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  • VAMOS COMBATER AS DESIGUALDADES DA NOSSA SOCIEDADE QUE ELIMINAM A DIGNIDADE, O AMOR, A ESPERANÇA, AS VIDAS . Por Francisvaldo Mendes

    VAMOS COMBATER AS DESIGUALDADES DA NOSSA SOCIEDADE QUE ELIMINAM A DIGNIDADE, O AMOR, A ESPERANÇA, AS VIDAS . Por Francisvaldo Mendes

    VAMOS COMBATER AS DESIGUALDADES DA NOSSA SOCIEDADE QUE ELIMINAM A DIGNIDADE, O AMOR, A ESPERANÇA, AS VIDAS

    Por Francisvaldo Mendes

    Um dos golpes mais duros com a ampliação das desigualdades, está na vida da população em situação de rua. Todas as pessoas nomeadas de mendigas ou pedintes, que foram abandonadas por alguma circunstância em suas vidas, sentem o impacto mais duro das desigualdades criadas e forçadas pelo capitalismo. Esse grupo de SEM QUALQUER COISA sofre com a mais dura e lamentável consequência da exploração.

    No ano de 2005 ocorreu o primeiro ENCONTRO NACIONAL SOBRE POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA, que foi caracterizado como: “grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta, vínculos interrompidos ou fragilizados e falta de habitação convencional regular ou irregular, sendo compelido a utilizar a rua como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou de forma permanente”. Esse grupo social tem essas condições de vida imposta pelos burgueses, mais conhecidos como os “donos do poder” e seus operadores da política a qual são “credenciados” como pessoas eleitas, mas que são oportunistas e gananciosas assumindo postos de governantes (com as devidas exceções).

    Esses despossuídos de tudo sofrem o peso da maior miséria existencial, seja material, emocional, psicológica, afetiva etc. E não há no horizonte perspectiva de diminuição progressiva da quantidade de pessoas nessa situação, ao contrário, enquanto os lucros ampliam, aumentam também o número de pessoas que entram no contexto da miséria absoluta e padecem ainda mais no processo da atual pandemia.

    A política que predomina no Estado é voltada para a mais violenta exploração e diminuição de tempo de vida das pessoas que vivem da venda da força de trabalho. Todas as pessoas que subsistem das condições mais precárias, instáveis ou inexistentes compõem uma multidão que necessita das políticas para sobrevivência.

    Pesquisas do IPEA indicam que com a pandemia a vulnerabilidade das pessoas que vivem nas ruas exige ações do Estado para defender a vida. Mas é justamente a vida que está abalada e diminuída com as políticas de Estado que apostam nas desigualdades. Houve um crescimento de 140% das pessoas que estão impostas a viver sem qualquer tipo de proteção e acolhimento, dependendo, na grande maioria das vezes, de setores da sociedade civil que apostam em saúde, acolhimento e solidariedade. Se não bastasse as políticas do Estado, nos três níveis – municipal, estadual e federal – não apostarem na vida, o atual governo federal é a marca de ampliação das desigualdades e aposta no lucro crescente com o custo da diminuição da vida.

    Os números das doenças, mortes e condições desfavoráveis para a vida são alarmantes. Não bastasse as pessoas viverem o terror de mais de 425 mil mortes e dos números de aproximadamente 3 mil mortes diárias, uma contagem oficial com pouco crédito, as pessoas que estão impostas a viver nas ruas sem o básico para sobreviver vivem o impacto de um grande terror humano. Há um evidente aumento da população em situação de rua, aumento progressivo com a inexistência de políticas assertivas para que as pessoas tenham acesso ao abrigo, acolhimento, higienização, água e esgoto.

    Tal situação é avassaladora e o descalabro evidente, principalmente se tendo em conta os maiores impactos das desigualdades. É crescente os volumes dos lucros, a titulo de exemplo podemos observar os ganhos dos bancos como o Bradesco, que nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2021 o lucro foi de 6,5 bilhões de reais, o do Itaú que lucrou 5,44 bilhões de reais, o do Santander que lucrou mais de 4 bilhões. E isso ocorreu nos três primeiros meses deste ano, ficando cristalino a aberração social que vivemos.

    As pessoas estão expostas a terem suas vidas roubadas e diminuídas, e isso ocorre em um contexto que o número de pessoas mais fragilizadas para se manter viva também é ampliado. O IPEA, por meio de seu estudo “População em Situação de Rua em Tempos de Pandemia: Um Levantamento de Medidas Municipais Emergenciais” demonstra que ações emergenciais existentes em prefeituras são absolutamente insuficientes para buscar reverter essa tendência imposta pela atual configuração capitalista que predomina no Brasil. Todos os tipos de obstáculos para a vida se ampliam, seja a falta de espaços de acolhimento, fata de higiene, falta de alimentação e crianças que são largadas ao abandono, além dos transtornos mentais que são potencializados pelo caos social no Brasil.

    Quaisquer medidas emergenciais utilizadas por prefeituras em todo o país não são, ainda mais nos dias atuais, suficientes para que a vida tenha condições de se sustentar. Os paliativos emergenciais, ainda que necessários, são evidentemente muito insuficientes para o enfrentamento das desigualdades. A necessidade de alteração da política é fundamental para qualquer enfrentamento da morte nas condições atuais com condições de defender a vida das pessoas. A quantidade de pessoas, com baixíssimos ou nenhum recursos, para se sustentar e sustentar seus familiares, está progressivamente ampliada e agora chega ao patamar de indigência e miséria material catastrófica.

    Não há dúvida que para alterar tal situação medidas urgentes de RENDA BÁSICA para todas as pessoas são fundamentais. Assim como a garantia que todas as pessoas tenham lugar para morar, condições de higiene, água potável e esgoto. Essa situação lamentável, imposta pela necropolítica que predomina no país, força as pessoas em situação de rua, assim como todas as que vivem na periferia – sejam em favelas ou bairros populares – as piores condições de vida registradas em nossa história.

    Os lucros dos bancos demonstram que dinheiro tem e que apenas os donos do poder são protegidos pelo Estado e pelos os governos. E não há dúvidas que as mudanças necessárias serão produto de organização e da ação coletivas dos setores sociais organizados comprometidos com o BEM VIVER e a DIGNIDADE HUMANA.

    Não se pode, portanto, naturalizar as tendencias de morte que são impostas pela necropolítica autoritária que predomina no Estado. Muito pelo contrário, é desafio deste tempo superar tais condições e avançar para que a democratização seja um processo amplo e majoritário que atue em todas as dimensões em defesa da vida.

  • Os capitalistas nunca foram amigos da democracia . Por Dylan Riley

    Os capitalistas nunca foram amigos da democracia . Por Dylan Riley

    Os capitalistas nunca foram amigos da democracia

    Os capitalistas às vezes aceitam a democracia eleitoral. Mas em nenhum momento da história aceitaram o resultado das eleições que poderiam ameaçar seu controle sobre o lucro e as relações de propriedade

    Por Dylan Riley* Texto originalmente publicado no site Jacobin Brasil

    O consenso político de hoje insiste, de maneira monotemática, na afinidade entre o capitalismo e a democracia. Para ideólogos do livre mercado, todas as limitações substanciais na liberdade que o capital tem para fazer o que bem quiser conduzirão a sociedades à “estrada da servidão,” como disse Friedrich Hayek. Liberais e social-democratas que acreditam que os mercados podem e devem ser regulados ainda admitem que um sistema baseado na posse privada dos recursos econômicos é aceitável se a liberdade for preservada.

    Contudo, uma rápida observação do registro histórico mostra que os capitalistas foram os principais apoiadores de alguns dos mais notórios regimes autoritários da história, do Terceiro Reich de Hitler ao apartheid sul-africano, além das ditaduras na América Latina. Mesmo se definirmos “democracia”, no sentido mais mínimo, como um jogo de procedimentos para alternar equipes de governo através de métodos formalmente pacíficos, não há claramente nenhuma ligação necessária entre o capitalismo e a estrutura política; sua coexistência é possível, mas, de nenhuma maneira, inevitável.

    Numa época em que forças autoritárias de direita estão levantando a cabeça mais uma vez, mesmo nas democracias capitalistas mais estabelecidas há muito tempo, uma avaliação realista de onde os capitalistas estão em relação à democracia é vital. As classes capitalistas são irredutivelmente hostis com a democracia. Em vez disso, seus interesses políticos, como os de qualquer outra classe, fluem de sua localização estrutural específica para dentro das relações de classe e das circunstâncias concretas da luta de classes.

    Nós devemos começar identificando claramente os interesses característicos da classe dos capitalistas. Pelo fato de constituírem uma classe distinta enquanto grupo, é importante resistir ao uso das categorias que parecem acessíveis mas que, na verdade, são fatalmente imprecisas ao descrevê-los, tal como “os ricos”. Os capitalistas não são nem “os ricos”, nem o “1%”, nem mesmo “a elite corporativa”. Eles são um grupo de agentes que ocupam um lugar característico nas relações antagônicas da extração de lucro. Muito do caráter político nas sociedades capitalistas avançadas decorre do comportamento político característico desse grupo.

    Todas as principais democracias capitalistas estão muito longe de serem exemplos perfeitos de “elitismo competitivo” ou “democracia formal”. Todos eles contêm grandes distorções – colégios eleitorais, sistemas de eleição por maioria de votos, prêmios por maioria absoluta – que criam um abismo entre a representação e a distribuição real das opiniões políticas na sociedade. Mas as observações que se seguem ainda se aplicariam ao sistema representativo mais perfeitamente organizado.

    Como os capitalistas governam

    Os capitalistas diferem de todas as classes dominantes anteriores devido à típica maneira como extraem o lucro diretamente dos produtores. Eles se apropriam dos frutos produzidos pelos trabalhadores em virtude de sua reivindicação legalmente respaldada pela propriedade dos principais meios de produção da sociedade. Em contraste, eles normalmente não obtêm o lucro dos produtores pelo uso direto dos meios políticos (como a ameaça ou o uso real de violência, ou contando com as autoridades do Estado para obrigar formalmente a produção de lucro). Em vez disso, a obtenção de lucro acontece por meio do processo de produção após a troca formalmente livre de dinheiro pela capacidade de trabalho do trabalhador.

    A relação central de classe que define a sociedade capitalista é, portanto, uma relação econômica, e não diretamente política. Como a posição social dos capitalistas depende da manutenção dessa relação econômica, eles têm uma relação particular com a autoridade política (ou o Estado) em geral.

    A consequência mais importante da posição ocupada pelos capitalistas nas relações de exploração é que seus interesses de classe fundamentais não exigem que eles controlem diretamente o governo.

    Isso tem duas consequências políticas importantes: em primeiro lugar, a exploração capitalista é compatível com a alternância das equipes de governo no Estado; em segundo lugar, os indivíduos que compõem essas equipes não precisam ser capitalistas. Na verdade, como muitas teorias do Estado capitalista têm argumentado, os não-capitalistas frequentemente têm um desempenho muito melhor como administradores políticos do capitalismo do que os próprios capitalistas teriam.

    Em outras palavras, o sistema econômico capitalista é compatível com a democracia eleitoral ou formal. É claro que o capitalismo também é compatível com outras formas políticas que não a democracia liberal, como mostram os muitos exemplos de autoritarismo político existentes ao lado de uma economia capitalista. Mas o que é realmente característico a respeito do capitalismo é que ele é compatível com a democracia eleitoral formal. Nenhuma outra classe apropriadora de lucro na história permitiu um sistema político que concede direitos de sufrágio a pelo menos uma parte considerável dos produtores diretos. O fato de os capitalistas terem, em muitos casos, tolerado tal sistema resulta de seus interesses de classe muito específicos.

    Os interesses políticos específicos dos capitalistas

    Além dessa compatibilidade geral, há uma conexão mais específica entre os interesses da classe capitalista e a democracia liberal. Essa conexão surge de tipos de relações “intraclasse” que são características do capitalismo. Uma vez que capitalistas apropriam o lucro através da posse individual dos meios de produção, eles devem produzir esse lucro através da venda dos produtos no mercado. Como consequência, competem com outros capitalistas pela participação no mercado. Além disso, eles procuram entrar em novas linhas de produção dentro das quais ocorre a competição.

    Esses dois processos – a competição dentro dos ramos de produção e a entrada em novas linhas – significam que os interesses econômicos específicos dos capitalistas são extremamente diferenciados, em contraste com outras classes dominantes na história, embora eles também tenham um interesse de classe comum. Por exemplo, os interesses das empresas petrolíferas, dos produtores de energia solar e dos fabricantes de moinhos de vento se diferem uns dos outros. A guerra hobbesiana que eclode entre esses diferentes capitalistas dá a todos eles um interesse comum na manutenção de uma ordem legal impessoal; e a preservação dessa ordem requer a rotação de diferentes equipes governamentais dentro e fora do Estado.

    De maneira simples, os capitalistas não são apenas potencialmente tolerantes com a democracia eleitoral, eles também têm um interesse afirmativo nela.

    Os limites da tolerância capitalista à democracia

    A tolerância da democracia eleitoral pelos capitalistas tem dois limites bem definidos: um deriva da luta de classes, o outro deriva das condições estruturais das economias capitalistas.

    Considere o primeiro deles. Durante os períodos de crescimento econômico, os capitalistas podem aceitar o surgimento de organizações da classe trabalhadora que pressionam por uma redistribuição do excedente social para os salários. No entanto, essa atitude é estritamente condicional. Os únicos exemplos de capitalistas que toleram movimentos sindicais de massa organizados e partidos políticos surgiram quando esses partidos atenuaram ou abandonaram completamente o objetivo de transcender a propriedade privada por meio da tomada e implantação do poder estatal.

    Em outras palavras, não há exemplos históricos de classes capitalistas, mesmo em um curto prazo, que toleraram partidos de massa, alicerçados na classe trabalhadora, os quais buscam a abolição das relações de propriedade capitalistas por meio da tomada do poder do Estado. Nos casos em que existiram partidos da classe trabalhadora dentro do capitalismo, eles sempre tiveram que abandonar ou eufemizar seus objetivos socialistas: isso era tão verdadeiro para a social-democracia escandinava quanto para o comunismo italiano.

