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  • Primeiro de Maio

    Primeiro de Maio

    Mário de Andrade
    Mário de Andrade

    Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.

    Dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.

    Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas ruças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.

    O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer… Comunismo? … Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas ruças dum polícia… A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.

    Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar… E o 35 comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.

    Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.

    E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E continuou no passo em férias.

    Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!…” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons… Depois vinham as notícias. Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as ruças de algum… polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.

    Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino…), é melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos menos… O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

    Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!

    Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

    Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

    Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

    Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

    Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.

    O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de “motim”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.

    Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.

    Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandando assim na gente… O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.

    Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:

    — Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no parque ninguém não pára não!

    Cabeças-chatas… E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.

    O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.

    Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro…

    Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus “proletários” também.

    E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.

    Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: “Assim não serve não! As malas não vão não!” Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas “não largavam não”, só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.

    O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.

    — Deixe que te ajudo, chegou o 35.

    E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.

    [Contos Novos]

  • Ideias do Canário

    Ideias do Canário

    machado_de_assis-ideias_do_canarioUm homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

    No princípio do mês passado — disse ele, — indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior.

    Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

    A loja era escura, atulhada das coisas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

    Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois.

    Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

    — Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

    E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

    — Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo…

    — Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

    — Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.

    — Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

    — Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

    Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito.

    — Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?

    — Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que coisa é o mundo?

    — O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

    Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

    — As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

    — Quero só o canário.

    Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

    Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

    Não tendo mais família que dois criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.

    Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar.

    Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

    — O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

    Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias, Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e por-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

    Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto…

    — Mas não o procuraram?

    — Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

    Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

    — Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

    Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuidados de amigos?

    Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular. . .

    — Que jardim? que repuxo?

    — O mundo, meu querido.

    — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

    Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior. . .

    — De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?

  • O escravismo entre o passado e o futuro

    O escravismo entre o passado e o futuro

    O filme “O som ao redor”, de Kléber Mendonça Filho, expõe a incompreensão do Brasil sobre si mesmo e sobre as raízes históricas da violência que atravessa nossa vida urbana.

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    Recife, berço da bárbara civilização brasileira. Num bairro que sintetiza o Brasil, ilhas de luxo em meio ao oceano de favelas. Empregadas domésticas, mulheres negras, lavam as roupas, passam o café na hora certa, são pontuais na faxina. A riqueza hereditária acolhe as novas gerações de patrões. Enquanto cada um cumpre suas funções cotidianas, entre ordens, favores e gestos cordiais, há uma tensão subterrânea que cresce, um susto que está por vir. Por isso, mais câmeras de segurança, alarmes, medo, grades elétricas, luzes automáticas, sensores de movimento, mais tecnologia antipânico e novos guardas noturnos particulares.

    No primeiro longa-metragem de Kléber Mendonça Filho, o bairro de Setúbal é o protagonista. Cresceu rápido, vertical e paranoico. Foi habitado pela típica classe média alta conservadora e por uma aristocracia rural que se reinventou na cidade. Francisco é o proprietário de quase todos os imóveis de alto padrão da região. Melhor dizendo: senhor Francisco. Ele é também proprietário de um engenho decadente no interior, onde passa a maior parte do tempo. Seu neto, João, trabalha como corretor dos apartamentos do avô, odeia o que faz e está empolgado por causa do novo romance com Sofia, que também já morou no bairro. Maria, a empregada doméstica que serve a casa de João, viu o menino nascer. Ele é gentil, íntimo e preocupado. Brinca com as netas da empregada, é cuidadoso com a filha, também empregada, que às vezes vai substituir a mãe. É como se fossem “da família”. A pobreza, como a riqueza, também é hereditária. João é decididamente cordial. Aliás, é um exemplar do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda no século XXI, que trata as relações de exploração por meio do afeto. Ele é o eixo do filme, nos conduz pelas cenas e nos apresenta o bairro e seus ruídos.

    A chegada de uma equipe de três guardas noturnos, contratados para proteger a rua entre 7 da noite e 7 da manhã, é o mote da história. Clodoaldo, o chefe dos guardas, é misterioso e sagaz. Sua simpatia oblíqua gera certa desconfiança. Conforme o tempo passa, cresce a sensação de que algo terrível está prestes a acontecer. O outro neto do senhor Francisco é Dinho, que apesar da farta herança é um ladrão de toca-discos de carros. Seu Francisco já havia alertado: o neto era problema familiar, nada de Clodoaldo se meter. Mas, após um telefonema suspeito, Dinho se indispõe com os guardas e os ameaça com a eficaz postura de “filho do dono”, tão típica da cultura escravista, do sentimento hereditário de patronagem. A tensão cresce. Os tambores surdos e intercalados por largos silêncios aprofundam a atmosfera de mistério. É o som ao redor, africano, aquele que não ousamos escutar.

    Em uma das poucas casas restantes no bairro mora Bia, com o marido e dois filhos. Aparentam ser o núcleo mais modesto da rua – ou melhor, o menos aristocrático, já que aulas de chinês particular para crianças é um luxo nada corriqueiro. Atormentada pelos latidos noturnos do cachorro do vizinho, Bia estende sua insônia madrugada adentro, entre um e outro baseado comprado do vendedor de água. Através da noite, observa as pegadas furtivas de um vulto em cima do telhado da frente. Enquanto isso, sua filha sonha com uma multidão de ladrões que invade o quintal. Acorda assustada.

    A relação entre patrões e empregados está sempre em evidência, dos esporros às gentilezas. Na reunião de condomínio do edifício onde vive João, a maioria defende a demissão, por justa causa, do porteiro sonolento que trabalha para eles há quase vinte anos. A atitude é do tipo “cansei”: “Cansei de ver a minha Vejachegar sem plástico em casa, é revoltante”, afirma uma moradora. O filho pequeno de um condômino gravou um vídeo do porteiro dormindo em serviço. “Só pode ser provocação”, dizem. João defende a permanência do empregado e fica isolado. Os demais alegam que seria muito caro pagar os direitos. Antes da votação, ele prefere sair para encontrar-se com Sofia. A cordialidade de João é ingênua. Trata os empregados que o rodeiam com carinho e, diante de uma injustiça, desabafa meia dúzia de palavras rudes e se retira.

    Quando João e Sofia decidem visitar seu Francisco no engenho, encontram um cenário de ruínas do antigo complexo açucareiro: um cinema antigo, máquinas invadidas pelo mato, a casa-grande, a senzala e os passos do andar de cima. Revisitam o passado imperial. E no meio de um refrescante banho de cachoeira compartilhado pelos três, embaixo de uma densa massa de água que cai pesada e gélida sobre seus ombros, vem a cena-chave do filme: num piscar de olhos, a água se transforma em sangue, vermelho vívido. São poucos fotogramas. João é encharcado pelo sangue que construiu a riqueza do avô. É uma pista para explicar a violência latente da vida contemporânea. O escravismo está entre o passado e o futuro.

    Essa cena faz emergir, em frações de segundo, a história subterrânea que sustenta a história visível. É a mensagem forte do filme. Que o clima de medo, de catástrofe iminente, de terrível ameaça, não precisou de uma gota de sangue para se expandir. Precisou de uma cachoeira. Sobre os jovens ombros de João, pesa o passado de seu avô, com seus capatazes e latifúndios. A chave explicativa da violência contemporânea não seria nem a maldade nem o imediatismo. Seria sim uma violência histórica e estrutural, que permeia o cotidiano brasileiro e já está completamente naturalizada. A paranoia securitária que vivemos é diretamente proporcional à incompreensão das elites nacionais sobre as raízes históricas da violência. Mais que isso: a incapacidade crônica dessas elites de enxergar a reprodução da cultura escravista através dos séculos e as manifestações novas por ela assumidas no presente.

    Não façamos tábula rasa da história. O escravismo brasileiro como sistema econômico acabou há mais de um século. Mas o som ao redor não deixa dúvidas: o escravismo como fenômeno cultural está vivo, renovado pelos hábitos modernos das elites brasileiras. O racismo é disfarçado. Que as empregadas domésticas sejam, no filme, como na realidade, predominantemente negras, não deve ser coincidência. O comportamento autoritário-patronal se expande para muito além da casa-grande. A cordialidade, face fundamental da exploração social, também se sofisticou. Permite que sejamos cada vez mais flexíveis no ato da violência cotidiana. Permite que nossa cultura escravista se adapte às aparências do politicamente correto. Que o intimismo alivie a culpa inconsciente dos herdeiros da aristocracia, dos novos senhores de engenho das cidades.

