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  • Baleia

    Baleia

    NOTÍCIA

    Vidas Secas é o quarto romance do alagoana Graciliano Ramos (1892-1953). Foi editado pela Jose Olympio em 1938. Sua 89a edição é de 2003 (Record).

    Foi publicado nos seguintes países: Argentina (desde 1967), Polônia (desde 1950),Tcheco-eslováquia (desde 1959), Rússia (desde 1961), Itália (desde 1961), Portugal (desde 1962), Estados Unidos (desde 1963), Cuba (desde 1964), França (desde 1964),Alemanha (desde 1965), Romênia (desde 1966), Hungria (desde 1967) eBulgária (desde 1969).

    Em 1962, Vidas Secas recebeu o Prêmio da Fundação William Faulkner (EUA) como livro representativo da Literatura Brasileira Contemporânea.1

    Essa breve notícia dá uma idéia da importância de Vidas Secas para a literatura brasileira.

    AUTOR

    No posfácio à 89a edição (Record), Marilene Filinto escreve: “Graciliano Ramos é, a propósito, e com merecida justificativa, o romancista brasileiro que recebe de nossos mais importantes críticos literários a avaliação unânime de ter escrito obras-primas: Vidas Secas, para Bosi; São Bernardo, para Nelson Werneck Sodré; Angústia, para Otto Maria Carpeaux; todas essas e Infância, para Antonio Candido.”2

    Há escritores que se notabilizam pela extraordinária unidade de sua obra, seja em termos estilísticos ou temáticos. São autores que, a rigor, buscam a perfeição em uma obra-prima que é perseguida livro após livro. É como se a sucessão de seus escritos não fosse senão o aperfeiçoamento de um mesmo livro.

    Graciliano Ramos não pertence a essa plêiade. É inquieto, muda de estilo e de tema, surpreende a cada livro. Mas se lhe pode notar uma preocupação, um interesse especial, uma quase obsessão em perscrutar o mundo interior das personagens; o que, aliás, ele não regateia em confessar: “Tento saber o que eles têm por dentro”.3 Para Adonias Filho, Graciliano “é tão intransigente na revelação da personagem, nessa necessidade em apresentá-la em função da natureza humana, que obscurece o cenário”.4 Em Vidas Secas, no entanto, Antonio Cândido nota que “em lugar de contentar-se com o estudo do homem, Graciliano Ramos o relaciona aqui intimamente ao da paisagem”.5

    Graciliano Ramos se inscreve na tradição do movimento modernista. Adonias Filho é enfático: “Graciliano Ramos trouxe a ficção nordestina para o círculo exato em que se move o romance moderno”.6 Ele procurou aproximar a língua escrita da falada, comprometido com uma “tradução” brasileira do português. “De fato”, comenta Godofredo de Oliveira Neto, “são por todos sobejamente conhecidas, além da nobreza e da parcimonia com que Graciliano faz uso do idioma, as preocupações do autor com o uso da língua portuguesa.”7

    O traço intimista permeia a obra de Graciliano Ramos, a par da sua conhecida preocupação formal. Mas “a preocupação estilística e a sondagem psicológica – dados que levaram alguns críticos a aproximá-lo de Machado de Assis – não bastaram para ocultar a tendência visível, o interesse regional, o acentuado ruralismo”.8

    Para ele, “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”9 E ele escreve como um artesão, garimpando a palavra certa, a construção sintática exata. É um escritor que escreve pouco e detem-se demoradamente na cuidadosa composição ficcional, retomando o escrito, de tempos em tempos, para reescrevê-lo incansáveis vezes. E, assim, vai reelaborando o texto, refinando o estilo como expressão do tema. Talvez por isso seja um escritor de estilo tão variado e original; mas é, sobretudo, um escritor que diz o que tem de ser dito como deve ser dito.

    VIDAS SECAS

    “Depois de Vidas Secas”, escreveu Nelson Werneck Sodré a propósito de Graciliano, “a sua posição de primeiro plano deixou de ser objeto de discussão, havendo a tácita ou pública aceitação de um destaque merecido”.10

    O livro se estende por 120 páginas estruturadas em 13 capítulos narrados na 3a pessoa. “É seu único romance escrito sob a objetividade da terceira pessoa”11, observa Marilene Felinto. Mas é narrado, em sua maior parte, no discurso indireto livre, confundindo e, por vezes, fundindo narrador e personagem.

    Wilson Martins observou que “todos os livros de Graciliano Ramos terminam na desgraça irremediável, menos Vidas Secas, cujos personagens sabem tirar da maior desgraça o alimento para as suas esperanças”.12

    Em Vidas Secas, Graciliano inova a estruturação do romance brasileiro. Os capítulos do livro constituem unidades autônomas – como contos ou crônicas relacionados, que podem ser lidos separadamente com sentido completo – cujo encadeamento faz parte da integração que o leitor der a elas.

    “Ao contrário da composição cerrada de seus outros romances” – comenta Wilson Martins -, “Graciliano Ramos adotou neste a composição em quadros, e cada um desses quadros é um estudo psicológico. Há o estudo psicológico de Fabiano, o de Sinha Vitória, o dos meninos, o de Baleia, o do soldado amarelo. A paisagem comparece predominantemente no primeiro e no último capítulos, porque ‘Cadeia’, ‘Inverno’, ‘Festa’ e ‘O mundo coberto de penas’ são ainda estudos psicológicos”.13

    O livro conta a aperreação de um cabra e sua família na aridez da caatinga. O cabra é Fabiano, um sem-terra. Sua família é a mulher (Sinha Vitória), os dois filhos (o menino mais velho e o menino mais novo) e a cachorra Baleia, que “era como uma pessoa da família”14. Sabe-se, logo no primeiro capítulo, que houvera também um papagaio “mudo e inútil”15 que fora sacrificado para matar a fome do grupo familiar flagelado pela seca.

    “Ordinariamente a família falava pouco”.16 Fabiano, no mais das vezes, expressava-se por meio de “exclamações e onomatopéias”.17   De modo que o papagaio não teria mesmo muito o que imitar.

    E, subjacente ao texto, a questão da linguagem coloca-se com toda contudência. Vidas Secas é, assim, em grande parte, a história da luta de Fabiano para sobrepujar a precariedade da sua fala e, por extenção, do seu pensar e entender.

    BALEIA

    BaleiaA personagem começou a ser construída antes do livro; na verdade, como um conto. O texto é de 1937. Faz parte de um conjunto de quatro histórias que Graciliano redigira pouco depois de sair do cárcere, e que foram publicadas em primeira mão por um jornal de Buenos Aires. Em carta a Heloísa, sua segunda mulher, o escritor revelava: “Escrevi um conto sobre a morte de uma cachorra”. E confessava: “um troço difícil”. Esclarecendo em seguida: “procurei advinhar o que se passa na alma duma cachorra”.18 Em 1938, esse conto foi transformado em capítulo de Vidas Secas – “uma pequena obra-prima de sobriedade formal”19, comentaria mais tarde o crítico Alfredo Bossi. E, em 1946, seria republicado como conto no livro Histórias Incompletas (Globo).