    Assim, existe uma implicação crucial para os socialistas. Quando um movimento autoconsciente da classe trabalhadora, lutando pelo socialismo, parece estar perto de alcançar a vitória, os capitalistas rapidamente abandonarão qualquer compromisso residual com a democracia e recorrerão a medidas de emergência. Como resultado, nenhuma transição para o socialismo ocorrerá sem a supressão do inimigo da classe capitalista. Isso não pode ocorrer no quadro da democracia eleitoral.

    Em outras palavras, o estabelecimento do socialismo democrático não pode ser democrático em um sentido estritamente eleitoral; ao mesmo tempo, deve ser muito mais democrático em um sentido participativo.

    O segundo limite deriva de características estruturais da economia capitalista. Os capitalistas, como sugeri acima, podem tolerar a mobilização dos trabalhadores por concessões materiais em um ambiente de crescimento econômico. Nessas circunstâncias, eles podem repartir os pedaços de um bolo crescendo com uma classe trabalhadora que moderou suas demandas políticas. No entanto, quando o crescimento desacelera, a competição entre capital e trabalho por esse bolo assume cada vez mais um caráter de soma zero. Ao mesmo tempo, o conflito também se torna mais acirrado entre os próprios capitalistas.

    Nesse ambiente, surgem estratégias do tipo “o vencedor leva tudo”, nas quais os capitalistas ficam cada vez mais relutantes em compartilhar os parcos ganhos do crescimento.

    Além disso, quando o crescimento desacelera, os capitalistas começam a mudar a estratégia: em vez de investir em meios de produção, passam a usar meios políticos para aumentarem sua parcela de lucro. Essa estratégia alternativa pode assumir muitas formas diferentes, desde o emprego de forças policiais para despejar moradores que não pagam seu aluguel, até o uso da legislação para fazer valer os interesses do capital financeiro contra os devedores ou para garantir o monopólio sobre os direitos de propriedade intelectual.

    Ambos os desenvolvimentos – o caráter cada vez maior de soma zero da distribuição entre as classes e dentro da própria classe capitalista – são profundamente prejudiciais ao mecanismo liberal-democrático, que requer “tolerância” e uma disposição para aceitar os resultados aleatórios das eleições como legítimos.

    O que tudo isso significa

    Os capitalistas são a única classe apropriadora de lucro na história a tolerar a democracia eleitoral baseada em um amplo leque que abrange uma proporção significativa da classe explorada. Por causa de sua posição peculiar nas relações de extração de excedentes, os capitalistas podem tolerar tanto uma alternância de equipes de governo quanto a presença de não-capitalistas no Estado. No entanto, a tolerância com a democracia eleitoral é estritamente limitada e condicional.

    Não há casos históricos de capitalistas tolerando o resultado de eleições que podiam ameaçar as relações de propriedade capitalistas. Além do mais, à medida que a economia mundial se torna cada vez mais estagnada e as taxas de investimento em fábricas e equipamentos diminuem ao longo de toda a cadeia, uma luta de soma zero começa a emergir, tanto entre capitalistas entre si quanto entre capitalistas e produtores.

    Qualquer outra coisa que possa estar implícita em um socialismo democrático ressurgente e um capitalismo em crise não é um bom augúrio para o futuro competitivo do elitismo. Se pode levar ao estabelecimento de uma democracia socialista para além do capitalismo, é uma questão totalmente diferente.

    *Dylan Riley é professor associado de sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley e membro do comitê editorial da New Left Review.

  • A VIDA E A DIGNIDADE EXIGEM UM PROJETO POLÍTICO DE BEM VIVER . Por Francisvaldo Mendes

    A VIDA E A DIGNIDADE EXIGEM UM PROJETO POLÍTICO DE BEM VIVER . Por Francisvaldo Mendes

    A VIDA E A DIGNIDADE EXIGEM UM PROJETO POLÍTICO DE BEM VIVER

    Por Francisvaldo Mendes . Presidente da FLCMF

    As pessoas no Brasil vivem os mais duros golpes da necropolítica. Um encontro, nada natural do desgoverno com o fluxo da doença. Esse encontro, que adoece e mata, possui várias correntes contra a vida e contra a dignidade humana se encontrando em um fluxo de opressão e exploração. O devastador número de 400 mil mortes, em pouco mais de um ano, se amplia com desemprego, queda progressiva de renda familiar, condições arrasadoras para manutenção da vida, a barbárie humana, principalmente na periferia. O governo central do Brasil é o principal expoente da produção do atual cenário que amplia a exploração. Múltiplos tipos de preconceitos e discriminações, com o impacto da arrasadora diminuição do tempo de vida das pessoas. Sobre esse aspecto é um governo derrotado, mas sobre o aspecto do lucro e dos controles impostos pelo “mercado” do capital é um governo vencedor. Não há dúvidas, portanto, que tirar o governo atual da cena é uma prioridade que unifica qualquer organização que tenha a vida e a dignidade como foco.

    Seja como for, por meio de um merecido impeachment, pelas conclusões da atual CPI da COVID, por emenda à constituição nos crimes de responsabilidade, com afastamento do presidente por crime de omissão em pandemias, ou, no limite, na derrota eleitoral do ano que vem, o presidente atual do Brasil precisa ser destruído. Uma unidade devastadora, de todos os setores que defendam projetos políticos que apostam na dignidade humana, deve se colocar à frente desse processo. Enquanto é indiscutível, evidentemente necessário e unificador tirar o chefe atual do executivo nacional da organização do poder político do Estado, também é necessário e fundamental colocar outro projeto político à frente. São movimentos, não antagônicos ou excludentes, que precisam ocorrer para que reforce o fazer de superação das grandes ondas da necropolítica que ampliam o necrocapitlalismo devastador imposto no Brasil.

    A identificação e unificação com nomes que possam atrair as atenções da grande maioria de brasileiras e brasileiros se fazem tão importantes quanto o projeto político. São movimentos que precisam se unificar, pois, não são contraditórios, muito pelo contrário. Nos tempos atuais é evidente que derrotar o atual chefe de governo é a ação central, assim como superar as marcas da morte que se ampliam com a pandemia. São essas, portanto, incontestáveis ações. E neste movimento, precisamos trilhar, pois, vencer o vírus com a política para defender a vida, os direitos sociais, o fim da exclusão social é um movimento que precisa ser somado em condições que favoreçam a vida em todas as dimensões e em todos os aspectos.

    Mais postos de trabalho, mais pessoas vendendo a força de trabalho, salários com mais recursos para fazer a vida existir, moradia, água potável, transporte, educação e arte são elementos necessários para impactar a vida favoravelmente. E tais elementos se unificam em um projeto em favor da vida. Os chamados dados, de institutos de pesquisas, quando reforçam o óbvio, servem para mostrar o que já está nas vozes públicas das maiorias das pessoas que sofrem o maior impacto da exploração nos tempos atuais. Não há dúvidas que as pessoas que mais são impactadas com a política desastrosa em curso no Brasil são as que estão espalhadas na grande periferia do país, sem moradia, sem água potável, sem acesso a recursos para comer e sem o básico do saneamento para a saúde. Ainda que essa situação não esteja em questão e que apareça hoje reforçado pelos institutos, nós que compomos a grande maioria das pessoas existentes, reconhecemos o impacto da realidade em cada vida ceifada pela incompetência politica.

    Mas é hora de avançar para além da política representativa, com muita organização e construção de consciência política. A pauta que nos move tem sim o desafio de colocar a urgente retirada do presidente atual com um projeto político que favoreça a vida, com mais direitos e com dignidade. Esse projeto que organiza nossas ações, em todos os aspectos da política, precisa ser o fluxo de movimentos coletivos na sociedade brasileira. Nós que somos a maioria das pessoas, mais nocivamente impactada pela péssima política que predomina, temos o desafio de nos firmar como sujeitos das grandes mudanças que são demandas para existir o viver neste momento.

    Os trabalhos de formação, organização e ação política coletiva, com práticas e lutas que reforcem a vida, são movimentos necessários. Mas também necessário nos é uma unidade que possa além de unificar forças para impor uma grande derrota ao presidente atual, possa também germinar os pontos de um projeto favorável à vida das pessoas para a transformação social. Há condições! Precisamos transformar tais condições em possibilidades reais para que existam mudanças favoráveis com potência de duração permanente.

    Sabemos que conquistar e manter as conquistas são desafios constantes. Vamos então fazer do momento um espaço que fortaleça projetos políticos que girem o Estado para a defesa da vida e não para a destruição das condições de viver, não devemos nos ater apenas em frear o retrocesso, mas devemos construir para avançar na consciência de classe. Esse momento, quando a única coisa que cresce são os lucros e mortes, deve ser superado por momentos contínuos em que a vida e a dignidade ganhem força em um projeto alternativo que predomine no Estado, para ampliar a dignidade humana. Por isso apresentar projetos de construção alternativa as já vividas, avançando nas bases da contradição do próprio sistema capitalista é imperioso para o crescimento da consciência de participação social para não ficarmos afetos apenas à participação eleitoral apenas. Temos que plantar a semente da transformação com coragem de aprofundar o debate político da transformação, inclusive nas eleições apresentando um programa mais avançado ao já vivido nas experiencias de governos passados. Devemos sair do comodismo de autodefesa e da acomodação política e apresentar um programa que incida no próprio questionamento do enfrentamento das pessoas ao sistema de opressão que vivemos. Esse é o desafio da construção do novo na atual conjuntura e nas eleições de 2022 para superar os desafios que o próprio sistema nos impõe!!!

  • Dois anos de desgoverno – Thanatos-Bolsonaro e a raiz totalitária

    Dois anos de desgoverno – Thanatos-Bolsonaro e a raiz totalitária

    Dois anos de desgoverno – Thanatos-Bolsonaro e a raiz totalitária

    A morte banalizada em mecanismos de concretização burocrática das políticas públicas.

    Por Fernão Pessoa Ramos*

    Texto publicado originalmente no blog A Terra é redonda

    1.

    A questão da atualidade dos regimes totalitários do século XX coloca-se no Brasil contemporâneo. A mistura de um chefe de estado com personalidade autoritária e uma pandemia mortífera, criou um caldo em que a questão da morte em larga escala, a do genocídio, vem para primeiro plano.

    Regimes totalitários possuem esta característica de andar de mãos dadas com a morte, como bem nos lembra Hannah Arendt. Trazem a morte em proximidade e a elevam à banalidade como modo operativo, pelos mecanismos de concretização burocrática nas ações sociais. É o tipo que encarna, de modo surpreendentemente cristalino, nosso general Eduardo Pazuello em sua maneira de trabalhar a eficácia no morticínio distribuindo veneno para a população.

    O totalitarismo, em sua conformação típica dos regimes autoritários das décadas de 1930 e 1940, traz esta lide com a morte em larga escala no modo da assustadora cotidianidade do mal. É ela que permeia instrumentos burocráticos diversos para sua prática (a prática da morte), através dos agentes responsáveis pela política de funcionamento efetivo do aparelho de estado. O secretário executivo do Ministério da Saúde, por exemplo, Elcio Franco, funcionário de um organismo estatal supostamente dedicado a preservar a saúde e a evitar a morte de cidadãos, acreditar ser corriqueiro usar na lapela, na banalidade cotidiana de sua atuação institucional, um broche no qual estampa a caveira atravessada por uma faca, simbologia da morte com origem no imaginário das SS nazistas.

    O conceito de totalitarismo, que alguns temem em suas conotações mais diretas, pode possuir validade estrutural que vai além da demanda por ilustrações históricas singulares. A relação com a morte em larga escala, utilizando novas tecnologias que incrementam e otimizam dispositivos genocidas, atinge na raiz este tipo de estruturação social conforme emerge na primeira metade do século XX. A lide com a coisa pública na administração do estado e seus resultados práticos é substituída pela onipresença (não épica, mas banal) da morte extensiva e das demandas logísticas para sua efetividade.

    Os dilemas éticos da presença próxima da ação social para a morte fazem com que a gravidade ideológica gire exaltada. Para que a lide com a ética da morte seja absorvida positivamente, o giro da centrifugação ideológica necessita ser acelerado para o ocultamento da ignomínia, sendo constantemente renovado nos móveis e focado no império da vontade. O regime passa a siderar em torno do eixo oculto, pressentido (como afirmação pela banalidade, ou negação no martírio) ou compartilhado (no modo da crueldade).

    A coletividade então deve ser uníssona e sem brechas. Daí a atualidade de uma crítica que vá além da demanda de compreensão do totalitarismo em sua restringência por condições historicamente particulares. Na raiz, a formação totalitária é agressiva e retorna com intensidade nas sociedades contemporâneas de massa, que têm um ativo grau de sociabilidade mediado por dispositivos de comunicação digital.

    Assistimos hoje no Brasil a húbris de uma personalidade do tipo tirana afirmando, sem remorso, em declarações cotidianas, a demanda genocida como banalidade, acoplada a um discurso com tonalidades totalitárias. São tentações que se configuram num modelo político de viés autoritário de direita, buscando pouso institucional. Este pouso é estruturado num duo de determinações interagentes: de um lado, uma estrutura nepotista/corporativista que faz girar a política do favor. De outro, uma contraface fundamentalista/religiosa e miliciana/militar, que permite o exercício efetivo do poder.

    Ambas estão articuladas através de forte sustentação midiática em redes digitais, que representam talvez a principal inovação em sua constelação. Em seu núcleo, proporcionam o progressivo domínio do estado brasileiro pelo bolsonarismo, sustentado por uma camada administrativa burocrática que incentiva a absorção do estamento militar em níveis administrativos diversos.

    A primeira estrutura do duo, a perna ‘nepotista/corporativista’, diz respeito também à sobreposição da dimensão privada nas instâncias públicas, do nível familiar ampliado do clã. Um clã, no sentido amplo da palavra, que traz um padrão já conhecido nosso de uso de recursos públicos em benefício privado. Já o discurso religioso de cunho fundamentalista serve de eixo ideológico para os órfãos da modernidade que resistem, agora completamente à vontade, à afirmação progressiva do quadro que foi estabelecido em torno da contracultura (direitos da mulher; direitos para minorias étnicas (negros) e sexuais (LGBT); questões de costumes e liberdade artística, ecologia, etc.).