    Mas, afinal, quem é responsável pela cachoeira de sangue? Provavelmente, quem tem medo da vingança.

    Joana Salém Vasconcelos

    Formada em História na USP e faz mestrado em Desenvolvimento Econômico na Unicamp

    Ilustração: Divulgação

  • A escrita como arma revolucionária

    A escrita como arma revolucionária

    O livro O estilo literário de Marx, do venezuelano Ludovico Silva (São Paulo: Expressão Popular, 2012), traz uma série de análises importantes para o conhecimento de elementos até hoje pouco explorados a respeito do autor de O Capital. O traço marcante do estudo está no fato de que Silva toma Marx não apenas como teórico, mas como escritor, isto é, como sujeito que imprime qualidades literárias – artísticas, estéticas – no material escrito que produz, seja ele de caráter filosófico, político ou científico-social.

    Em Marx, a palavra escrita não serve apenas para apresentar conceitos, mas, também, fundamentalmente, para provocar efeitos sobre a sensibilidade daqueles que recebem suas mensagens: quer causar espanto, estranheza, comoção, cólera, revolta, excitação. Numa palavra: quer mobilizar e canalizar as energias sensíveis da coletividade oprimida para o projeto da transformação revolucionária do mundo. É por esse motivo que, segundo Silva, o sistema científico do pensador alemão está apoiado, de forma consciente, sobre um rigoroso e muito refinado sistema expressivo.alt

    Tal sistema toma corpo através de um peculiar e inconfundível estilo literário. Silva explica o que isso quer dizer: “Literário porque, assim como a poesia abarca um espaço que vai mais além dos versos e se estende na prática a muitos tipos de linguagem, do mesmo modo a literatura, como tal, como conceito e como prática, ultrapassa as obras de ficção ou imagética e se estende por todo o largo campo da escritura. Ademais, o sistema expressivo de Marx constitui um estilo, um gênio expressivo peculiar, intransferível, com seus módulos verbais característicos, suas constantes analógicas e metafóricas, seu vocabulário, sua economia e seu ritmo prosódico. Um gênio posto intencionalmente a serviço de uma vontade de expressão que não se contenta com a boa consciência de utilizar os termos cientificamente corretos, mas que a acompanha com a consciência literária empenhada em que o correto seja, ainda, expressivo e harmônico, e disposta a conseguir, mediante todos os recursos da linguagem, que a construção lógica da ciência seja, também, a arquitetônica da ciência” (p. 11).

    Para corroborar essa tese, Silva sublinha um elemento da formação intelectual de Marx comumente esquecido por muitos de seus seguidores: sua origem no campo das letras. Antes de se tornar experimentado teórico da sociedade capitalista, o pensador alemão dedicou-se de corpo e alma à literatura: estudou línguas clássicas, pesquisou temas estéticos, realizou traduções, escreveu poemas, epigramas, narrativas e até as primeiras cenas de um drama em verso. Não realizou grandes façanhas nesses domínios, é certo, mas soube converter seus fracassos em fonte de criatividade e de vigor expressivo.

    O estudo das línguas mortas, o latim e o grego, por exemplo, serviu para dar-lhe uma profunda consciência da essência de alguns dos idiomas vivos pelos quais se expressava: sua constituição íntima, suas possibilidades criadoras, seus recursos composicionais etc. Também foi importante para despertar no filósofo o gosto pela perfeição expressiva na forma escrita, pela “impetuosidade das frases”, como afirma Silva.

    A poesia, por sua vez, ajudou-lhe a aprimorar sua prosa, visto que o exercício do verso “obriga ao aprofundamento nas qualidades plásticas e rítmicas do próprio idioma, na prosódia mesma” (p. 29). Nesse contexto, é interessante lembrar a afirmação feita pelo linguista e crítico russo Mikhail Bakhtin de que “é só na poesia que a língua revela todas as suas possibilidades. Ali as exigências que lhe são feitas são as maiores. Todos os seus aspectos são intensificados ao extremo, alcançam seus limites. É como se a poesia espremesse todos os sucos da língua que aqui se supera a si mesma” (1). Se levarmos em consideração esse fato, teremos uma boa ideia do que os exercícios literários foram capazes de proporcionar ao estilo de composição textual de Marx.

    É dessa formação intelectual sui generis que vêm os elementos característicos de sua prosa, que Silva, em seu livro, se dedica a enumerar: a arquitetônica da ciência, adialética da expressão, a grande criatividade metafórica, os espíritos concreto, polêmicoe irônico de seus escritos, tão necessários para a denúncia e o combate da realidade alienada e alienante do sistema do capital. Daí os peculiaríssimos efeitos que o estilo literário de Marx causa na sensibilidade de seus leitores: a sensação do sangue fervendo nas veias ao se ler as inflamadas páginas do Manifesto Comunista, a impressão do estranhamento que se desprende das memoráveis passagens dos Manuscritos econômico-filosóficos, a indignação e a revolta que brotam das magníficas sentenças que perpassam todo o sistema categorial de O Capital são alguns exemplos do poder evocativo dessa prosa vigorosa e inspirada.

    O resultado disso, certamente, é prenhe de consequências políticas. Porque a qualidade estética de um texto, o elemento artístico intrínseco a ele, ao tocar o leitor, provoca uma espécie de curto-circuito em suas vias perceptivas, subverte momentaneamente sua forma ordinária de experimentar o mundo e traz à luz novas maneiras de apreender o real que podem servir de combustível e faísca para futuras ações transformadoras.

    A arte, justamente, amplia para o sujeito a capacidade de sentir coisas novas. Sobre isso, escreveu o filósofo brasileiro Leandro Konder: “se não ampliamos o campo daquilo que sentimos (ou que podemos sentir), nossa capacidade intelectual fica prejudicada, nossa racionalidade se deforma. Ou o sensível e o racional se apoiam mutuamente ou ambos sofrem prejuízos” (2). Ou seja, tanto quanto o pensamento, a sensibilidade coletiva deve ser tocada se se quer auxiliar as lutas dos trabalhadores pela emancipação humana.

    Marx sabia disso. Tanto que seus livros não visam apenas transmitir o conhecimento resultante de suas incansáveis pesquisas. Querem, também, transformar algo muito sutil existente no interior de seu público leitor: a apatia em tensão crítica, a resignação em ímpeto fervilhante, a passividade em vontade de movimento. Por certo, esta é uma tarefa tão importante quanto a veiculação de conceitos úteis para o combate e a superação da sociedade do capital.

    Aqui vale lembrar o psicólogo soviético L. S. Vigotski, que acreditava que a arte exerce uma influência especial sobre a vontade e as paixões. Não para mobilizá-las, de pronto, para a ação, mas para produzir um estado de espírito que tenda para a ação futura. A reação artística é, desse modo, algo predominantemente adiado, “porque entre a sua execução e o seu efeito sempre existe um intervalo demorado”. Conforme assinala o célebre autor: “a arte introduz a ação da paixão, rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade em um sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas emoções, paixões e vícios que sem ela teriam permanecido em estado indefinido e imóvel. (…) A arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela” (3).

    O elemento estético pertencente a uma determinada elaboração textual ajuda, assim, o leitor a desidentificar-se com o seu mundo ordinário e a identificar-se com algo até então insólito. Abre para ele a possibilidade de se descentrar de sua individualidade e se sentir parte do gênero humano. A criatura solitária, acabrunhada, tímida e hesitante pode ser levada a sentir o que os gigantes são capazes de sentir. Desnecessário dizer o quanto isso tudo é fundamental para um projeto político alternativo de regulação da vida em sociedade.

    A tradução da obra de Ludovico Silva, que agora temos em mãos, é bem-vinda por permitir aos leitores brasileiros aprenderem a forma como Marx procurava fazer uso constante dessa premissa.

    Notas:

    (1)  BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. Em: Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Ed. Hucitec/UNESP, 1993, p.48.