    A cachorra Baleia dá nome ao 9o capítulo, que conta a sua execução por Fabiano. Mas está presente nos oito capítulos precedentes, e reaparece nos dois últimos como remorço. É uma personagem fundamental na tessitura do enredo, pois, como apontou Antonio Cândido, ela “vale sutilmente como vínculo entre a inconsciência da natureza e a frouxa consciência das pessoas”.20

    “Evidentemente”, diz a narrativa, “os matutos como ele não passavam de cachorros”.21 Ou ainda: “Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos”.22 E essa identificação era maior entre os meninos e a cachorra: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam”.23

    Comparando Graciliano a Faulkner, Adonias Filho sublinha que “o instinto de humanização (…) hipertrofia-se de tal modo no romancista brasileiro que atinge animais e aves (o papagaio e a cachorra em Vidas Secas)”.24

    MORTE

    A morte da cachorra se abateu sobre a família como uma tragédia. Baleia estava doente. Fabiano desconfiou que ela estivesse com raiva e a executou. Sinha Vitória lamentou a morte, mas compreendeu as razões do marido. Os meninos a pressentiram e não a aceitaram. Baleia não a entendeu. Era fiel ao dono, ajudava-o no trabalho com a criação, era companheira de seus filhos, não podia esperar que Fabiano lhe fizesse mal. Mas, quando o cabra se aproximou com a espingarda de pederneira, a cadela achacada desconfiou. O instinto da cachorra não a enganara. Fabiano a alvejaria, acertando-lhe uma carga de chumbo nos quartos traseiros, inutilizando-lhe uma perna. “Ouvindo o tiro e os latidos, sinha Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto.”25

    Desse ponto em diante, o foco da narrativa concentra-se em Baleia, com o autor tentando advinhar o sentimento da cachorra em seus extertores.

    Sobre esse relato magistral, Augusto Frederico Schmidt deixou-nos esta passagem:

    “Quando os que se julgam poderosos das letras nada mais forem, quando esses a quem ninguém ousa disputar honrarias, viagens e proventos não forem lembrados sequer, ainda se ouvirão na estrada os passos da família de Fabiano tangida pela seca, a Baleia continuará a morrer angustiada por não estar cumprindo o seu dever de vigiar cabras, naquela hora em que cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, a rondar as moitas afastadas”.26

    FILME

    Graciliano Ramos teve três de suas obras adaptadas para o cinema: Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, em 1963; São Bernardo, de Leon Hirszman, em 1972; e Memórias do Cárcere, também de Nelson Pereira dos Santos, em1983.

    O filme Vidas Secas recebeu o Prêmio Cinema de Arte, o de Melhor Filme para a Juventude e o Prêmio Office Catolique de Cinemá, durante o XVII Festival Internacional de Cinema de Cannes.27

    Nelson Pereira dos Santos, num Fórum na UERJ (gravado em vídeo), tece interessantes comentários sobre a realização do filme Vidas Secas.

    Ele teve a preocupação de respeitar o pensamento de Graciliano Ramos, o projeto do livro, a sua estética, a filosofia e a ideologia do escritor.

    Parece ter sido esse o seu intuito, por exemplo, no plano estético, ao contrariar os cânones, filmando com uma abertura máxima da câmara, numa exposição excessiva à luz, para denotar o sol cáustico do sertão.

    Outra preocupação foi com a estrutura narrativa. Coloca-se aqui a difícil equivalência entre as linguagens literária e cinematográfica. O romance é narrado através de uma seqüência de capítulos que formam compartimentos estanques.   Já o cinema narrativo requer uma sucessão de seqüências encadeadas, integradas, na qual cada seqüência invoca as anteriores e só adqüire sentido na sua linearidade contextual.

    A caracterização de personagens e cenário é outra dificuldade. A linguagem literária é sugestiva, rica em adjetivos e metáforas, delegando ao leitor a tarefa de realizá-la em imagens mentais. A linguagem cinematográfica é mais restritiva, realiza-se sobretudo em imagens concretas. Se, na literatura, cabe ao leitor formalizar a caracterização que a escrita insinua, esboça subjetivamente, no cinema é o diretor que deve objetivá-la.

    Nelson Pereira dos Santos lembra também que a adaptação para o cinema requer a busca da síntese, sem quebra da ordenação dramática, pois o tempo narrativo é outro: o filme deve ser empacotado em uma hora e meia de projeção contínua. Isso implica não apenas em cortes, mas também na fusão de episódios.

    TEORIA CRÍTICA

    Walter Benjamin, em seu ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, aborda estes dois fatos culturais: a reprodução técnica da escrita (“conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa”) e o cinema.

    “Nas obras cinematográficas – diz ele -, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão maciça.” Isso porque na literatura e na pintura tem-se uma obra individual, artesanal, de baixo custo; ao passo que a produção de um filme é um processo industrial, o que obriga a sua difusão maciça para cobrir os custos. A conseqüência é que a obra cinematográfica destina-se ao grande público, enquanto a obra literária – para ficarmos apenas na comparação que aqui mais nos interessa – pode se dar ao luxo de ser dirigida a um público restrito. Se nos fixarmos na dicotomia proposta por Benjamin, valor de cultoversus valor de exposição (categorias mutuamente exclusivas), para o cinema e aliteratura, teríamos a matriz:

    Literatura Cinema
    Valor de exposição +
    Valor de culto +

    Isso porque a exposição de uma obra de arte corrói a sua “aura”. E esse fato é saudado por Benjamin como um processo revolucionário de incorporação das massas à esfera cultural e artística.

    Vistas as coisas de um ponto vista quantitativo, a argumentação de Benjamin é impecável. Com efeito, o cinema tem potencial para atingir um público bem mais amplo do que o da literatura. (No caso de Vidas Secas, eu não saberia dizer se esse potencial se realizou.)

    Mas existem outros aspectos a ser ponderados. Por exemplo, o da permanência da obra de arte. Revendo, hoje, o filme, parece-me que, por razões técnicas, ele “envelheceu”, ao passo que o romance continua sendo vendido em novas reedições. Nesse sentido, o filme adquire uma “aura” que o romance não tem. E, aí, podemos comparar cinema de arte ecinema comercial:

    Cinema de arte Cinema comercial
    Valor de exposição +
    Valor de culto +

    Seria, então, o cinema de arte elitista (reacionário)? Essa questão se colocou, em seu tempo, para o cinema brasileiro, em razão da crise de público do Cinema Novo (aí incluído Vidas Secas).

    Analisando a questão de um ponto-de-vista qualitativo, chega-se a outras conclusões. O cinema, devido aos custos da sua produção industrial, tende a ser comercial. Isso não representa uma incorporação das massas à esfera cultural e artística, mas sim “uma produção em série de bens culturais” por uma “indústria cultural” que reproduz a ideologia dominante e gera alienação. Esse é o ponto-de-vista de Adorno, que, afinal, parece consistente com a realidade.

    NOTAS:

    1 http://www.graciliano.com.br [www]

    2 Filinto, Marilene, in Posfácio a Vidas Secas, 89o edição, Rio de Janeiro, Record, 2003, [MF], p. 130

    3 Carta de Graciliano Ramos a sua segunda mulher, Heloísa, datada de 7 de maio de 1937 [Carta]

    4 Adonias Filho, Volta a Gracliano Ramos, in posfácio a Insônia, Rio de Janeiro, Record, 1996, [AF], p. 166

    5 Candido, Antonio, citado por MF, p. 131

    6 AF, p. 164

    7 Oliveira Neto, Godofredo de, in posfácio a S. Bernardo, Ed. revista, Rio de Janeiro, Record, 2003, [GO], p. 223

    8 AF, p. 163

    9 Ramos, Graciliano, Vidas Secas, 89o edição, Rio de Janeiro, Record, 2003, [VS], contracapa e www

    10 Sodré, Nelson Werneck, in prefácio a Memórias do Cárcere, Rio de Janeiro, Record, 1996, [WS], p. 23

    11 MF, p. 131

    12 Martins, Wilson, Graciliano Ramos, O Cristo e O Grande Inquisidor in posfácio aCaetés, Record, 1996, [WM], p. 233

    13 WM, p. 232

    14 VS, p. 86

    15 VS, p.12

    16 VS, p. 12

    17 VS, p. 20

    18 Carta

    19 Bosi, Alfredo, citado por MF, p. 130

    20 Candido, Antonio, citado por MF, p. 131

    21 VS, p. 79

    22 VS, p. 97

    23 VS, p. 86

    24 AF, p. 167

    25 VS, p. 88

    26 Schmidt, Augusto Frederico, citado por WS, p. 23-24

    2003

    Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos

  • O que não se disse sobre Martin Luther King

    O que não se disse sobre Martin Luther King

    Este artigo de Vicenç Navarro assinala os silêncios sobre Martin Luther King nos maiores meios de comunicação a fim de minimizar o carácter socialista de suas análise e propostas de mudança nos EUA.