    O bolsonarismo fundamentalista se opõe radicalmente a este horizonte modernista estabelecendo designações abstratas que, pela repetição, reúnem conteúdo para oposições vazias que se chocam produzindo energia. Fixam designações sintéticas dilatando um fio de sentido original, como o nome ‘comunista’, o ‘kit gay’, a ‘mamadeira erótica’, a venda da Amazônia, acusações de pedofilia, etc. Consome-se assim discursos inicialmente heterogêneos e sujeitos à oposição (o fio de sentido), mas que passam a absorver tudo numa negação unida pelo solapamento em torno em si mesma, proporcionando uma espécie de explicação total do mundo.

    É um ‘super-sentido’ que universaliza proposições antes fechadas com gravidade própria e que mesclam, com muita agilidade, fantasia e entendimento. Incorporam, neste fôlego, preconceitos de gênero (família patriarcal) e raciais (negacionismo histórico), práticas pedagógicas obsoletas (escola sem partido), a defesa da violência em suas representações mais imediatas, como o culto a armas de fogo, grupos paramilitares de extermínio, tortura, linchamentos (virtuais ou reais), e outras representações da morte (como o símbolo da faca na caveira mencionado).

    A face miliciana do bolsonarismo assume modos de ação baseadas no uso da violência e na elegia do armamentismo. A perna militarista do bolsonarismo tem a característica de ser miliciana, com grupos armados de estrutura autônoma e chefes locais interagindo entre si. A inserção no corpo do exército serve à institucionalidade, mas, num primeiro momento, parece não ser orgânica. Assusta a visão de uma articulação direta com as massas, sustentada na ação de milícias, policiais ou paramilitares (típica de regimes totalitários). Sua expansão ocorre também através da infiltração nas polícias militares estaduais de grupos milicianos independentes, sendo depois incorporados ao quadro burocrático do Estado.

    O lado corporativo, face da moeda nepotista, tem dimensão dúbia. Bolsonaro opera com pouca convicção na cartilha liberal com receio de atingir sua base de apoio nas corporações de direita, particularmente policiais e militares, assim como caminhoneiros. Transfere o ônus da desregulamentação para entidades também abstratas que passam a ser dotadas de competência, ou desvalia, alternando.

    É o caso das expressões ‘Posto Ipiranga’ nas ações econômicas, ou ‘velha política’ no Congresso. Torna-se mister manter as bases corporativas e transferir demandas mais cruas, as ‘selvagens’ por assim dizer, necessárias para fazer girar o capital em aceleração, às forças políticas partidárias, mas sem se identificar como marca neste registro (Bolsonaro, assim, não tem partido). Ao se deslocar desta maneira parece pairar acima da articulação para sustentação política e usa a agressão verbal livremente. Pode então brilhar leve e solto, como moleque irresponsável, exercendo a presidência para atrair, em algum ponto, a demanda mais masoquista da consciência nacional.

    2.

    O bolsonarismo herda da tradição totalitária o exercício da persuasão ideológica por meio de novas tecnologias de comunicação. O espetáculo audiovisual é diário, numa espécie de nova e potencializada sociedade de espetáculo (conforme bem exposta por Guy Debord, num outro estágio). Ele sabe dominar os ciclos de notícia imprimindo uma velocidade inaudita, ainda desconhecida das sociedades totalitárias do século passado.

    No estágio atual, a velocidade extrema convive com o ritmo mais lento de empresas tradicionais de veiculação midiática. Estas passam a reproduzir, sem fôlego, os factoides criados pelo bolsonarismo num ritmo que não é próprio de sua mídia. O ciclo semanal há muito ficou para trás, provocando a falência da mídia de revistas que a ele se vinculava. O ciclo diário também foi ultrapassado, resultando em formas mistas. Permitem manchetes matutinas e a construção da primeira página, espécie de resumo do dia anterior, com progressivos acompanhamentos, mais ou menos ágeis, que seguem a imediatez. Como pano de fundo, e muitas vezes palco principal, as mídias sociais propriamente (Tweet, Facebook, Instagram, WhatsApp, etc) repercutem pela repetição ou iniciam o ciclo. Constituem o espaço privilegiado da ação ideológica do bolsonarismo que tem os instrumentos e a tecnologia necessária (robôs de disparo, grupos de internet inflados ou fantasmas, cancelamentos, etc.) para manipulação.

    A imediatez do ciclo da notícia carrega consigo um formato essencial para as novas mídias que é o da repetição. É pelos mecanismos de repetição que a diluição da objetividade se concretiza em discursos fantasistas ou exóticos. A repetição acelerada é interrompida em um ponto aleatório que, então, se toma pela objetividade e cristaliza-se – ao mesmo tempo em que abre o formato para novo ciclo, no qual outra falsa unidade é novamente constituída e assim sucessivamente. Dá-se densidade autônoma a enunciados vazios que se sobrepõem, compondo a notícia pelo simples fato de pipocarem e causarem desmentido conquistando assim seu lugar ao sol na densa floresta das mídias sociais. Não há escapatória nesta armadilha do falso. Aos breves ciclos criados de fora para dentro no sistema, mas emergindo como nativos da objetividade, em intervalos cada vez mais curtos, dá-se o nome de ‘fake news’.

    O novo autoritarismo de direita respira de modo integrado neste ambiente. Rastreamento de dados biológicos identitários e marcadores chaves de opinião são estruturados em algoritmos de controle classificando em gêneros e categorias grupos de usuários dos dispositivos digitais. Na nova sociedade de controle, também as expectativas para realização de valor do capital são minuciosamente mapeadas através do uso gratuito dos grandes buscadores (Google para demandas de ação prática) e mídia social (Facebook, Instagram, para hábitos e sensações mais pessoais).

    Em geral, identificam a individualidade em séries múltiplas, sintetizadas em enormes sistemas informáticos que definem a subjetividade como espaço categorial de consumo. Para esse núcleo é orientado, em sua base real, o grande algoritmo digital que paira no âmago da sociedade capitalista contemporânea. Sites alternativos, inclusive de esquerda, se incorporam sem culpa servindo de canal ao algoritmo de consumo e identificação e às grandes empresas que o manipulam. As perspectivas que o sistema digital abre para controle num estado do tipo autoritário (politicamente centralizado ou não) são evidentes e bem presentes na atualidade.

    Na operacionalidade da ‘fake news’, o dispositivo digital onipresente faz girar um intervalo fantasista exógeno que se desloca à vontade na objetividade, criando uma camada própria de crença que atrai e colapsa o entendimento. O campo da vontade como fé atravessa e incorpora a totalidade, assumindo-se como explicação total do mundo. As novas formas de discurso produzidas nestas instâncias midiáticas espantam por sua capacidade de gerar crença como base do entendimento, desafiando o bom senso.

    Atingem inclusive paradigmas científicos absorvidos há séculos, como o terraplanismo, vacinas, evolucionismo biológico, eras geológicas etc. A partir da primeira negação fantasista solapa-se a objetividade numa série que cai como dominós. Basicamente retórica, a casualidade sucede-se baseada na ‘força irresistível da própria lógica’ (Arendt) dos regimes totalitários, fechada sobre si e retroalimentando a ideia que sucumbe deslocada dos sentidos e do próprio fenômeno, corroído por dentro.

    A mídia social digital é, portanto, o meio tecnológico perfeito para a sucessão hiper-acelerada, necessária ao solapamento da individualidade no modo totalitário. Nela, a rotação de argumentos adquire força pela velocidade do giro numa atualidade expandida e onipresente (só de presentes) que se repete vazia, mas vinculante pela celeridade.

    A fé como cristalização proposicional encarna a razão encavalada na vontade que se sobrepõe, servindo para substituir aquele primeiro nível comum de objetividade consensual que, desde o regime iluminista, havia se instaurado como referência, mesmo em negação. O vigor do novo regime de objetividade exógena, descolada da experiência e do bom senso, se cristaliza a partir de meados dos anos 2010, com a universalização dos dispositivos tecnológicos móveis individualizados com grande atrativo popular e capacidade intensa de comunicação no formato oral, escrito e também audiovisual.

    Podemos afirmar que a expansão horizontal dos novos dispositivos tecnológicos portáteis ocorre em simultaneidade histórica com a ascensão das novas formações sociais da direita com aspiração totalitária. Nosso ponto é que, compondo o bolsonarismo junto à camada fundamentalista integrada à mídia digital, se adicionam os estamentos burocráticos corporativistas/militares e o nepotismo descarado. Assim regalam-se fiéis seguidores (rachadinhas) no espaço público que também são armados para uma sustentação eventual pela força, na forma de milícias. Simultaneamente mantém-se o giro do capital em sua velocidade de cruzeiro (ainda mais solto de amarras sociais ligadas a históricos direitos trabalhistas), completando-se o quadro de apoio. Quadro que é gerenciado através de uma agenda de costumes extremamente conservadora, integrada ao discurso alucinatório da objetividade fantasista sequestrada da experiência.

    3.

    Neste contexto configura-se a divisão de dois polos ideológicos, ambos com origem na classe média, determinando campos divergentes sem perspectiva hegemônica e em conflito entre si. A partir daí se expandem nos estratos mais miseráveis, ou excluídos, da sociedade, espelhando uma primeira divisão sobre outra: a primeira, resultante de uma distribuição de renda desigual, incide de modo não uniforme na ruptura entre fundamentalistas e modernos.

    No lado moderno, encontramos a parcela da sociedade sintonizada, em sua práxis cotidiana, com valores derivados da ‘contracultura’ conforme emergem nos anos 1960. Este lado é pressentido pela crítica conservadora que se opõe ao hedonismo libertário. Na crítica conservadora, que também atravessa a divisão entre estratos abonados e miseráveis, está o polo tradicionalista que se constitui por referências culturais retrógadas e autoritárias em termos de costumes.

    Sob a cultura do bolsononarismo, ele convergiu para o misto de integração entre fundamentalismo religioso (popular pequeno-burguês) com militarismo miliciano. No campo miliciano, o bolsonarismo se impõe por meio do exercício da violência direta; no fundamentalista pela desvinculação do pensamento da experiência, cooptando, conforme exposto, a vontade na gravidade da fé. Como ação social, a política fundamentalista-miliciana se institui dispensando uma estrutura partidária orgânica. Forma um ‘movimento’ para-institucional que adquire peso gravitacional respondendo a conjunturas particulares.

    Neste panorama emerge na ponta o polo progressista com demandas sociais de uma nova individualidade, afirmada mais claramente em seu modo de evolução pós-1968. Estas demandas se constelam num planeta exógeno àquele que engendra a diluição do eu e sua subjetividade na roda niveladora da crença fundamentalista. O campo progressista sempre teve dificuldade de ser afirmado em unidade, mas, progressivamente, nos últimos cinquenta anos, vem obtendo enraizamento, em sínteses variadas na sociedade brasileira.

    Recentemente afirmou-se atingindo camadas sociais populares nas quais antes não operava. Repercute também na grande mídia não fundamentalista e amplamente na nova mídia das plataformas sociais. Possui sua origem nas rupturas de caráter libertário com contexto marginal, que em sua expressão inicial concentraram-se em extratos de renda média da sociedade brasileira.

    Estamos delineando-o, no caso do individualismo libertário, numa demanda de valoração da autonomia e da espontaneidade subjetiva, expressa na afirmação dos direitos humanos como espaço inalienável entre os sujeitos. Valoriza-se a particularidade da identidade de cada individualidade em sua autonomia na relação a demandas sociais, mais ou menos coercitivas. Autonomia e marginalidade conseguem assim adquirir positividade.

    Trata-se da reivindicação dos direitos da mulher, relativos não só à sua voz autônoma no trabalho, mas a seu próprio corpo e à preservação de seu direito em dispor sobre a integralidade de seu ser (direito ao aborto, criminalização da violência doméstica, etc.). Afirmam-se questões étnicas relativas a demandas históricas de movimentos negros, reivindicando reparações históricas que remetem à segregação e práticas recorrentes de racismo.

    Demanda-se para isto igualdade de oportunidades, também dentro da própria classe média esclarecida, conforme emergem em sua especificidade na exclusão racial de raiz, muitas vezes atravessando tradicionais oposições classistas. Na mesma linha, estão incluídas questões de gênero envolvendo preservação de direitos civis de minorias sexuais e a afirmação de suas opções de conduta, como o movimento LGBT e derivados.

    Também se coloca a questão dos povos indígenas em seu direito à terra e à expressão cultural diferenciada. A racionalidade na lide com as drogas e a liberação do consumo, surge como maneira de lutar contra o encarceramento em massa. O direito à expressão cultural dos diferentes grupos sociais minoritários incorpora a criação artística livre e o impedimento de qualquer forma censura. A valorização da questão ambiental e socioambiental aparece neste contexto em primeiro plano. Incide diretamente na sobrevivência do gênero humano e no direito à vida, impedindo a negação do sujeito e atacando, inclusive, visões mais lineares de desenvolvimento das forças produtivas.

    O negacionismo ecológico cumpre, no novo quadro emergente da raiz totalitária, função similar a que tiveram para formações anteriores os quadros ideológicos que exaltam raças ou classes escolhidas, destinadas a conduzir a história. Se no centro do buraco negro, em seu ovo de serpente, está a fé do tipo mística fundamentalista, seu objeto privilegiado não é a catequese propriamente, mas afirmação de poder e a submissão no transe que daí resulta. É ele que sustenta a ‘lei de movimento constante’ das formações totalitárias, como a localiza Ruy Fausto. O grande fôlego ininterrupto é um retorno recorrente, direcionado para a descoberta de um móvel na ação coletiva.