    (2)  KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 16.

    (3)  VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998 p. 315-20, grifo nosso.

    Ficha

    Título: O estilo literário de Marx

    Autor: Ludovico Silva

    Tradutor: José Paulo Netto

    Editora: Expressão Popular

    Ano: 2012

    Páginas: 110

    Preço: R$ 15,00

    O autor: Ludovico Silva (Luis José Silva Michelena) nasceu em 1937 e faleceu em 1988, na cidade de Caracas, Venezuela. Foi escritor, filósofo, ensaísta e poeta. É considerado um dos mais importantes intelectuais venezuelanos do século XX. Sobre ele, escreveu seu tradutor brasileiro José Paulo Netto: “Ele está, para a cultura da esquerda na Venezuela nos anos 1960/1970, como Mariátegui esteve para a peruana nos anos 1920”.

    Demetrio Cherobini é doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina

    Fonte: Correio da Cidadania

  • “Clima: a mudança é agora ou nunca mais. Estamos à beira do suicídio.”

    “Clima: a mudança é agora ou nunca mais. Estamos à beira do suicídio.”

    Entrevista com o Papa Francisco no voo de volta da África
    PapaFrancisco dialoga com os jornalistas no voo de volta da África. “Se a humanidade não mudar, continuarão as misérias, as tragédias, as guerras, as crianças que morrem de fome, a injustiça.” Sobre o caso Vatileaks: “Foi um erro a nomeação de Vallejo e de Chaouqui”. “Os jornalistas fazem bem em denunciar a corrupção. Agradeço a Deus que não existe mais a Lucrécia Bórgia! Devemos continuar com os cardeais na obra de limpeza.” O reconhecimento à obra de Ratzinger. O fundamentalismo? “Existe em todas as religiões, mas não é religioso, é idolátrico”.

    O mundo está à beira do suicídio e corre o risco de nele cair se não mudar decisivamente de rota ao enfrentar os problemas ligados às mudanças climáticas, fruto do atual modelo de desenvolvimento. Francisco disse isso dialogando com os jornalistas durante o voo de Bangui para Roma.

    O papa também respondeu a algumas perguntas sobre o Vatileaks: “Foi um erro a nomeação de Vallejo Balda e de Chaouqui na comissão Cosea”. Francesco acrescentou um significativo reconhecimento da obra contra a corrupção iniciada por Ratzinger.

    Eis a entrevista.

    No Quênia, você encontrou as famílias pobres de Kangemi e ouviu as suas histórias de exclusão dos direitos humanos fundamentais, como a falta de acesso à água potável. O que sentiu ouvindo as suas histórias e o que é preciso fazer para pôr fim às injustiças?

    Sobre esse problema eu falei várias vezes. Não recordo bem as estatísticas, mas acho que eu li que 80% da riqueza do mundo está nas mãos de 17% da população. Não sei se é verdade. É um sistema econômico que tem no centro o dinheiro, o deus dinheiro. Lembro que uma vez um embaixador não católico, falava francês, e me disse: “Nous son tombeé dans l’idolatrie dell’argent”. O que eu senti em Kangemi? Senti dor, uma grande dor! Ontem [domingo] fui ao hospital pediátrico, o único em Bangui e do país. Na terapia intensiva, eles não têm oxigênio, havia muitas crianças desnutridas. A doutora me disse: a maioria deles vai morrer, porque tem a malária forte e estão desnutridos. A idolatria é quando um homem ou uma mulher perdem a sua carteira de identidade, ou seja, ser filhos de Deus, e preferem buscar um Deus à sua própria medida. Este é o princípio: se a humanidade não mudar, continuarão as misérias, as tragédias, as guerras, as crianças que morrem de fome, a injustiça. O que pensa esse percentual que tem nas mãos 80% da riqueza do mundo? Isso não é comunismo, é verdade. E a verdade não é fácil de ver.

    Qual foi o momento mais memorável da visita? Você voltará para a África? E qual será a sua próxima viagem?

    Se as coisas forem bem, acho que a próxima viagem será ao México. As datas ainda não estão precisas. Se eu vou voltar para a África? Não sei. Estou idoso, as viagens são pesadas! O momento mais memorável: aquela multidão, aquela alegria, aquela capacidade de festejar, de fazer festa, mesmo tendo o estômago vazio. Para mim, a África foi uma surpresa. Deus sempre nos surpreende, mas a África também nos surpreende. Eu me lembro de tantos momentos, mas sobretudo a multidão… Eles se sentiram “visitados”, têm um senso da acolhida muito grande, e eu vi isso nas três nações. Depois, cada país tem a sua identidade: o Quênia é um pouco mais moderno e desenvolvido. A Uganda tem a identidade dos seus mártires: o povo ugandês, tanto os católicos quanto os anglicanos, venera os mártires. A República Centro-Africana tem vontade de paz, reconciliação, perdão. Eles viviam até quatro anos atrás entre católicos, protestantes, muçulmanos como irmãos. Ontem eu fui aos evangélicos, que trabalham tão bem, e depois eles vieram à missa. Hoje [segunda-feira], eu fui à mesquita, rezei na mesquita, o imã subiu no papamóvel para dar uma pequena volta entre os refugiados. Há um pequeno grupo muito violento, acho que cristão ou que se diz cristão, mas não é o Isis, é outra coisa [os anti-Balaka]. Agora, serão feitas as eleições, eles escolheram um presidente de transição, uma mulher presidente, e buscam a paz: nada de ódio.

    Hoje se fala muito do Vatileaks. Sem entrar no mérito do processo, gostaria de lhe perguntar: qual é a importância da imprensa livre e laica para erradicar a corrupção?

    A imprensa livre, laica e também confessional deve ser profissional. O importante é que sejam profissionais, e que as notícias não sejam manipuladas. Para mim, é importante, porque a denúncia das injustiças e das corrupções é um belo trabalho. A imprensa profissional deve dizer tudo, mas sem cair nas três pecados mais comuns: a desinformação, ou seja, dizer só a metade da verdade e não a outra; a calúnia, quando a imprensa não profissional suja as pessoas; a difamação, que é dizer coisas que tiram a reputação de uma pessoa. Esses são os três defeitos que atentam contra a profissionalidade da imprensa. Precisamos de profissionalidade. E sobre a corrupção: ver bem os dados e dizer as coisas. “Há corrupção aqui por causa disto, disto e disto.” Depois, um verdadeiro jornalista, se erra, pede desculpas.

    O fundamentalismo religioso ameaça o planeta inteiro, vimos isso com os atentados de Paris. Diante desse perigo, você pensa que os líderes religiosos devem intervir mais no campo político?

    Se intervir no campo político significa fazer política, não. Sejam padres, pastores, imãs, rabinos. Mas que se faça política indiretamente, pregando os valores, os valores verdadeiros, e um dos maiores valores é a fraternidade entre nós. Somos todos filhos de Deus, temos o mesmo Pai. Eu não gosto da palavra tolerância, devemos fazer convivência, amizade. O fundamentalismo é uma doença que existe em todas as religiões. Nós, católicos, temos alguns – muitos – que acreditam ter a verdade absoluta e vão em frente sujando os outros com a calúnia, a difamação e fazem mal. Digo isso porque é a minha Igreja. O fundamentalismo religioso deve ser combatido. Não é religioso, falta Deus, é idolátrico. Convencer as pessoas que têm essa tendência: eis o que devem fazer os líderes religiosos. O fundamentalismo que acaba em tragédia ou comete crimes é uma coisa ruim, mas acontece em todas as religiões.

    Como foi possível a nomeação do Mons. Lucio Anjo Vallejo Balda e de Francesca Chaouqui na comissão Cosea? Você acha que cometeu um erro?