    martin_0A propósito do quinquagésimo aniversário da Marcha de Washington, onde o Reverendo Martin Luther King fez o seu famoso discurso “Eu tenho um sonho” (I Have a Dream), escreveram-se muitas reportagens sobre aquela marcha e sobre Martin Luther King, referindo-se a este último como uma figura inspiradora que, atuando como a consciência da nação norte-americana, exigiu àquela sociedade o fim da discriminação contra a população negra, de origem africana. É difícil ver ou ouvir aquele discurso sem relacioná-lo com a sua causa.

    Esta imagem inspiradora de Martin Luther King foi construída à custa de esquecer e fazer esquecer o outro Martin Luther King, o Martin Luther King verdadeiro, que via esta discriminação como resultado de umas relações de poder baseadas numa exploração, não só de raça, mas também de classe social. Silenciou-se que Martin Luther King (a partir de agora MLK) era um socialista que, sem dúvida alguma, foi muito crítico para com as sucessivas políticas, tanto domésticas como internacionais, levadas a cabo durante todos estes anos pelos governos federais, incluindo a administração Obama.

    MLK esteve contra a guerra do Vietname, como teria estado contra as guerras do Iraque e do Afeganistão, e não só pelo seu pacifismo, mas também pelo seu antimilitarismo e anti-imperialismo. Definiu o governo dos EUA como “o agente máximo da violência hoje no mundo… gastando mais em instrumentos de morte e destruição do que em programas sociais vitais para as classes populares do país”. Era profundamente anti capitalista, como consta no seu discurso de que “deveríamos denunciar aqueles que resistem a perder os seus privilégios e prazeres que provêm dos benefícios adquiridos dos seus investimentos, ganhando a sua riqueza através da exploração”.

    E, em 1967, condenou com contundência os três diabos que – em seu parecer – “caracterizavam o sistema de poder norte-americano, a saber, o racismo, a exploração económica e o militarismo”, acentuando que “as mesmas forças que conseguem enormes benefícios através das guerras são as responsáveis pela enorme pobreza no nosso país” (todas estas notas procedem do excelente artigo de Michael Parenti “I Have a Dream, a Blurred Vision”, 29.08.13).

    E o seu último discurso, de apoio às reivindicações dos trabalhadores dos serviços de saneamento que estavam em greve, findou com a famosa frase de que “a luta central nos EUA é a luta de classes”. Duas semanas mais tarde foi assassinado, sem que nunca se tenha esclarecido tal facto. Um fugitivo da prisão de Missouri, James Earl Ray, foi acusado do assassinato. Foi detido no aeroporto de Heathrow, em Londres, com grande quantidade de dinheiro em sua posse. Nunca se esclareceu quem lhe deu esse dinheiro.

    MLK foi um socialista radical na sua análise e nas suas propostas

    Uma coisa é que MLK foi a consciência dos EUA, exigindo que não se discriminassem os negros, petição com um forte conteúdo moral à qual era difícil opor-se. Mas outra coisa muito distinta e ameaçante para a estrutura de poder era sublinhar que a origem da pobreza e da discriminação (que inclui também amplos setores da classe trabalhadora branca, para além da negra, pois a maioria de pobres nos EUA são brancos) requer uma mudança revolucionária (por muito não violenta que seja) das estruturas capitalistas daquele país. E a eleição do Presidente Obama prova, precisamente, a certeza do diagnóstico de MLK. Hoje, o Presidente dos EUA é um afro-americano e, não haja nenhuma dúvida, é um grande avanço. Mas a pobreza entre negros (e entre brancos), nos EUA, não mudou desde então.

    Daí a enorme hostilidade do establishment norte-americano, na qual a Policia Federal, o FBI, foi um elemento chave. Dirigida por uma das figuras mais nefastas da história dos EUA, J. Edgar Hoover (definido pelo famoso jornalista Russell Baker, do New York Times, como um “tirano patético”) tentara convencer o Fiscal Geral do Estado Federal, Robert Kennedy, “que o cérebro dos negros era vinte e cinco por cento mais pequeno que o dos brancos”. Era politicamente próximo do senador segregacionista da Carolina do Sul, Strom Thurmond, tentando por todos os meios desacreditar o movimento anti segregacionista e os seus dirigentes, grande número dos quais eram socialistas e comunistas.

    Na realidade, foram os sindicatos, e muito particularmente, o sindicato do automóvel, o UAW (United Automobile Workers) que financiaram em grande parte a tal marcha. E à esquerda de MLK na marcha estava Walter Reuther, o seu secretário geral, socialista e branco. Uma terça parte dos quatro milhões que participaram na marcha de Washington eram brancos, grande número deles sindicalistas e membros de partidos de esquerda. O slogan da marcha era “liberdade, justiça e trabalho”. E o organizador da marcha, Asa Philip Randolph, era o sindicalista afro americano mais conhecido nos EUA, dirigente do sindicato ferroviário (Paul Le Blanc, “Revolutionary Road, Partial Victory. The March on Washington for Jobs and Freedom”, Monthly Review, Sept 2013).

    E quando o Presidente Kennedy, a instâncias de Hoover, chefe do FBI, pôs como condição para apoiar a marcha, que fossem despedidos da liderança aqueles radicais, MLK negou-se. A pressão da rua era tal que o Presidente Kennedy decidiu à última hora apoiar a marcha, recebendo MLK na Casa Branca. E o bispo católico de Washington, Patrick O’Boyle, ameaçou não participar na marcha a não ser que os discursos (que tinham sido distribuídos antecipadamente) fossem moderados.

    Últimas observações. Em 1986, o dia do nascimento de MLK foi declarado como festa nacional anual. Mas nesta captura da imagem popular de MLK foi transformada deliberadamente a sua mensagem e figura para reciclá-lo como figura inspiradora, consciência do país, a favor dos direitos civis da população afro americana (com especial finca pé no seu poder de votar), esquecendo-se deliberadamente do MLK verdadeiro, que pediu uma mudança profunda, não só nas relações de raça, mas também de classe social. Desta última não se fala.

    A história repete-se: las campanhas de Jesse Jackson

    Eu tive a oportunidade de experimentar uma situação parecida durante a minha participação na campanha eleitoral do Reverendo Jesse Jackson (que estava com MLK quando foi assassinado), nas primárias para a eleição do candidato presidencial do Partido Democrata. Em resposta ao seu convite, fui assessor especial, na sua campanha de 1984, e mais tarde na de 1988. Em 1984, e contra os meus conselhos, apresentou-se como a voz da minoria negra, exigindo a sua incorporação na sociedade americana. Naquela campanha, o establishment liberal norte-americano (cujo maior porta voz era e é The New York Times) escreveu um editorial enormemente positivo acerca da sua candidatura. A razão por que eu o desaconselhara dessa estratégia era fácil de entender. Um representante dos interesses de uma minoria dificilmente poderia alcançar o apoio maioritário da população votante. Apresentar-se como candidato de uma minoria defendendo primordialmente os interesse dessa minoria, não era a melhor maneira de ganhar o apoio da maioria, para ser Presidente dos EUA.