    As grandes formações totalitárias exigem que o combustível renovado na exaltação das massas seja transferido para alvos vazios, congregadores da vontade, que adquirem gravidade pelo o espectro da morte em proximidade (o judeu, o comunista, a cloroquina). O poder que advém do delírio sobre a objetividade agora transforma-se em força própria, exigindo a autonegação do ‘si’ compartilhado. Quando direcionada à destruição da natureza e da própria espécie, a glorificação da morte consegue, por exemplo, afirmar-se pela glorificação da destruição pelo fogo, erguido como símbolo positivo (aqui claramente no modo da exaltação totalitária) sobre o extermínio de ecossistemas, na proximidade da extinção do próprio do gênero humano.

    As fantasias de conspirações globalistas para roubar a Amazônia e suas matas são o novo alvo privilegiado, o novo ‘Protocolos dos Sábios do Sião’ da direita brasileira que se estabeleceu nesta combustão totalitária. Constitui-se assim o ‘desprezo totalitário pela realidade’ (um bom conceito) que no futuro irá apresentar sua fatura no mundo real como tragédia (sobre a natureza e sobre a história) exigindo, por sua vez, nova reciclagem de móveis exógenos para manter a força social congregada à nova vontade exaltada, perpetuando assim o movimento constante de demanda e necessidade.

    Até que o ciclo dialético se afirme pelo estalido do cataclismo, o que hoje significa a destruição do total da natureza e da humanidade como a conhecemos. As estruturas da negatividade na reprodução da mercadoria com demanda genocida para a realização de seu valor – produção nuclear, armamentos, agrotóxicos, tabaco, anabolizantes animais, grandes produtores de proteína, produtos farmacêuticos nocivos, poluição química – se delineiam em ameaça, principalmente por surgirem vinculadas a métodos de produção em larga escala e a plantas industriais com tecnologia avançada que envolvem destruição global generalizada.

    Formações totalitárias tendem a se vincular a elas e à sua defesa, por se adequarem bem à irracionalidade da insensatez na qual a ideia vazia possui o atrativo de conseguir reincidir por si mesma (exatamente por ser vigência da insensatez), na medida de seu poder que é relativo, num circuito fechado, à aceitação descabida de sua prevalência. Para isso serve a exaltação reduzindo a vontade à aceitação convicta, prazerosa, da submissão correlata. A validação do genocídio pelo negacionismo ambiental encaixa-se neste mecanismo de realização ideológica.

    De outro modo, como não recuar à crítica ao gerar a própria supressão da espécie, na qual, paradoxalmente, se realiza a negação de quem o concretiza agindo? Não há contradição no paradoxo, pois é congruente, em seu âmago, com a ação política suicida que a dialética totalitária demanda para sua concretização.

    Vivemos, neste sentido, um novo ciclo com potencial totalitário. Se até agora não floresce plenamente no horror, possui raízes claras neste solo, trocando as modalidades estruturais que o embasaram pelos novos formatos do fundamentalismo digital. São mecanismos que permitem a atualidade da afirmação irracional da autodestruição social e da natureza. É ela, esta negação, que congrega o pensamento mágico insensato. É o que veio substituir os antigos alvos a serem exterminados, como o inimigo racial ou nacional.

    Existe, nesta composição, a mesma formação de um ‘super-sentido’ aloprado que atravessa a totalidade com respiração própria e que, uma vez lá, nutre, como no passado, a ‘insensatez das sociedades totalitárias’ em seu maior florescimento.

    As “pulsões de egoísmo e agressividade” (Fausto), ou o ‘mal radical’ da ‘individualidade morta’ (Arendt), próprias ao exercício do terror na horizontalidade totalitária, fundo violento do ser que está em sociedade, podem ser controladas através de normatividade que preserve direitos, para além da demanda de resultados sociais imediatos. O gerenciamento de mecanismos para a efetiva renovação do poder central dentro do estado deve ser constante, sendo imprescindível instrumentos de defesa para bloquear deformações decorrentes de expansão burocrática autoritária, do tipo militar ou corporativista.

    Mecanismos que resguardem a individualidade como espaço de uma alteridade real e que impeçam sua destruição. A diversidade do espaço de ‘outrem’, ponto congregando a afirmação de existência do ser, seria assim absoluta em seu modo de contraposição à violência totalitária. Não pode ser meio num processo finalista maior, um projeto de humanidade a se realizar no modo do adiamento e do futuro. Pelo contrário, deve ser valor ético, finalidade de transformação no exercício presente, mantendo intacta oposições estruturais no modo que pode ser chamado, com sentido amplo certamente (mas bem legível), de ‘democrático’.

    As ‘pulsões egoístas’ da agressividade humana que são libertas pela subjetividade valorizada também gerenciam a reprodução da mercadoria, e por isso não podem ser deixadas sem travas. É importante, no entanto, que seus freios não acabem por atingir outras modalidades de realização do sujeito na esfera pública. Os controles para abafar, ou suprimir, o ‘homem-primata’ do capitalismo ‘selvagem’, modalidade adjetiva concreta de um modo de produção, devem permitir a individualidade respirar na vontade de sua potência.

    A subjetividade como espaço absoluto da alteridade deve ser afirmada em modalidades próprias de liberdade, ainda que inescrutáveis em seu núcleo de potência, mas que passem ao largo das significações triunfantes, homogeneizadoras, da natureza e da história. Estruturas sociais que assumam a negação das formações sociais com raiz autoritária devem trazer, portanto, como horizonte inerente, a negação da violência inumana em quaisquer de suas demandas restringentes.

    São padrões éticos que devem se afirmar sem ser necessário reduzir, ou negar, a diversidade e a tensão política do contraditório, preservando-se o espaço para a espontaneidade como liberdade ‘existenciária’. A afirmação passa pelo destrinchar de novas configurações totalitárias, as quais, inicialmente, podem parecer inócuas, mas que carregam, na fatura de sua identidade, a canga da história com suas malogradas edificações cobertas de morte e tragédia.

    *Fernão Pessoa Ramos, sociólogo, é professor titular do Instituto de Artes da UNICAMP. Autor, entre outros livros, de Mas afinal… o que é mesmo documentário? (Senac-SP).

  • Dois anos de desgoverno – os números da desconstrução

    Dois anos de desgoverno – os números da desconstrução

    Dois anos de desgoverno – os números da desconstrução
    Um balanço quantitativo do grau de destruição decorrente de diversas ações governamentais

    Por Nelson Cardoso Amaral*

    Texto publicado originalmente no blog A Terra é redonda

    Passados dois anos de governo de Jair Bolsonaro já é possível examinar as despesas realizadas nos anos de 2019 e 2020, além daquelas previstas na proposta orçamentária para 2021. Iremos avaliar neste artigo como se comportaram os recursos associados às seguintes Funções Orçamentárias: Educação, Saúde, Cultura, Gestão Ambiental, Ciência e Tecnologia, Encargos Especiais: Refinanciamento da Dívida. Encargos Especiais: Juros, Encargos e Amortização da Dívida e Defesa Nacional.

    Além dessas Funções, serão examinadas também as evoluções das despesas realizadas com as 69 Universidades Federais (UFs), com os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), 38 instituições e dois Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs), com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e com o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).

    A efetivação das análises se dará com a evolução dos recursos financeiros aplicados no período de 2014-2020 e previstos para o ano de 2021. O recuo ao ano de 2014 se justifica pelo fato de ter sido o ano em que se realizaram eleições presidenciais com a reeleição de Dilma Rousseff e a partir deste fato houve a trama que culminou no impeachment de Dilma Rousseff (2016), comandado pelo Deputado Federal Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, na assunção de Michel Temer na presidência (2016), a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva (2018-2019), chegando a 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro para o mandato de 2019 a 2022. Ressalte-se que em todo esse período, de 17/03/2014 a 01/02/2021 esteve em atividade a Operação Lava Jato que, utilizando-se de ações que contrariaram o Estado Democrático e de Direito, participou de todo o processo, desde o impeachment de Dilma Rousseff até a eleição de Bolsonaro.

    Com Michel Temer houve um recrudescimento dos ideais liberais e houve a implantação de um Novo Regime Fiscal (NRF) com a aprovação da Emenda Constitucional No 95 (EC-95) que congelou as despesas primárias (pagamento de salários, água, luz, internet, vigilância, limpeza, terceirizados, aquisição de material de consumo, realizar construções, adquirir equipamentos e mobiliários etc.) por vinte anos (BRASIL.EC-95, 2016), o início da discussão da reforma da Previdência, que se concretizou no ano de 2019, implantação de reformas no setor trabalhista, reforma do Ensino Médio, mudanças na Petrobrás etc.

    Com Jair Bolsonaro foi estabelecido como objetivo principal do governo o de desconstruir e desfazer o que foi realizado desde a aprovação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL.CF, 1988). Este objetivo está expresso no Programa de Governo, “O Caminho da Prosperidade”, divulgado em 1988 quando afirma que “Nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações com o gramcismo se uniu à oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira” (PROGRAMA DE GOVERNO BOLSONARO, 2018) e, a partir deste diagnóstico, em Washington no mês março de 2019 quando Bolsonaro afirmou “Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa para depois começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”, concluindo que “O nosso Brasil caminhava para o socialismo, para o comunismo” (LÁZARO, 2019).

    A desconstrução e desfazimento que se apresenta nas ações governamentais estão, portanto, fundamentados nessas premissas governamentais (EDITORIAL E&S, 2021).

    Este estudo tem, portanto, o objetivo de examinar qual o nível de desconstrução/desfazimento contido em diversas ações governamentais que foram selecionadas. Entre as ações estão incluídas o refinanciamento da dívida, o pagamento de juros, encargos e amortização da dívida e os recursos aplicados em defesa nacional. Sendo essas ações sensíveis ao projeto ultraneoliberal presente no governo de Bolsonaro (LEHER, 2019), cabe aqui uma pergunta: houve a desconstrução/desfazimento para esses dois campos, o das despesas financeiras e o da defesa nacional?

    A seguir, iremos, em primeiro lugar analisar os recursos associados às diversas Funções selecionadas para este estudo para, em seguida, apresentar os recursos financeiros aplicados nas instituições e agências: UFs, IFs, CEFETs, FNDE, Capes, CNPq e FNDCT.

    Os recursos financeiros aplicados em Funções Orçamentárias selecionadas

    As Funções Orçamentárias, num quantitativo de 28 funções, fazem a “agregação das diversas áreas de despesa que competem ao setor público” (BRASIL. PORTARIA No 42, §1º, Art. 1º, 1999), se classificam nas seguintes áreas de despesa: Legislativa, Judiciária, Essenciais à Justiça, Administração, Defesa Nacional, Segurança Pública, Relações Exteriores, Assistência Social, Previdência Social, Saúde, Trabalho, Educação, Cultura, Direitos da Cidadania, Urbanismo, Habitação, Saneamento, Gestão Ambiental, Ciência e Tecnologia, Agricultura, Organização Agrária, Indústria, Comércio e Serviços, Comunicações, Energia, Transporte, Desporto e Lazer, e Encargos Especiais. (BRASIL. PORTARIA No 42, Anexo, 1999).

    O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) separa essas funções em duas grandes vertentes, as associadas às áreas classificadas pelo INEP como sociais e às áreas classificadas como não sociais. As classificadas como pertencentes às áreas sociais, num montante de 13 Funções, são as seguintes: Desporto e Lazer, Organização Agrária, Habitação, Urbanismo, Direitos da Cidadania, Trabalho, Educação, Saúde, Cultura, Saneamento, Previdência Social, Segurança Pública, Assistência Social. (BRASIL.INEP, 2021). As demais 15 funções são classificadas como pertencentes aos setores orçamentários que não se relacionam aos setores sociais.

    Explicitaremos a seguir a evolução das despesas liquidadas no período 2014-2021, sendo que o valor de 2021 é o provável valor a ser liquidado, considerando-se a relação despesa liquidada/despesa autorizada na Lei Orçamentária Anual (LOA), valor médio de 2014 a 2020. O processo de efetivação de uma despesa pública possui, dentre outras, as etapas de empenho, liquidação e pagamento. A etapa de liquidação – considerada aqui – se efetiva quando o objeto da despesa já se realizou; por exemplo, isto ocorre quando ao adquirir carteiras para as salas de aulas elas já foram entregues e estão disponíveis para serem utilizadas. A próxima etapa é o pagamento à empresa que fabricou e entregou as carteiras.

    Os valores apresentados estão em R$, corrigidos para janeiro de 2021, Pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os valores relativos ao período 2014-2020 foram obtidos da Execução Orçamentária da União (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021) e a proposta de 2021 são as estabelecidas no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021).

    Selecionamos para este estudo a apresentação das evoluções no período 2014-2021 das seguintes Funções: Educação, Saúde, Cultura, Gestão Ambiental, Ciência e Tecnologia, Encargos Especiais: Refinanciamento da Dívida, Encargos Especiais: Juros, Encargos e Amortização da Dívida, e Defesa Nacional.

    A Função Educação

    O comportamento dos recursos financeiros associados à Função Educação no período 2014-2021 pode ser examinado no gráfico 1.

    Gráfico 1 – FUNÇÃO EDUCAÇÃO: os recursos financeiros no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Nota-se uma queda persistente no período em análise, saindo do patamar de R$ 130,0 bilhões para o valor entre R$ 90,0 bilhões e R$ 100,0 bilhões, sendo que a variação de 2014 a 2020 – o maior valor e o menor valor da série – foi de R$ (-37,7) bilhões. Esta queda significa uma redução de 28,5% nos recursos da Função Educação.

    A Função Saúde

    Os recursos associados á Função Saúde estão mostrados no gráfico 2.

    Gráfico 2 – FUNÇÃO SAÚDE: os recursos financeiros no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Neste caso os valores saíram de um valor um pouco maior que R$ 130,0 bilhões em 2014 para o patamar de R$ 120,0 bilhões entre 2015 e 2019 e uma previsão para 2021 de pouco mais de R$ 100,0 bilhões. O ano de 2020 se comportou de forma atípica pela liberação de recursos especiais para o atendimento à Pandemia causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), que resultou na Covid-19. A queda dos valores de 2014 para 2021 são da monta de R$ (-28,7) bilhões, o que representa uma queda de 21,6% em 2021, em relação a 2014.

    A Função Cultura

    A Função Cultura teve a evolução de seus recursos financeiros como mostrado no gráfico 3.