    Foi feito um erro. Vallejo entrou por causa do cargo que tinha e que teve até agora: ele era o secretário da Prefeitura para os Assuntos Econômicos. Quando ela entrou? Não tenho certeza, mas acho que não me engano se eu disser que foi ele que a apresentou como uma mulher que conhecia o mundo das relações comerciais. Eles trabalharam e, acabou o trabalho, os membros da Cosea permaneceram em alguns postos no Vaticano. A senhora Chaouqui não permaneceu no Vaticano: alguns dizem que ela se irritou com isso. Os juízes nos dirão a verdade sobre as intenções deles, como eles fizeram. Para mim, não foi uma surpresa, não me tirou o sono, porque mostraram o trabalho que se começou com a comissão dos nove cardeais, o de buscar a corrupção e as coisas que estão erradas. Quero dizer uma coisa, não sobre Vallejo e Chaouqui. Treze dias antes da morte de São João Paulo II, durante a Via Sacra, o então cardeal Ratzinger falou da sujeira da Igreja. Ele a denunciou por primeiro. Depois, João Paulo II morreu, e Ratzinger, que era decano, na “pro eligendo Pontifice”, falou da mesma coisa. Nós o elegemos por causa dessa sua liberdade de dizer as coisas. É desde aquele tempo que está no ar que há corrupção no Vaticano. Quanto ao processo: eu não li as acusações concretas. Deveria terminar antes do Jubileu, mas acho que não se poderá fazer isso, porque eu gostaria que todos os advogados da defesa tenham tempo para desenvolver o seu trabalho e que haja liberdade de defesa.

    Como proceder para que esses fatos não voltem a ocorrer?

    Eu agradeço a Deus que não haja mais a Lucrécia Bórgia! Mas devemos continuar com os cardeais e as comissões a obra de limpeza.

    A Aids atinge duramente a África, a epidemia continua. Sabemos que a prevenção é a chave e que o preservativo não é o único meio para parar a epidemia, mas é uma parte importante da resposta. Talvez não chegou o tempo de mudar a posição da Igreja para permitir o uso dos preservativos para evitar novas infecções?

    A pergunta me parece parcial. Sim, é um dos métodos. A moral da Igreja, sobre esse ponto, se encontra diante de uma perplexidade. Ou o quinto ou o sexto mandamento: defender a vida ou a relação sexual aberta à vida. Mas esse não é o problema. O problema é maior: essa pergunta me faz pensar naquela que fizeram uma vez a Jesus: “Diga-me, Mestre, é lícito curar no sábado?”. É obrigatória curar! A desnutrição, a exploração, o trabalho em escravidão, a falta de água potável, esses são os problemas. Não falamos se se pode usar este curativo para tal ferida. A grande injustiça é uma injustiça social, a grande injustiça é a desnutrição. Eu não gosto de descer para reflexões casuísticas quando as pessoas morrem por falta de água e por fome. Pensemos no tráfico de armas. Quando não houver mais esses problemas, acho que se poderá fazer a pergunta: é lícito curar no sábado? Por que as armas continuam sendo fabricadas? As guerras são o maior motivo de mortalidade. Não pensar sobre se é lícito ou não é lícito curar no sábado. Façam justiça, e, quando todos estiverem curados, quando não houver injustiça neste mundo, podemos falar do sábado.

    Qual é a posição do Vaticano sobre a crise que se abriu entre Rússia e Turquia? Você pensou em ir para a Armênia para os 101 anos do massacre dos armênios?

    No ano passado, eu prometi aos três patriarcas que iria. A promessa existe. Depois, vêm as guerras: vêm por ambição. Não falo daquelas feitas para se defender justamente de uma injusta agressão. As guerras são uma indústria. Na história, vimos muitas vezes que um país com o orçamento que não vai bem decide fazer uma guerra e, assim, coloca o orçamento no seu lugar. A guerra é um negócio. Os terroristas fabricam armas? Quem lhes dá as armas? Há toda uma rede de interesses, e por trás há o dinheiro ou o poder. Há anos, nós estamos em uma guerra mundial em pedaços, e todas as vezes os pedaços são cada vez menos pedaços e são cada vez maiores. Não sei o que o Vaticano pensa. O que eu penso? Que as guerras são um pecado, destroem a humanidade, são a causa da exploração, tráfico de pessoas. Devem ser paradas. Para as Nações Unidas, por duas vezes, eu disse essa palavra, tanto em Nova York quanto no Quênia: que o trabalho de vocês não seja um nominalismo declamatório. Aqui na África, eu vi como trabalham os Capacetes Azuis, mas isso não é suficiente. As guerras não são de Deus. Deus é o Deus da paz, criou o mundo todo bonito. Depois, lemos na Bíblia que o irmão mata outro irmão: a primeira guerra mundial. E eu digo isso com muita dor.

    Inicia nesta segunda-feira, em Paris, a COP-21, a conferência sobre as mudanças climáticas. Nós esperamos que possa ser o início da solução. Você está certo de que serão dados alguns passos?

    Eu não estou certo, mas posso lhe dizer: agora ou nunca mais. Acho que a primeira conferência foi realizada em Kyoto… fez-se pouco. A cada ano, os problemas são cada vez mais graves. Falando em uma reunião de universitários sobre que mundo nós queremos deixar aos nossos filhos, um jovem disse: mas você tem certeza de que haverá filhos desta geração? Estamos no limite de um suicídio, para dizer uma palavra forte, e tenho certeza de que quase a totalidade daqueles que estão em Paris têm essa consciência e querem fazer alguma coisa. No outro dia, eu li que na Groenlândia as geleiras perderam bilhões de toneladas. No Pacífico, há um país que está comprando outro país para se mudar, porque, dentro de 20 anos, não vai mais existir [por causa da elevação do nível do mar]… Eu tenho confiança nessas pessoas, tenho confiança de que se fará alguma coisa. Espero que seja assim e rezo por isso.

    Você fez muitos gestos de amizade e respeito para com os islâmicos. O que o Islã e os ensinamentos de Maomé dizem ao mundo de hoje?

    Pode-se dialogar, eles têm tantos valores, e esses valores são construtivos. Eu também tenho a experiência de amizade com um islâmico, um dirigente mundial. Podemos falar. Você tem os seus valores, e eu, os meus, você reza, e eu rezo. Tantos valores: a oração, o jejum. Não pode apagar uma religião, porque há alguns ou muitos grupos fundamentalistas em um certo momento da história. É verdade, as guerras entre religiões sempre existiram. Também nós devemos pedir perdão: Catarina de Médici, que não era uma santa, e aquela Guerra dos Trinta Anos, a noite de São Bartolomeu… Devemos pedir perdão também nós. Mas eles têm valores, pode-se dialogar. Hoje, eu estive na mesquita, o imã quis vir comigo. No papamóvel estavam o papa e o imã. Quantas guerras nós, cristãos, fizemos? O saque de Roma não foi feito pelos muçulmanos.

    Sabemos que você visitará o México. Pretende ir também para a Colômbia ou Peru?

    As viagens, na minha idade, não fazem bem, deixam rastros. Eu vou para o México e, em primeiro lugar, vou visitar a Senhora, a Mãe da América [Nossa Senhora de Guadalupe]. Se não fosse por Ela, eu não iria para a Cidade do México pelo critério da viagem: visitar três ou quatro cidades que nunca foram visitadas pelos papas. Depois, vou para Chiapas, depois para Morelia e, quase certamente, no caminho de volta para Roma, haverá um dia para Ciudad Juarez. Sobre os outros países latino-americanos: em 2017, fui convidado para ir a Aparecida, a outra padroeira da América de língua portuguesa, e de lá se pode visitar algum outro país. Mas não sei, não há planos.

    Essa foi a sua primeira visita, e todos estavam preocupados com a segurança. O que você diz ao mundo que pensa que a África é apenas vítimas de guerras e destruição?

    A África é vítima, a África sempre foi explorada por outras potências. Os escravos da África eram vendidos na América. Há potências que buscam apenas tomar as grandes riquezas da África, talvez o continente mais rico, mas não pensam em ajudar os países a crescer, não pensam em fazer com que todos possam trabalhar. A África é mártir da exploração. Aqueles que dizem que da África vêm todas as calamidades e todas as guerras não conhecem bem o dano que certas formas de desenvolvimento fazem à humanidade. E, por isso, eu amo a África, porque foi vítima de outras potências.

    * * *

    No fim, depois de agradecer novamente aos jornalistas pelo seu trabalho realizado durante a viagem, o pontífice fez a seguinte conclusão sobre a entrevista recém-terminada: “Eu respondo aquilo que eu sei, e o que não sei eu não digo, não invento”.