    Em 1988, não se apresentou como a consciência dos EUA ou a voz dos negros, mas a voz da classe trabalhadora dos EUA. E quando os meios de comunicação lhe perguntaram como ele – negro – obteria o voto do trabalhador branco, contestou: “fazendo-lhe ver que tem mais em comum com um operário negro, por ser operário, que com o seu patrão por este ser branco”. Quando se somam todas as cores (negro, branco, amarelo, cinzento, etc.) a classe trabalhadora dos EUA é a maioria da população. Num discurso de classe, mobilizou as bases do Partido Democrata (que estão mais à esquerda que a sua direção), e conseguiu 40% de todos os delegados no congresso do Partido Democrata. Nunca antes, nem depois, as esquerdas nos EUA tiveram tanto poder desde os anos 50. O New York Times escreveu um editorial muito negativo dizendo que Jesse Jackson, em caso de ser eleito, destruiria os EUA. Quer dizer, os seus EUA.

    A lição desta situação é clara. A estrutura de poder deriva da enorme influência do seu poder de classe (assim como de género e raça). E não permite que se toque nesse poder, absorvendo as legítimas vontades do fim da discriminação de género e raça, reciclando-as (incluindo elementos dos tais grupos discriminados dentro da estrutura de poder) para as poder adaptar à estrutura social dominante. Existe hoje um Presidente afro americano e uma classe média negra que não existia antes, o que é motivo de celebração. Mas o nível de vida da maioria de negros e brancos (pertencentes à classe trabalhadora) não melhorou durante todo este período.

    Artigo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Pensamento Crítico” no diário PÚBLICO, 3 de setembro de 2013.

    Tradução: António José André

  • Marco Civil: a polêmica explicada

    Marco Civil: a polêmica explicada

    Por que lei que garantiria liberdade na rede pode ser desfigurada? Que está em jogo, em relação à “neutralidade”? Como participar da mobilização?
    MarcoCivilO Marco Civil da Internet no Brasilnasceu de um processo de consulta pública muito rico e democrático como resposta a interesses de se criminalizar e restringir atividades na internet. Ele parte do princípio de que, antes de se criar legislação específica para crimes digitais, é preciso ter uma base legal para garantir direitos do cidadão e a liberdade da rede. Neste sentido ele foi vitorioso, as legislações de criminalização não saíram e, desde então, a votação do Marco Civil vem caminhando vagarosamente pelos corredores burocráticos do Congresso.

    Agora ele está prestes a ser votado. Porém, por pressões econômicas, sofreu alterações em seu texto – a internet continua sob ataque. A principal diz respeito a “neutralidade da rede”. E como começaram a circular campanhas na internet em defesa deste princípio, achei por bem fazer um post curto e explicativo para quem não é da área poder entender melhor, perceber a gravidade do tema, e se posicionar.

    O que é neutralidade da rede?

    É um princípio que defende que todas as informações que trafegam na internet devem ser tratadas da mesma forma, em especial pelas empresas que fornecem infra-estrutura para a rede – os provedores de internet (aqui no Brasil, empresas como NET, Claro, Vivo, etc.). Na prática, significa que esses provedores não podem fazer distinção entre os pacotes de dados trocados entre os internautas, privilegiando certo tipos de pacotes sobre outros, ou certas fontes de conteúdo sobre outras.

    Por exemplo, um provedor de internet não pode diferenciar a sua experiência de uso na internet deixando o acesso ao facebook privilegiado e rápido, enquanto limita a velocidade para assistir vídeos. Não pode também limitar a banda para serviços de Voz sobre IP ou downloads via BitTorrent. Não pode sequer  deixar o acesso ao site A mais rápido do que ao site B.

    Este princípio é um dos fundamentos da internet: a possibilidade de pessoas trocarem informações diretamente umas com as outras diretamente, sem interferências de intermediários.

    O que pode acontecer se não tivermos neutralidade? 

    Nesse cenário, os provedores de internet ganharão um universo enorme de “mercados” para explorar. Eles poderão, por exemplo, cobrar preços diferenciados dependendo do uso que você fizer da rede. Um plano para poder ter acesso a Voz sobre IP, outro para vídeos online, e assim por diante.

    É como se o nosso fornecedor de energia elétrica, de repente, resolvesse colocar limitações sobre quais tipos de aparelho podemos ligar na tomada e cobrar preços diferenciados por isso. Este vídeo bem humorado de 3 minutos ilustra bem o que nos espera:

    A verdade é que, por não termos uma legislação muito forte, os provedores de internetjá filtram o acesso dos internautas, deixando, por exemplo, o Youtube mais lento em horários de pico ou limitando a velocidade para downloads. Há também agora planos de celular que oferencem acesso a uma determinada rede social gratuitamente, ou seja, dão acesso a internet, mas não a toda a internet!

    E por isso é um problema (ou ‘isso não é um problema de direitos do consumidor’)

    Para além do simples problema que teremos como “consumidores”, onde as empresas terão um campo infinito para nos explorar ainda mais, temos que pensar a partir de um ponto de vista do que queremos para a futuro da internet (e consequentemente para o nosso futuro, já que ele será conectado!).

    A grande revolução da internet é permitir a comunicação irrestrita entre as pessoas. É dar voz e poder de mobilização para grupos historicamente excluídos e sem recursos. Este meu pequeno blog tem virtualmente o mesmo poder de alcance que o site da Rede Globo. Isso é revolucionário e aponta para uma nova era na comunicação – e na organização social – que já começou. A primavera árabe é apenas um exemplo disso.

    Com o fim da neutralidade da rede a internet passa a ser irrestritamente controlada por pequenos grupos empresariais. Todo o conteúdo da rede que hoje é produzido e acessível no mundo todo poderá ser filtrado e o tráfego de visitas direcionado para grandes provedores de conteúdo. “No plano básico você tem acesso irrestrito aos ‘principais jornais’ do mundo, se quiser acesso a blogs internacionais é preciso pegar outro plano”.

    Ou seja, como bem coloca Sergio Amadeu, transformariam a internet numa grande rede de TV a Cabo, com um número limitado de canais para você escolher. E se você quiser que o seu conteúdo seja privilegiado e acessado pelo mundo todo, deve ficar amigo dos donos da infra-estrutura – os provedores. Essa é exatamente a lógica excludente do modelo de comunicação do século XX, que todos pensávamos já estar superado com a chegada da internet.

    Outro ponto importantíssimo a se levantar é a respeito de novas tecnologias e protocolos. Na internet existem vários tipos de protocolos distintos que foram sendo criados ao longo do tempo: para páginas web, para emails, para mensagens instantâneas, para troca de arquivos p2p, etc. O que aconteceria, em um cenário sem neutralidade da rede, com novos protocolos que ainda não existem? Teriam que ter participação ou autorização dos provedores. A inovação, principal motor da internet e da sociedade em rede, ficaria perigosamente restringida.

    Não é uma questão técnica

    É preciso ter claro que não se trata de uma discussão técnica – o argumento das teles é que falta banda, e é preciso restringir para melhorar o serviço. Mas o fato é que a motivação real é o lucro, e não outra. Além disso precisamos ter em vista o quadro mais amplo, onde há uma agenda de ataques a liberdade na internet em várias frentes, sugiro a leitura do meu post de 2012 “a internet está sob ataque e você está no meio do tiroteio“.