    Gráfico 3 – FUNÇÃO CULTURA: os recursos financeiros no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Houve, portanto, nesta Função uma queda drástica de 2014 a 2020, saindo de valores um pouco superiores a R$ 2,5 bilhões para valores muito pequenos, da ordem de R$ 200 milhões; uma redução de R$ (-2,3) bilhões nesse período. Esta redução significou uma queda de 90,2% nos valores de 2020 em relação a 2014. Há uma recuperação na proposta orçamentária para 2020, para R$ 703,0 milhões, valor ainda muito distante daquele de 2014.

    A Função Gestão Ambiental

    A Função Gestão Ambiental sofrerá, de 2014 a 2021, uma redução de R$ (-7,1) bilhões, como mostrado no gráfico 4.

    Gráfico 4 – FUNÇÃO GESTÃO AMBIENTAL: os recursos financeiros no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)

    Os valores sofreram uma abrupta queda de 2014 para 2015, saindo de valores próximos de R$ 10,0 bilhões para R$ 4,0 bilhões. Houve de 2016 a 2020 uma oscilação em torno de R$ 4,0 bilhões, caindo novamente de forma abrupta para R$ 1,0 bilhão em 2021. Em relação ao valor de 2014 houve uma redução de 74,2% no período em análise.

    A Função Ciência e Tecnologia

    A análise dos recursos associados à Função Ciência e Tecnologia mostra um perfil de dramática redução. O gráfico 5 apresenta os valores para o período em análise.

    Gráfico 5 – FUNÇÃO CIÊNCIA E TECNOLOGIA: os recursos financeiros no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Foram aplicados valores em torno de R$ 12,0 bilhões em 2014 e, em 2021, a previsão é de que sejam aplicados R$ 5,0 bilhões; uma queda de R$ (-6,7) bilhões. Isto representa uma redução de 57,1% nos recursos financeiros aplicados nesta Função.

    Até aqui analisamos Funções vinculadas a setores que estavam em franco ataque desde o início da trama para o impeachment e, depois, explicitamente, pelos governos que tomaram posse pós-impeachment de Dilma Rousseff, iniciando-se com Michel Temer e se caracterizando, como já examinamos, em um projeto de desconstruir e desfazer a partir de 2019, com Jair Bolsonaro. O exame visual dos gráficos apresentados para as Funções Educação, Saúde, Cultura, Gestão Ambiental e Ciência e Tecnologia não deixam a menor dúvida sobre o cumprimento desta ordem emitida pelos grupos (LEHER, 2019) que assumiram o poder em âmbito federal a partir de janeiro de 2019.

    Examinando-se, entretanto, o que ocorreu com as ações associadas ao Refinanciamento da Dívida, ao pagamento de Juros, Encargos e Amortização da Dívida e à Função Defesa Nacional, o comportamento dos recursos orçamentários no período 2014-2021 se altera completamente. Os gráficos 6 e 7 mostram como se comportaram o Refinanciamento da Dívida e o pagamento de Juros, Encargos e Amortização.

    Gráfico 6 – FUNÇÃO ENCARGOS ESPECIAIS: REFINANCIAMENTO DA DÍVIDA: os recursos financeiros no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Gráfico 7 – FUNÇÃO ENCARGOS ESPECIAIS: JUROS, ENCARGOS E AMORTIZAÇÃO DA DÍVIDA: os recursos financeiros no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Em 2014 o refinanciamento da dívida foi da ordem de R$ 800,0 bilhões caindo para R$ 500,0 bilhões em 2019 e grande crescimento em 2020 e 2021, quando há a previsão de atingir valores superiores a R$ 1,1 trilhão.

    O pagamento de juros, encargos e amortização da dívida teve um perfil crescente de 2014, de R$ 400,0 bilhões, para mais de R$ 650,0 bilhões em 2020 e há uma previsão de queda em 2021, para o patamar de R$ 500,0 bilhões.

    Uma análise acoplada desses dois gráficos nos leva a concluir que a queda na necessidade de refinanciamento, de 2014 a 2019 se deu por um maior pagamento de juros, encargos e amortização da dívida nesse mesmo período. A elevação do refinanciamento da dívida se deve a dois fatores principais: endividamento devido aos elevados recursos vinculados à Pandemia; e o aumento da dívida pública para o pagamento de parte das despesas primárias do governo federal pela quebra da chamada Regra de Ouro, que ocorre quando o governo tem que emitir títulos além dos valores associados às despesas classificadas como investimento. Neste caso o Congresso Nacional é responsável por autorizar a emissão de títulos da dívida para o pagamento das despesas primárias do governo federal.

    A comparação dos perfis desses dois gráficos com os anteriores – sempre com drásticas quedas – sinaliza que o setor financeiro é uma prioridade nesse período. Isto reflete o conteúdo da EC-95 que congelou por vinte anos as despesas primárias e não estabeleceu nenhum limite para as despesas vinculadas a esse setor.

    A Função Defesa Nacional teve seus valores financeiros, de 2014 a 2021 com o perfil mostrado no gráfico 8.

    Gráfico 8 – FUNÇÃO DEFESA NACIONAL: os recursos financeiros no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    De 2015 a 2019 houve um aumento de R$ 37,6 bilhões nos recursos associados á Função Defesa Nacional, ocorrendo uma queda em 2020 e 2021. Esta redução ainda significará uma elevação de R$ 25 bilhões em relação ao valor de 2015. Também neste caso, da Defesa Nacional, percebe-se um perfil completamente oposto ao das funções discutidas anteriormente, o que nos leva a afirmar que a Defesa Nacional foi considerada prioritária, frente à Educação, Saúde, Cultura, Gestão Ambiental e Ciência e Tecnologia.

    Este resultado deixa bem explicitada uma condição estabelecida na EC-95 que é a de que esta EC congelou as despesas primárias do Poder Executivo e não de cada um dos setores que compõem esse poder. É, portanto, uma deliberação do governo federal quando elabora as propostas de leis orçamentárias e do Congresso Nacional quando as aprova, estabelecer os setores prioritários. E, nesse período, além das despesas financeiras, foi colocada nesta condição prioritária a Defesa Nacional.

    Os recursos financeiros aplicados nas Universidades Federais

    As Universidades Federais (UFs) constituem, em 2021, um conjunto de 69 instituições que possuem campi em todos os estados da federação e no Distrito Federal.

    Analisaremos a evolução dos recursos das UFs – sem considerar os recursos aplicados nos Hospitais Universitários – em três vertentes: o pagamento de Pessoal, professores e técnico-administrativos, o que inclui o pagamento de aposentados e pensionistas; o pagamento de despesas relacionadas à manutenção das instituições nas chamadas Outras Despesas Correntes: o pagamento de água, luz, internet, vigilância, limpeza, terceirizados, aquisição de material de consumo etc; e as despesas com construções, aquisição de equipamentos e mobiliários etc., os chamados recursos de Investimentos.

    O pagamento de Pessoal se elevou de valores entre R$ 39,0 bilhões e R$ 40,0 bilhões em 2014 para valores da ordem de R$ 49,0 bilhões em 2019, caindo em 2020 e 2021 num montante de R$ (-874,0) milhões em relação a 2019. O gráfico 9 mostra esses valores.

    Gráfico 9 – Evolução dos recursos financeiros associados ao pagamento de Pessoal das Universidades Federais, no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Os recursos financeiros para o pagamento de Pessoal docente e técnico-administrativo apresenta um perfil de crescimento de 2014 a 2019 e de queda em 2020 e 2021. O crescimento se deve a reajustes aprovados antes do Governo Temer, às progressões na carreira, às substituições de aposentados que continuam na folha de pagamento etc. As quedas indicadas já explicitam a corrosão salarial pela inflação.

    Os valores aplicados em Outras Despesas Correntes estão mostrados no gráfico 10.

    Gráfico 10 – Evolução dos recursos financeiros associados ao pagamento de Outras Despesas Correntes das Universidades Federais, no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Nota-se uma drástica redução dos recursos para o pagamento de água, luz, internet, vigilância, limpeza, terceirizados, aquisição de material de consumo etc. das instituições, saindo de R$ 9,0 bilhões e caindo para valores em torno de R$ 5,5 bilhões em 2021; uma redução muita alta, de R$ (-3,5) bilhões, o que significa uma queda de 38,9%. Esta redução compromete, de forma irremediável, o funcionamento geral das instituições no ano de 2021. A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), em 18/03/2021 promoveu uma coletiva à imprensa para expor a situação orçamentária das Universidades e alertar a sociedade brasileira sobre a gravidade da situação e a possibilidade da paralização das atividades institucionais no final do primeiro semestre (ANDIFES, 2021).

    O gráfico 11 mostra a evolução dos recursos para Investimentos.

    Gráfico 11 – Evolução dos recursos financeiros associados aos Investimentos nas Universidades Federais, no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Os valores em 2021, da ordem de R$ 100 milhões são insignificantes frente ao tamanho do sistema e as suas necessidades de aquisição e atualização de equipamentos para os seus laboratórios. De 2014 a 2021 presencia-se uma drástica queda nesses recursos, saindo de R$ 2,8 bilhões e atingindo R$ 100 milhões, uma queda de 96,4%. Este resultado, se não revertido rapidamente levará as Universidades Federais a uma degenerescência de suas instalações e um grande sucateamento de seus laboratórios de pesquisa.

    Os recursos financeiros aplicados nos Institutos Federais e Centros Federais de Educação Tecnológica

    O Brasil possui, atuando em todos os estados e no Distrito Federal um total de 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e dois Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs), o do Rio de Janeiro e o de Minas Gerais.

    Da mesma forma que na análise dos recursos financeiros das Universidades Federais, apresentaremos os recursos aplicados nos IFs e nos CEFETs, separando-os em Pessoal, Outras Despesas Correntes e Investimentos. Os recursos aplicados no pagamento de Pessoal estão mostrados no gráfico 12.

    Gráfico 12 – Evolução dos recursos financeiros associados ao pagamento de Pessoal dos Institutos Federais e Centros Federais de Educação Tecnológica, no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Há uma elevação de 2014 até 2020 e no ano de 2021 haverá uma queda da ordem de R$ (-187,0) milhões. Foram valores em torno de R$ 9,0 bilhões em 2014 e entre R$ 14,0 bilhões e R$ 15,0 bilhões em 2020. Assim como nas UFs, esta queda em 2021 já expressa uma corrosão salarial pela inflação.

    Os valores financeiros para o pagamento de Outras Despesas Correntes sofreram fortes quedas como se pode analisar no gráfico 13.

    Gráfico 13 – Evolução dos recursos financeiros associados ao pagamento de Outras Despesas Correntes dos Institutos Federais e Centros Federais de Educação Tecnológica, no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Os valores eram superiores a R$ 3,0 bilhões em 2014 e se aproximaram de R$ 2,0 bilhões em 2020 e 2021; uma redução de um terço dos recursos para a manutenção dos IFs e CEFETs, o que, da mesma forma que nas UFs, compromete a continuidade das suas atividades no ano de 2021.

    O gráfico 14 apresenta a evolução dos recursos para Investimentos nessas instituições.

    Gráfico 14 – Evolução dos recursos financeiros associados aos Investimentos nos Institutos Federais e Centros Federais de Educação Tecnológica, no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Há, portanto, uma drástica redução dos recursos para Investimentos, o que significa praticamente uma redução a “zero” no ano de 2021. A redução no período foi de 98,6%. Isto deixará marcas “irrecuperáveis” nos ambientes de laboratórios e infraestrutura das instituições, nas suas salas de aulas e laboratórios.

    Os recursos financeiros do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

    O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) é um organismo do MEC que desenvolve programas e ações relacionadas à Educação Básica em apoio aos Estados, Distrito Federal e Municípios. Os recursos financeiros totais do FNDE estão mostrados no gráfico 15.

    Gráfico 15 – Evolução dos recursos financeiros totais aplicados pelo FNDE no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Os recursos aplicados pelo FNDE sofreram uma redução de R$ (-20) bilhões de 2014 a 2020, o que comprometeu diversas ações que estavam implementadas em 2014, dentre elas, a Complementação da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), a Concessão de Bolsas de apoio à Educação Básica, o Apoio ao Desenvolvimento da Educação Básica, o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), o Apoio ao Transporte Escolar, o Programa de apoio à Alimentação Escolar (PNAE), a Produção, Aquisição e Distribuição de Livros e Materiais Didáticos e Pedagógicos (Programa do LIVRO DIDÁTICO), o Apoio ao Transporte Escolar para a Educação Básica – Caminho da Escola etc.

    Os recursos aplicados na Capes, no CNPq e no FNDCT

    A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), é um organismo do MEC que atua na pós-graduação, avaliando os programas, ofertando bolsas, financiamento eventos e pesquisas etc.

    O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e financia bolsas para a pós-graduação, pesquisas científicas etc.

    O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) “é um fundo de natureza contábil que tem como objetivo financiar a inovação e o desenvolvimento científico e tecnológico, com vistas a promover o desenvolvimento econômico e social do País” (FINEP, 2021). O FNDCT é vinculado à Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), empresa pública do MCTI.

    A evolução dos recursos totais da Capes está mostrada no gráfico 16.

    Gráfico 16 – Evolução dos recursos financeiros totais da Capes no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Os recursos financeiros da Capes sofreram uma forte queda de 2015 a 2021, de 65,3%, o que significou R$ (-7,2) bilhões de redução.

    Os recursos do CNPq sofreram uma redução de 69,4%, de 2014 a 2021, passando de R$ 3,0 bilhões para um valor de R$ 918,1 milhões. O gráfico 17 apresenta a evolução desta redução.

    Gráfico 17 – Evolução dos recursos financeiros totais do CNPq no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    O FNDCT também teve uma forte redução de em seus recursos, passando de quase R$ 4,0 bilhões em 2014 para um valor menor do que R$ 500,0 milhões em 2021, uma redução de 90,6%, como mostrado no gráfico 18.

    Gráfico 18 – Evolução dos recursos financeiros totais do FNDCT no período 2014-2021.