    Original: Vatican Insider, 30-11-2015

    Tradução: Moisés Sbardelotto

    Fonte: IHU, terça-feira, 01 de dezembro de 2015

  • 1º de abril

    1º de abril

    Rute Gusmão
    Rute Gusmão

    Quarenta e três anos depois, cá estou novamente com minha velha camisa no cenário de acontecimento que marcou minha juventude. A casa veio abaixo, mas o terreno foi recentemente ocupado pelos estudantes, arrumado com palco, som, cadeiras e painéis para um show e exposição de fotos históricas. O evento comemora a retomada vitoriosa do espaço usurpado pela ditadura, com muita gente presente à celebração neste 1º de abril – políticos, jornalistas, estudantes, ex-dirigentes das entidades, cidadãos.

    Enquanto observava as fotos expostas, comentei em voz alta que estivera no local naquele dia. Alguns estudantes escutaram o que eu disse, notaram a camisa que eu usava e começaram a me perguntar sobre o que ocorrera. Organizaram uma roda num canto e chamaram companheiros para me ouvir.

    *

    Na véspera iniciáramos uma greve contra possíveis tentativas de derrubada do governo e em defesa da legalidade. O país vivia período conturbado, forças se articulavam para reagir à possibilidade de reformas. Eu fazia o primeiro ano de Engenharia e participava das atividades culturais, políticas e esportivas do diretório acadêmico. Entidades estudantis tinham marcado um torneio de tênis de mesa em que eu representaria a escola e, embora fosse difícil que se realizasse num dia de greve, não quis deixar de ir. No diretório jogava com frequência partidas de tênis de mesa. Namorava uma menina do Serviço Social, a Lúcia, que conheci numa festa.

    Saí de casa debaixo de chuva fina assobiando “A canção do subdesenvolvido”, do Carlos Lyra com o Chico de Assis, que eu e o broto gostávamos de ouvir e de cantar. Era uma espécie de hino do Centro Popular de Cultura, associado à União Nacional dos Estudantes. Tínhamos assistido à apresentação e ouvíamos sempre o compacto com a música. Enquanto andava, pensava na Lúcia, e repetia mentalmente os versos que falavam de amor e ironizavam o país:

    “O Brasil é uma terra de amores…”

    Eu morava no Catete com meus pais. Naquele fim de tarde de março vestia calça marrom e camisa bege de tergal. O encontro com o Bolão, meu companheiro de time, seria às cinco da tarde, na porta da UNE. Ao seguir em direção à praia me lembrei do que meu pai dissera no café da manhã – o governador se entrincheirara no Palácio Guanabara, o presidente se encontrava no Rio. Naquele dia o velho fizera uma caminhada a Laranjeiras. Na ida tinha passado pelo Parque Guinle, onde, espiando entre os flamboyants, deduziu que Jango estava no palácio, pois dois tanques de guerra guardavam o prédio. Na Rua Pinheiro Machado, em frente ao palácio do governo estadual, fora erguida uma barricada com caminhões e sacos de areia. A Polícia Militar estava de prontidão. O governador Carlos Lacerda temia as tropas fiéis ao presidente ou, quem sabe, uma invasão do povo ao palácio. O medo não era à toa: alguns anos antes tinha mandado fechar a sede da entidade estudantil e combatia os que queriam reformas.

    Enquanto andava na praia do Flamengo lembrei-me do comício em que estivera com colegas, há algumas semanas, na Central do Brasil. Vibramos com a massa humana que se reuniu para ouvir a liderança sindical, estudantil, política e a esperada fala do presidente. Foi forte a impressão provocada pelo discurso indignado de Jango naquele dia, ao lado da bela esposa, quando comunicou à multidão propostas ousadas, entre as quais a desapropriação de terras para a reforma agrária e a encampação de refinarias de petróleo. Saímos preocupados com a denúncia da campanha organizada com o propósito de prejudicar o comício. Havia pressões de todos os lados: dos que temiam mudanças e dos que não aceitavam acordos. O país poderia caminhar em direção às reformas de base, mas havia o risco de dar tudo errado.

    Na caminhada, olhando o Cara de Cão à minha frente, pensei no texto que o departamento cultural de nosso diretório tinha distribuído com a fala do ministro da Educação. Não me saía da cabeça seu entendimento sobre a educação para o desenvolvimento e a cultura para a liberdade. Nossa formação deveria se comprometer com a mudança das estruturas que impediam a expressão da cultura.

    Eu seguia em direção à UNE, quando passou por minha mente o que assistira na véspera pela televisão. A Associação de Sargentos comemorava no Automóvel Clube a posse da diretoria com a presença de marinheiros e de Jango. Em seu discurso ele alertou sobre grupos empenhados em barrar conquistas populares, inimigos da democracia e à resposta de Dom Hélder aos que – em nome da igreja – atacavam as reformas. Defendeu a mudança constitucional e a regulamentação da remessa de lucros. A polarização política era evidente.

    Em poucos minutos cheguei ao Bar Cabanas, aqui ao lado, que hoje tem outro nome. A canção ainda me martelava a cabeça:

    “(…) Debaixo de um céu de anil,

    Encontrareis um gigante deitado:

    Santa Cruz, hoje o Brasil”.

    Pedi pão na chapa com manteiga e café preto. Assim estaria com o estômago forrado, o torneio poderia ir até tarde. Enquanto comia o pão crocante no balcão do bar, observava a porta da entidade. Bolão ainda não dera sinal de vida. Havia um movimento pouco usual. Reuni mentalmente alguns fatos. A UNE sofrera atentados e era guardada por fuzileiros. A igreja católica conservadora, setores da classe média e a elite colocaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade nas ruas de São Paulo, do Rio e de outros Estados. O que seria agora?

    Ao chegar à porta do prédio um jovem pediu minha identidade. Expliquei que estava ali para participar de um campeonato de tênis de mesa organizado por nossa Confederação de Desporto. Quantas vezes eu entrara no prédio como em minha casa, sem nenhuma explicação ou documento! Ele me olhou com ar irônico. O prédio foi metralhado e você vem aqui jogar pingue-pongue, companheiro? Fiquei sem graça. Olhei para o alto do edifício e vi uma faixa com a inscrição: “A Ubes repudia a marcha dos golpistas”. Mostrei a carteira do diretório e entrei, nem queria saber. Fui até o local onde seria o torneio e não encontrei ninguém. Agitação, gente reunida, alguns subiam, outros desciam a escada, às pressas pelos corredores. Perguntei a um estudante o que estava acontecendo.

    O general Mourão conseguiu apoio militar. Está vindo de Juiz de Fora com tropas.

    A situação era muito grave. Eu devia ficar um pouco mais e ajudar em alguma tarefa. Precisávamos nos organizar para manifestações. Comecei a andar pelo prédio. Numa sala do térreo encontrei dois estudantes que, aturdidos, tentavam pôr para funcionar um mimeógrafo elétrico. Queriam imprimir um panfleto. Eu conhecia o equipamento, utilizara um idêntico na impressão de boletins da igreja que frequentava e ofereci ajuda. Com engenharia acertei o estêncil e a engrenagem passou a rodar. Quando algumas pilhas de panfletos estavam prontas, além do suor que ensopou minhas costas, eu estampava na camisa de tergal uma grande mancha da tinta preta usada no trabalho. Dirigi um “até amanhã” aos companheiros e fiz o caminho de volta para casa. Era 31 de março de 1964.

    *

    Meu pai me esperava na sala, a mãe já dormia. O velho era fumante, tinha uma tosse cavernosa. Olhou para mim e não pode deixar de ver na camisa a mancha que aparecia como bandeira numa passeata. Passei a mão sobre o tecido, como se quisesse limpá-lo. Onde estava, filho, na UNE de novo? Expliquei que fora até lá para o torneio e, como a situação era tensa, dera uma ajuda na impressão de um panfleto. Ia lavar a camisa e tudo ficaria bem. O pai não deixou que eu saísse da sala, me segurou pelo braço. Torneio? Espera aí, Marcos, quero lembrá-lo de uma história, aliás, já conhecida sua.