    O que fazer

    Barulho! Compartilhe esse problema com amigos. O deputado que defende os interesses das teles é o Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Encha o saco dele! Acesse http://salveainternet.meurio.org.br/ para mandar uma mensagem para todos os deputados. Acesse o site do marco civil para ver o calendário de eventos e ações que vão acontecer esta semana.

    Vamos pra frente ou vamos enterrar a internet?

    Fonte: Controvérsia

  • Quando o morro desceu e ainda assim foi carnaval

    Quando o morro desceu e ainda assim foi carnaval

    Quarta-feira de cinzas. Muitos ajustam suas contas com a folia. Um balanço natural dos dias de carnaval.  Pulei nos blocos de SP, vibrei com os foliões de Olinda pela TV, bem como a vitória da Imperadores do Samba em Porto Alegre e o lindo samba-enredo da Salgueiro no Rio. Foi um carnaval e tanto.

    No caso do país, foi o primeiro carnaval depois das jornadas de junho. E isso tem muito peso. Menos de cem dias nos separam da copa.  O Brasil mudou muito.  E o carnaval, como uma das maiores expressões do estado de ânimo do povo, foi um sintoma claro. Três questões chamaram a atenção e determinaram o carnaval mais politizado dos últimos anos:

    1.       O levante dos garis no Rio.  Um verdadeiro “show” de mobilização e organização. A história se repete. Sindicato vendido faz acordo rebaixado com a prefeitura e com a Comlurb. Assim mesmo, os garis não se entregaram. Passaram por cima da burocracia sindical, pararam 70% da categoria, em que pese o assédio brutal. A imprensa, especialmente a Globo, junto com prefeito Paes, atuou para dizer que não havia greve. As montanhas de lixo, sujando por todas as partes, a cidade mais conhecida do país, em pleno carnaval, falaram por si. A greve segue num impasse. A COMLURB mandou demitir a vanguarda grevista, 300 garis. Entretanto, segue a greve, a sujeira, a mobilização e a queda-de-braço dos garis contra seus inimigos. O fato é que a mobilização já trouxe um sinal claro: mesmo as categorias mais precarizadas e sem tanta tradição de organização sindical estão dispostas a sair às ruas . No caso dos Garis, quebraram preconceitos e acabaram com a suposta “invisibilidade” da profissão. Um salto na consciência de classe. A marchinha que se escutou era “no carnaval, prefeito vai varrer sozinho”. Dias em que o morro desceu e marcou o carnaval carioca.

    2.       Uma combinação inteligente de temas sociais e políticos com a diversão e o entretenimento. Algo que sempre salta aos olhos no nosso carnaval, vide os grandes enredos de Joãozinho Trinta e outros,  nos blocos de crítica no nordeste, entre outras expressões, se generalizou em quase todos espaços. E o mais interessante: está sendo assimilada a cultura, mesmo para setores de esquerda, de que não podemos opor as expressões de cultura popular versus a política organizada. A esquerda está aprendendo a falar a linguagem do povo – claro que não é algo simples e imediato-  mas se nota uma integração maior. Estamos aprendendo que o ascenso de massas chega combinado com as nossas festas e paixões populares, como a Copa das Confederações, o carnaval e o futebol em geral. Junto disso, uma ampla crítica ao caráter de fetichismo do espetáculo. Os “grandes momentos” do carnaval televisivo perde espaço para os espaços de diversão mais populares.

    3.       E o mais importante: muita gente na rua. Ao contrário do clima de instabilidade e pânico que a direita e setores do governo querem criar para evitar manifestações durante a copa, o que se viu foi uma organização mais espontânea e descentralizada dos blocos. Os foliões em todo o país fizeram sua parte, conferindo uma onda mais associativa e menos passiva às folias de momo. Só em São Paulo foram 200 blocos com média de 5 mil pessoas cada um.  Pensando em todo país, foram dezenas de milhões que escolheram as ruas como principal instrumento de socialização do carnaval. Não que isso seja uma novidade, mas a forma como este tipo de evento está se organizando ganha mais força.

    O carnaval de 2014 entrou no ritmo do samba, do frevo, das marchinhas e das jornadas de junho.  Um bom sinal para um ano repleto de mobilizações, greves e incertezas.

  • Amor e capital

    Amor e capital

    Amor_e_capitalÉ absolutamente inacreditável que a obra de Marx tenha sido escrita sob as condições em que foram, e com a morte de quatro de seus filhos, incluída uma menina e dois recém-nascidos. Sem dúvida Jenny foi fundamental para essa obra – que vai muito além da parte escrita, mas também a fundação do primeiro partido internacional, a I Internacional Comunista, participação em diversos processos revolucionários, as sementes de vários sindicatos e partidos nacionais, inúmeras lutas em meados do século XIX até mais do que seu quarto final. Marx foi na maior parte da vida um homem de ação, sempre um revolucionário.

    A obra de Marx e Jenny também é tributária à muita gente, como Helene Demuth e do mais que irmão Frederich Engels, bem como todas as três filhas, Jenny, Eleanor e Laura – das quais, as duas últimas se suicidaram, todas com vidas de tormentas. A partir da visão imprimida no livro Amor e capital, uma obra como a de Karl Marx é a obra de uma família que, da profundeza de uma vida miserável materialmente, conseguiu, a partir de crença e convicção imbatíveis, forças para mudar o mundo. Essa é a tese da autora Mary Gabriel.

    Mary também ajuda a desmistificar que teria sido obra do mecenas Engels a sustentação da família. De fato ele buscava não os deixar na mão (mas também nem sempre conseguia), mas foi o trabalho suado do corpo dos Marx e de tantos e tantas camaradas que garantiu a sobrevivência da família. A autora mostra também a traição de Marx e o filho dele fora do casamento (com Demuth), o Freddy.

    É possível perceber, finalmente, que Marx é filho de uma época, que, com a luta e vitórias feministas, como na Revolução Russa, na pílula anticoncepcional, o direito ao aborto (que no Brasil passa à decisão de bancada de fundamentalistas religiosos), Marx como um mítico macho heróico não é mais possível.

    [GABRIEL, Mary. Amor e capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.]

  • A exaltação de um factoide

    A exaltação de um factoide

    Marcelo Freixo
    Marcelo Freixo

    Pela terceira vez em menos de uma semana, O GLOBO me cita em seus editoriais. As diferenças do texto publicado ontem em relação aos demais são o tom menos arrogante e o alvo. Após a péssima repercussão das tentativas de associar a morte do cinegrafista Santiago Andrade a mim, o jornal assume postura mais cuidadosa, até porque o objetivo é explicar a cobertura da tragédia aos seus leitores.

    Estranho é O GLOBO não demonstrar tamanho ímpeto editorial quando o assunto é, por exemplo, a comprovada ligação entre o ex-governador em exercício Sérgio Cabral e o empreiteiro Fernando Cavendish. Quantos editoriais foram dedicados ao fato de a empresa de advocacia da primeira-dama, Adriana Ancelmo, ter contratos com concessionárias estaduais? Quantos textos foram escritos sobre as relações entre o governador e Eike Batista?

    Vamos fazer uma rápida retrospectiva. No editorial do dia 12 de fevereiro, o jornal me trata como inimigo da democracia. Achei interessante o grupo tocar no assunto. Afinal, no próximo 1º de abril, o golpe militar completa 50 anos e a empresa deve ter histórias palpitantes para contar.

    Dois dias depois, o jornal afirma que meu gabinete tem comprovada proximidade com os black blocs. Comprovada proximidade? Creio que o manual de redação do grupo é mais criterioso do que levam a crer seus editoriais. A comoção provocada pela morte do cinegrafista Santiago Andrade não pode ser usada como instrumento de difamação.