    Fonte: (BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS, 2021)
     

    Os gráficos 16, 17 e 18 expressam em detalhes, o cenário de distribuição do sistema de ciência e tecnologia. Há, portanto, o comprometimento do pagamento de bolsas de mestrado e doutorado, promoção de eventos acadêmicos, financiamento de pesquisas etc.

    Considerações finais

    Os 18 gráficos que ilustram as análises deste estudo não deixam dúvidas de que está ocorrendo no Brasil um processo de destruição de setores sensíveis ao futuro de uma Nação.

    O “turbilhão” de propostas de emendas à Constituição de 1988 e o “sufocamento” financeiro imposto às áreas de educação, saúde, cultura, gestão ambiental e ciência e tecnologia, como explicitado nos números aqui apresentados, mostram o “sucesso macabro” do Programa de Governo apresentado pelo então candidato Bolsonaro e a “ordem” emitida desde Washington em março de 2019 para “desconstruir e desfazer”.

    A continuidade desta política de destruição levará inevitavelmente à “falência” das Universidades Federais, dos Institutos Federais, dos Centros Federais de Educação Tecnológica, dos agentes financiadores da Educação Básica (FNDE) e da Ciência e Tecnologia (Capes, CNPq e FNDCT). É preciso que a sociedade brasileira emita, com urgência, um “grito desesperado” de chega de tanta desconstrução e desfazimento!

    *Nelson Cardoso Amaral é mestre em física e doutor em educação, é professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

    Referências

    ANDIFES. Coletiva de Imprensa Remota: corte de mais de 18% do orçamento das Universidades Federais. Disponível em: youtube.com/watch?v=Ep0-BBmxVWc.

    BRASIL.CAMARA DOS DEPUTADOS. Execução Orçamentária da União. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/loa.

    BRASIL.CF. Constituição Federal de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. BRASIL.EC-95. Emenda Constitucional No 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm.

    BRASIL.INEP. Estimativa do Investimento Público Total em Educação em Relação Gastos Público Social (GPS), por Nível de Ensino – Brasil 2000-2017, Nota 4. Disponível em: http://inep.gov.br/indicadores-financeiros-educacionais.

    BRASIL.PORTARIA No 42, de 14 de abril de 1999. Atualiza a discriminação da despesa por funções de que tratam o inciso I do § 1o do art. 2o e § 2o do art. 8o, ambos da Lei no 4.320, de 17 de março de 1964, estabelece os conceitos de função, subfunção, programa, projeto, atividade, operações especiais, e dá outras providências. Disponível em: http://www.orcamentofederal.gov.br/orcamentos-anuais/orcamento-1999/Portaria_Ministerial_42_de_140499.pdf/.

    EDITORIAL E&S. O Fundeb permanente em tempos de desconstrução e desfazimento: mobilização e um basta veemente. Educação & Sociedade, Campinas, v.42, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302021000100100&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. https://doi.org/10.1590/es.247741.

    FINEP. O FNDCT. Disponível em: finep.gov.br/a-finep-externo/fndct. LÁZARO, N. Temos que desconstruir muita coisa, diz Bolsonaro sobre o Brasil, 18/03/2019. Disponível em: <metropolis.com/mundo/politica-int/temos-que-desconstruir-muita-coisa-diz-bolsonaro-sobre-brasil).>

    LEHER, R. Apontamentos para análise da correlação de forças na educação brasileira: em prol da frente democrática. Educação & Sociedade, Campinas, v. 40, 2019. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302019219831.

    PROGRAMA DE GOVERNO BOLSONARO. O Caminho da Prosperidade – 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2018/10/plano-de-governo-jair-bolsonaro.pdf.

  • A Ford e as agruras do desenvolvimentismo associado . Por Marco Antonio Rocha

    A Ford e as agruras do desenvolvimentismo associado . Por Marco Antonio Rocha

    A Ford e as agruras do desenvolvimentismo associado

    A saída da Ford do Brasil se deve a uma confluência de fatores. O principal deles está na drástica redução do mercado doméstico de automóveis e na grande capacidade ociosa das fábricas. Contam também a reestruturação que a empresa realiza em sua produção global – dando preferência a modelos de luxo em detrimento dos mais baratos – e a entrada de novas tecnologias no setor, como a do carro elétrico. A desindustrialização e a perda de milhares de empregos deveria provocar um debate de rumos sobre o desenvolvimento econômico

    Por Marco Antonio Rocha

    Embora a saída da Ford seja algo que atinja a memória afetiva de um projeto de desenvolvimento que se perdeu, o fato não é um acontecimento isolado. Ele representa mais um capítulo da crise aberta pela incapacidade do empresariado brasileiro capitanear uma rearticulação produtiva com o sistema capitalista internacional no período pós-fordista.

    O estilo de desenvolvimento em que o processo de internacionalização das multinacionais garantia a articulação de uma cadeia produtiva integrada no espaço nacional, não se tornou mais possível em um universo de cadeias fragmentadas e de especialização por tarefas nas cadeias globais. Durante a reestruturação produtiva do sistema capitalista internacional, não houve no país a construção de um projeto que possibilitasse superar os esquemas tradicionais de divisão do trabalho entre centro e periferia.

    O estilo de desenvolvimento em que o processo de internacionalização das multinacionais garantia a articulação de uma cadeia produtiva integrada no espaço nacional, não se tornou mais possível em um universo de cadeias fragmentadas e de especialização por tarefas nas cadeias globais

    Nesse sentido, a saída da Ford é a continuidade do esfacelamento da estrutura produtiva de caráter fordista, desenvolvida ao longo do processo de industrialização no Brasil. Durante a mudança na forma de internacionalização das empresas multinacionais e com a acirramento da competição internacional promovida pela industrialização das economias asiáticas, a burguesia industrial brasileira não demonstrou ter a menor capacidade de promover políticas garantidoras de uma inserção internacional do sistema industrial brasileiro que combinasse a sofisticação de sua pauta de exportação com a melhoria substancial da estrutura ocupacional.

    Falta de perspectivas

    O caso da Ford é ilustrativo desse processo. De certa forma, é resultado de tudo isso, das mudanças na lógica de atuação das multinacionais dos países centrais, dos efeitos da inserção internacional das economias de industrialização recente, do progresso tecnológico na competição global da indústria automotiva e da falta de perspectivas sobre o crescimento da economia brasileira nesse contexto.

    Em outros termos, é tanto resultado do vácuo em relação a um projeto de desenvolvimento de longo prazo quanto dos limites de outro projeto de desenvolvimento, cujo principal eixo de articulação dependia da presença do capital estrangeiro.

    A mudança do padrão de consumo das economias desenvolvidas, com a estagnação da demanda por automóveis na Europa e o crescimento da demanda nos Estados Unidos, concentrada em carros de luxo e SUVs, provocou o deslocamento do mercado consumidor para as grandes economias em desenvolvimento

    No que se refere a decisão da Ford, ela possui lógica semelhante da decisão das demais montadoras tradicionais em relação às mudanças recentes na indústria automotiva. A reorientação das estratégias das montadoras foi condicionada por três fatores inter-relacionados:

    O primeiro foi a mudança da concentração geográfica da demanda e do perfil do consumo de veículos; o segundo fator foi a entrada de novas empresas montadoras e o acirramento da competição nos mercados de maior dinamismo; e o terceiro é formado pelos efeitos da mudança tecnológica nas estratégias das empresas líderes.

    Mercado de luxo

    A mudança do padrão de consumo das economias desenvolvidas, com a estagnação da demanda por automóveis na Europa e o crescimento da demanda nos Estados Unidos, concentrada em carros de luxo e SUVs, provocou o deslocamento do mercado consumidor para as grandes economias em desenvolvimento. Ainda que sejam também grandes mercados para carros de luxo e de grande porte, a mudança geográfica dos mercados com maior crescimento significou uma maior taxa de crescimento da demanda localizada em carros de menor porte e menor valor adicionado.

    Muitas dessas economias, a exemplo da China, Índia e Rússia, desenvolveram capacidade local de produção por meio do fomento de montadoras locais. Essas novas entrantes pressionaram as margens para baixo, sobretudo nos mercados de grande crescimento, sendo especialmente bem-sucedidas na entrada nos nichos de automóveis de menor valor adicionado.

    Em um cenário de mudanças globais, é difícil supor que a mera manutenção de um ritmo modesto de crescimento do mercado interno seja suficiente para se contrapor ao movimento geral de reestruturação da indústria automobilística

    Esse movimento fez com que parte das montadoras tradicionais reavaliassem as estratégias nesses nichos de mercado, reduzindo os modelos e enxugando a produção voltada aos mercados emergentes. No cenário de queda drástica do comércio internacional provocado pela pandemia, a necessidade de promover a rápida ocupação da capacidade produtiva instalada provavelmente acelerou a reorganização estratégica da produção global das montadoras.

    A escolha por esse tipo de estratégia está relacionada também à mudança do perfil dos investimentos das montadoras tradicionais em direção às novas tecnologias da Quarta Revolução Industrial.

    Em geral, as grandes montadoras têm voltado parte dos investimentos na aquisição de patentes e de empresas desenvolvedoras de tecnologias chaves para a geração de carros com menor impacto ambiental e para automóveis de direção autônoma. Como as mudanças tecnológicas deverão significar a entrada de novas empresas no setor vindas de áreas relacionadas ao desenvolvimento das novas tecnologias, as montadoras tradicionais têm demonstrado pouco interesse em se manter na competição nos nichos de menor valor adicionado, concentrando esforços nos nichos de maior valor e no posicionamento para a competição nos novos modelos de maior complexidade tecnológica.

    Economia pouco atrativa

    Com a redução dos esforços competitivos nos modelos voltados aos mercados emergentes e a necessidade de racionalizar a produção global frente a essas mudanças estratégicas, é natural que economias pouco atrativas e com baixa perspectiva de crescimento, como se tornou a brasileira, sejam preteridas em relação a mercados emergentes de maior crescimento.

    Entretanto, é necessário levar em consideração que a maior atratividade de outras economias emergentes esteve relacionada não só a maiores taxas de crescimento, mas igualmente à existência de políticas voltadas ao desenvolvimento da produção automobilística local, inseridas geralmente em estratégias nacionais mais amplas de desenvolvimento das forças produtivas.

    Em um cenário de mudanças globais, é difícil supor que a mera manutenção de um ritmo modesto de crescimento do mercado interno seja suficiente para se contrapor ao movimento geral de reestruturação da indústria automobilística. Assim, como seria ainda mais difícil supor que o problema resida em um conceito vago e genérico como “Custo Brasil”, solucionável por meio de reformas de cunho liberalizante que seriam suficientes para reverter a perda de competitividade da indústria brasileira e defendida em bloco pela burguesia brasileira. A agenda do “Custo Brasil” só revela a falta de visão do que restou da burguesia industrial sobre a magnitude das mudanças no sistema industrial internacional e nas práticas de política industrial mundo afora.

    Incapacidade empresarial

    Do episódio da Ford, retiram-se algumas lições importantes. A primeira é nos fazer lembrar de como as estratégias das multinacionais podem facilmente desfazer imensos esforços dispendidos em relação a um estilo de desenvolvimento associado. A segunda é a incapacidade de o empresariado industrial brasileiro propor ou compor um projeto de desenvolvimento produtivo que vá além de, na melhor das hipóteses, uma inserção subordinada nas cadeias de valor. A terceira é como as economias que procuraram construir políticas de desenvolvimento industrial estão se demonstrando com maior capacidade de barganha e, inclusive, com maior atratividade para o investimento estrangeiro.

    Em meio a isso, buscam-se soluções momentâneas possíveis. A tentativa de fazer uma empresa brasileira ou uma dessas empresas entrantes no setor automobilístico, seja indiana ou chinesa, assumir o controle do parque produtivo salvaria os empregos e a economia das cidades afetadas – em especial, Taubaté e Camaçari – mas não deixaria de ser uma solução momentânea. Sem o crescimento do mercado doméstico e sem a construção de um projeto de base popular voltado ao desenvolvimento das forças produtivas, o episódio da Ford será apenas mais um dos vários que se seguirão.

    *Marco Antonio Rocha é professor do Instituto de Economia da Unicamp

  • A direita,  a internet  e os livros . Por Haroldo Ceravolo Sereza

    A direita, a internet e os livros . Por Haroldo Ceravolo Sereza

    A direita, a internet e os livros

    O mercado editorial vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não

    Por Haroldo Ceravolo Sereza

    No início de janeiro de 2021, o grupo Record, do Rio de Janeiro, anunciou a saída de Carlos Andreazza da direção-executiva, com a substituição por Rodrigo Lacerda. Aparentemente, uma pequena e quase discreta movimentação nos cargos de uma das grandes empresas do setor, que, além da própria editora Record, conta também com os selos Difel, Bertrand Brasil, José Olympio, Civilização Brasileira, Paz e Terra, Verus, BestSeller (e o selo Best Business), as Edições BestBolso, Rosa dos Tempos, Nova Era e Viva Livros.

    Andreazza é hoje mais conhecido pelos comentários que fazia diariamente na rádio negacionista Jovem Pan. Recentemente, foi contratado pela CBN e será um dos âncoras a partir de fevereiro. Também tem uma coluna no jornal O Globo. É sobrinho do coronel Mario Andreazza (1918-88), o candidato preferido dos militares à Presidência. Foi derrotado na convenção do partido da ditadura, o PDS (atual Progressistas), por Paulo Maluf, que perderia a disputa indireta de 1985 para Tancredo Neves (PMDB). Estava na Record havia oito anos.

    Propaganda lacerdista

    O grupo Record, inicialmente uma distribuidora de serviços para a imprensa, como tiras de quadrinhos e artigos, passou a publicar livros nos anos 1960 para divulgar as ideias de Carlos Lacerda (1914-77) e fazer muita propaganda anticomunista. Foi uma das editoras que, obviamente, mais apoiaram o golpe de 1964. Carlos Lacerda, aliás, criou uma editora muito importante também, a Nova Fronteira, da qual o novo diretor do grupo Record, neto do governador do Rio em 1964, já foi gerente editorial.

