.

    As famílias foram removidas para dar lugar a uma área verde, que valorizará a vista dos apartamentos a serem comercializados pelas empresas. Após a escolha do Rio como cidade-sede, 19 mil famílias foram desapropriadas na cidade.

    A poucos quilômetros dali, a destruição ambiental e a especulação imobiliária são parceiras na construção do campo de golfe numa área de preservação. O projeto inclui a retirada de 61 mil metros quadrados de vegetação.

    Além disso, a Fiori Empreendimentos, responsável pela obra, poderá construir, na vizinhança do campo, 23 prédios com mais andares do que o permitido pela lei. O Ministério Público investiga Paes por improbidade administrativa.

    Não sou contra a realização da Olimpíada, mas não podemos esquecer que os Jogos duram apenas um mês. Quando a festa acabar, seremos nós que viveremos cotidianamente com as sequelas desse modelo de gestão.

    Marcelo Freixo é professor e deputado estadual PSOL-RJ

    Fonte: Folha de S. Paulo, 08/09/15

  • A morte de Oliver Sacks

    A morte de Oliver Sacks

    Jean Willys
    Jean Willys

    As artes e a medicina ficam um tanto mais tristes com a morte de Oliver Sacks, autor de clássicos que revelaram ao mundo de uma maneira acessível e poética, através da literatura e do cinema, mistérios sobre o cérebro e o corpo humano. Acima de tudo, se esforçava em nos explicar o que nos torna seres humanos, a relação entre a nossa mente e a nossa vida.

    Sua obra aproximou milhões às pessoas que a sociedade considera como diferentes, e defendia a identidade positiva, que a compreensão daquelas realidades pode nos ensinar o que a vida tem de valioso e nos permitir vivê-la mais intensamente. Oliver é exemplo de vida e superação, e sua obra é prova da profunda empatia que sentia por aqueles que sofriam; e ele também sofria! Em sua autobiografia, publicada no Brasil pela Companhia das Letras, revelou ter ouvido de sua mãe que era uma aberração e que jamais deveria ter nascido. Oliver havia revelado ao pai, no final da adolescência, ser homossexual. Diante das repressões sobre a – e contingências da – vida homossexual, viveu 35 anos sem ter relações sexuais, e apenas perto do fim de sua vida encontrou um companheiro.

    Sacks é um exemplo de como a compreensão e a tolerância às diferenças transformam o mundo, e seu exemplo sem dúvida o torna imortal na mente e no coração de tod@s os que se inspiram nele!

  • REINALDO AZEREDO, A VOZ DOS PORÕES, ATACA LAERTE

    REINALDO AZEREDO, A VOZ DOS PORÕES, ATACA LAERTE

    Charge laerteReinaldo Azeredo é personagem semelhante a vários que tiveram seus quinze minutos de fama entre o final de 1963 e os primeiros meses de 1964.

    Tenta ser uma síntese de Gustavo Corção, o arquirreacionário jornalista católico e anticomunista, com o almirante Penna Boto, golpista de primeira hora. Como glacê, exibe tinturas e cacoetes típicos de um Sergio Mallandro.

    Azeredo, com argumentos de fancaria, é polemista raso, metido a sofisticado. Age sempre da mesma maneira. Primeiro, espanca seu oponente, buscando desqualificá-lo a mais não poder.

    Os ataques podem vir por uma crase mal colocada – Reinaldo seria um grande revisor de texto – ou um modo de falar ou vestir.

    Com seu ócio regiamente pago pelo panfleto dos Civita, a insuperável Veja, Reinaldo se acha. De sua tribuna virtual, atua como farol de roleta. Sai batendo a torto e a esquerda, como uma espécie de jagunço do beletrismo conservador.

    Depois de esfolar verbalmente sua vítima, sempre parte para seu rosário de preconceitos em escala ampliada.

    GOLPE BAIXO – Num post de hoje, busca intimidar a genial cartunista Laerte, de quem sou amigo há quase 40 anos. Não tenho nenhuma procuração para defendê-la.

    Mas não é possível ficar indiferente à gosma homofóbica exarada por Azeredo.

    Os golpes iniciais vêm com a sutileza da pancada de uma lâmpada fluorescente na testa. Ao atacar a cartunista, Azeredo faz coro com os homofóbicos do Congresso e dos altares fundamentalistas. Busca ridicularizar, ofender e intimidar.

    Mas não é esse seu alvo.

    A CHARGE – Seu alvo é a estupenda charge em que Laerte desmonta parte do ideário dos novos marchadores pela família, por Deus e pela liberdade, que exibiram sua sofreguidão mental na avenida Paulista, no domingo (16). A imagem foi publicada semana passada pela Folha de S. Paulo e ganhou imensa repercussão.

    O desenho faz o que Millôr Fernandes uma vez disse ser a função do humor, unir o que está desconectado na confusão da vida cotidiana.