    Depois de tanta ferocidade, O GLOBO tenta justificar a série de matérias produzidas, com grande destaque, sobre a minha suposta ligação com os responsáveis pelo assassinato de Santiago. Num tom professoral e oportunamente sóbrio, o editorial “O dever de um jornal”, publicado ontem, se arrisca em novos malabarismos.

    Primeiro, O GLOBO tenta justificar a manchete do dia 10 de fevereiro, que alardeia minha relação com os acusados, lembrando que a conversa telefônica entre o advogado Jonas Tadeu Nunes e a ativista Elisa Quadros foi registrada na 17ª DP (São Cristóvão). Logo, a existência do documento baseado num “disse me disse” seria suficiente para que uma denúncia grave como esta fosse divulgada. Tudo bem, se o argumento parece tão óbvio ululante e irrefutável para o grupo, por que os jornais “Folha de S.Paulo” e “O Dia”, por exemplo, não se comportaram da mesma forma e nada escreveram sobre o episódio? Então, a postura é, sim, controversa.

    O tal Termo de Declaração registrado na delegacia foi produzido de forma irresponsável por um advogado extremamente suspeito e divulgado com destaque, no mínimo, inconsequente. Vejam que estranho: a conversa que suscitou as acusações ocorreu entre Jonas Tadeu Nunes e Elisa Quadros, como o próprio advogado disse, mas o documento foi assinado pelo estagiário Marcelo Mattoso. Além disso, o delegado Maurício Luciano não teve acesso ao conteúdo da conversa. Por que ele não passou o telefone ao delegado? Por que não pôs a ligação no viva-voz? Ou seja, o Termo de Declaração, grande “prova” do GLOBO, é frágil por ter sido produzido sem qualquer cuidado.

    Até aquele momento, ainda não sabíamos que Jonas Tadeu Nunes já fora condenado por danos morais, enriquecimento sem justificativa, e danos morais e materiais em três processos distintos — não vi O GLOBO destacar isso durante a cobertura. Apesar disso, sua atitude, naquele dia 9 de fevereiro, é digna de estranheza. Jonas Tadeu Nunes não agiu como advogado nem como defensor dos interesses de seu cliente ao pegar o Termo de Declaração, imediatamente após o seu registro, e entregar nas mãos de uma repórter da TV Globo.

    Por que O GLOBO não se interessa tanto pela conduta tão controversa e suspeita do advogado, como o faz quando ele dirige acusações sem provas contra mim? Enquanto veículos e colunistas de outros jornais, como Jânio de Freitas, da “Folha de S.Paulo”, acham tudo muito estranho, Jonas Tadeu Nunes reina sob os holofotes globais e leiloa informações. Quando acusa, o advogado recebe mais destaque que o delegado, responsável pelo inquérito.

    O autor do editorial mente ao escrever que eu afirmei não saber de nada ao ser procurado por Artur, da equipe de produção da emissora, naquele mesmo dia. Em momento algum neguei ter falado com Elisa Quadros ao telefone. Ela me ligou exclusivamente para relatar que temia a possibilidade de Fábio Raposo ser torturado no presídio. Eu falei que isso não aconteceria e desliguei. Sou presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e dezenas de pessoas me procuram para fazer denúncias.

    Também não criei obstáculos para dar entrevista. Pelo contrário, dar entrevistas é o que mais tenho feito nestes últimos dias. Só pedi que o tal documento me fosse encaminhado antes. Afinal, não posso falar sobre algo cujo conteúdo desconheço. O jornal cumpriu sua obrigação de me ouvir, mas foi leviano ao publicar uma manchete baseada em “provas” extremamente frágeis. No fim da chamada de capa, o fatal: “O parlamentar nega.”

    O GLOBO insiste em dizer que foi imparcial e comedido ao tratar do assunto durante a semana. Não foi. Basta ler os editoriais publicados e citados aqui. Como não havia provas e mais informações para me associar a esta tragédia, os ataques saíram dos espaços de notícia para os de Opinião. Não me acho acima do bem e do mal, como insinuou o jornal, numa tentativa de desqualificar minha indignação. Mas não vou titubear em defender minha trajetória ante acusações estapafúrdias.

    Agora, o jornal tenta se esconder sob o manto da “missão jornalística” para justificar o noticiário desmedido e leviano dirigido contra mim e o PSOL. O papel nobre que O GLOBO atribuiu a si mesmo ontem, numa linguagem tão prudente, é mais uma tentativa de subestimar a inteligência de seus leitores.

    Se não houvesse tanta indignação social e manifestações de solidariedade a mim — inclusive de jornalistas da própria Rede Globo —, essa autocrítica mambembe sequer teria sido feita. Pedir desculpas é um gesto que exige grandeza.

    19/02/2014

    Marcelo Freixo é deputado estadual do PSOL-RJ

  • A atualidade brutal de Hannah Arendt

    A atualidade brutal de Hannah Arendt

    Filme de Margarethe von Trotta sugere que totalitarismo pode assumir faces “normais” e parece indispensável num cenário de democracia esvaziada e guerra iminente

    Adolf Eichmann, criminoso nazista. Mas, também, um burocrata preocupado apenas em cumprir ordens…
    Adolf Eichmann, criminoso nazista. Mas, também, um burocrata preocupado apenas em cumprir ordens…

    O filme causa impacto. Trata-se, tema central do pensamento de Hannah Arendt, de refletir sobre a natureza do mal. O pano de fundo é o nazismo, e o julgamento de um dos grandes mal-feitores da época, Adolf Eichmann. Hannah acompanhou o julgamento para o jornal New Yorker, esperando ver o monstro, a besta assassina. O que viu, e só ela viu, foi a banalidade do mal. Viu um burocrata preocupado em cumprir as ordens, para quem as ordens substituíam a reflexão, qualquer pensamento que não fosse o de bem cumprir as ordens. Pensamento técnico, descasado da ética, banalidade que tanto facilita a vida, a facilidade de cumprir ordens. A análise do julgamento, publicada pelo New Yorker, causou escândalo, em particular entre a comunidade judaica, como se ela estivesse absolvendo o réu, desculpando a monstruosidade.

    A banalidade do mal, no entanto, é central. O meu pai foi torturado durante a II Guerra Mundial, no sul da França. Não era judeu. Aliás, de tanto falar em judeus no Holocausto, tragédia cuja dimensão trágica ninguém vai negar, esquece-se que esta guerra vitimou 60 milhões de pessoas, entre os quais 6 milhões de judeus. A perseguição atingiu as esquerdas em geral, sindicalistas ou ativistas de qualquer nacionalidade, além de ciganos, homossexuais e tudo que cheirasse a algo diferente. O fato é que a questão da tortura, da violência extrema contra outro ser humano, me marcou desde a infância, sem saber que eu mesmo a viria a sofrer. Eram monstros os que torturaram o meu pai? Poderia até haver um torturador particularmente pervertido, tirando prazer do sofrimento, mas no geral, eram homens como os outros, colocados em condições de violência generalizada, de banalização do sofrimento, dentro de um processo que abriu espaço para o pior que há em muitos de nós.

    Por que é tão importante isto, e por que a mensagem do filme é autêntica e importante? Porque a monstruosidade não está na pessoa, está no sistema. Há sistemas que banalizam o mal. O que implica que as soluções realmente significativas, as que nos protegem do totalitarismo, do direito de um grupo no poder dispor da vida e do sofrimento dos outros, estão na construção de processos legais, de instituições e de uma cultura democrática que nos permita viver em paz. O perigo e o mal maior não estão na existência de doentes mentais que gozam com o sofrimento de outros – por exemplo uns skinheads que queimam um pobre que dorme na rua, gratuitamente, pela diversão – mas na violência sistemática que é exercida por pessoas banais.