    O grupo Record, inicialmente uma distribuidora de serviços para a imprensa, como tiras de quadrinhos e artigos, passou a publicar livros nos anos 1960 para divulgar as ideias de Carlos Lacerda (1914-77) e fazer muita propaganda anticomunista. Foi uma das editoras que, obviamente, mais apoiaram o golpe de 1964

    Essas genealogias sugerem a relevância que a tradição cultural da direita dá aos projetos ideológicos de fundo e para o papel fundamental que o mercado editorial teve no golpe de 2016 e na trajetória política do país que levou Jair Bolsonaro ao poder. Longe de ser um campo neutro, algumas das principais editoras e livrarias – e entidades que representam as grandes casas publicadoras – foram atores diretos da disputa ideológica em que estamos metidos.

    A construção de um ambiente hostil à esquerda recorreu a diferentes métodos de intervenção no debate político cultural. A edição e a superexposição de autores medíocres, embalados pela publicidade e pela compra de espaço nas livrarias, sugerem que, mais do que “ganhar dinheiro” diretamente com a venda de livros, algumas editoras se engajaram de modo explícito e empolgado na vida política. O resultado econômico imediato cedeu às pressões da luta ideológica. Não há estudos suficientes que indiquem claramente o financiamento político dessas empresas por institutos e think tanks que estiveram à frente desse combate. Mas, como o mercado editorial é, economicamente falando, bastante pequeno, é muito difícil detectar essas movimentações a quente. Normalmente, o entendimento desse mecanismo leva anos para ser desvendado, como foi o caso do apoio norte-americano à editora GRD, na década de 1960, comandada pelo escritor Rubem Fonseca. Essa casa, também especializada na difusão de ideologia reacionária, foi responsável pela publicação dos primeiros livros do hoje consagrado autor, um notório articulador do complexo ideológico Ipes-Ibad, institutos que organizaram o discurso e o dinheiro internacional que sustentou o golpe de 1964.

    Guinada à extrema direita

    Evidentemente ninguém é responsável pelos atos de tios e avós, mas Andreazza é responsável, sim, por uma radical guinada à extrema direita do grupo Record. Ele é o editor de Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e tantos outros. Também foi o editor que tirou de catálogo incontáveis autores progressistas e socialistas. Lacerda tem um perfil mais discreto e menos radical que o de Andreazza, e creio que ainda é cedo para avaliarmos o impacto da mudança. De todo modo, a saída de Andreazza da Record, em tese, coloca a editora numa posição menos engajada com a ultradireita que liderou o golpe.

    Durante os anos 2010, essa ultradireita levou muito a sério a criação e a difusão, com práticas de marketing agressivas, de livros. O Grupo Record, ainda antes de Andreazza assumir um posto de direção, já responsável pela publicação do jornalista Reinaldo Azevedo, fez uma agressiva campanha, fundada em desinformação, contra o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Chico Buarque em 2010, autor de Leite derramado, publicado pela Companhia das Letras.

    O mercado editorial brasileiro vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não. Os números detalhados ainda não temos, mas tudo sugere que o principal espaço de difusão de livros deixou de ser a livraria física e passou a ser a Amazon. Trocamos o controle das redes de livrarias reacionárias pelo controle pela empresa do homem mais rico do mundo hoje, Jeff Bezzos

    Num modelo de financiamento que dependia das editoras para bancar o crescimento, livrarias em dificuldades econômicas trocaram a ideia de gerirem espaços plurais política e culturalmente pela venda descarada de melhores lugares nas gôndolas de livros (não mais estantes) para as editoras capitalizadas. Direitistas envergonhados que dirigiam essas livrarias viram-se também representados por essa onda, e passaram a ser defensores ardorosos do Estado mínimo enquanto se afundavam em empréstimos obtidos no BNDES, num dos maiores erros setoriais do banco durante os anos Lula e Dilma.

    Falência das grandes livrarias

    Como sabemos, o projeto político vingou, mas as livrarias faliram. 2020 foi o ano em que as redes Saraiva e Cultura, as duas maiores do país, minguaram, numa crise que seria pouco diferente se não fosse a pandemia. Esses negócios vinham enfrentando dificuldades de longa data, dificuldades que derivam de erros de planejamento econômico, de administração cotidiana infeliz e, também, das derivas políticas desastrosas, que espantaram parte do público fiel. Essas lojas, que deixaram de pagar centenas de milhões de reais a fornecedores e trabalhadores, sofrem também com uma crise estrutural do setor, que, pressionado pela publicação legal ou ilegal de livros e textos digitais, viu o faturamento cair, em termos reais, 20% nos últimos 14 anos.

    Segundo o IBGE, de janeiro a novembro de 2020, as livrarias sofreram uma dura contração: o portal Publishnews, especialista no acompanhamento do mercado editorial, noticiou que o setor varejista de livros, jornais, revistas e papelaria apresentou perda acumulada de 29,7%. A Veja São Paulo também registrou uma nova ronda de demissões na Livraria Cultura, com o corte de dezenas de funcionários em 8 de janeiro de 2021. Dirigindo-se aos trabalhadores da rede, Sérgio Herz, CEO da Cultura, afirmou que a empresa “não está fazendo nada de mais” em atrasar os pagamentos e, em nota, a rede justificou as demissões como consequência de uma adequação “devido à nova realidade”: “o mercado migrou para o on-line e as vendas pela internet representam hoje, em média, 80% do total das vendas no Brasil”.

    Vendas físicas e online

    De acordo com o site da revista Pequenas empresas, grandes negócios, em 2019, segundo pesquisa divulgada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), “as livrarias físicas e as vendas on-line representaram, respectivamente, 50,5% e 17,9% do faturamento do setor editorial. A expectativa é que, este ano, a internet tenha sido responsável, sozinha, por mais da metade”.

    Como mostra o gráfico 1 acima, essa queda não foi tão sentida pelas editoras em geral, especialmente as que dependiam menos das duas redes, por conta da venda on-line de livros – seja em sites próprios, de cada empresa, seja pela Amazon. Quando os dados incluem a venda on-line, os resultados são outros.

    É fundamental que a esquerda leve a sério o acompanhamento e a atuação do mercado editorial, por meio de editoras ligadas diretamente ou historicamente aos movimentos populares e progressistas, e favoreça a construção de redes alternativas de distribuição, compreendendo definitivamente a importância política estratégica e tática do setor, incorporando a suas lutas projetos e reivindicações que revertam a hiperconcentração do setor e a falta de pluralismo que sufoca as propostas populares

    Segundo o Painel do Varejo de Livros no Brasil (veja gráfico 1), acompanhamento em tempo real do mercado editorial brasileiro, feito pela Nielsen [Media Research por encomenda do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, até o fim de novembro de 2020 foram vendidos tantos exemplares e alcançou-se quase o mesmo faturamento que nos doze meses de 2020. De acordo com o Publishnews, “por questões contratuais da Nielsen com as varejistas, o documento não esmiúça o que foi realizado em lojas de argamassa e tijolo e aquilo que foi vendido em lojas exclusivamente virtuais, mas livreiros e editores ouvidos pelo PublishNews apontam que grande parte dessas vendas foi realizada em e-commerces, mostrando que esse segmento é o que tem sustentado essa recuperação apontada pelo Painel”.

    Assim, o mercado editorial brasileiro vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não. Os números detalhados ainda não temos, mas tudo sugere que o principal espaço de difusão de livros deixou de ser a livraria física e passou a ser a Amazon. Trocamos o controle das redes de livrarias reacionárias pelo controle pela empresa do homem mais rico do mundo hoje, Jeff Bezzos.

    Redes alternativas

    Nesse cenário, parece fundamental que a esquerda leve a sério o acompanhamento e a atuação do mercado editorial, por meio de editoras ligadas diretamente ou historicamente aos movimentos populares e progressistas, e favoreça a construção de redes alternativas de distribuição, compreendendo definitivamente a importância política estratégica e tática do setor, incorporando a suas lutas projetos e reivindicações que revertam a hiperconcentração do setor e a falta de pluralismo que sufoca as propostas populares.

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    Fontes:
    Agência O Globo/Revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios: O ano em que o e-commerce salvou o mercado editorial. https://revistapegn.globo.com/Banco-de-ideias/E-commerce/noticia/2020/12/o-ano-em-que-o-e-commerce-salvou-o-mercado-editorial.html
    O Estado de São Paulo: Mercado editorial brasileiro encolhe 20% em 14 anos. https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,mercado-editorial-brasileiro-encolhe-20-em-14-anos,70003357850
    Publishnews: Nielsen: Black Friday polpuda salva 2020. https://www.publishnews.com.br/materias/2020/12/18/nielsen-black-friday-polpuda-salva-2020
    Publishnews: Mais demissões na Cultura. https://www.publishnews.com.br/materias/2021/01/18/apanhadao-mais-demissoes-na-cultura
    Veja São Paulo: Cultura demite 30 no último corte; ex-funcionários protestam para receber. https://vejasp.abril.com.br/cidades/livraria-cultura-fgts-rescisao-atrasado-pagamento-funcionario/
    Folha de São Paulo: Editor Carlos Andreazza deixa o grupo Record para se dedicar ao jornalismo. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/01/editor-carlos-andreazza-deixa-o-grupo-record-para-se-dedicar-ao-jornalismo.shtml

    Haroldo Ceravolo Sereza, doutor em Letras pela FFLCH-USP, é fundador de Alameda Casa Editorial, ex-presidente das Liga Brasileira de Editoras (2011-2015) e representante eleito do Conselho do Plano Municipal do Livro, Leitura e Literatura do município de São Paulo.

  • Aonde nos levará essa loucura?

    Aonde nos levará essa loucura?

    Aonde nos levará essa loucura?

    É possível que quando o número absurdo de mortes ultrapasse a 400 mil, em mais seis ou sete semanas, a manter-se o patamar atual de mortes diárias, Bolsonaro já não seja o presidente do Brasil

    Por Euclides Mance

    Quando os portugueses aportaram nestas terras, enxergaram um mundo de oportunidades para enriquecer. Movidos pela sede de fortuna, passaram a pilhar o que de valioso encontravam. Pessoas que aqui viviam, em suas comunidades milenares, foram escravizadas e mortas, subjugadas para propósitos econômicos e sexuais – sendo tratadas como coisas, usadas e descartadas, pois não teriam alma. Nascia, desse modo, o Brasil, um país dividido entre os que mandavam e os que obedeciam. Entre aqueles que tinham o poder sobre a vida e a morte dos demais. E aqueles que, para sobreviver, tinham de submeter-se à dominação e trabalhar como escravos ou resistir e enfrentar a opressão, defendendo a sua dignidade, a sua liberdade, sua honra e cultura, até a morte se preciso fosse.

    A resistência indígena tornou inviável a escravidão dos povos que aqui viviam, impossibilitando a exploração econômica de seu trabalho. E os portugueses tiveram de buscar escravos em outras terras, que depois foram substituídos por trabalhadores assalariados vindos de qualquer parte.

    Aos membros dessa elite, sempre colonial, importava enriquecer e ir embora daqui. Sonhavam em voltar patacudos para a Europa e desfrutar do patrimônio que haviam acumulado às custas do sangue, da vida e da exploração do trabalho alheio.

    Tal cultura de saqueio, dominação e de indiferença à morte de milhões de indígenas e negros, de seus filhos e mestiços, permaneceu no Brasil ao longo de sua história. A elite que a reproduz, nos dias atuais, também espera enriquecer com a exploração do trabalho alheio e a pilhagem da coisa pública, para depois gozar a vida na Europa ou nos Estados Unidos. Ou, ao menos, desfrutar anualmente de algumas semanas ou meses por lá. Para ela, é inaceitável que os filhos da classe trabalhadora ingressem nas universidades; que pessoas humildes tenham direito a melhores salários e que lhes seja possível viajar de avião pelo país.

    Mas a transparência completa dessa cultura abominável, agasalhada por expressiva parte da classe dominante brasileira, revela-se cristalina na situação atual que o país atravessa. Para essa pequena parcela abastada da sociedade, pouco importa quantos brasileiros morrerão infectados pelo coronavírus. Por isso, desde o início da pandemia, ela nada fez para frear ou conter amplamente a propagação desse vírus. Preocupou-se, tão somente, em assegurar que houvesse vagas de UTI disponíveis para os membros da própria elite, para atendê-los em caso de necessidade.

    Assim, criou-se um sistema para permitir a propagação do vírus, contabilizando-se as vagas disponíveis de UTI. Havendo vagas que permitam atender aos membros da elite, defende-se que tudo esteja aberto, pouco importando que a transmissão do vírus se amplie e os mais pobres morram de Covid-19 – afinal, os membros da elite, sempre isolados do povo, dificilmente contrairiam a doença, imaginavam. Por outra parte, não havendo tais vagas disponíveis, eles concordam em fechar o que for necessário, para não ficarem desatendidos de uma UTI, em caso de serem acometidos por apendicite, infarto, AVC etc.

    No início dessa pandemia, estudos científicos publicados pelo Imperial College London, projetavam que poderia haver 1,1 milhão de mortes no Brasil por Covid-19. Refazendo essas projeções, em abril de 2020, com base em declarações do Ministério da Saúde e em detalhes das condições de habitação e saneamento no país, concluímos que poderia haver entre 1,5 a 1,7 milhão de mortos, se medidas de prevenção do contágio não fossem amplamente tomadas[1]. Mas, infelizmente, a morte prevista de centenas de milhares de pessoas, que poderia ser evitada com medidas corretas para reduzir o contágio, não teve a menor importância para as elites que governam o Brasil: –“Fazer o quê?” “Esse vírus é igual a uma chuva, vai molhar 70% de vocês”, disse o presidente sociopata, em abril de 2020.

    Mas aonde nos levará essa loucura? O atual ministro da Saúde afirmou que garantirá a vacinação de um milhão de pessoas por dia. Supondo que haja vacinas para isso, seriam necessários 100 dias para vacinar 100 milhões de brasileiros – pouco menos da metade da população. Mas, se as mortes provocadas pelo Coronavírus permanecerem em duas mil ao dia, nos próximos 100 dias teremos 200 mil mortes, que somados às 300 mil já ocorridas, resultarão em meio milhão de vidas perdidas. Porém, se todas as vagas de hospitais estiverem ocupadas, no atendimento dos pacientes de Covid-19, também morrerão muitos dos que precisarem de assistência médica em consequência de acidentes de trânsito, infartos, AVC etc.