    Fiquei irritado, o coroa não entendia que eu não precisava mais de tanta proteção. Queria dormir, era tarde, no dia seguinte o movimento seria grande e ainda pretendia acertar um encontro com a Lúcia. Não era necessário me contar de novo que fora desancado pela polícia quando rapaz e por isso sofria até hoje de dores no lombo. Ele insistiu, queria me envolver em suas emoções e convencer a ter cuidado. Você VAI OUVIR AGORA, disse, me puxando pela camisa.

    Foi no final da primeira guerra, época em que a gripe espanhola matava no mundo todo e já chegara ao Rio. Até o presidente Rodrigues Alves tinha sido vítima dela. Eu era rapazola e me envolvi com os socialistas, por meio de um amigo do sindicato. Consegui emprego na Cantareira, a empresa das barcas que fazia o trajeto Rio – Niterói. Trabalhava na parte mecânica e tinha parado de estudar. Era necessário participar das despesas de casa. Naquele ano houve greves operárias importantes, em vários pontos do país, pela melhoria dos salários e das condições de trabalho. Nossa greve na Cantareira foi muito forte, mas a repressão também. Eu estava na gráfica quando a polícia baixou lá. Foi uma pancadaria só. Horas depois fui encontrado por companheiros desacordado. Podia ter morrido na greve, como outros morreram. Meus pais decidiram que eu não continuaria enfurnado no porão das máquinas e voltaria à escola.

    *

    Levantei-me cedo, antes do pai e da mãe. Lavei a camisa, mas não havia o que tirasse a mancha. Fiz café às pressas, engoli o pão e sai. Quase corria em direção à UNE. Dobrei a esquina da praia e não gostei do que vi – trânsito e fumaça. Logo adiante, gente parada na calçada. Uma fogueira. Tremi. Homens estranhos dominavam a cena. Socorreu-me a lembrança do refrão “subdesenvolvido, subdesenvolvido”, que comecei a assobiar nervoso, como se a estudantada estivesse toda ali, comigo. Lúcia não aparecera.

    Pedaços de móveis e de equipamentos, papéis, fotos, queimavam ao lado de uma palmeira solitária, também sujeita ao fogo, em cujo tronco costumávamos colar cartazes. O canteiro com mato, em que fora plantada, ardia. O vento espalhava fumaça e cinzas, virava páginas. Balbuciei desolado um verso da canção, que não me abandonou:

    “O país passou a ser um bom quintal…”

    Algumas pessoas próximas à fogueira, outras dos carros, olhavam surpresas. O prédio número cento e trinta e dois da Praia do Flamengo soltava fumaça como chaminé, o velho prédio da UNE. Eu não conseguia dar um passo. Estivera ali há poucas horas e não podia acreditar no que via. O que tinha acontecido aos diretores, estudantes, artistas?

    Minha pele começava a arder. Alguém comentou que os bombeiros já tinham sido chamados, mas o fogo continuava. Soube que companheiros saíram pelo telhado. Panfletos atirados e espalhados pela rua, como se fosse uma comemoração. Por uma janela eram jogados cadernos, documentos, discos, livros, caixas. Algo ficou preso no fio elétrico. Um pedaço de alguma coisa voou pela varanda do segundo andar e se espatifou na calçada. Estourou uma bomba lá dentro. Gritos. Correria. Confusão.

    Entre um equipamento quebrado e madeiras – eu não podia acreditar – vi uma sucata queimada e retorcida que lembrava o mimeógrafo de estêncil, e montes de panfletos alimentando labaredas. Cheguei mais perto, olhei para o chão. Podia reconhecer os que pegavam fogo logo ali, a meus pés. O corpo ardia, eu estava no meio da fogueira. Na mente, alegrias e sofrimentos da luta. No coração filmes, poemas, peças, debates que transformaram minha vida. O estômago queimava. Tudo se apagaria ao final da fogueira? Palavrões queriam sair com o café da manhã. Veio à tona o trecho da canção:

    “Na boca do forno, forno.”

    Não consegui ficar ali. Virei de costas para o prédio em chamas. A Baía de Guanabara continuava calma. Queria mergulhar naquela água, mesmo misturada a esgoto. Melhor que assistir àquele espetáculo e sentir o corpo queimar. A paisagem estava lá, no mesmo lugar. Respirei fundo.

    Lúcia finalmente chegou, me segurou pela mão e disse baixo, ao pé do ouvido: é o prédio que esse bando depreda. A história de lutas continua. A entidade somos nós!

    Estudantes nos chamaram para ir à Cinelândia. Suprimi o desejo de mergulhar. Esqueci as palavras prudentes de meu pai. Num impulso seguimos com os companheiros.

    A Avenida Rio Branco estava vazia, fora interditada ao trânsito. Na Cinelândia nos juntamos aos que gritavam nervosas palavras de ordem. Depois de algum tempo percebi um tanque despontando lá longe, seguido por outros, e soldados armados que caminhavam em direção à praça. A presença de um sargento em cima do aparato de guerra nos deixou na expectativa de que os sargentos apoiariam a legalidade, afinal, eram aliados do governo. Dois dias antes o presidente estivera na posse da diretoria de sua associação.

    O primeiro tanque se aproximou e se posicionou em frente ao Clube Militar. A multidão estava tensa. O soldado que manejava o canhão começou a girá-lo devagar, até apontá-lo na direção dos manifestantes. Surpresa geral. Exclamações. Protestos. Desespero.

    É o inimigo. O governo caiu!

    Abracei minha namorada. Choramos agarrados. Quando tomei o rumo de casa, depois de deixá-la numa condução, me veio à cabeça um trecho da canção:

    “Subdesenvolvida, subdesenvolvida.

    Essa é que é a vida nacional.”

    *

    Não era um primeiro de abril.

    Segui a pé pela beira-mar chutando uma lata amassada que encontrei no meio-fio. Um cachorro me seguiu da Glória à Rua do Catete. Chovia.

    Ao chegar em casa desabei no ombro do pai. Disse-lhe: queimaram tudo, Jango caiu. Naquele dia me abraçou apertado. Contei que uma edição inteira de um livro virara cinzas. Para o poeta que o escrevera, a cultura podia transformar a sociedade, devia estar a serviço do povo. Artistas e intelectuais deviam estar mergulhados na realidade do país. O que poderia estar errado naquele pensamento para merecer a fogueira?

    Meu pai tossiu forte, limpou a garganta e depois de alguns segundos em silêncio disse, sem conseguir conter a emoção: é purificar pelo fogo. Intolerância, golpe! Então se controlou. Um vinco fundo surgiu entre as sobrancelhas. Começou a falar em tom professoral sobre tentativas de destruição do conhecimento através do fogo, desde os ataques à biblioteca da Alexandria. Algumas vezes queimaram não só os livros, mas os autores também, como na Inquisição. Outras, perseguiram aqueles que não pensavam como nazistas: Freud, Einstein, Thomas Mann. Esse golpe não pode destruir a liberdade de pensamento, a democracia, o que avançamos em matéria de cultura.

    O pai tinha razão. Por que os golpistas tiveram que metralhar, saquear e queimar a entidade?

    Muitos interesses foram ameaçados. Vamos esperar que Jango seja reconduzido sob condições.

    *

    O pai estava equivocado naquela avaliação. No mesmo ano a UNE foi colocada na ilegalidade. O trabalho do CPC entrou em recesso. No ano seguinte, contrariando meu velho, aderi à clandestinidade.

    Quando saí da casa de meus pais, entre meus pertences levei para o conjugado que aluguei no Catete a camisa de tergal manchada. Sempre que algum companheiro desaparecia – preso ou assassinado pela mão pesada da ditadura – me lembrava do que acontecera naquele dia, sinal dos anos de violência que se seguiriam.

    *

    Dezesseis anos depois vesti de novo a velha camisa. Veio à lembrança a conversa que tive com meu pai. Mesmo sem força, o governo militar mandara demolir o prédio que não abrigava mais nada e – apesar da reação de milhares de estudantes e cidadãos em ato público, sob violenta repressão – conseguiu destruir a velha casa das lutas estudantis. Naquele dia um brucutu lançou água com tinta para marcar os manifestantes. Minha camisa ganhou outra mancha, agora colorida, que se espalhou no peito, ao lado da mancha preta.