    Laerte liga a chacina brutal da periferia de São Paulo – solenemente ignorada pelos manifestantes do dia 16 – com a exaltação da brutalidade nas relações sociais, materializada nos selfies de garotões e garotonas com as tropas da PM.

    (São fortes os indícios de que membros da banda podre da polícia são os responsáveis pela barbárie).

    A charge é irrespondível! Atacou a jugular da hipocrisia dos marchadores.

    Pois aí é que Reinaldo Azeredo faz seu selfie jornalístico com a fina flor da direita brasileira.

    CORAGEM – Se há uma característica a se exaltar em Laerte é sua coragem.
    Coragem exibida em seus trabalhos de humor gráfico desde o início dos anos 1970, em sua militância em favor dos trabalhadores e trabalhadoras desde sempre, de sua busca incessante pelo inesperado na linguagem, no discurso e na piada, de sua ousadia como ser humano, ao desafiar padrões de comportamento aos 60 anos de idade, fase em que a maioria tende à acomodação. Laerte é o oposto. É a fusão de inquietação eterna e generosidade ímpar.

    Uma vez na Itália, Giancarlo Berardi, genial criador de Ken Parker, uma das grandes séries em quadrinhos do século XX, me disse que Laerte deveria ir para a Europa e buscar um mercado a altura de seu talento. “Precisaria modificar um pouquinho a linguagem para ser entendido aqui”, falou ele.

    Laerte representa um dos grandes talentos mundiais dos quadrinhos de todos os tempos. Criou tipos e crônicas seqüenciais memoráveis. É profundamente brasileiro e, mais do que isso, paulistano.

    Duvido que topasse “mudar alguma coisinha” para deixar de falar de seu universo.

    PERSONAGENS – Nesse ambiente ficcional que criou, cabem os Piratas do Tietê, Fagundes, o puxa-saco, o Lobisomem, Fernando Pessoa, os Palhaços Mudos, um condomínio surreal, os gatos, fadas, burocratas, gente estúpida, babacas e seres geniais de uma São Paulo muito particular.

    Mas não cabe um tipo que exala maucaratismo e preconceito a cada linha como o tal do Reinaldo Azeredo.

    Esse subsiste no esgoto em que se transformou parte da grande imprensa brasileira.

    Azeredo fala grosso com o microfone dos Civita. Quando perder o emprego, voltará a piar miudinho e a se fazer de simpático, em busca do ganha-pão. Um tipo desprezível.

    Não é o caso de Laerte.

    A ela, minha homenagem.

  • O preço da novidade

    O preço da novidade

    mercado_de_notíciasA notícia como produto é o tema do documentário Mercado de Notícias, de Jorge Furtado. A marca do diretor está presente na inserção dos elementos históricos que constituem o jornalismo. Trechos da peça The staple of news de Ben Jonson, encenada em 1625 fazem o contraponto às entrevistas que um grupo de jornalistas concedeu individualmente ao documentarista. Os escolhidos são quase todos da grande imprensa: Bob Fernandes, Geneton Moraes, Cristiana Lobo, Jânio de Freitas, José Roberto de Toledo, Raimundo Pereira, Renata Lo Prete, Mino Carta, Luis Nassif e Maurício Dias. A seleção demonstra que Furtado pretendeu opor as mídias contra e à favor ao governo do PT. O expediente funcionou até certo ponto. Mas o que torna o filme realmente interessante é a evolução do conceito de notícia como mercadoria. O fato abordado, quase sempre filtrado pela posição da “fonte”, é refeito como notícia, elevado ao maior teor possível em sua capacidade de impacto. O resultado muitas vezes é falso e em alguns casos, ridículo. O filme destaca, entre outras, a matéria sobre a tela de Picasso numa parede do INSS. A óbvia reprodução é elevada a categoria de original de custo milionário em meia página da Folha de São Paulo. Erros desse calibre são o menor dos males que infestam o jornalismo capitalista. O viés ideológico é problema mais sério. Interesses ligados aos donos dos meios de comunicação estão acima de tudo o mais. O personagem principal da peça de Ben Jonson, encenada parcialmente no filme, chama-se Pecúnia e é representada por uma bela atriz. Irresistível, assim como na vida real.

    Flávio Braga é escritor

  • Não era amor, era cilada

    Não era amor, era cilada

    Gregório Duvivier
    Gregório Duvivier

    Amor, Ordem e Progresso. O binômio positivista na verdade era uma tríade – assim como a Liberdade-Igualdade-Fraternidade dos franceses, só que sem rimar. Nosso trinômio era ainda mais chique, em verso livre. “O amor vem por princípio, a ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim/ Desprezastes esta lei de Augusto Comte/ E fostes ser feliz longe de mim”, cantava Noel.

    O amor estava no princípio, antes do Verbo. Ou talvez o amor fosse um verbo – da quarta conjugação, daqueles verbos terminados em “or”: por, depor, transpor, amor.

    Imagina que lindo ter amor na bandeira – mas os inventores do país tiraram o elemento fundamental da tríade positivista. Amputaram a fraternidade da nossa tríade, e assim nasceu nossa república: amorfóbica.