    Os empresários em geral e os banqueiros em particular já se deram conta de que a própria vida deles está em risco. Mas uma parte dos políticos do Congresso Nacional ainda não. Em mais três meses, entre os mortos dessa doença, estarão, com certeza, não apenas os filhos da classe trabalhadora, obrigados a sair de casa para garantir o alimento da sua família, mas também esposas, filhos, mães ou outros parentes dos próprios deputados e senadores que representam os interesses das elites desse país e que sustentam, até agora, o seu Governo genocida. Por serem base de apoio desse Governo, eles são igualmente responsáveis pelas milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. É possível que quando o número absurdo de mortes ultrapasse a 400 mil, em mais seis ou sete semanas, a manter-se o patamar atual de mortes diárias, Bolsonaro já não seja o presidente do Brasil. Mas poderá ter sido tarde demais, para mudar o desfecho dessa tragédia, anunciada desde março de 2020.

    Nota

    [1] http://euclidesmance.net/wp/index.php/2020/04/09/coronavirus-o-brasil-avanca-para-uma-tragedia-ainda-maior/

  • Áurea Carolina: “Não nos conformamos com o modelo formal de democracia. Resguardar as regras do jogo é essencial”

    Áurea Carolina: “Não nos conformamos com o modelo formal de democracia. Resguardar as regras do jogo é essencial”

    Áurea Carolina: “Não nos conformamos com o modelo formal de democracia. Resguardar as regras do jogo é essencial”

    Eleita vereadora em 2016 e deputada federal em 2018 – nas duas situações com votação consagradora -, Áurea Carolina (PSOL-MG) tem sua atuação voltada à área da Cultura e à regulação da atividade mineradora no país, marcada pelos crimes ambientais da Vale, em Brumadinho e em Mariana. Ao mesmo tempo, não perde o diálogo com a periferia, de onde veio. A parlamentar considera possível fazer transformações em situações locais, que podem ganhar escala, a partir de uma direção política democrática

    Entrevista realizada por Gilberto Maringoni

    Como tem sido a experiência na Câmara Federal com um governo de extrema direita? E quais diferenças você vê para a atuação local?
    É um desafio em todas as dimensões. O ambiente da Câmara tem outra escala, com uma complexidade muito maior em relação à Câmara Municipal de BH. Estou na Comissão de Cultura, ocupando a segunda vice-presidência. É a primeira vez em que o PSOL está na mesa de uma comissão, o que é muito importante, ainda mais com a presidência de Benedita da Silva (PT-RJ), uma mestra maravilhosa que sempre me acolheu e orientou. Mas o contexto geral é de desmonte muito acelerado e violento, com essa ala extremista e autoritária que ganha força no Congresso. Na área da Cultura houve tentativas de censura e asfixia no financiamento das políticas públicas. Foi uma espécie de prisma para compreender toda a conjuntura brasileira. Também atuei na denúncia e apuração do crime da Vale, em Brumadinho, direcionando o mandato na busca da responsabilização da empresa e na defesa das populações atingidas. Participei de uma comissão externa que propôs uma revisão da legislação sobre mineração, e depois da CPI que investigou o crime.

    A Vale financiou muitos políticos mineiros e, portanto, é também um poder político. Como foi fazer esse enfrentamento à mineração predatória?
    Havia uma influência da Vale sobre parte dos parlamentares. Isso ficou ainda mais escancarado quando conseguimos levar alguns dos Projetos de Lei que construímos na comissão para apreciação do plenário. A Vale entrou pesado para inviabilizar mudanças significativas, mesmo após os crimes em Brumadinho e em Mariana, com a Samarco. É impressionante como essas empresas conseguem determinar boa parte do jogo parlamentar. Agora, está em curso o processo de acordo para reparação de danos sociais e ambientais, e vemos como a Vale continua controlando a cena do crime e dando as cartas, prejudicando as populações atingidas. Tudo com certa conivência do Judiciário e dos outros poderes. Compreendi não ser possível banir a mineração do Brasil, embora essa fosse a perspectiva desejável. O desafio é como reduzir os danos da atividade, que necessariamente causa destruição, e como torná-la mais responsável e segura.

    A Vale também foi financiadora de alguns setores da cultura. Existe alguma blindagem feita pela empresa nesse campo?
    O financiamento de ações culturais nos territórios deve ser exigido das empresas, não de qualquer maneira. Sabemos os riscos que isso traz de cooptação, manipulação, relações clientelistas e de como isso se torna um ativo para as corporações. Mas não exigir que tenham esse tipo de reparação mínima é também ilusório. Não acho que devamos prescindir desse vínculo entre formas de reparação, destinando parte da fortuna que levantam na exploração predatória para que, minimamente, possamos reconstruir esses territórios. Dessa forma, devemos fazer uma transição para sair da minerodependência usando parte dos recursos da atividade minerária para a diversificação da matriz econômica. Várias cidades teriam vocação para o turismo, economia popular e solidária, produção de alimentos saudáveis, e mesmo para desenvolvimento industrial. Mas isso não é cobrado dessas empresas. Tentamos emplacar mudanças na tributação, mas a Vale entrou de sola e não permitiu. Hoje, a tributação da mineração no Brasil é ridícula.

    O financiamento de ações culturais nos territórios deve ser exigido das empresas, não de qualquer maneira. Sabemos os riscos que isso traz de cooptação, manipulação, relações clientelistas, e de como isso se torna um ativo para as corporações. Mas não exigir que tenham esse tipo de reparação mínima é também ilusório. Hoje, a tributação da mineração no Brasil é ridícula

    A cultura talvez tenha sido uma das áreas mais tumultuadas do governo Bolsonaro, com uma forte ofensiva reacionária. Como isso se dá na comissão?
    A extinção do Ministério da Cultura foi o primeiro gesto do governo de que aprofundaria algo já em curso. Desde o golpe de 2016, isso vem numa toada cada vez mais grave. Na sequência, os secretários de Cultura vêm sempre com uma linha desastrosa, negacionista, delirante e muito coerente com o projeto bolsonarista. A cultura acontece sob um clima fundamentalista de perseguição à diversidade, com cerceamento do pensamento crítico e com tentativa de censura, não só de conteúdo, mas principalmente com a retirada de recursos da área, de maneira brusca e num volume inacreditável. Com a pandemia, tivemos um desastre total. Aprovamos a Lei Aldir Blanc para socorrer artistas e espaços culturais. Fizemos seminários temáticos para resgatar um pouco da história das políticas culturais, a questão dos povos e comunidades tradicionais e combatemos a tentativa de submeter a cultura ao pensamento mercadológico. A comissão passou a ser, como disse a Benedita, o partido da Cultura. Vários embates foram travados e tentamos ter uma concertação progressista para defender o básico.

    Você leva à Câmara uma contribuição periférica, negra e feminina num Congresso majoritariamente branco, machista, misógino e lgbtfóbico. Como enfrenta esse ambiente?
    Tive um pré-teste na Câmara de BH, um microcosmo da Câmara dos Deputados. Lá, já tínhamos visto a facção fundamentalista muito invasiva, além de agressividade física no plenário e muito da violência política presente no Legislativo. Uma parlamentar com as minhas características e compromissos, é sempre difícil estar em um espaço que não foi programado para nós. Mas nossa bancada é aguerrida e maravilhosa, apesar de pequena. Consolidamos uma atuação cuja força vem de fora para dentro, porque ali a correlação de forças dificulta avançar com nossas agendas. Há um reconhecimento forte de lideranças como eu, Talíria Petrone, Sâmia Bomfim e Fernanda Melchionna, jovens feministas que passam a ativar outra possibilidade de estar nos espaços de poder. Houve um crescimento de candidaturas de pessoas negras, feministas, periféricas e LGBTI nas eleições de 2020. Acho que é uma tendência, e o PSOL é o partido que mais tem correspondido a esse apelo e a essas novas formas de organização.

    Com o fim do auxílio emergencial e com a pandemia ainda em alta, se nada for feito, o que você vislumbra para o futuro próximo?
    O agravamento muito rápido das condições de vida faz com que a capacidade de auto-organização popular seja muito comprometida. Por outro lado, em função da necessidade de sobrevivência nas comunidades, surgiram iniciativas incríveis de ajuda mútua e busca de alternativas econômicas, além de circuitos de formação política que escapam muito da forma de organização de partidos e de movimentos sociais. Estou muito mais preocupada com a capacidade de a população construir formas politizadas de gestão da vida, buscando o cuidado entre nós, do que com as entranhas do Legislativo ou do partido. É o que me faz ter esperança e disposição para poder continuar existindo na Câmara, apesar de um jogo tão desfavorável para nós. É necessário apostar na institucionalidade para aquele que tenha uma vitalidade fora dela consiga impactar e transformá-la.

    Nas periferias, você disputa espaço com as igrejas fundamentalistas, em um meio violento e preconceituoso. Como se estabelece essa disputa?
    É muito difícil, mas os resultados existem. Nas igrejas evangélicas começa a existir um movimento disruptivo de crítica interna – ainda diminuto, mas com uma força qualitativa muito grande. Não à toa, tem surgido candidaturas evangélicas progressistas, que buscam em suas comunidades mostrar ser possível confrontar o fundamentalismo e toda a manipulação disfarçada de fé, para ter uma resposta em que fé e política se encontram. Na questão da segurança pública, se conseguirmos dialogar a partir de um trabalho persistente com lideranças críticas, a segurança vem como um dos eixos de organização comunitária. Vou dar um exemplo. Em Belo Horizonte, existia um baile funk muito famoso no Aglomerado da Serra, uma das maiores favelas do país, reunindo milhares de jovens. Ali, começou a haver muito conflito com a polícia, que sempre chegava com muita violência. Eu, ainda estava vereadora e nos reunimos com a Polícia Militar, a Prefeitura e os organizadores do baile e começamos a mediar uma situação para viabilizar a festa, com participação de parte a parte, defendendo o direito à cultura e à cidade. Surpreendentemente, tivemos avanços e o baile começou a acontecer em outros termos. No entanto, quando saímos dessa mesa de negociação, a situação não se sustentou e retrocedeu muito rapidamente. Isso mostra que quando há uma direção política é possível fazer transformações no micro que podem ganhar escala. Acho que o Sistema Nacional de Segurança Pública, tendo outra ação, poderia ter uma resposta de proteção à vida para sair desse modelo repressivo ineficaz e passar a se direcionar para uma política cidadã, com melhores resultados. Restabelecer a democracia em um lugar de decência mínima é a grande tarefa que temos para 2022. Não nos conformamos com o modelo formal de democracia que, sequer, funciona a contento. Resguardar as regras do jogo é algo essencial.

    Da cultura hip-hop para a Câmara dos Deputados

    Áurea Carolina de Freitas e Silva, paraense de Tucuruí, 37 anos, iniciou a militância política no mundo da Cultura, no início dos anos 2000. Integrante do grupo de rap Dejavuh, da periferia de Belo Horizonte, revelou-se uma artista eclética: compunha, cantava e dançava. Mas Áurea se destacou mesmo nas atividades organizativas, ao ajudar a formar o Hip Hop Chama, espaço de ativismo que unia arte e pensamento crítico. A atual deputada federal conta que “havia uma necessidade de participação e a arte foi o meio que nos trouxe para a reflexão sobre a realidade”.

    Daí para a política partidária, o caminho foi natural. “Comecei a participar de coletivos, tanto de rap quanto os que discutiam políticas públicas e direitos de juventudes, em temas como violência, racismo, machismo dentre outros”. Áurea foi atuar no terceiro setor ao mesmo tempo em que cursava graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal de Minas Gerais.

    Tem início uma fase de ativismo incessante. A ativista integrou o Fórum das Juventudes da Grande BH, em 2004, acompanhou a instituição da Secretaria Nacional de Juventude, do Conselho Nacional e do Plano Nacional de Juventude, nos governos de Lula, e passou a pesquisar a institucionalização de políticas para mulheres jovens no Brasil. Durante o mestrado, em 2015, foi subsecretária de Políticas para as Mulheres do governo de Minas Gerais, na gestão de Fernando Pimentel (PT). “Fiquei pouco tempo”, sublinha, “pois vi que não tinha como fazer o que eu acreditava”. Ela considera o período importante para entender como a sociedade civil pode influenciar as instituições.

    Ao participar de uma rede de movimentos de oposição às arbitrariedades do então prefeito Márcio Lacerda (PSB), Áurea entrou em contato com a militância do PSOL. Logo, nasceu a ideia da candidatura para Câmara Municipal. Em 2016, ela chegou lá, com 17.420 votos. O melhor desempenho feminino da cidade.

    O mandato de vereadora abriu uma experiência até então inédita. Ao lado de Cida Falabella, também do PSOL, inaugurou um mandato coletivo, batizado de Gabinetona. “Juntamos várias candidaturas em um projeto comum e desenvolvemos estratégias com resultados fenomenais”, relata.

    A maior inspiração de Áurea foi o avô materno, militante do PCB. “Ele trabalhou na mina de Morro Velho, em Nova Lima (MG), e participou da organização dos trabalhadores na década de 1930. Também foi perseguido e preso na ditadura. Já na década de 1980, atuou em projetos comunitários na periferia de BH”, afirma. A parlamentar pouco conviveu com o antigo militante, mas as memórias familiares e de amigos próximos servem de exemplo constante.

    O trabalho de Áurea e dos militantes do PSOL mineiro renderam frutos. Em 2018, elegeu-se para a Câmara dos Deputados com 162.740 votos, quase dez vezes mais do que o obtido dois anos antes. Andreia de Jesus, integrante da Gabinetona, foi eleita deputada estadual. “Passamos a ter quatro parlamentares nas três esferas do Legislativo, com equipe ampla trabalhando de forma integrada”, assinala. Em 2020, Áurea Carolina disputou a prefeitura de Belo Horizonte, numa frente com o PCB e a Unidade Popular, alcançando o quarto lugar, com 8,33% dos votos válidos.