    Agosto de 2010

    Rute Gusmão

  • Faleceu Antonio Tabucchi

    Faleceu Antonio Tabucchi

    Antonio Tabucchi. O escritor participou na lista do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu em 2004. Foto de uminuscula
    Antonio Tabucchi. O escritor participou na lista do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu em 2004. Foto de uminuscula

    Antonio Tabucchi morreu na manhã deste domingo em Lisboa, aos 68 anos. O escritor italiano, desde há muito ligado a Portugal, estava internado no Hospital da Cruz Vermelha, informou a viúva, Maria José de Lencastre.

    Tabucchi era natural de Vecchiano, província de Pisa, e professor de língua portuguesa na Universidade de Siena. Apaixonado por Portugal, era também tradutor e crítico da obra de Fernando Pessoa, à qual chegou nos anos 1960.

    Entre outras obras, Antonio Tabucchi escreveu uma comédia teatral sobre Pessoa. Entre os prémios que recebeu figuram o Prémio Médicis, por “Nocturno Indiano”, e o Prémio Campiello, por “Afirma Pereira” . Estava sempre na lista de candidatos ao Nobel da Literatura.

    Entre as obras adaptadas para o cinema, destaca-se “Afirma Pereira” (1995), cujo protagonista foi Marcello Mastroianni, que contracena com Mário Viegas e João Grosso, entre outros.

    Nas eleições europeias de 2004, o escritor participou na lista do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu, na sétima posição, explicando que o importante era participar, que a sua candidatura visava defender a cultura e que estaria disponível também para integrar as listas de outro partido de esquerda, desde que tivesse sido convidado para tal e que se identificasse com as opções políticas.

    Aliás, a nacionalidade portuguesa foi-lhe concedida em 2004, uma mera formalidade para quem costumava dizer que sonhava frequentemente em português.

    Entre as suas obras figuram também “Pequenos equívocos sem importância”, “Une baule pieno di gente”, “Os últimos três dias de Fernando Pessoa”, “A cabeça perdida de Damasceno Monteiro” e “Está a fazer-se cada vez mais tarde”.

    Pensador e interventivo

    Nos jornais italianos, franceses ou espanhóis, Antonio Tabucchi foi ainda um pensador do mundo que o rodeava, contra a xenofobia e o preconceito, em particular voz crítica da governação de Silvio Berlusconi.

    Em maio de 2008, no Unitá, Antonio Tabucchi mencionou os laços mafiosos de Renato Schifani, o advogado italiano que era um dos principais suportes políticos de Berlusconi. Repetia as informações que já eram conhecidas do público, precisando que o presidente do Senado italiano tinha sido absolvido apesar das suspeitas.

    Apesar destes cuidados, Schifani não hesitou em processar o escritor e o montante astronómico da indemnização pedida fez soar os alarmes da defesa da liberdade de imprensa.

    Um conjunto de intelectuais lançou então um apelo em forma de petição a favor de Antonio Tabucchi. Entre os primeiros subscritores encontravam-se os cineastas Theo Angelopoulos, Costa-Gravas, os escritores Philip Roth, Jorge Semprun e Fernando Savater. Na origem do apelo estavam dois portugueses, António Lobo Antunes e Mário Soares.

    Em abril sairá “O tempo envelhece depressa”, pela editora D. Quixote, um conjunto de contos nos quais se debruça sobre a passagem do tempo, o passado e o presente.

    Veja abaixo o final de “Afirma Pereira”, o último filme de Marcello Mastroianni, baseado no romance homólogo de Antonio Tabucchi.

     

    Fonte: Esquerda.Net, 25/03/2012

  • Conversa limite

    Conversa limite

    Charge TorturaEle contou quando chegavam os pratos à mesa: feijão, arroz, carne de banda engordurada e batatas; começou no assunto se gabando, como quem quer dizer coisa que valha; levantei o olhar da comida quando senti carência de atenção; o assunto passou a interessar. Era policial miúdo, segundo não disse, mas tinha função que julgava importante: torturava. Não. Disse que nos últimos anos, devido a sua habilidade em arrancar confissões, se especializara. Vieram bolinhos de arroz à mesa, ensebados; pensei: desses, passo. Após se vangloriar de sua escolha entre tantos para tão espinhosa tarefa, começou a contar o que de início já queria; falou com cara espremida, como de ruim inevitável; de socos, pontapés, da insistência de uns em resistir, resistir, resistir…. Falou repetindo, muito amargando a resistência de quem resistia. Pedi cerveja, ele cachaça. Estava quente e a comida gordurosa fazia impressão de calor maior. Suávamos na testa e no pescoço. Ele continuou narrando um caso especial, um homem que mais do que resistir o matara de impaciência; impacientou o fulano esse homem especial por uma negativa que esbarrava na evidência; o homem sabia, mas negava e apanhava; se sabia o que ele sabia e mesmo o que ele sabia não era mais importante, mas não… Foi preciso ir mais e mais fundo; fez um gesto de impaciência o homem que me contava sobre o homem que resistia; deu um gole na cachaça, jogou o corpo pra frente e me falou tão de perto que seu bafo me repugnou: ? Todo homem tem um limite, pode me acreditar. Disse como quem diz: Matei de porrada, desanquei o desgraçado, fodi sua existência, acabei com a raça, apaguei o filho da puta; mas assim não disse. Não. Falou que todo homem tem um limite. Acreditei e ele me disse, como quem encerra um assunto, que o homem que o fizera perder a paciência não havia confessado o que todos sabiam. Não perguntei o que todos sabiam, nem o que acontecera ao homem que resistira. O prato feito era maçaroca gordurosa que só engoli ajudado com goles de cerveja em cada garfada. Seguiu falando o homem que constatara que o homem tem um limite; falou de tudo; mudou; pressentiu, creio, minha fraqueza para esses assuntos. Depois pedimos a conta e ele foi embora, como um homem comum.

    Flávio Braga é romancista, roteirista e editor.

  • Lembranças de Nova Iorque

    Lembranças de Nova Iorque

    www.robertogranja.com.br
    www.robertogranja.com.br

    Morava eu em Paris e tinha um passaporte do Alto Comissariado da ONU para Refugiados, quando, por volta de 1978, viajei com outros exilados para participar de um evento na Costa Rica.  Era um seminário sobre a América Latina, patrocinado pela Federação Mundial da Juventude Democrática.  Não tenho muita certeza do ano, mas o mês era dezembro, sem dúvida.

    Bem, todo mundo sabe que sou um desmemoriado.  Então, como posso afiançar assim, tão categoricamente, que foi num mês de dezembro?  É simples.  Esses encontros nunca excediam uma semana e, quando o seminário terminou, estávamos às vésperas do Natal.  Acreditem ou não, isso é sustentado pela própria história que vou contar.

    Como não havia voo direto Paris-San Jose, o jeito era fazer uma troca de avião no Panamá.  Mas o aeroporto do Panamá tinha um probleminha: era uma espécie de buraco negro no qual sumiam as bagagens durante a transferência de uma aeronave para a outra.  Embora o sumiço fosse previsível, não se podia evitá-lo.  Parece que a coisa tinha um estatuto de lei da física.  Tratava-se, pelo visto, de uma fatalidade irrecorrível.  E foi assim que desembarquei em San Jose só com a roupa do corpo e a maleta de mão.

    O seminário versava sobre a questão democrática na América Latina, ou qualquer coisa que o valha.  E transcorreu burocraticamente, como soia acontecer nesses eventos juvenis internacionais, que reuniam invariavelmente aprendizes de diplomata dos países do “socialismo real” e representantes das juventudes dos partidos socialistas e comunistas ocidentais e dos partidos social-democratas no governo.

    A inutilidade dessas reuniões era proverbial.  Se por acaso alguém vislumbrar alguma função nelas, este será um gênio ou uma besta.  Mas, com certeza, era uma oportunidade para se fazer um turismo semi-oficial.  Foi desse modo que conheci a Costa Rica e, de quebra, uma costarriquense cujo interesse teórico pela questão democrática latino-americana se incendiava ao contato das nossas íntimas partes pudendas.   A bem da verdade, foi a ela que me dediquei com maior afinco na meia-dúzia de três ou quatro dias de reuniões a que assisti.