    Entre os que me interrogaram no DOPS de São Paulo encontrei um delegado que tinha estudado no Colégio Loyola de Belo Horizonte, onde eu tinha estudado nos anos 1950. Colégio de orientação jesuíta, onde se ensinava a nos amar uns aos outros. Encontrei um homem normal, que me explicava que arrancando mais informações seria promovido, me explicou os graus de promoções possíveis na época. Aparentemente queria progredir na vida. Outro que conheci, violento ex-jagunço do Nordeste, claramente considerava a tortura como coisa banal, coisa com a qual seguramente conviveu nas fazendas desde a sua infância. Monstros? Praticaram coisas monstruosas, mas o monstruoso mesmo era a naturalidade com a qual a violência se pratica.

    Um torturador na OBAN me passou uma grande pasta A-Z onde estavam cópias dos depoimentos dos meus companheiros que tinham sido torturados antes. O pedido foi simples: por não querer se dar a demasiado trabalho, pediu que eu visse os depoimentos dos outros, e fizesse o meu confirmando a verdades, bobagens ou mentiras que estavam lá escritas. Explicou que eu escrevendo um depoimento que repetia o que já sabiam, deixaria satisfeitos os coronéis que ficavam lendo depoimentos no andar de cima (os coronéis evitavam sujar as mãos), pois veriam que tudo se confirmava, ainda que fossem histórias absurdas. Segundo ele, se houvesse discrepâncias, teriam de chamar os presos que já estavam no Tiradentes, voltar a interrogá-los, até que tudo batesse. Queria economizar trabalho. Não era alemão. Burocracia do sistema. Nos campos de concentração, era a IBM que fazia a gestão da triagem e classificação dos presos, na época com máquinas de cartões perfurados. No documentário A Corporação, a IBM esclarece que apenas prestava assistência técnica.

    O mal não está nos torturadores, e sim nos homens de mãos limpas que geram um sistema que permite que homens banais façam coisas como a tortura, numa pirâmide que vai desde o homem que suja as mãos com sangue até um Rumsfeld que dirige uma nota aos exército americano no Iraque, exigindo que os interrogatórios sejam harsher, ou seja, mais violentos. Hannah Arendt não estava desculpando torturadores, estava apontando a dimensão real do problema, muito mais grave.

    Adolf Eichmann em seu julgamento em Jerusalém, (Julho 17, 1961), por Ronald Searle
    Adolf Eichmann em seu julgamento em Jerusalém, (Julho 17, 1961), por Ronald Searle

     

    A compreensão da dimensão sistêmica das deformações não tem nada a ver com passar a mão na cabeça dos criminosos que aceitaram fazer ou ordenar monstruosidades. Hannah Arendt aprovou plenamente e declaradamente o posterior enforcamento de Eichmann. Eu estou convencido de que os que ordenaram, organizaram, administraram e praticaram a tortura devem ser julgados e condenados.

    O segundo argumento poderoso que surge no filme, vem das reações histéricas de judeus pelo fato de ela não considerar Eichmann um monstro. Aqui, a coisa é tão grave quanto a primeira. Ela estava privando as massas do imenso prazer compensador do ódio acumulado, da imensa catarse de ver o culpado enforcado. As pessoas tinham, e têm hoje, direito a este ódio. Não se trata aqui de deslegitimar a reação ao sofrimento imposto. Mas o fato é que ao tirar do algoz a característica de monstro, Hannah estava-se tirando o gosto do ódio, perturbando a dimensão de equilíbrio e de contrapeso que o ódio representa para quem sofreu. O sentimento é compreensível, mas perigoso. Inclusive, amplamente utilizado na política, com os piores resultados. O ódio, conforme os objetivos, pode representar um campo fértil para quem quer manipulá-lo.

    Quando exilado na Argélia, durante a ditadura militar, conheci Ali Zamoum, um dos importantes combatentes pela independência do país. Torturado, condenado à morte pelos franceses, foi salvo pela independência. Amigos da segurança do novo regime localizaram um torturador seu, numa fazendo do interior. Levaram Ali até a fazenda, onde encontrou um idiota banal, apavorado num canto. Que iria ele fazer? Torturar um torturador? Largou ele ali para ser trancado e julgado. Decepção geral. Perguntei um dia ao Ali como enfrentavam os distúrbios mentais das vítimas de tortura. Na opinião dele, os que se equilibravam melhor, eram os que, depois da independência, continuaram a luta, já não contra os franceses mas pela reconstrução do país, pois a continuidade da luta não apagava, mas dava sentido e razão ao que tinham sofrido.

    No 1984 do Orwell, os funcionários eram regularmente reunidos para uma sessão de ódio coletivo. Aparecia na tela a figura do homem a odiar, e todos se sentiam fisicamente transportados e transtornados pela figura do Goldstein. Catarse geral. E odiar coletivamente pega. Seremos cegos se não vermos o uso hoje dos mesmos procedimentos, em espetáculos midiáticos.
    Hannah Arendt, filósofa política alemã de origem judaica (1906-1975)

    Hannah Arendt, filósofa política alemã de origem judaica (1906-1975)
    Hannah Arendt, filósofa política alemã de origem judaica (1906-1975)

    O texto de Hannah, apontando um mal pior, que são os sistemas que geram atividades monstruosas a partir de homens banais, simplesmente não foi entendido. Que homens cultos e inteligentes não consigam entender o argumento é em si muito significativo, e socialmente poderoso. Como diz Jonathan Haidt, para justificar atitudes irracionais, inventam-se argumentos racionais, ou racionalizadores.1 No caso, Hannah seria contra os judeus, teria traído o seu povo, tinha namorado um professor que se tornou nazista. Os argumentos não faltaram, conquanto o ódio fosse preservado, e com o ódio o sentimento agradável da sua legitimidade.

    Este ponto precisa ser reforçado. Em vez de detestar e combater o sistema, o que exige uma compreensão racional, é emocionalmente muito mais satisfatório equilibrar a fragilização emocional que resulta do sofrimento, concentrando toda a carga emocional no ódio personalizado. E nas reações histéricas e na deformação flagrante, por parte de gente inteligente, do que Hannah escreveu, encontramos a busca do equilíbrio emocional. Não mexam no nosso ódio. Os grandes grupos econômicos que abriram caminho para Hitler, como a Krupp, ou empresas que fizeram a automação da gestão dos campos de concentração, como a IBM, agradecem.

    O filme é um espelho que nos obriga a ver o presente pelo prisma do passado. Os americanos se sentem plenamente justificados em manter um amplo sistema de tortura – sempre fora do território americano pois geraria certos incômodos jurídicos -, Israel criou através do Mossad o centro mais sofisticado de tortura da atualidade, estão sendo pesquisados instrumentos eletrônicos de tortura que superam em dor infligida tudo o que se inventou até agora, o NSA criou um sistema de penetração em todos os computadores, mensagens pessoais e conteúdo de comunicações telefônicas do planeta. Jovens americanos no Iraque filmaram a tortura que praticavam nos seus celulares em Abu Ghraib, são jovens, moças e rapazes, saudáveis, bem formados nas escolas, que até acham divertido o que fazem. Nas entrevistas posteriores, a bem da verdade, numerosos foram os jovens que denunciaram a barbárie, ou até que se recusaram a praticá-la. Mas foram minoria.2

    O terceiro argumento do filme, e central na visão de Hannah, é a desumanização do objeto de violência. Torturar um semelhante choca os valores herdados, ou aprendidos. Portanto, é essencial que não se trate mais de um semelhante, pessoa que pensa, chora, ama, sofre. É um judeu, um comunista, ou ainda, no jargão moderno da polícia, um “elemento”. Na visão da KuKluxKlan, um negro. No plano internacional de hoje, o terrorista. Nos programas de televisão, um marginal. Até nos divertimos, vendo as perseguições. São seres humanos? O essencial, é que deixe de ser um ser humano, um indivíduo, uma pessoa, e se torne uma categoria. Sufocaram 111 presos nas celas? Ora, era preciso restabelecer a ordem.