    Não sou o primeiro a levantar essa bandeira de uma outra bandeira. Jards Macalé fez campanha pela volta do amor na flâmula. Chico Alencar fez um projeto de lei. Suplicy (saudades) tentou emplacar o projeto. Nada. Ao contrário da bíblia, do boi e da bala, o amor não tem bancada. O amor não faz lobby e ficou do lado de fora da festa da democracia. Talvez aí tenham começado os nossos problemas: no recalque da fraternidade.

    Lembro que uma vez reclamei para um francês que eles eram pouco afetivos, enquanto nós brasileiros vivíamos numa cultura mais amorosa. E o professor, roxo de raiva, perguntava, aos berros, onde estava, na história do Brasil, o amor pelos negros, pelos gays, pelos índios, pelas crianças de rua.

    O carinho que temos pelos nossos semelhantes é proporcional ao ódio que temos pela diferença. Nossa fraternidade é seletiva. Só temos fraternité com quem é cliente personnalité.

    Nossa cultura é muito erótica –e muito pouco amorosa. O amor liquído aqui já tá gasoso. Ou como dizia o Poeta: não era amor, era cilada. Cilada. Cilada.

    Não quero engrossar o coro dos que acreditam que protesto é coisa de gente mal amada. Acho que pode haver muito amor no protesto.

    Mas não encontrei nesse. Houvesse mais amor, não estariam protestando contra o fato do DOI-Codi não ter enforcado a Dilma quando teve oportunidade. Não teria gente dizendo que “tinham que ter matado todos os comunistas em 64”.

    Houvesse mais amor, estariam pedindo o fim do programa nuclear brasileiro. Houvesse mais amor, estariam pedindo o fim do incentivo à indústria bélica. Houvesse mais amor, estariam protestando contra a polícia que acaba de cometer uma chacina – não estariam tirando selfie com ela.

    Toda revolução é uma obra de amor – caso contrário, é golpe.

  • Movimento entre duas Copas

    Movimento entre duas Copas

    Marcello Barra
    Marcello Barra

    As multidões que foram às ruas nas Jornadas de Junho possibilitaram a organização do movimento que hoje se vê. A forte greve de educadoras e educadores cariocas que se seguiu a Junho de 2013 foi um pontapé inicial para os processos atuais.

    A Copa do Mundo da FIFA no Brasil sintetiza inúmeras relações, além de na esfera nacional, também na internacional e na interconexão de ambas. O evento foi trazido ao Brasil para coroar determinado modelo de política econômica, inicialmente como social-liberalismo subimperialista, mas que pela enorme dimensão da crise internacional foi combinado com o neodesenvolvimentismo também encarnado na Copa. A contestação ao torneio representa não apenas a oposição crítica ao caminho adotado, como mostra sua insuficiência histórica e crise. O atual embate de forças guarda esse significado.

    São três os processos que se encontram na conjuntura Pré-Copa:

    1. As reivindicações pelo direito à moradia lideradas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), relacionadas ao direito à cidade e aos recursos citadinos. Estimam-se entre 150 e 170 mil as famílias removidas pelas obras da Copa, o que ampliou as necessidades habitacionais, estimadas em 7 milhões de casas.

    2. Um movimento grevista comandado por oposição sindical com pouca experiência de direção e de militância partidária. Os e as grevistas fazem parte de uma nova direção social que se talha nas ruas, dada a renovação frente ao esgotamento do projeto histórico da Central Única dos Trabalhadores (CUT), mas que envolve o sindicalismo em geral. Rodoviários, rodoviárias e garis estão hoje à frente dessas mobilizações por condições de trabalho, acima de tudo por salários e defesa contra as demissões.

    3. Um movimento estudantil que tem o Juntos! à frente, como um elo com a mobilização internacional de Indignados e Indignadas, pinguins chilenos, Occupy norte-americano, revolução árabe, Syriza grega. O Juntos! compõe a Oposição de Esquerda da UNE e esteve no chamado ‘Bloco de Lutas’ em Porto Alegre que reduziu a tarifa de ônibus na cidade, estopim para a nacionalização das manifestações a partir de São Paulo na Revolta de Junho. Com o MTST, liderou os atos de 15 de Maio último em dezenas de cidades brasileiras.

    Uma nota sobre a violência. Obviamente que os atos violentos da sociedade não são louváveis, mas encontram justificação infelizmente diante da violência estatal desproporcionalmente maior: além de truculentos e virulentos, bárbaros, como se viu nos casos dos assassinatos de Antônio de Araújo em Planaltina (DF), Amarildo Dias de Souza, Cláudia Silva Ferreira e Douglas da Silva Pereira (o DG) no Rio de Janeiro. O pior: como a violência do Estado é anterior, os atos violentos das manifestações são uma reação à prática estatal. Para que não paire dúvida: o Estado é o responsável pela violência nas manifestações.

    Marcello Cavalcanti Barra é sociólogo e pesquisador da UnB