    Dessa viagem, ficou-me uma viva impressão da brava companheira costarriquense, reformista social-democrata que se acasalou à perfeição com o meu indomável espírito revolucionário proletário .  Aprendi muito com ela.  Sobre o diálogo silencioso dos corpos, por exemplo.  E, inclusive, sobre estalidos de salivas e gemidos e sussuros que fazem a alma desabafar em suspiros.  Mas também sobre doces palavras castelhanas que não saberia traduzir, mas cujo sentido não me escapava e eriçava-me as mais recônditas penugens pubianas.

    Pois encontrava-me nessas lides, que todos podem imaginar, quando me dei conta de que era hora de voltar à Paris.  Voltar pra quê?  Ora, para passar o natal em casa com a minha encantadora esposa, que me esperava.  Todavia, aguardava-me uma ingrata surpresa: as passagens estavam esgotadas por conta das festas de fim de ano.  O leitor (ou será leitora?) poderá imaginar a aflição de um marido apaixonado diante da trágica perspectiva de passar a noite do menino da manjedoura longe de sua adorada esposa.  Era tal meu desespero que esqueci da costarriquense.  Eu queria porque queria passar o natal com a minha amada em Paris.  Então, o vendedor da American Airlines apresentou uma saída: tomar um voo da companhia estadunidense até o aeroporto de Nova Iorque e lá fazer a transferência para um voo da Air France para Paris.  Comprei os bilhetes e embarquei para o aeroporto John Kennedy.

    Eu pensava que o pior já havia passado, mas o pior ainda estava por vir.  Antes de prosseguir, uma correção.  Eu venho relatando os fatos como se a dificuldade em voltar para a Europa fosse um problema só meu.  Na verdade, afetava um grupo mais ou menos numeroso de participantes do evento, entre os quais vários brasileiros.  Não citarei nomes, por duas boas razões.  A primeira é a minha falta de memória: simplesmente não lembro.  A segunda é que as pessoas estão vivas e não quero provocar melindres.  (Abro aqui um parêntese para dizer que essa história de poder citar mortos e não poder citar vivos me soa como uma perfeita covardia.  Afinal os vivos têm sobre os mortos a vantagem de poder se defender.  No caso, porém, não citarei vivos nem mortos.  E digamos que é porque me esqueci dos nomes.)

    Voava rumo a Nova Iorque com a atenção dividida entre o futuro imediato, que me aguardava em Paris, e o passado recente, que eu deixara ficar definitivamente para trás, mas ainda se insinuava fresco na memória.  Passara a última noite com a costarriquense e fora uma despedida inesquecível.  Ela me pedira que eu deixasse um pouco de mim para ela.  Eu a penetrei, vagarosamente, e emiti golfadas de emoção.  Depois, parti sem olhar para trás.  Trazia opresso no espírito a certeza de que na Costa Rica ficara uma gota do meu ser.  Dessa gota, eu jamais teria notícias.

    Havia um pequeno detalhe: eu não tinha visto de entrada para os Estados Unidos.  Todavia, o vendedor da American Airlines me certificara de que não era necessário, pois eu estaria em trânsito no aeroporto John Kennedy por apenas algumas horas ou mesmo menos de uma hora.

    Quando desembarquei em Nova Iorque, ainda enlevado com as lembranças do pedaço de mim que ficara na Costa Rica, mostrei na aduana o passaporte e a passagem para o vôo da Air France que partiria em seguida para Paris.  O funcionário olhou para mim e exclamou: Terrorista!  Desentendido, olhei pros lados buscando saber de quem ele estava falando.  Logo me dei conta que era de mim.

    Agora, vejam vocês.  Havia todo um grupo nas mesmas condições que eu.  Por que o funcionário da aduana foi invocar logo comigo, e apenas comigo?  Achei aquilo uma tremenda injustiça.  Entre os brasileiros havia até um banido.  Pois o banido passou e eu fui preso.  Muito estranho os critérios dos nossos vizinhos do norte.  Por que eu?  Até hoje não tenho uma explicação plausível.  Eu fora um militante apagado, com escassas e secundárias atuações nas lides da clandestinidade.  Por que eles queriam a mim e não ao banido?  Nunca imaginei que eu pudesse ser matéria de interesse para a CIA ou o FBI.  De certa forma, isso era até motivo de lisonja para mim.  Ou será que eles se enganaram de pessoa?

    Fui algemado e conduzido a um canto sob a mira do revólver de um guarda do aeroporto.  Logo se formou uma aglomeração de curiosos.  Invariavelmente, perguntavam ao guarda quem era eu.  O guarda, muito excitado, dizia que eu era um terrorista perigoso.  Tentei argumentar que terrorista, vá lá; mas perigoso, não, pelo amor de deus!  O guarda, um sujeito baixinho, gordinho, meio ridículo, de descendência hispânica, pôs-se possesso e, num espanhol de meter medo, mandou, ameaçador, que eu calasse a boca.  Olhei para o cano do revólver que ele apontava para o meu nariz e achei melhor ficar quieto.  Mas, sabe como é, numa situação dessas, a tendência é a gente ficar com vontade de mijar (isso quando o sujeito tem dignidade e não se caga todo).  Disse ao guarda que precisava ir ao mictório.  Ele ficou me olhando como se eu estivesse dizendo algo sem sentido.  Expliquei que sofria de incontinência urinária, que já não agüentava mais e que iria urinar nas calças ali mesmo.  Diante da minha ênfase, ele me conduziu ao banheiro.  Acontece que eu estava com as mãos algemadas nas costas.  Fiz ele ver que eu precisa de ajuda para abrir a braguilha e direcionar o jato de urina para o recipiente adequado.  Ele fez uma cara de nojo.  Hesitou por um momento.  Finalmente, decidiu liberar as minhas mãos para que eu fizesse por mim mesmo o que de outro modo as mãos dele teriam de fazer por mim.  Dei uma longa e prazerosa mijada, o que aliviou a minha tensão.

    O local aonde fui levado em seguida era uma cela ampla, nas instalações do próprio aeroporto, que estava lotada com africanos e asiáticos (talvez muito mais asiáticos do que africanos).  Não havia camas, de modo que me acomodei num banco, certo de que, em meio àquela balbúrdia, no dia seguinte ninguém mais saberia informar quem era eu e o que estava fazendo ali.  Nessas situações, costumo ser acometido de uma sonolência irreprimível.  Dormi.  Fui acordado no dia seguinte por um sujeito que poderia muito bem ser o Agente 007: alto, forte, loiro, de olhos azuis, impecavelmente bem vestido, de terno e gravata, trato cordial, falava um português gramaticalmente correto e sem sotaque.  Seria, talvez, um frio assassino, como soem ser os agentes da CIA; não me pareceu, entretanto, um sádico.  Perguntou se eu aceitava partir num voo para Amesterdã que saía daí a 15 minutos.  Prontamente, disse que sim.  Embarcaria para qualquer lugar que não fosse o Brasil.  Devolveu-me o passaporte e conduziu-me ao avião.

    O calendário marcava o dia 24 de dezembro quando desembarquei à tarde no aeroporto de Amesterdã.  O funcionário da aduana holandesa tomou um susto ao inspecionar o meu passaporte.  Haviam estampado lá algo assim: Perigoso terrorista expulso dos Estados Unidos.  O holandês perguntou o que eu havia feito contra os estadunidenses.  Respondi que, simplesmente, não fizera nada.  Contei que faria uma baldeação no aeroporto John Kennedy e que fora detido sem mais nem menos.  O amesterdamês acreditou na sinceridade de minhas palavras.  Apenas comentou: Esses americanos são malucos!

    Ainda deu tempo de tomar o trem e chegar a Paris antes da meia-noite.  Minha adorada esposa me aguardava aflita.  Passamos a ceia de Natal juntinhos.  Já nem me lembrava mais da costarriquense.

    E quer saber de uma coisa?  Sinceramente, acho que essa história de costarriquense só pode ter sido mais uma astúcia da minha imaginação.

    Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996)