    Um belíssimo documentário, aliás, Repare Bem, que ganhou o prêmio internacional no festival de Gramado, e relata o que viveu Denise Crispim na ditadura, traz com toda força o paralelo entre o passado relatado no Hannah Arendt e o nosso cenário brasileiro. Outras escalas, outras realidades, mas a mesma persistente tragédia da violência e da covardia legalizadas e banalizadas.

    Sebastian Haffner, estudante de direito na Alemanha em 1930, escreveu na época um livro – Defying Hitler: a memoir – manuscrito abandonado, resgatado recentemente por seu filho que o publicou com este título.3 O livro mostra como um estudante de família simples vai aderindo ao partido nazista, simplesmente por influência dos amigos, da mídia, do contexto, repetindo com as massas as mensagens. Na resenha do livro que fiz em 2002, escrevi que o que deve assustar no totalitarismo, no fanatismo ideológico, não é o torturador doentio, é como pessoas normais são puxadas para dentro de uma dinâmica social patológica, vendo-a como um caminho normal. Na Alemanha da época, 50% dos médicos aderiram ao partido nazista.

    O próximo fanatismo político não usará bigode nem bota, nem gritará Heil como os idiotas dos “skinheads”. Usará terno, gravata e multimídia. E seguramente procurará impor o totalitarismo, mas em nome da democracia, ou até dos direitos humanos.

    1 Jonathan Haidt, The Righteous Mind (A Mente Moralista),http://dowbor.org/2013/06/jonathan-haidt-the-righteous-mind-why-good-people-are-divided-by-politics-and-religion-a-mente-moralista-por-que-boas-pessoas-sao-divididas-pela-politica-e-pela-religiao.html/

    2 Melhor do que qualquer comentário, é ver o filme O Fantasma de Abu Ghraib, disponível no Youtube em http://www.youtube.com/watch?v=_TpWQj0MjvI&feature=youtube_gdata_player ; ver também a pesquisa da BBChttp://guardian.co.uk/world/2013/mar/06/pentagon-iraq-torure-centres-link ; sobre Guantanamo, ver o artigo do New York Times de 15/04/2013

    3 Sebastian Haffner – Defying Hitler – http://dowbor.org/2003/08/defying-hitler-a-memoir.html/

    Fonte: Outras Palavras, 05/09/2013

  • A mando de Stálin

    A mando de Stálin

    O homem que amava cachorrosRevoluções como a francesa e a bolchevique trariam o vírus da auto aniquilação de suas lideranças, essa é a tese subjacente ao romance O Homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura (Editora Boitempo). Em seiscentas páginas, o autor vai desfibrando a última década de vida de dois homens: Trotsky e Juan Mercader. O segundo matou o primeiro com um golpe de picareta no crânio, em 1940, em Coyoacán, México. Ambos eram comunistas, mas Trotsky estava no exílio, por divergir de Stálin, e foi vítima deste. Mercader infiltrou-se entre os seguidores de Trotsky até ser recebido sem suspeitas na casa onde o exilado morava. Atacou-o no momento em que ele alimentava os coelhos.

    Leonardo Padura é cubano e expõe algumas mágoas com o sistema, principalmente no tocante à censura. É um homem de 62 anos que passou a maior parte da vida imaginando que Trotsky era um traidor e que Stálin tinha razão. Não perdoa o governo cubano por isso. Acho que essa postura compromete um pouco o romance. Ele toma partido. O livro é escrito na terceira pessoa e cheio de adjetivos. Mercader morou em Cuba e o autor o conheceu ou conheceu um amigo dele. Isso não fica claro. Mercader carregava uma cicatriz na mão, feita pelos dentes de Trotsky quando reagiu ao ataque. O assassino não conseguia esquecer o grito da vítima. Isso é muito bem descrito, de uma fora um tantonoir. Padura é autor de livros policiais. Há muita informação na obra, muita pesquisa. Imagino que se ele optasse pela primeira pessoa dos dois personagens, o livro poderia ter alcançado um nível ainda melhor. Ele deixaria que o leitor decidisse a vilania ou o heroísmo dos personagens.  Mas, de qualquer forma, é uma obra admirável e envolvente que se lê sem esforço. Para quem sonhou algum dia com o socialismo implantado no planeta, é um livro triste. Mas, certamente aprendemos alguma coisa.

    Flávio Braga é escritor

  • Pensamento brasileiro

    Pensamento brasileiro

    Vladimir Safatle
    Vladimir Safatle

    No último domingo, o Instituto Datafolha publicou uma pesquisa a respeito do posicionamento ideológico dos brasileiros. Essa não foi a primeira vez que pesquisas dessa natureza foram feitas pelo instituto, mas foi a primeira vez que questões econômicas ligadas à função do Estado, às leis trabalhistas e à importância de financiar serviços públicos apareceram. O resultado foi simplesmente surpreendente.

    Se você ler os cadernos de economia dos jornais e ouvir comentaristas econômicos na televisão e no rádio, encontrará necessariamente o mesmo mantra: os impostos brasileiros são insuportavelmente altos, as leis trabalhistas apenas encarecem os custos e, quanto mais o Estado se afastar da regulação da economia, melhor. Durante décadas foi praticamente só isso o que ouvimos dos ditos “analistas” econômicos deste país.

    No entanto décadas de discurso único no campo econômico foram incapazes de fazer 47% dos brasileiros deixarem de acreditar que uma boa sociedade é aquela na qual o Estado tem condição de oferecer o máximo de serviços e benefícios públicos.

    Da mesma forma, 54% associam leis trabalhistas mais à defesa dos trabalhadores do que aos empecilhos para as empresas crescerem, e 70% acham que o Estado deveria ser o principal responsável pelo crescimento do Brasil.

    Agora, a pergunta que não quer calar é a seguinte: por que tais pessoas praticamente não têm voz na imprensa econômica deste país? Por que elas são tão sub-representadas na dita esfera pública?

    A pesquisa ainda demonstra que, do ponto de vista dos costumes, os eleitores brasileiros não se diferenciam muito de um perfil conservador. O que deixa claro como suas escolhas eleitorais são eminentemente marcadas por posições ideológicas no campo econômico. Uma razão a mais para que tais posições possam ter maior visibilidade e estar em pé de igualdade com as posições econômicas liberais hegemônicas na imprensa brasileira.

    É claro que haverá os que virão com a velha explicação ressentida: o país ama o Estado devido à “herança patrimonialista ibérica” e à falta de empreendedorismo congênita de seu povo. Essa é a velha forma de travestir egoísmo social ressentido e preconceituoso com roupas de bricolagem histórica.

    Na verdade, o povo brasileiro sabe muito bem a importância da solidariedade social construída por meio da fiscalidade e da tributação dos mais ricos, assim como é cônscio da importância do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado e da defesa do bem comum. Só quem não sabe disso são nossos analistas econômicos, com suas consultorias milionárias pagas pelo sistema financeiro.